O conhecimento da vida – CANGUILHEM (SS)

CANGUILHEM, Georges. O conhecimento da vida. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. Resenha de: PUTTINI, Rodolfo Franco. Ética, conhecimento e vida. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 2, p. 449-58, 2015.

O objetivo não será aqui aprofundar a asseveração de que, desde a sua famosa tese de doutoramento (1995a), Georges Canguilhem (1904-1995) iniciou e propulsionou a estruturação de um programa de pesquisa cujo trabalho filosófico voltou-se para os problemas contemporâneos da biologia e da medicina iniciados pelas diretrizes da tradicional escola francesa de epistemologia histórica desde Gaston Bachelard. No entanto, acentuarei que os primeiros testemunhos vigorosos desse percurso intelectual podem ser verificados no livro La connaissance de la vie, publicado em 1952, nove anos após a defesa de seu doutoramento em 1943, republicado em 1952 pela editora francesa Hachette, reeditado por doze vezes até 1965 com textos inéditos pela editora J. Vrin, e cuja tradução em língua portuguesa somente em 2012 foi realizada pela editora brasileira Forense Universitária.

O livro reúne em oito ensaios o nexo entre o pensamento e a vida, uma associação pouco valorizada nas ciências biológicas. Canguilhem apresenta os ensaios segundo uma ordem de importância histórico-filosófica, assim distribuída: Introdução, “O pensamento e o vivente”, ensaio escrito em 1952; um ensaio sobre o método, “A experimentação em biologia animal”, de 1951; um ensaio de história da ciência, “A teoria celular”, de 1945; e um conjunto de textos de filosofia da ciência escritos em 1946, 1947 e 1951 – “Aspectos do vitalismo”; “Máquina e organismo”; “O vivente e seu meio”; “O normal e o patológico”; “A monstruosidade e o monstruoso” –, e apêndices (três pequenas notas, sem datas), seguidas de bibliografia ou indicações de livros recomendadas pelo próprio autor. Essa estruturação aproxima várias temáticas relevantes ao problema da vida: a teoria celular, o vitalismo, o mecanicismo, a máquina, o organismo, o pensamento, o vivente, o meio, o normal, o patológico, a monstruosidade, o monstruoso, a experimentação em biologia animal.

É certo que esses escritos foram elaborados antes da descoberta do DNA (cf. Watson & Crick, 1953) e poderiam até sugerir preocupações retrógradas por parte dos biólogos. Porém a controvérsia entre raça, inteligência e genética permanece ativa (cf. Milmo, 2007; Charlton, 2008; Malloy, 2008) e levanta discussões sobre a relação entre atividade científica e valores (cf. Lacey, 2008). Para uma leitura atualizada do livro de Canguilhem proponho combinar questões ligadas ao projeto genoma, cuja técnica associada possui desdobramentos para a vida e para a vida profissional de biólogos e geneticistas atuantes em procedimentos médicos – tais como a verificação do grau de risco de desenvolvimento de doenças, os testes genéticos, o aconselhamento genético, a terapia para doenças genéticas, as células-tronco para regenerar tecidos, a terapia celular, a escolha de embriões para reprodução humana –, com questões sobre os fundamentos éticos que garantem o respeito aos direitos humanos na aplicação de teorias biológicas no desenvolvimento biotecnológico de dominação da vida e, particularmente, da vida humana (cf. Garcia, 2006). Não estariam as práticas biotecnológicas dirigidas de tal modo a refletir o eugenismo (cf. Stepan, 1991)? Qual o limite da prática da medicina, aliada às ciências biológicas, que afiança com responsabilidade sobre os perigos do eugenismo de modo a criar um contexto social de bom senso?

Mantendo a posição de que, em alegação atualizada, Canguilhem promove no livro O conhecimento da vida o empenho em fundamentar o campo ético nas ciências da vida atreladas à medicina e à sociedade; sua postura crítica ao antropocentrismo diante da vida e do sentido do conhecimento (em relação à vida humana) revela a originalidade logicamente arranjada em quatro tópicos que estruturam argumentos historiográficos, éticos e filosóficos sobre problemas concernentes às ciências biológicas interligadas à medicina, argumentos que se desdobram em ponderações no campo da produção de conhecimento que incluem a prática científica em geral. A classificação atual das áreas do conhecimento permite interpretar de modo mais objetivo os vínculos entre os ensaios,1 decorrentes de interrogações de fundo sobre a relação entre o conhecimento e a vida, para cujo entendimento pesa o sentido antropológico de alteridade (cf. Canguilhem, 2012b, p. 367), uma relação entre o vivente (uma forma universal de vida material) e o vivido (a experiência singular de um ser vivo):

