O conhecimento da vida – CANGUILHEM (SS)

CANGUILHEM, Georges. O conhecimento da vida. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. Resenha de: PUTTINI, Rodolfo Franco. Ética, conhecimento e vida. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 2, p. 449-58, 2015.

O objetivo não será aqui aprofundar a asseveração de que, desde a sua famosa tese de doutoramento (1995a), Georges Canguilhem (1904-1995) iniciou e propulsionou a estruturação de um programa de pesquisa cujo trabalho filosófico voltou-se para os problemas contemporâneos da biologia e da medicina iniciados pelas diretrizes da tradicional escola francesa de epistemologia histórica desde Gaston Bachelard. No entanto, acentuarei que os primeiros testemunhos vigorosos desse percurso intelectual podem ser verificados no livro La connaissance de la vie, publicado em 1952, nove anos após a defesa de seu doutoramento em 1943, republicado em 1952 pela editora francesa Hachette, reeditado por doze vezes até 1965 com textos inéditos pela editora J. Vrin, e cuja tradução em língua portuguesa somente em 2012 foi realizada pela editora brasileira Forense Universitária.

O livro reúne em oito ensaios o nexo entre o pensamento e a vida, uma associação pouco valorizada nas ciências biológicas. Canguilhem apresenta os ensaios segundo uma ordem de importância histórico-filosófica, assim distribuída: Introdução, “O pensamento e o vivente”, ensaio escrito em 1952; um ensaio sobre o método, “A experimentação em biologia animal”, de 1951; um ensaio de história da ciência, “A teoria celular”, de 1945; e um conjunto de textos de filosofia da ciência escritos em 1946, 1947 e 1951 – “Aspectos do vitalismo”; “Máquina e organismo”; “O vivente e seu meio”; “O normal e o patológico”; “A monstruosidade e o monstruoso” –, e apêndices (três pequenas notas, sem datas), seguidas de bibliografia ou indicações de livros recomendadas pelo próprio autor. Essa estruturação aproxima várias temáticas relevantes ao problema da vida: a teoria celular, o vitalismo, o mecanicismo, a máquina, o organismo, o pensamento, o vivente, o meio, o normal, o patológico, a monstruosidade, o monstruoso, a experimentação em biologia animal.

É certo que esses escritos foram elaborados antes da descoberta do DNA (cf. Watson & Crick, 1953) e poderiam até sugerir preocupações retrógradas por parte dos biólogos. Porém a controvérsia entre raça, inteligência e genética permanece ativa (cf. Milmo, 2007; Charlton, 2008; Malloy, 2008) e levanta discussões sobre a relação entre atividade científica e valores (cf. Lacey, 2008). Para uma leitura atualizada do livro de Canguilhem proponho combinar questões ligadas ao projeto genoma, cuja técnica associada possui desdobramentos para a vida e para a vida profissional de biólogos e geneticistas atuantes em procedimentos médicos – tais como a verificação do grau de risco de desenvolvimento de doenças, os testes genéticos, o aconselhamento genético, a terapia para doenças genéticas, as células-tronco para regenerar tecidos, a terapia celular, a escolha de embriões para reprodução humana –, com questões sobre os fundamentos éticos que garantem o respeito aos direitos humanos na aplicação de teorias biológicas no desenvolvimento biotecnológico de dominação da vida e, particularmente, da vida humana (cf. Garcia, 2006). Não estariam as práticas biotecnológicas dirigidas de tal modo a refletir o eugenismo (cf. Stepan, 1991)? Qual o limite da prática da medicina, aliada às ciências biológicas, que afiança com responsabilidade sobre os perigos do eugenismo de modo a criar um contexto social de bom senso?

Mantendo a posição de que, em alegação atualizada, Canguilhem promove no livro O conhecimento da vida o empenho em fundamentar o campo ético nas ciências da vida atreladas à medicina e à sociedade; sua postura crítica ao antropocentrismo diante da vida e do sentido do conhecimento (em relação à vida humana) revela a originalidade logicamente arranjada em quatro tópicos que estruturam argumentos historiográficos, éticos e filosóficos sobre problemas concernentes às ciências biológicas interligadas à medicina, argumentos que se desdobram em ponderações no campo da produção de conhecimento que incluem a prática científica em geral. A classificação atual das áreas do conhecimento permite interpretar de modo mais objetivo os vínculos entre os ensaios,1 decorrentes de interrogações de fundo sobre a relação entre o conhecimento e a vida, para cujo entendimento pesa o sentido antropológico de alteridade (cf. Canguilhem, 2012b, p. 367), uma relação entre o vivente (uma forma universal de vida material) e o vivido (a experiência singular de um ser vivo):

A vida é formação das formas, o conhecimento é análise das matérias informadas. É normal que uma análise não possa nunca dar conta de uma formação e que se perca de vista a originalidade das formas quando nelas vemos somente resultados cujos componentes buscamos determinar. As formas vivas, sendo totalidades cujo sentido reside em sua tendência a realizarem-se como tais ao longo de sua confrontação com seu meio, podem ser apreendidas em uma visão, jamais em uma divisão (p. 3).

Considerando esse conjunto de problemas de fundamentação da vida, farei a exposição do livro seguindo esta sequência de leitura: “A teoria celular” (1945), “Aspectos do vitalismo” (1946), “Máquina e organismo” (1947), “A experimentação em biologia animal” (1951), “O normal e o patológico” (1951), “A monstruosidade e o monstruoso” (1951), “O pensamento e o vivente” (1952).

1 O MÉTODO HISTORIOGRÁFICO

Dois pontos congruentes destacam-se no artigo “A teoria celular” de 1945: a apresentação do método historiográfico e o raciocínio para o conhecimento da vida. A história da ciência é produzida pelo exame da formação de conceitos, um empreendimento que se assemelha a um laboratório de epistemologia. Especialmente para a história da ciência da vida importa reconstruir os conceitos científicos célula e vida, que aparentemente nada tem em comum com o objeto da ciência da vida. Entretanto, para Canguilhem, há um campo ético que expressa um princípio, oposto ao método e à prática de historiadores, cientistas e filósofos da época que, a exemplo do médico e cientista Claude Bernard, atribuíam à história a inferioridade lógica das teorias passadas (p. 40, nota 2). Canguilhem propõe a epistemologia histórica como fundamento e postura crítica contraposta ao “preconceito científico”, estendido ao método experimental da biologia:

as teorias não nascem dos fatos que coordenam e que são supostos de tê-las suscitado (…) os fatos suscitam as teorias, mas não engendram os conceitos que as unificam interiormente, nem as intenções intelectuais desenvolvidas por elas (p. 82).

