Encontros com a Filologia | LaborHistórico | 2019

Somos muito solitários nas inúmeras horas de pesquisa com manuscritos velhos (por vezes empoeirados), nas frustrantes tentativas de compreensão das caligrafias, nas leituras interrompidas pelas rasuras, nas dificuldades de acesso aos documentos de processo e de sua publicação […].

(GAMA, 2017, p. 135)1

A Filologia é uma área multidisciplinar com interfaces com diferentes áreas científicas. Prova disso é que não encontramos uma única definição para essa área. Em um sentido lato, o qual nem utilizamos muito no Brasil, Bluteau em seu Vocabulario Portuguez e Latino apresenta a seguinte definição:

Philologia. He palavra Grega composta de Philos, Amigo, e Logos, discurso; e Philologia val o mesmo que Estudo das letras humanas, começando da Grammatica, (que antigamente era a parte principal da Phililogia,) e proseguindo com a eloquencia Oratoria e Poetica, com as noticias da Historia antiga, e moderna, com a intelligencia, interpretação, e Critica dos Authores, com a erudição sagrada, e profana, e géralmente com a comprehensaõ, e aplicação de todas as cousas, que podem ornar o engenho, e discurso humano. Rigorosamente fallando, Philologia he a parte das sciencias, que tem por objecto as palavras, e propriedade dellas. (BLUTEAU, ano, p. 482)2.

Já o Dicionário Houaiss traz, no verbete Filologia, algumas definições com graus de diferenças umas das outras:

Filologia é (1) estudo rigoroso dos documentos escritos antigos e de sua transmissão, para estabelecer, interpretar e editar esses textos; (2) estudo científico do desenvolvimento de uma língua ou de famílias de línguas, baseado em documentos escritos nessas línguas; (3) estudo científico de textos e estabelecimento de sua autenticidade através da comparação de manuscritos e edições; (4) lat. philologìa,ae ‘amor às letras, erudição, literatura’, do gr. philología,as ‘necessidade de falar, conversação’; (5) parte da linguística diacrônica que trata do estudo comparado das línguas, através de sua origem e evolução, e do confronto com línguas modernas; gramática comparada, linguística comparada. (HOUAISS; VILLAR, 2009, eletrônico, s/p)3.

Castro (1992, p. 124)4, por sua vez, define Filologia como

a ciência que estuda a gênese e a escrita dos textos, a sua difusão e a transformação dos textos no decurso da sua transmissão, as características materiais e o modo de conservação dos suportes textuais, o modo de editar os textos com respeito máximo pela intenção manifesta do autor.

Ao compararmos as definições ora apresentadas encontramos um ponto de convergência: a Filologia como estudo dos textos e dos documentos. Tendo em vista o foco da revista LaborHistórico – estudos desenvolvidos a partir de fontes escritas nos quais se destaque o labor do pesquisador diante de seu material de trabalho – sem excluir as outras definições, tomamos a Filologia como ciência que se ocupa do estudo dos textos e dos documentos para delimitar esse dossiê temático que apresentamos.

O número 2 do volume 5 da LaborHistórico traz a público 16 artigos, três fontes primárias – seção que inauguramos este ano – uma resenha, uma tradução e um trabalho de popularização do conhecimento científico – seção que publicamos pela primeira vez neste número. Contamos com a participação de investigadores de diferentes instituições nacionais e internacionais: Arquivo Nacional (AN/Brasil), Fundação Biblioteca Nacional (FNB/Brasil), Universidade da Beira Interior (UBI), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Tocantins (UFT) e Universidade Federal Fluminense (UFF).

O primeiro trabalho deste número (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.22954), de autoria do filólogo César Nardelli Cambraia (UFMG), traz uma importante reflexão acerca da proteção dos direitos autorais de um trabalho de edição de fontes documentais. Segundo Cambraia, trata-se de “uma atividade de criação, conferindo o estatuto de autor ao editor e de obra intelectual à sua edição”.

O segundo artigo, de autoria de Elisa Hardt Leitão Motta e Vanessa Martins do Monte (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.29110), apresenta a edição e algumas interessantes reflexões sobre “A carta de Françisca Maria Xavier de Castro Castro”. Esse documento é custodiado pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo e faz parte do corpus do Projeto M.A.P. – Mulheres na América Portuguesa.