A vida é formação das formas, o conhecimento é análise das matérias informadas. É normal que uma análise não possa nunca dar conta de uma formação e que se perca de vista a originalidade das formas quando nelas vemos somente resultados cujos componentes buscamos determinar. As formas vivas, sendo totalidades cujo sentido reside em sua tendência a realizarem-se como tais ao longo de sua confrontação com seu meio, podem ser apreendidas em uma visão, jamais em uma divisão (p. 3).

Considerando esse conjunto de problemas de fundamentação da vida, farei a exposição do livro seguindo esta sequência de leitura: “A teoria celular” (1945), “Aspectos do vitalismo” (1946), “Máquina e organismo” (1947), “A experimentação em biologia animal” (1951), “O normal e o patológico” (1951), “A monstruosidade e o monstruoso” (1951), “O pensamento e o vivente” (1952).

1 O MÉTODO HISTORIOGRÁFICO

Dois pontos congruentes destacam-se no artigo “A teoria celular” de 1945: a apresentação do método historiográfico e o raciocínio para o conhecimento da vida. A história da ciência é produzida pelo exame da formação de conceitos, um empreendimento que se assemelha a um laboratório de epistemologia. Especialmente para a história da ciência da vida importa reconstruir os conceitos científicos célula e vida, que aparentemente nada tem em comum com o objeto da ciência da vida. Entretanto, para Canguilhem, há um campo ético que expressa um princípio, oposto ao método e à prática de historiadores, cientistas e filósofos da época que, a exemplo do médico e cientista Claude Bernard, atribuíam à história a inferioridade lógica das teorias passadas (p. 40, nota 2). Canguilhem propõe a epistemologia histórica como fundamento e postura crítica contraposta ao “preconceito científico”, estendido ao método experimental da biologia:

as teorias não nascem dos fatos que coordenam e que são supostos de tê-las suscitado (…) os fatos suscitam as teorias, mas não engendram os conceitos que as unificam interiormente, nem as intenções intelectuais desenvolvidas por elas (p. 82).

Debru (2004) elucidou a posição fortemente holística de Canguilhem, derivada de sua crítica ao dogma nas ciências da vida, com o seguinte destaque nas reflexões sobre o normal e patológico dos Ensaios: “uma norma não é um fato, mesmo estatístico, mas um valor” (Debru, 2004, p. 33), referindo-se ao poder de criação dos valores vitais criados pela fisiologia e patologia, especialmente em comparação à concepção de vida assumida por Claude Bernard ao descobrir a etiologia da diabete como uma patologia, resultado da variação quantitativa do estado normal pela constante da glicemia, modo em que valorizava a crença da técnica médica de domínio sobre a vida em bases científicas. Em oposição a esse cientificismo, Canguilhem afirmaria o conhecimento da diabete partindo do estado de um organismo inteiro, pois “ser doente significa viver uma outra vida, um outro olhar da vida, uma outra relação com o meio” (Debru, 2004, p. 34).

Essas elucidações sobre fato e valor, entre o normal e o patológico, ganham destaque com o problema, vinculado à história da teoria celular, de que não é o microscópio o instrumento que permite, pelos órgãos dos sentidos da visão, constatar, comprovar e identificar a célula, mas “a história da formação do conceito de célula”, carregada de valores afetivos e que atestam a validade da teoria celular (p. 45). Embora essa discussão favoreça o argumento do papel da valorização moderna do controle (Mariconda, 2006), tal ambivalência epistemológica (fato e/ou valor) em Canguilhem aplica-se ao campo científico, mas também, como veremos adiante, à vida mesma.

Para o campo científico das ciências da vida a ambiguidade aparece como coordenada valorativa na história da teoria celular. “Célula” e “vida” são conceitos que se associam à força psicológica e instrumental da noção de indivíduo que motiva a gênese do “vivente elementar, demonstrando assim o valor do termo ‘célula’ na história das teorias sobre a vida”. São 43 páginas (p. 39-82) dedicadas a fazer coincidir o curso da história dos empreendimentos científicos com os interesses de cientistas em meio a descobertas e palavras inventadas, que progressivamente elevam a noção de célula a um estatuto científico. Haeckel, Hooke, Malpigni, Grew trabalharam com plantas, cada qual em seu tempo, e configuraram a anatomia microscópica da célula; a teoria da metempsicose de Lineu; a teoria das moléculas orgânicas e hibridação de Buffon e a teoria fibrilar de Haller, todas essas teorias são marcadores de uma história do conhecimento científico sobre a vida definida no interesse de garantir a questão da individualidade do organismo.