Debru (2004) elucidou a posição fortemente holística de Canguilhem, derivada de sua crítica ao dogma nas ciências da vida, com o seguinte destaque nas reflexões sobre o normal e patológico dos Ensaios: “uma norma não é um fato, mesmo estatístico, mas um valor” (Debru, 2004, p. 33), referindo-se ao poder de criação dos valores vitais criados pela fisiologia e patologia, especialmente em comparação à concepção de vida assumida por Claude Bernard ao descobrir a etiologia da diabete como uma patologia, resultado da variação quantitativa do estado normal pela constante da glicemia, modo em que valorizava a crença da técnica médica de domínio sobre a vida em bases científicas. Em oposição a esse cientificismo, Canguilhem afirmaria o conhecimento da diabete partindo do estado de um organismo inteiro, pois “ser doente significa viver uma outra vida, um outro olhar da vida, uma outra relação com o meio” (Debru, 2004, p. 34).

Essas elucidações sobre fato e valor, entre o normal e o patológico, ganham destaque com o problema, vinculado à história da teoria celular, de que não é o microscópio o instrumento que permite, pelos órgãos dos sentidos da visão, constatar, comprovar e identificar a célula, mas “a história da formação do conceito de célula”, carregada de valores afetivos e que atestam a validade da teoria celular (p. 45). Embora essa discussão favoreça o argumento do papel da valorização moderna do controle (Mariconda, 2006), tal ambivalência epistemológica (fato e/ou valor) em Canguilhem aplica-se ao campo científico, mas também, como veremos adiante, à vida mesma.

Para o campo científico das ciências da vida a ambiguidade aparece como coordenada valorativa na história da teoria celular. “Célula” e “vida” são conceitos que se associam à força psicológica e instrumental da noção de indivíduo que motiva a gênese do “vivente elementar, demonstrando assim o valor do termo ‘célula’ na história das teorias sobre a vida”. São 43 páginas (p. 39-82) dedicadas a fazer coincidir o curso da história dos empreendimentos científicos com os interesses de cientistas em meio a descobertas e palavras inventadas, que progressivamente elevam a noção de célula a um estatuto científico. Haeckel, Hooke, Malpigni, Grew trabalharam com plantas, cada qual em seu tempo, e configuraram a anatomia microscópica da célula; a teoria da metempsicose de Lineu; a teoria das moléculas orgânicas e hibridação de Buffon e a teoria fibrilar de Haller, todas essas teorias são marcadores de uma história do conhecimento científico sobre a vida definida no interesse de garantir a questão da individualidade do organismo.

Por outro lado, para Canguilhem, a história das ciências da vida não se distancia de uma história da medicina na medida em que o argumento da passagem da individuação da célula à individualidade do organismo faz eco na prática científica da medicina: Virchow, Robin, Haeckel, Bernard sugerem o uso da teoria celular em explicações para a anatomia, a fisiologia e a histologia na busca da homogeneidade do ser humano enquanto totalidade orgânica. Nesse contexto biomédico, Canguilhem atualiza o problema linguístico do termo “indivíduo” com a controvérsia sobre qual é a classificação dada ao vírus-proteína, uma unidade viva ou não? (p. 72). Tal indagação tem uma resposta adequada à demarcação científica do uso do termo relacional “meio”, com o qual é possível ligar realidades e escalas de observação diferentes (p. 73), de modo que no tempo histórico a individualidade biológica teria sido verificada enquanto princípio de individuação (realidade, ilusão ou ideal).

2 FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA VIDA E/OU FILOSOFIA DA VIDA

Remontar aos conceitos de célula e indivíduo para chegar a um entendimento não linear da história das ciências da vida em intersecção com a história da medicina é a estratégia que estrutura a filosofia das ciências da vida atrelada à medicina em um meio vital, mas não exclui o ser humano enredado a um meio social. Como se conjuga o problema da relação entre fato e valor tendo por foco a medicina e o ser humano na sociedade?

A identificação de obstáculos epistemológicos transforma-se em uma ferramenta de análise que auxilia compreender com discernimento o campo científico. Os cinco ensaios de 1946 a 1951 – “Aspectos do vitalismo”; “Máquina e organismo”; “O vivente e seu meio”; “O normal e o patológico”; “A monstruosidade e o monstruoso” – identificam e averiguam os fundamentos do conhecimento da vida de modo concomitante, ora voltado ao progresso científico da ciência físico-química e da biomedicina, ora estendido para a própria vida do vivente.

Inicialmente a força do vitalismo no campo científico pode ser verificada pela vitalidade e fecundidade do discurso vitalista no contexto das refutações teóricas. A comunidade científica pensa o vitalismo por meio de ambivalências: vitalismo/ mecanicismo (problemas de estrutura e função), descontinuidade/continuidade (problemas de sucessão das formas), pré-formação/epigênese (no desenvolvimento do ser), atomicidade/totalidade (problema da individualidade). Para Canguilhem, importa a crítica no interior do campo científico, não se deve excluir do aspecto vigoroso do vitalismo a relação entre os conceitos de vida, de vivente, de ser humano e de consciência da vida.

(…) o vitalismo é a expressão da confiança do vivente na vida, da identidade da vida consigo mesma no vivente humano, consciente de viver (…) um vitalista, proporíamos, é um homem induzido a meditar sobre os problemas da vida (p. 91).

Em reforço ao projeto de fundamentação da vida, Canguilhem examina a formação do conceito de reflexo no campo científico (cf. Canguilhem, 1955a), mostra a decadência da abordagem vitalista identificada como um obstáculo epistemológico primordial deixado de lado na história da medicina. Desde o século xvii a abordagem vitalista, principal obstáculo epistemológico à abordagem mecanicista de Descartes, perde gradualmente valor para as explicações da teoria newtoniana as quais, por sua vez, servem de obstáculo para as conquistas graduais da química positivista que tendem à matematicidade das ciências da vida. Médicos, cientistas e filósofos dedicados à história das ciências da vida e da medicina (Driesch, Goldstein, Van Helmont, Barthez, Blumenbach, Bichat, Lamark, Radl, Bernard) poderiam naquela época oscilar entre a abordagem vitalista de “exigência permanente da vida no vivente” e a abordagem mecanicista, “uma atividade permanente do vivente humano diante da vida (…) tentando unir-se à vida pela ciência” (p. 89).