No terceiro artigo (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.25097), Juliana Pereira Guimarães disponibiliza, por meio de uma edição diplomático-interpretativa de cartas de comércio do século XVIII, informações de sua pesquisa de Iniciação Científica – ainda em andamento. A autora apresenta alguns comentários paleográficos e diplomáticos que enriquecem o seu trabalho e nos dão mais informações das fontes documentais com as quais trabalha.

No artigo seguinte, de Beatriz Dias Mikhail (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.28873), temos a edição e o estudo paleográfico de um contrato matrimonial do século XVIII. Trata-se de um recorte do trabalho de conclusão de curso da autora que se debruçou sobre parte do registro matrimonial – hoje sob responsabilidade do Museu Imperial (Petrópolis, Rio de Janeiro) – de Dona Maria Ana Vitória de Bragança com Dom Gabriel de Bourbon.

Felipe Veras Andrade e Stephanne Martini Pastore, no artigo “Comparando edições de ‘Senhora’, de José de Alencar: um exercício de Crítica Textual” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.29067), realizam um trabalho de comparação – seguindo as etapas de recensio, collatio codicum e estemática. Os autores fazem uso de dez edições distintas, disponíveis em diferentes suportes, do romance urbano “Senhora”, publicado em 1875 por José de Alencar.

Em “Análise filológica e histórica do Acervo Família Benjamin Constant” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.25039), Catarina da Silva Romeiro e Ana Beatriz Resende de Oliveira apresentam uma etapa metodológica do trabalho que desenvolveram, dentro do projeto “Posição do sujeito e estrutura informacional da sentença na história do Português Brasileiro”. Trata-se de uma pesquisa realizada no Laboratório de História da Língua Portuguesa (HistLing/UFRJ), com algumas cartas pessoais trocadas entre os familiares de Benjamin Constant.

No artigo seguinte, “A Paleografia em prática: a leitura da escrita antiga na contemporaneidade” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.26450), Carolina de Oliveira compartilha um uso efetivo da Paleografia no Arquivo Nacional, mais particularmente no serviço de emissão de certidões e de outros documentos realizado pelo setor de transcrição. Por meio da leitura e transcrição de documentos dos séculos XIX e XX, profissionais que trabalham nessa instituição federal atestam o valor de verdade de informações registradas nessas fontes.

Ana Lúcia Merege, autora do artigo “Desafios e perspectivas frente aos manuscritos da Biblioteca Nacional” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.24922), compartilha com os leitores um incômodo que teve durante o I Colóquio Luso-Brasileiro de Paleografia, realizado no Arquivo Nacional em maio de 2017. Segundo a autora, um palestrante, ao elencar as “várias instituições mantenedoras de documentos antigos ou modernos cuja leitura exige conhecimentos de Paleografia”, deixou de fora a Fundação Biblioteca Nacional, importante instituição custodiadora de uma vasta documentação. Mais que manifestar esse incômodo, Ana Lúcia Merege propõe uma reflexão sobre os possíveis motivos dessa invisibilidade e apresenta algumas relações que a Biblioteca Nacional estabeleceu com outras instituições nacionais e extrangeiras.

O próximo artigo foi escrito por Cila Verginia da Silva Borges, Solange Ribeiro Viegas e por Rosângela Coutinho da Silva (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.31099). Essas autoras, de forma a popularizar informações da Biblioteca José de Alencar, na Faculdade de Letras/UFRJ, escrevem o artigo “A Biblioteca José de Alencar: sua história, memória e patrimônio”, que apresenta um histórico da fundação dessa instituição, da inclusão de alguns relevantes acervos e da realização de alguns projetos importantes.

Daví Lopes Franco, Letycia Dias Mallet e Maria Elisa Lima de Souza escrevem o artigo “O Trabalho Filológico de Edição de Textos desenvolvido no Laboratório de Estudos Filológicos da UFRJ” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.30481) com o intuito de divulgar os trabalhos quem vêm sendo desenvolvidos no LabEFil. Esse laboratório, coordenado pelo Prof. Dr. Leonardo Marcotulio, é “um espaço destinado ao exercício e reflexão da prática filológica de edição de textos”5.