Por outro lado, para Canguilhem, a história das ciências da vida não se distancia de uma história da medicina na medida em que o argumento da passagem da individuação da célula à individualidade do organismo faz eco na prática científica da medicina: Virchow, Robin, Haeckel, Bernard sugerem o uso da teoria celular em explicações para a anatomia, a fisiologia e a histologia na busca da homogeneidade do ser humano enquanto totalidade orgânica. Nesse contexto biomédico, Canguilhem atualiza o problema linguístico do termo “indivíduo” com a controvérsia sobre qual é a classificação dada ao vírus-proteína, uma unidade viva ou não? (p. 72). Tal indagação tem uma resposta adequada à demarcação científica do uso do termo relacional “meio”, com o qual é possível ligar realidades e escalas de observação diferentes (p. 73), de modo que no tempo histórico a individualidade biológica teria sido verificada enquanto princípio de individuação (realidade, ilusão ou ideal).

2 FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA VIDA E/OU FILOSOFIA DA VIDA

Remontar aos conceitos de célula e indivíduo para chegar a um entendimento não linear da história das ciências da vida em intersecção com a história da medicina é a estratégia que estrutura a filosofia das ciências da vida atrelada à medicina em um meio vital, mas não exclui o ser humano enredado a um meio social. Como se conjuga o problema da relação entre fato e valor tendo por foco a medicina e o ser humano na sociedade?

A identificação de obstáculos epistemológicos transforma-se em uma ferramenta de análise que auxilia compreender com discernimento o campo científico. Os cinco ensaios de 1946 a 1951 – “Aspectos do vitalismo”; “Máquina e organismo”; “O vivente e seu meio”; “O normal e o patológico”; “A monstruosidade e o monstruoso” – identificam e averiguam os fundamentos do conhecimento da vida de modo concomitante, ora voltado ao progresso científico da ciência físico-química e da biomedicina, ora estendido para a própria vida do vivente.

Inicialmente a força do vitalismo no campo científico pode ser verificada pela vitalidade e fecundidade do discurso vitalista no contexto das refutações teóricas. A comunidade científica pensa o vitalismo por meio de ambivalências: vitalismo/ mecanicismo (problemas de estrutura e função), descontinuidade/continuidade (problemas de sucessão das formas), pré-formação/epigênese (no desenvolvimento do ser), atomicidade/totalidade (problema da individualidade). Para Canguilhem, importa a crítica no interior do campo científico, não se deve excluir do aspecto vigoroso do vitalismo a relação entre os conceitos de vida, de vivente, de ser humano e de consciência da vida.

(…) o vitalismo é a expressão da confiança do vivente na vida, da identidade da vida consigo mesma no vivente humano, consciente de viver (…) um vitalista, proporíamos, é um homem induzido a meditar sobre os problemas da vida (p. 91).

Em reforço ao projeto de fundamentação da vida, Canguilhem examina a formação do conceito de reflexo no campo científico (cf. Canguilhem, 1955a), mostra a decadência da abordagem vitalista identificada como um obstáculo epistemológico primordial deixado de lado na história da medicina. Desde o século xvii a abordagem vitalista, principal obstáculo epistemológico à abordagem mecanicista de Descartes, perde gradualmente valor para as explicações da teoria newtoniana as quais, por sua vez, servem de obstáculo para as conquistas graduais da química positivista que tendem à matematicidade das ciências da vida. Médicos, cientistas e filósofos dedicados à história das ciências da vida e da medicina (Driesch, Goldstein, Van Helmont, Barthez, Blumenbach, Bichat, Lamark, Radl, Bernard) poderiam naquela época oscilar entre a abordagem vitalista de “exigência permanente da vida no vivente” e a abordagem mecanicista, “uma atividade permanente do vivente humano diante da vida (…) tentando unir-se à vida pela ciência” (p. 89).