No confronto entre o vitalismo e o mecanicismo, Canguilhem retorna à teoria cartesiana do homem-máquina em sua defesa do vitalismo, a qual requer uma semântica qualificada, cuja herança reclama dois sentidos, o do engenho (astúcia) e o da máquina (mediação, instrumento), perguntando se

não estaríamos fundamentados em concluir que a teoria do vivente-máquina (de Descartes) é uma astúcia humana que, tomada literalmente, anularia o vivente? Se o animal nada mais é do que uma máquina, e assim também a natureza inteira, por que tantos esforços humanos para reduzi-los a ela? (p. 90).

Sua intenção é de inverter o sentido da relação máquina-organismo para compreender “o sentido de assimilação do organismo a uma máquina” (p. 108), no qual salienta a auto-organização do organismo, inaplicável à máquina (p. 124-5). No caso da medicina, como a técnica pode ser aplicada à ideia do ser humano como um todo orgânico? Canguilhem põe frente a frente o vitalismo e o mecanicismo diante do mais alto valor humano, a importância da consciência humana da vida, criadora e fecunda, ou seja,

se o vitalismo traduz uma exigência permanente da vida no vivente, o mecanicismo traduz uma atitude permanente do vivente diante da vida. O homem é o vivente separado da vida pela ciência, tentando unir-se à vida através da ciência. Se o vitalismo é vago e não formulado como uma exigência, o mecanicismo é estrito e imperioso como um método (p. 89).

O núcleo de problemas ideológicos do vitalismo sugere que “caberia aos fatos e à história pronunciarem-se quanto ao problema da fecundidade no vitalismo” (p. 95), servindo de contra-argumento que, se o vitalismo é considerado cientificamente retrógrado por seus críticos, como deixar de notar tanto o uso da biologia vitalista pelos nazistas, “a fim de justificar uma eugênica racista, as técnicas de esterilização e de inseminação artificial, quanto o [uso do] darwinismo para a justificação de seu imperialismo, de sua política do Lebensraum”? (p. 103).

Em resposta a essa ambivalência Canguilhem reforça em 1966 o tema da medicina intervencionista no mundo social (cf. Canguilhem, 2012c). Tudo depende do sentido do termo “vida”, ora significando o particípio do presente (vivente), ora o particípio do passado (vivido), em uma relação entre o conceito e a vida mesma, que sugere o acesso à própria vida. Recoloca-se então a questão: “o que é o conhecimento, se a vida é conceito e esse fato nos dá acesso à inteligência?” (cf. Canguilhem, 2012c, p. 399).

Esse tema foi revisto por Canguilhem vinte anos após a publicação dos Ensaios (cf. Canguilhem, 1995b), propondo uma revisão da relação normal/patológico na qual correlaciona os termos “norma”, “normal” e “anormal” para distinguir atribuições à norma vital e à norma social, justificando assim o conceito de normatividade social. Em sua análise do contexto das ciências da vida, Canguilhem afirma:

As normas comparam o real a valores, exprimem discriminações de qualidades de acordo com a oposição polar de um positivo e de um negativo; a polaridade da experiência de normalização, cientificamente antropológica ou cultural, baseia a prioridade normal da infração na relação da norma com seu campo de aplicação. Uma norma na experiência antropológica não pode ser original. A regra só começa a ser regra fazendo regra e essa função de correção surge da própria infração (Canguilhem, 1995b, p. 218).

Nessa mesma revisão, Canguilhem propôs uma análise sobre o erro a qual, embora na patologia o geneticista e o bioquímico atribuam à hereditariedade, associa o erro ao modelo da teoria da informação, “que diz respeito tanto ao próprio conhecimento quanto a seus objetos, a matéria ou a vida” (Canguilhem, 1995b, p. 252). Canguilhem revê a origem dos sentidos do termo “norma” como uma exigência de racionalização da época, da nascente política econômica de industrialização, que se popularizou ora como protótipo escolar (escola normal, normas da reforma pedagógica), ora como modelo de saúde (reforma da medicina, reforma sanitária frente às epidemias). Admite então que a temática da mecanização da vida, originalmente desenvolvida por Augusto Comte no Curso de filosofia positiva, caracterizou as normas da física social, tomando como aspectos do organismo coletivo a regulação, a integração e o funcionamento da vida em sociedade a fim de atingir a humanidade (como parte da cultura) (cf. Canguilhem, 1995b, p. 223-5).

Se para Canguilhem os erros (genéticos) são referências para o interesse da norma vital (anomalias do metabolismo, anomalias de ordem genética etc.), os valores iatrogênicos são os que melhor informam a tendência da normatização de fatos sociais pressuposta em abordagens organicistas da sociedade. No contexto de crítica social do movimento de 1968, Michel Foucault elaborou um programa de pesquisa historiográfica, fundamentando as novas diretrizes para a história crítica da medicina. Frente às tendências iatrogênicas e eugênicas do planejamento de políticas científicas, a crítica de Hermínio Martins adensa a história da medicina com os aspectos orgânicos da prática médica sistemática e inescrupulosa de experimentação biomédica com corpos de seres humanos, datadas as barbaridades da guerra científica de experimentos humanos da biomedicina na Manchúria, Coreia e China como um desvio do conhecimento da vida, fomentado pelo Estado tanatocrático (cf. Martins, 2012, p. 211-50).

Essa história cinzenta da medicina tem servido de parâmetro para o desenvolvimento do discurso da bioética, geralmente valorizado para a proteção de uma corporação profissional mais do que para a apreensão do sentido do princípio de precaução (cf. Lacey, 2006) no contexto da educação médica. Na história da loucura, as atrocidades humanas elaboradas por médicos estiveram atreladas à explicação orgânica das doenças mentais, colaboraram para o estabelecimento de analogias entre a sociedade e o organismo vivo e para a garantia das ideologias higienistas, alienistas e eugenistas no pensamento médico. Nas décadas de 1960 a 1980, a iatrogenia em Ivan Illich (1975), a biopolítica em Michel Foucault (1978), a antipsiquiatria de Thomas Szasz (1961) e David Cooper (1967), o processo de desinstitucionalização de Franco Basaglia (1985), o estigma ou os desvios da consciência no mundo cotidiano de Irving Goffman (2011) desenvolveram argumentos fundamentais para uma alternativa ética no campo da saúde, para além do pensamento médico. Certamente essas discussões aumentam nossos parâmetros para pensar os limites da medicina e da prática científica da saúde na sociedade.