“Um Laboratório de Ecdótica no Estado do Rio de Janeiro ou Transmissão e Inovação de uma Tradição Filológica” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.25060), trabalho de autoria de Ceila Maria Ferreira, corresponde a uma apresentação da autora sobre o seu percurso acadêmico e sobre a criação do Laboratório de Ecdótica da Universidade Federal Fluminense no I EnFil: Encontros com a Filologia. Nesse texto, com um certo perfil autobiográfico, Ceila também apresenta uma proposta metafórica de Walter Benjamin, com a qual ela, como filóloga, trabalha: “escovar a história a contrapelo”.

Na sequência, temos o artigo de Maria Gabriela Gomes Pires: “Considerações léxico-culturais da Vila de Catalão (GO): uma análise de Autos de partilhas manuscritos do século XIX” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.31083). Nesse trabalho, Maria Gabriela, por meio da análise de dois processos de partilha e inventário de bens e de um processo de conto de testamento de bens, estabelece uma relação indissociável entre léxico e cultura.

O artigo “Amostras históricas do português escrito nos séculos XIX e XX: orientações metodológicas” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.24452), de autoria de Márcia Cristina de Brito Rumeu e seus orientandos – Ana Luisa Póvoa de Souza, Erenildo Queiroz de Souza, Igor dos Reis Alcântara, Gabriela Vilela Souza Martins, Juliana Sander Diniz, Marcos Alexandre dos Santos, Natália Figueiredo Silva, Natália Gontijo Alves, Nayara Domingues Cardoso, Raissa Figueiredo – apresenta o trabalho de construção de corpora históricos. Por receberem um tratamento filológico fidedigno, esses materias podem ser usados como fontes de investigações de diferentes áreas como, por exemplo, pesquisas sobre a “língua portuguesa em terras mineiras no decorrer dos séculos XIX e XX”.

O artigo de autoria de Álvaro Alfredo Bragança Júnior (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.26580 ) apresenta a importância dos estudos de filologia germânica na formação do profissional de Letras. Segundo o autor, é essencial que profissionais das áreas de Letras – em especial de Língua e Literaturas de Língua Alemã e de Língua e Literaturas de Língua Inglesa – tenham uma sólida formação nesse campo dos estudos diacrônicos.

No artigo “O nacionalismo linguístico em obras didáticas do Maranhão do século XIX” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.26901), Yasmine Louro propõe um estudo historiográfico com destaque para os quatro principais materiais didáticos que circularam no Maranhão durante o século XIX. A autora reflete, também, por meio da seleção de alguns vocábulos, sobre a presença de nacionalismo linguístico nas obras analisadas.

O último artigo deste dossiê temático é de autoria do crítico literário e historiador da literatura brasileira, o Professor João Adolfo Hansen. Em “Francisco Suárez e Antônio Vieira: metafísica, teologia-política católica e ação missionária no Brasil e no Maranhão e Grão Pará” (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.29834), Hansen estabelece uma relação entre alguns discursos do padre Antônio Vieira e dois tratados do jesuíta Francisco Suárez sobre “a doutrina do poder da política católica contra as teses do poder político de Lutero, Calvino e Maquiavel”.

Na seção Fontes Primárias, contamos com um trabalho de Leonardo Fontes e Genílcia Silva (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.31413) – com um manuscrito de uma carta de brasão de 1563, pertencente ao Arquivo Nacional –; Alberto Martín Chillón (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.31134) – com um manuscrito de 1838 conservado no Arquivo Histórico da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro –; e, por fim, um trabalho de Anttony Patrick Dantas da Cruz (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.30735) – que apresenta duas Cartas de chamada, de 1911, pertencentes ao Arquivo Público de São Paulo.

Há, também, neste número, a tradução do texto clássico Diógenes Laércio, livro X: Epicuro, elaborada por Reina Marisol Troca Pereira (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.29961) e a resenha, de autoria de Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.31061), do volume 1 do livro Crítica textual, de Mendes e Ambrosili, publicado em 2015 pela Fundação CECIERJ.