No confronto entre o vitalismo e o mecanicismo, Canguilhem retorna à teoria cartesiana do homem-máquina em sua defesa do vitalismo, a qual requer uma semântica qualificada, cuja herança reclama dois sentidos, o do engenho (astúcia) e o da máquina (mediação, instrumento), perguntando se

não estaríamos fundamentados em concluir que a teoria do vivente-máquina (de Descartes) é uma astúcia humana que, tomada literalmente, anularia o vivente? Se o animal nada mais é do que uma máquina, e assim também a natureza inteira, por que tantos esforços humanos para reduzi-los a ela? (p. 90).

Sua intenção é de inverter o sentido da relação máquina-organismo para compreender “o sentido de assimilação do organismo a uma máquina” (p. 108), no qual salienta a auto-organização do organismo, inaplicável à máquina (p. 124-5). No caso da medicina, como a técnica pode ser aplicada à ideia do ser humano como um todo orgânico? Canguilhem põe frente a frente o vitalismo e o mecanicismo diante do mais alto valor humano, a importância da consciência humana da vida, criadora e fecunda, ou seja,

se o vitalismo traduz uma exigência permanente da vida no vivente, o mecanicismo traduz uma atitude permanente do vivente diante da vida. O homem é o vivente separado da vida pela ciência, tentando unir-se à vida através da ciência. Se o vitalismo é vago e não formulado como uma exigência, o mecanicismo é estrito e imperioso como um método (p. 89).

O núcleo de problemas ideológicos do vitalismo sugere que “caberia aos fatos e à história pronunciarem-se quanto ao problema da fecundidade no vitalismo” (p. 95), servindo de contra-argumento que, se o vitalismo é considerado cientificamente retrógrado por seus críticos, como deixar de notar tanto o uso da biologia vitalista pelos nazistas, “a fim de justificar uma eugênica racista, as técnicas de esterilização e de inseminação artificial, quanto o [uso do] darwinismo para a justificação de seu imperialismo, de sua política do Lebensraum”? (p. 103).

Em resposta a essa ambivalência Canguilhem reforça em 1966 o tema da medicina intervencionista no mundo social (cf. Canguilhem, 2012c). Tudo depende do sentido do termo “vida”, ora significando o particípio do presente (vivente), ora o particípio do passado (vivido), em uma relação entre o conceito e a vida mesma, que sugere o acesso à própria vida. Recoloca-se então a questão: “o que é o conhecimento, se a vida é conceito e esse fato nos dá acesso à inteligência?” (cf. Canguilhem, 2012c, p. 399).

Esse tema foi revisto por Canguilhem vinte anos após a publicação dos Ensaios (cf. Canguilhem, 1995b), propondo uma revisão da relação normal/patológico na qual correlaciona os termos “norma”, “normal” e “anormal” para distinguir atribuições à norma vital e à norma social, justificando assim o conceito de normatividade social. Em sua análise do contexto das ciências da vida, Canguilhem afirma:

As normas comparam o real a valores, exprimem discriminações de qualidades de acordo com a oposição polar de um positivo e de um negativo; a polaridade da experiência de normalização, cientificamente antropológica ou cultural, baseia a prioridade normal da infração na relação da norma com seu campo de aplicação. Uma norma na experiência antropológica não pode ser original. A regra só começa a ser regra fazendo regra e essa função de correção surge da própria infração (Canguilhem, 1995b, p. 218).

Nessa mesma revisão, Canguilhem propôs uma análise sobre o erro a qual, embora na patologia o geneticista e o bioquímico atribuam à hereditariedade, associa o erro ao modelo da teoria da informação, “que diz respeito tanto ao próprio conhecimento quanto a seus objetos, a matéria ou a vida” (Canguilhem, 1995b, p. 252). Canguilhem revê a origem dos sentidos do termo “norma” como uma exigência de racionalização da época, da nascente política econômica de industrialização, que se popularizou ora como protótipo escolar (escola normal, normas da reforma pedagógica), ora como modelo de saúde (reforma da medicina, reforma sanitária frente às epidemias). Admite então que a temática da mecanização da vida, originalmente desenvolvida por Augusto Comte no Curso de filosofia positiva, caracterizou as normas da física social, tomando como aspectos do organismo coletivo a regulação, a integração e o funcionamento da vida em sociedade a fim de atingir a humanidade (como parte da cultura) (cf. Canguilhem, 1995b, p. 223-5).