3 FUNDAMENTO PARA A FILOSOFIA E A SOCIOLOGIA DA MEDICINA

Até agora indicamos no livro O conhecimento da vida pontos de leituras que apoiam conceitos e definições para a fundamentação do conceito de vida, estendida às preocupações do campo ético. A genética de populações (cf. Clark & Hartl, 2010) ou a sociobiologia (cf. Wilson, 1975) não seriam candidatas a proporcionar diretrizes para um campo ético da vida e saúde? Hans Jonas aprofundou a linha temática da ética entre a medicina e a tecnologia, mostrando o ser humano como um objeto nos avanços da medicina, o corpo como um artefato para o progresso da biotecnologia (cf. Jonas, 1995; 1997) e propondo, para o contexto ético, o princípio da responsabilidade. Entendo que essa mesma responsabilidade foi colocada por Canguilhem como ajuste ao fenômeno da vida por meio da consciência do cientista.

O conflito não é entre o pensamento e a vida no homem, mas entre o homem e o mundo na consciência humana da vida (…). A inteligência só pode aplicar-se à vida reconhecendo a originalidade da vida. O pensamento do vivente deve manter do vivente a ideia do vivente (p. 2, 5).

É nesse contexto da biotecnologia, repleto de dilemas (cf. Martins, 2012; Garcia, 2003), no qual efetivamente vigoram os comitês de ética, organizados em sistemas de controle cujas normas regulam o desenvolvimento de projetos experimentais com seres humanos, que se verifica, entretanto, que ainda não se instituíram formas de comunicação intersubjetiva entre pesquisadores e pesquisados na prática experimental dos ensaios clínicos. Entendo tratar-se, na verdade, de uma questão atual relativa aos direitos humanos (cf. Declaração, 1948). Diante da singularidade da vida e do vivente, todos nós temos o direito de narrar, com consciência, as disposições da vida e, primordialmente, garantir com isso a própria participação nas decisões de nossos destinos.

A resenha aqui publicada faz parte da pesquisa de pós-doutorado realizada em 2014 no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, sob a supervisão de Pablo Rubén Mariconda.

Notas

1 Tomo aqui por referência a classificação atual das áreas do conhecimento da CAPES (Coordenação Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), organizada por Colégios de Conhecimentos (Colégio de Ciências da Vida; Colégio de Ciências Exatas; Tecnológicas e Multidisciplinar; Colégio de Humanidades) e respectivas Áreas do conhecimento

Referências

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Rodolfo Franco Puttini – Departamento de Saúde Pública. Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual de São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira – CORREIA (RFA)

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. Resenha de: MELLEGARI, Iara Lúcia. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.917-924, jul./dez, 2014.

Hannah Arendt é uma importante e polêmica pensadora política contemporânea. Sua obra pode ser compreendida como uma resposta ao que ela considerou o problema mais crucial do seu tempo, o fenômeno totalitário. Esse evento, sem precedentes históricos, teria ocasionado, segundo ela, uma ruptura com a tradição filosófica, uma vez que colocou em questão os critérios morais e políticos tradicionais para opor-lhe “antídotos eficazes” (DUARTE, 2000, p.25). Arendt constatou, nesse evento, a instauração de uma nova forma de governo e dominação, baseado na organização burocrática de massas, no terror e na ideologia, que demandava uma extrema dificuldade de compreensão, em razão da lógica de paradoxos contida em sua estrutura. Movida pelo sentimento de compreender o que teria possibilitado a ocorrência de tal fenômeno, era preciso repensar toda a tradição no sentido de encontrar os recursos teóricos que permitissem sugerir algumas alternativas políticas à catástrofe totalitária.

Contudo, à diferença da maioria dos filósofos, ela não se preocupou em elaborar um sistema teórico rígido, inflexível. Sua teoria política, como um todo, defende a importância da diversidade de opiniões e procura evitar a repressão do livre intercâmbio das ideias, comum em governos totalitários. Por isso, ao enfatizar a importância de perspectivas novas e diferentes que surgem continuamente no mundo, sua teoria é um constante esforço em entender a multifacetada natureza da vida política.

Mencione-se, ainda, que distintamente de renomados filósofos de seu tempo, que usavam uma linguagem tipicamente filosófica, Arendt era uma escritora de linguagem clara que, com frequência, escrevia para o público em geral, não se restringindo aos leitores do mundo acadêmico, tornando, assim, muitas de suas ideias apreciáveis pelos recém-chegados ao seu pensamento. Entretanto, por ser uma escritora extremamente fértil, que tratou de diversos temas, é quase impossível a compreensão rápida da visão do seu pensamento (FRY, 2009, p.11) Nesse sentido, Adriano Correia propicia com seu livro, Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira, um importante instrumento de auxílio para a compreensão da teoria política de Arendt, passando, assim, a fazer parte do elenco daqueles autores cujas obras tornam-se leitura indispensável para quem deseja conhecer e, sobretudo, entender o pensamento arendtiano.

O livro que ele nos apresenta, composto de oito capítulos, em suas duzentas páginas, trata com muita propriedade de temas fundamentais da teoria política de Hannah Arendt. Com erudição e muito fiel ao espírito arendtiano, examina questões como o liberalismo e a prevalência do econômico; a biopolítica; a diluição da distinção entre a esfera pública e a esfera privada com a consequente ascensão do social; o conceito de poder; as análises das Revoluções Modernas sob o prisma da liberdade política, tão cara a Arendt; os sistemas de conselhos; entre outros. Mas o foco principal do livro são os temas da alienação e perda do mundo, e a vitória do animal laborans, reflexões centrais de Arendt em sua obra A Condição Humana. Preocupada com a desestabilização do mundo e com o progressivo desinteresse do homem moderno pela ação política, ela propõe, em A Condição Humana, “refletir sobre o que estamos fazendo” (ARENDT, 2008, p.13). A hipótese geral de Correia é que o movimento final dessa obra de Arendt, notadamente no que concerne ao que ela denomina a “vitória do animal laborans”, conserva seu vigor para uma critica do presente, e que certos fenômenos, a exemplo da prevalência do consumo cada vez mais intenso na definição das formas de vida, fazem parte do movimento de alienação do mundo (CORREIA, 2014, p.XXX).