Fecha este número da LaborHistórico um trabalho de popularização do conhecimento científico, elaborado pelo Professor Carlos Alberto Faraco (https://doi.org/10.24206/lh.v5i2.31122). Nessa seção – pela primeira vez publicada na LaborHistórico – divulgamos o depoimento de relevantes pesquisadores que, por meio de uma linguagem acessível, compartilham um pouco sobre a sua vida como professor-pesquisador e sobre os seus principais trabalhos.

Este número e alguns trabalhos nele publicados foram inspirados no I EnFil: Encontros com a Filologia. Trata-se de um evento acadêmico organizado por alunos de graduação da Faculdade de Letras da UFRJ – todos eles, atualmente, integrantes da equipe editorial da LaborHistórico, que viabilizou “o diálogo entre pesquisadores das diversas áreas do conhecimento em torno ao trabalho filológico e suas interfaces”6.

Quem acompanha a LaborHistórico percebeu que, em 2019, a revista passou por diversas modificações. Com o auxílio de organizadores convidados, publicamos em 2019, em quatro números, 62 trabalhos em seções variadas. Homenageamos duas importantes pesquisadoras brasileiras: a Profa. Dra. Célia Lopes – por ocasião de sua promoção a Professora Titular de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – e a Profa. Dra. Suzana Cardoso (UFBA) – in memoriam.

Isso tudo dá testemunho de como estamos de fato preocupados com a popularização das pesquisas desenvolvidas “a partir de fontes escritas nos quais se destaque o labor do pesquisador diante de seu material de trabalho”7 e com a valorização dos pesquisadores dessas áreas inter e transdisciplinares. Fechamos esse embaraçoso e fatigante ano para a ciência – sobretudo humanas – e para a educação, com um saldo positivo. Se isso que fazemos é “balbúrdia”, precisamos, se já não o fizemos, atribuir um novo significado a essa palavra.

Notas

1 GAMA, M. Como ter leitores para sua pesquisa com manuscritos?. Manuscrítica – Revista de Crítica Genética, n. 32, 2017. p. 135-135. Disponível em: http://revistas.fflch.usp.br/manuscritica/article/view/2813/2391.

2 BLUTEAU, R. Vocabulario portuguez, e latino. Coimbra : Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1713, v. 4.

3 HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Elaborado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. (Eletrônico).

4 CASTRO, I. Enquanto os escritores escreverem… Atas do IX Congresso Internacional da Associação de Lingüística e Filologia da América Latina. Campinas: UNICAMP, 1992, v. I – Conferências Plenárias.

5 Apresentação do laboratório, disponível em: https://labefil.letras.ufrj.br.

6 Apresentação do evento, disponível em: https://encontroscomafilologia.wordpress.com/.

7 Apresentação da revista LaborHistórico, disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/lh.


Organizadores

Marcus Vinícius Pereira das Dores

Leonardo Lennertz Marcotulio


Referências desta apresentação

DORES, Marcus Vinícius Pereira das; MARCOTULIO, Leonardo Lennertz. Apresentação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.5, n.2, p. 10-16, jul./ dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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Filologia e História / Politeia: História e Sociedade / 2015

Este número de Politeia reúne um conjunto de estudos filológicos, cujo denominador comum é não apenas problematizar a relação entre prática letrada e realidade social, mas sobretudo privilegiar a materialidade da comunicação, examinando os códigos retóricos e bibliográficos, na perspectiva da história do livro e das edições.

Em seu belo ensaio, Gumbrecht discute a penetração do paradigma filológico germânico em França, ao historiar a formação acadêmica de Gaston Paris, na Alemanha, demonstrando que é com este filólogo francês que principia o que se pode chamar de filologia metódica no campo românico. É sabido que a edição crítica do Vie de Saint Alexis, publicada pela primeira vez em 1872, inaugura a crítica de textos no campo românico baseada em princípios críticos lachmannianos. Hans Ulrich Gumbrecht discute a oposição que houve entre a filologia parisiana e aquela outra, anterior a ela, praticada pelo filólogo Paulin Paris, pai de Gaston, e a quem ele sucedeu no Collège de France.