Se para Canguilhem os erros (genéticos) são referências para o interesse da norma vital (anomalias do metabolismo, anomalias de ordem genética etc.), os valores iatrogênicos são os que melhor informam a tendência da normatização de fatos sociais pressuposta em abordagens organicistas da sociedade. No contexto de crítica social do movimento de 1968, Michel Foucault elaborou um programa de pesquisa historiográfica, fundamentando as novas diretrizes para a história crítica da medicina. Frente às tendências iatrogênicas e eugênicas do planejamento de políticas científicas, a crítica de Hermínio Martins adensa a história da medicina com os aspectos orgânicos da prática médica sistemática e inescrupulosa de experimentação biomédica com corpos de seres humanos, datadas as barbaridades da guerra científica de experimentos humanos da biomedicina na Manchúria, Coreia e China como um desvio do conhecimento da vida, fomentado pelo Estado tanatocrático (cf. Martins, 2012, p. 211-50).

Essa história cinzenta da medicina tem servido de parâmetro para o desenvolvimento do discurso da bioética, geralmente valorizado para a proteção de uma corporação profissional mais do que para a apreensão do sentido do princípio de precaução (cf. Lacey, 2006) no contexto da educação médica. Na história da loucura, as atrocidades humanas elaboradas por médicos estiveram atreladas à explicação orgânica das doenças mentais, colaboraram para o estabelecimento de analogias entre a sociedade e o organismo vivo e para a garantia das ideologias higienistas, alienistas e eugenistas no pensamento médico. Nas décadas de 1960 a 1980, a iatrogenia em Ivan Illich (1975), a biopolítica em Michel Foucault (1978), a antipsiquiatria de Thomas Szasz (1961) e David Cooper (1967), o processo de desinstitucionalização de Franco Basaglia (1985), o estigma ou os desvios da consciência no mundo cotidiano de Irving Goffman (2011) desenvolveram argumentos fundamentais para uma alternativa ética no campo da saúde, para além do pensamento médico. Certamente essas discussões aumentam nossos parâmetros para pensar os limites da medicina e da prática científica da saúde na sociedade.

3 FUNDAMENTO PARA A FILOSOFIA E A SOCIOLOGIA DA MEDICINA

Até agora indicamos no livro O conhecimento da vida pontos de leituras que apoiam conceitos e definições para a fundamentação do conceito de vida, estendida às preocupações do campo ético. A genética de populações (cf. Clark & Hartl, 2010) ou a sociobiologia (cf. Wilson, 1975) não seriam candidatas a proporcionar diretrizes para um campo ético da vida e saúde? Hans Jonas aprofundou a linha temática da ética entre a medicina e a tecnologia, mostrando o ser humano como um objeto nos avanços da medicina, o corpo como um artefato para o progresso da biotecnologia (cf. Jonas, 1995; 1997) e propondo, para o contexto ético, o princípio da responsabilidade. Entendo que essa mesma responsabilidade foi colocada por Canguilhem como ajuste ao fenômeno da vida por meio da consciência do cientista.

O conflito não é entre o pensamento e a vida no homem, mas entre o homem e o mundo na consciência humana da vida (…). A inteligência só pode aplicar-se à vida reconhecendo a originalidade da vida. O pensamento do vivente deve manter do vivente a ideia do vivente (p. 2, 5).

É nesse contexto da biotecnologia, repleto de dilemas (cf. Martins, 2012; Garcia, 2003), no qual efetivamente vigoram os comitês de ética, organizados em sistemas de controle cujas normas regulam o desenvolvimento de projetos experimentais com seres humanos, que se verifica, entretanto, que ainda não se instituíram formas de comunicação intersubjetiva entre pesquisadores e pesquisados na prática experimental dos ensaios clínicos. Entendo tratar-se, na verdade, de uma questão atual relativa aos direitos humanos (cf. Declaração, 1948). Diante da singularidade da vida e do vivente, todos nós temos o direito de narrar, com consciência, as disposições da vida e, primordialmente, garantir com isso a própria participação nas decisões de nossos destinos.

A resenha aqui publicada faz parte da pesquisa de pós-doutorado realizada em 2014 no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, sob a supervisão de Pablo Rubén Mariconda.

Notas

1 Tomo aqui por referência a classificação atual das áreas do conhecimento da CAPES (Coordenação Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), organizada por Colégios de Conhecimentos (Colégio de Ciências da Vida; Colégio de Ciências Exatas; Tecnológicas e Multidisciplinar; Colégio de Humanidades) e respectivas Áreas do conhecimento

Referências

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Rodolfo Franco Puttini – Departamento de Saúde Pública. Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual de São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

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