Na era moderna, ocorre o que Arendt entende por alienação de mundo, na medida em que a tecnologia, o progresso científico e a introspecção, conjugados com o primado do trabalho, acarretarão a perda do senso comum. A alienação acontece em duplo sentido: tanto no do abandono da Terra, desencadeado a partir da invenção do telescópio, que impulsionou a conquista do espaço e descobertas para além dos limites da Terra, quanto no da alienação do homem para o interior de si mesmo, iniciada por Descartes, que teria aberto o caminho para uma relação intrínseca entre certeza e introspecção, sendo levada a cabo pela Reforma Protestante “na sua alienação em direção a um mundo interior, coroando a desterritorialização com a universalização do indivíduo humano enquanto ser racional” (CORREIA, 2014, p.46). Arendt chama a atenção para o fato de que, nesse cenário moderno, a ação humana não ocorrerá mais no campo político, mas no âmbito técnico-científico e na crescente esfera social, ditada pelas necessidades privadas. Correia perpassa, com acuidade, o percurso arendtiano que conduzirá à perda de mundo e à vitória do animal laborans, que vão se operar, na visão de Arendt, na articulação entre a condição humana, o surgimento da sociedade e a prevalência de uma mentalidade atrelada ao mero viver por meio do trabalho e do consumo (CORREIA, 2014, p.71).

Animal laborans é a expressão utilizada por Arendt para designar a condição humana, cujas atividades correspondem ao processo biológico do corpo humano, no qual o crescimento espontâneo, o metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades do processo vital. Tal atividade, presa ao ciclo da natureza, não humaniza, não singulariza nem transcende a necessidade natural de sobrevivência, de modo que o homem nessa condição não passa do animal humano. Distintamente, a condição humana do trabalho, correspondente à atividade do homo faber, relaciona-se à fabricação, ao artifício humano que constrói coisas que servem de uso para os homens, traduzindo, por sua vez, a capacidade propriamente humana de edificação de mundo. Corresponde, assim, à condição humana da mundanidade, na qual é possível reconhecer vidas individuais e não apenas a vida da espécie (CORREIA, 2014, p.87). Nessa atividade, bem observa Adriano, não se trata mais de sintonizar o ritmo da existência ao ritmo da natureza, como naquela do animal laborans, mas de dispor da natureza para extrair dela material para a edificação do mundo. O homo faber, portanto, já vive uma vida humana, mesmo que não na plenitude de suas potencialidades, uma vez que esta somente será alcançada no mundo politicamente organizado, no qual a aparição das singularidades, por meio da ação e do discurso, promove o intercâmbio das diferentes perspectivas que constituem o sentido do mundo (CORREIA, 2014, p.88). A ação é, pois, para Arendt, a única atividade política por excelência, uma vez que ela é exercida diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria. Ela corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens — e não o homem — habitam o mundo. Dessa forma, a pluralidade é a condição específica de toda a vida política (ARENDT, 2008, p.15).

Entretanto, o moderno movimento em direção à desqualificação da vida contemplativa, na passagem da ordem do Ser para a do Conhecer, associada à inversão de posições entre a ação e a fabricação, resultará na vitória do animal laborans sobre o homo faber. Ditado pelo progresso e impelido pelo avanço da tecnologia em um mundo capitalista em ascensão, o engenho do homo faber será canalizado para o ciclo produtivo, no qual a exigência do desejo de consumo e de produção se ampliará com uma velocidade ímpar, fazendo com que a condição do homo faber, de sujeito do processo de produção, transforme-se em instrumento desse processo. O animal laborans, na medida em que incorpora a engenhosidade do homo faber, vê ampliado o horizonte de suas necessidades e carências, bem como o da sua produtividade, por intermédio da divisão do trabalho e da mecanização. Com a emancipação do trabalho proporcionada pelo homo faber, o animal laborans, transfigurado pelo uso da técnica, vai promover constantemente “o crescimento artificial do natural”. Nesse movimento, labor e consumo voltados para a sobrevivência e satisfação seguirão um ao outro em um processo contínuo e serão apenas dois estágios do ciclo incessante da vida biológica. Assim, os ideais de permanência, estabilidade e durabilidade do homo faber serão vencidos pelo ideal de abundância, que o animal laborans compreende como felicidade (CORREIA, 2014, p.97). Correia elucida como o conceito de processo foi devastador para uma atividade que extrai o seu sentido da relação meios-fim. A diluição da fronteira entre uso e consumo e a consequente ilimitabilidade de um consumo desatrelado das necessidades vitais imediatas, em um “modo de vida” artificialmente natural, promove a desertificação do mundo do homo faber de modo análogo ao do terror, no âmbito da dominação totalitária, com o mundo comum do homem de ação (CORREIA, 2014, p.103).

Na concepção de Arendt, o princípio da utilidade que prevalecia nos primórdios da modernidade, cuja condição de meio servia para a produção de coisas no mundo, foi substituído pelo princípio da felicidade, representado pela priorização da produção e consumo. A redução do espaço público pela conquista de interesses dessa natureza e o desaparecimento das atividades propriamente políticas da ação e do discurso abriram caminho para dominações totalitárias, que são a ausência de política. A promoção de uma vida radicalmente antipolítica — aquela do trabalhador consumidor — fomentou essa dominação. Por essa razão, Arendt é contra e nunca acreditou no liberalismo. Ao defender a liberdade em seu sentido negativo — como não impedimento — o liberalismo separa a liberdade da política, concepção que se opõe ao conceito de liberdade defendido por Arendt, que pensa a liberdade como um fenômeno eminentemente político, representado pela ação livre dos indivíduos no espaço público.

A vitória do animal laborans, segundo Arendt, está relacionada à promoção do trabalho decorrente do advento social, quando o antigo abismo entre o restrito domínio do lar e o elevado domínio político foi progressivamente preenchido por uma “organização pública do processo vital”. Com a diluição da divisão entre a esfera privada e a pública, as questões sociais e interesses privados adquirem relevância pública, ou seja, o privado e o público dissolvem-se no coletivo, no qual não se espera por ação, mas por comportamentos, uma vez que se impõem “inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los comportarem-se, de modo a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária” (ARENDT apud CORREIA,. 2014, p.89). Nessa perspectiva, a vitória do animal laborans, não coincide com “classe social” alguma, mas com uma “mentalidade”, ou ainda, na indicação de Correia, com um paradoxal “modo de vida” extraído das condições do mero viver. Por isso, para compreender a relação entre economia e política na era moderna, é preciso atentar para esse outro sentido da expressão animal laborans como “modo de vida”, assim como no do produto de uma sociedade atomizada.