O estudo de Bernard Cerquiglini, de certo modo, complementa o de Hans Ulrich Gumbrecht, também traduzido por Marcia Arruda Franco. Esse artigo de Cerquiglini, traduzido por Marcia Arruda Franco e Cristina Nagle, “Elogio da Variante”, é um dos textos seminais da Nova Filologia, que empreende uma vigorosa crítica das matrizes filológicas que visam à recuperação do texto dito “genuíno”, sobretudo do lachmannismo em suas muitas vertentes, em que a obsessão pelo Ur foi elevada à condição de possibilidade de se fazer filologia.

Já Marcello Moreira, em seu estudo sobre carta em que José de Anchieta descreve elementos da fauna e da flora brasílicas, discute os preceitos retóricos e poéticos que regravam a descripitio, demonstrando como coisas nunca vistas eram descritas analogicamente a partir do que então se conhecia e cujos loci eram largamente partilhados pelos letrados. Demonstra, assim, que o que se declarava sobre o leão, por exemplo, desde tratados como o de Plínio, o Velho, não dependia de uma suposta empiria, da observação positiva do que seria um leão, mas sim da força dóxica da tradição.

Justamente a palavra regrada, independentemente do gênero literário, ao se reproduzir como ato sociolinguístico, cuja função é sublinhar o poder monárquico, impõe-se como documento próprio ao estudo das ideias e das mentalidades no estudo de Marcia Arruda Franco. Este persegue o lugar do letrado e do poeta na rede clientelista da monarquia portuguesa, por meio da leitura de El perfecto principe christiano, de Francisco de Monzón, de 1544, e de poemas, epístolas dedicatórias, e outros documentos quinhentistas, a fim de mostrar que a educação dos príncipes ibéricos, pais de D. Sebastião, os vocacionou ao mecenato.

Pedro Serra, enfocando o século XX, exerce a crítica literária como filologia e nos ensina um modo crítico de ler a relação política entre discurso poético e mentalidade, ao examinar, na transição espanhola, e na outra transição, por assim dizer, filológica, Así se fundó Carnaby Street, de Leopoldo María Panero.

O texto de Maria Ana Ramos, ao examinar o código bibliográfico e iconográfico de um códice incompleto como o do Cancioneiro da Ajuda mostra como o foco na materialidade da comunicação pode revolucionar um campo de estudos, na medida em que a sua análise faz emergir sentidos próprios do Medievo, como a circulação em performance das cantigas galego-portuguesas.

Por fim, Márcio Muniz, em estudo sobre o gênero dramático no Portugal quinhentista, relaciona preceptivas e textos teatrais, ao tempo em que também, ao explorar elementos paratextuais de vária natureza, como títulos, didascálias, rubricas etc., demonstra que eles explicitam uma poética teatral ao mesmo tempo em que orientam, sobretudo, a encenação, sendo excelente fonte de pesquisa para a compreensão do horizonte de expectativa do público primeiro e dos que estavam envolvidos com a criação teatral.

Marcello Moreira – Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: [email protected]

Marcia Arruda Franco – Professora da Universidade de São Paulo (USP) Doutora em Letras Vernáculas / Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) E-mail: [email protected]


MOREIRA, Marcello; FRANCO, Marcia Arruda. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 15, n. 1, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Filologia e História | Politeia: História e Sociedade | 2015

Este número de Politeia reúne um conjunto de estudos filológicos, cujo denominador comum é não apenas problematizar a relação entre prática letrada e realidade social, mas sobretudo privilegiar a materialidade da comunicação, examinando os códigos retóricos e bibliográficos, na perspectiva da história do livro e das edições.

Em seu belo ensaio, Gumbrecht discute a penetração do paradigma filológico germânico em França, ao historiar a formação acadêmica de Gaston Paris, na Alemanha, demonstrando que é com este filólogo francês que principia o que se pode chamar de filologia metódica no campo românico. É sabido que a edição crítica do Vie de Saint Alexis, publicada pela primeira vez em 1872, inaugura a crítica de textos no campo românico baseada em princípios críticos lachmannianos. Hans Ulrich Gumbrecht discute a oposição que houve entre a filologia parisiana e aquela outra, anterior a ela, praticada pelo filólogo Paulin Paris, pai de Gaston, e a quem ele sucedeu no Collège de France. Leia Mais