A ascensão do social e a prevalência do econômico no espaço público têm como resultado a redução da ação política livre, que passa a ter como foco a administração de questões oriundas da esfera privada. Isso destoa da concepção de política de Arendt, pois para ela uma ação genuinamente política não envolve questões de natureza social ou econômica, uma vez que estas estariam restritas aos assuntos do âmbito privado. E aqui surge uma questão polêmica na teoria de Arendt, que Adriano Correia enfrenta com muita honestidade: a dificuldade da filósofa “na compreensão dos vínculos estreitos entre economia e política no âmbito do capitalismo” (CORREIA, 2014, p.100). Apesar de reconhecer nas questões sociais as necessidades dos mais pobres, Arendt não deixa claro qual o mecanismo ou o procedimento pelos quais essas questões seriam admitidas no domínio político sem provocar a sua ruína ou se converter em uma usurpação do espaço público por interesses privados. De forma coesa, Adriano promove um diálogo com os críticos de Arendt, visando elucidar tais problemas.

Nesse contexto, a política se transforma em biopolítica, uma vez que suas atividades voltam-se exclusivamente ao gerenciamento de questões relativas à sobrevivência da vida em suas necessidades biológicas e de consumo. Tema que Correia aborda sob a ótica das teorias de Arendt, Foucault e Agamben, traçando as proximidades e distâncias entre esses autores. Nesse sentido, lembra as reflexões de Michael Foucault ao apontar o processo por meio do qual, nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica:

por milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente (AGAMBEN, 2004, p.11).

Para Foucault, a sociedade civil torna-se o correlativo da tecnologia liberal de governo, pois na medida em que o soberano, pautado pela tese liberal de que o Estado deve manter distância da economia, ele não pode governar o homo economicus. Por essa razão, a governabilidade só pode ser garantida no campo da sociedade civil. As conclusões de Correia sugerem que Foucault e Arendt, ainda que por caminhos argumentativos distintos, julgam que a modernidade pode ser compreendida politicamente como o primeiro período na história em que o mero estar vivo assume relevância política e é alvo da gestão estatal.

Em sua parte final, após tratar do conceito de poder em que articula um diálogo com a concepção de Arendt e Habermas, o livro trata de questões como a liberdade política, direitos humanos e o sistema de conselhos, capaz de proporcionar a participação de todos os cidadãos na vida política. A questão da liberdade, aqui tratada, está inserida no contexto das Revoluções Modernas, principalmente a americana e a francesa, as quais Arendt analisa destacando suas diferenças, seus aspectos comuns positivos e seus fracassos. Tomando como ponto de partida a afirmação “a tradição revolucionária e seu tesouro perdido”, feita por Arendt em Sobre a revolução, bem como sua concepção de que a liberdade política só pode significar a efetiva participação no governo, Adriano Correia vai reconstruir o pano de fundo dessas convicções, examinando, sobretudo, os vínculos entre liberdade, engajamento e participação (CORREIA, 2014, p.175). Como um ponto comum entre as revoluções, cita que em ambas a ideia central da revolução é a de fundação da liberdade, isto é, a “fundação de um corpo político que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer” (ARENDT apud CORREIA, 2014, p.179). Um de seus fracassos, contudo, estaria relacionado à sua incapacidade de converter em forma de governo a experiência do sistema de conselhos, vale dizer, “um novo espaço público para a liberdade que se constituía e se organizava durante o curso da própria revolução” (CORREIA, 2014, p.206). Esse novo tipo de organização política permitiria eventualmente a todos os cidadãos participar ativamente do governo.

A despeito de todas as razões e dificuldades, que segundo Arendt impediram a efetivação plena do espírito revolucionário, ela nunca duvidou da capacidade de resistência à opressão. Nesse sentido, Correia observa que “os movimentos recentes em várias partes do mundo em grande medida reverberam a convicção arendtiana de que a paixão pela liberdade e pela felicidade públicas pode ainda inspirar o engajamento político para além das demandas estritamente econômicas e sociais, ainda que frequentemente provenham delas” (CORREIA, 2014, p.195). As análises e interpretações efetuadas por Adriano Correia trazem à luz e revelam a atualidade do pensamento de Arendt, e reavivam a promessa de que a liberdade pode ser restituída como uma experiência política e se afirmar em oposição à prevalência de uma vida que não almeja sair do estrito âmbito da satisfação das necessidades.

Referências

AGAMBEN, G. Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua. Tradução de H. Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

CORREIA, A. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

DUARTE, A. O Pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

FRY, K. A. Compreender Hannah Arendt. Tradução de Paulo Ferreira Valério. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

Iara Lúcia Mellegari – Doutoranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira – CORREIA (ARF)

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. Resenha de: JOSINALDO, Cícero. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.12, jul./dez. 2014.

No livro Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira, Adriano Correia se propõe a percorrer com Hannah Arendt as distinções conceituais que operam como um dos principais expedientes metodológicos em sua reflexão política. Particularmente no que concerne à sua relação crítica, mas também ambígua com a modernidade. Para explicitar a acuidade e a relevância do procedimento de distinção conceitual assumido por Arendt, sem descurar, no entanto, do exame crítico de sua reflexão política (exemplificada na abordagem da “questão social”), importa para Correia considerar tanto as distinções mais sutis quanto os desdobramentos de certas equações negligentes. E isso sob a aposta no “vigor heurístico” da análise arendtiana acerca “mundo moderno”, em parte instituída por este procedimento.

No prólogo, sob o título “A necessidade de conhecer”, Correia começa por registrar o decisivo distanciamento que Hannah Arendt procurou manter da filosofia política tradicional no bojo da qual, exceto por algumas exceções, desde Platão, sob o impacto da morte de Sócrates, resta “o desconforto dos filósofos com a pluralidade, a fala persuasiva e o modo de vida ativo” (p. XII). O autor lembra que apenas muito recentemente, no ambiente de hostilidades políticas sem precedentes que marcam o século XX, Arendt teria detectado um tipo de interesse filosófico pela política, particularmente distinto das inquietações que desde Platão configuraram uma tradição filosófica. O aspecto marcante do novo interesse filosófico pela política foi o fato de que, mobilizado por certos acontecimentos avaliados como crises da civilização no século XX, incitou a reabilitação do vínculo entre pensar e agir. No registro de Adriano Correia, a interpretação de Arendt de que isso equivale à renúncia do filósofo ao papel de sábio no trato com a política, tem em conta a oportunidade criada pelo fenômeno para reavaliar as concepções tradicionais à luz de certas experiências e condições humanas básicas que a filosofia hostilizou.

Por sua parte, com a crise da tradição metafísica que procurava extrair as razões últimas dos fenômenos, conferir-lhes sentido ou “salvá-los”, a filosofia moderna se concentrou em revelar suas forças ocultas na conexão que mantêm com os processos do conhecer. Expediente moderno que lança os fenômenos numa profunda carência de sentido, e esta, por consequência, na falta de dignidade própria. Tal maneira moderna de “salvar” os fenômenos, “esta falta de jeito para lidar com o particular teria consequências políticas desastrosas para a capacidade de compreender, notavelmente em tempos sombrios” (p. XVII).

Daí que, como nota Correia, contra a falta de jeito da modernidade para lidar com a singularidade e a contingência, Arendt proponha “exercícios de pensamento político”: o exame dos acontecimentos ou o compromisso de “pensar o que estamos fazendo” (conforme Correia, a insígnia articuladora do pensamento de Arendt) que mediante tentativas, isto é, de forma ensaística, começa por suspender a questão da verdade, particularmente assumida como os pressupostos fundamentais e incontestados da tradição, em especial os que sucumbem à novidade dos eventos em categorias ou processos gerais e abrangentes, como se a história fosse um processo fadado a repetições.

Se o pensamento é provocado pela experiência, o empenho em compreender que a ela segue articulado, não se vê amparado por certas categorias tradicionais. Antes admite a “precariedade” e a condição da compreensão ensaística que opera por tentativas, consoantes aos fenômenos de onde parte para articular significativamente as experiências que se vivencia. Entre outros meios, foi por uma espécie de “fenomenologia genealógica” (p. XXII) complementada pela distinção conceitual, segundo Correia, que Arendt se lançou ao desafio de “pensar sem corrimão” (para usar uma expressão que lhe é bastante cara); de pelo testemunho da linguagem reencontrar nos fenômenos o sentido das experiências humanas, e assim resistir à inclinação a submergi- -las em “mais do mesmo.” No capítulo um, sob o título “Vícios privados, prejuízos públicos”, Correia, na companhia de Arendt, problematiza o “privatismo burguês” prenunciado na obra A fábula das abelhas de Bernard Mandeville, efetivamente consolidado pelo Imperialismo e mobilizado pela organização nazista do terror.

Antes de explorar diretamente a hipótese anunciada no título do capítulo (e de acordo com a proposta geral de seu livro), o autor reconstitui a distinção conceitual no horizonte da qual, na interlocução com Carlton Heynes, Hannah Arendt considera fundamental refletir acerca das condições subjacente ao agenciamento totalitário das massas: Hannah Arendt julga indispensável à compreensão desses fenômenos evidenciar as distinções entre a ralé, as massas e o povo, principalmente para indicar a novidade representada pelo surgimento das massas. A ralé “é fundamentalmente um grupo no qual são representados os resíduos de todas as classes” e “é isto que torna tão fácil confundir a ralé com o povo, o qual também compreende todas as camadas sociais”. Não obstante, julga que as distinções são suficientemente agudas para serem desconsideradas, e a principal é que enquanto nas grandes revoluções o povo luta por um sistema que de fato os represente, a ralé sempre clama pelo “homem forte”, pelo “grande líder”. Enquanto o provo, por meio das revoluções e das pressões por reformas nos regimes políticos, busca fazer-se representado no sistema político, a ralé tende a desprezar o parlamento e a sociedade dos quais está excluída, aspirando, em sua atração por movimentos que atuam nos bastidores, por decisões plebiscitárias e ações extraparlamentares. (p. 6).

Na trilha das distinções arendtianas, Correia enfatiza que o engajamento das massas mediante a organização dos líderes emergidos da ralé teve como pano de fundo o colapso do sistema partidário numa Alemanha assolada pela derrota militar, o desemprego e a inflação. E por isso tendo de lidar com o desespero das massas, “uma turba de indivíduos unidos unicamente pela convicção de que os partidos e seus líderes eram perniciosos e desonestos” (p.10). Daí que a mobilização totalitária das massas por líderes da ralé, não signifique, como destaca o autor, a saída da indiferença ou o despertar dos interesses por questões públicas, mas antes a canalização da ira contra aqueles que no sistema partidário se passavam por seus representantes políticos.

Ao reiterar com Arendt que os líderes das massas provinham da ralé, como ilustram os casos Hitler e Stalin, e que o partido nazista era quase que exclusivamente constituído por desajustados, Correia examina o interesse peculiar de Arendt no caso de Eichmann. Himmler, que em suas palavras “‘era mais normal’, mais filisteu do que qualquer outro chefe do partido. Distintamente de toda sorte de pervertidos que se toraram líderes no regime totalitário” (p.13). Himmler tipifica o “privatismo burguês” que ele mesmo teve em conta ao organizar o sistema nazista de terror. Zeloso para com os deveres de pai de família, na fidelidade à esposa e na proteção e garantia de um futuro decente aos seus filhos, Himmler concebeu uma organização burocrática cuidadosamente estruturada para absorver a solicitude do pai de família na organização de tarefas quaisquer que lhe fossem atribuídas, e para dissolver a responsabilidade pessoal em procedimentos de extermínio em que o perpetrador de um assassinato era apenas a extremidade de um grupo de trabalho. (p. 13).

Adriano Correia explora, enfim, a consagração que na falta de uma palavra melhor, Arendt nomeia do tipo “burguesa” aos interesses privados. O homem de massa que Himmler mobilizou para a perpetração dos maiores crimes da história, se aproximava menos da ralé do que do filisteu, disposto a tudo sacrificar em nome de seu “privatismo burguês”.

Ainda no contexto da temática esboçada no capítulo anterior, o segundo capítulo, intitulado “O liberalismo e a prevalência do econômico”, examina o movimento que vai da emergência à consagração filosófica das teorias éticas, políticas e econômicas do “egoísmo”, a saber, as teorias utilitaristas, que tanto para Arendt quanto para Foucault encontram no liberalismo sua mais vigorosa expressão. Antes de retraçar a avaliação que (para dizer de um modo bastante geral e esquemático) Arendt e Foucault têm em comum acerca do liberalismo como prevalência do econômico sobre o político, Correia faz notar que não parece ser coincidência o fato de a este respeito tais autores estabelecerem uma interlocução crítica com David Hume, particularmente acerca da obra Uma investigação sobre os princípios da moral.

Quando no âmbito de suas distinções conceituais entre trabalho e fabricação Arendt identificou a vitória moderna do animal laborans, isto é, do trabalhador- consumidor sobre o construtor-utilizador (que ela chama de homo faber), detectou na “revolução” da teoria ética utilitarista de David Hume, com que Jeremy Bentham concebeu “o cálculo dos prazeres”, um momento decisivo de ascensão do princípio da vida sobre o princípio de utilidade e o mundo. Pois o critério supremo das ações ou a “felicidade” de que fala Bentham, no fim das contas definida como a busca do prazer, é a mais autêntica expressão filosófica da instrumentalidade do animal laborans. Seu critério de utilidade, a subordinação de tudo ao processo vital, é totalmente desconexo e alheio ao mundo em que está situado.

Igualmente fundado sobre o princípio do interesse próprio, embora deslocado para o âmbito coletivo do domínio social, o liberalismo constitui a forma coletivizada do egoísmo, que nem por isso assume o caráter de interesse público.

O decisivo para Arendt, como enfatiza Correia, é que essa forma coletivizada do interesse individual representada pelo liberalismo, e cuja insígnia é a própria prevalência do econômico sobre o político, confira à vida mesma, à vida coletivizada como processo a ser mantido, incentivado e gerido, a distinção de critério supremo do empenho político.

Quanto a Foucault, o autor pontua que a menção àquilo a que Hume é citado por Arendt tem em vista seu esboço para a história do homo oeconomicus, compreendido como a história econômica do sujeito de interesses cuja mecânica, dada a sua heterogeneidade constitutiva, é intransfigurável ao plano jurídico-político pela figura fundadora do contrato:

O homo oeconomicus caracteriza-se justamente, na análise do empirismo e da economia nascente, como um sujeito de interesse cuja ação egoísta, multiplicadora e benéfica, é valorosa na medida mesma em que intensifica o interesse próprio. Com isso em vista, Foucault indica o quanto o homo oeconomicus não apenas não se deixa transfigurar na imagem do homo juridicus como também lhe é inteiramente heterógeno. O liberalismo constitui-se assumindo como pressuposto essa heterogeneidade, ou a “incompatibilidade essencial entre, por um lado, a multiplicidade não totalizável dos sujeito de interesse, dos sujeitos econômicos, e por outro lado, a unidade totalizante do soberano jurídico. (p. 30).

No curso da argumentação desenvolvida por Foucault com base na obra de Adam Smith, Correia destaca que os dois princípios fundamentais do liberalismo implicam a interdição de qualquer concepção de interesse comum, mas também a desqualificação de qualquer soberania arrogada sob o pretexto de conhecer a dinâmica da identidade natural de interesse individuais: O princípio de invisibilidade, notável na obra de Adam Smith, assenta- -se na hipótese de que uma vez que não se pode calcular o que seria um bem coletivo, sua busca é tanto infundada quanto danosa. Ocorre que não apenas o agente econômico não é capaz de mobilizar sua racionalidade para além da sua conduta atomística, também ao soberano é vedado o conhecimento da mecânica da identidade natural de interesses, de modo que “o poder político não deve intervir nessa dinâmica que a natureza inscreveu no coração dos homens”. (p. 30).

Nas palavras de Correia, “na interdição à interdição”, na limitação inflexível do econômico ao político, “é a própria noção de soberania que é posta em questão, portanto, na medida em que [a ignorância econômica] produz no soberano uma incapacidade essencial” (p. 31). Como o homo oeconomicus é aquele que para além de estabelecer limites ao poder soberano (como no caso do homo juridicus), é também de certo modo aquele que o destitui, ao impor o princípio de que lhe é vedado a intervenção no mercado, o poder soberano se vê diante da paradoxal impossibilidade de governar o homo oeconomicus. Foi pela concepção de “sociedade civil”, explica o autor, que na análise foucaultiana a governamentalidade liberal pôde “dissolver” a aporia que a prevalência do econômico lançou sobre a soberania política. A “sociedade civil” é o expediente da arte liberal de governar que emerge do princípio de que o homo oeconomicus é ingovernável. Ela “não é, portanto, uma realidade primeira e imediata, mas nota Foucault, o correlativo da tecnologia liberal de governo.” (p. 32).

Em sua análise final, o autor afirma que para Arendt e Foucault, a despeito de diferenças notáveis na progressiva imbricação de âmbitos tão distintos como o econômico e o político, está igualmente em jogo a questão da liberdade: “trata-se ainda da recusa da concepção de que a liberdade se traduz na conduta do sujeito de interesses que busca realizar os propósitos emanantes da sua vontade mediante o emprego de uma razão calculadora.” (p. 43-44).

Com o propósito de explicitar alguns dos aspectos mais fundamentais da crítica de Hannah Arendt à sociedade moderna, no terceiro capítulo com o título “Do uso ao consumo: alienação e perda do mundo”, o autor reconstitui e explora com argúcia aquela que é talvez a distinção conceitual mais original e mais preciosa de todo o pensamento arendtiano, a saber, a distinção entre trabalho e fabricação.

A recuperação das inversões que a modernidade operou no quadro geral da vita activa é empreendia, num primeiro momento, a partir do referencial constituído pela ciência moderna, no que tem de decisivo para o fenômeno da “alienação”. Conceito carregado de tradição, mas cujo sentido político preciso em Hannah Arendt traduz, como insiste o autor, uma perda do mundo humano de consequência ímpar.

O exame de Adriano Correia mostra que o potencial alienador da ciência moderna, sob a concepção de Hannah Arendt, envolve um complexo conjunto de aspectos cuja consequência é a configuração de um pano de fundo sobre o qual a cena que se desdobra é a inversão da relação hierárquica entre vita contemplativa e vita activa. Inversão operada com base no que é, por assim dizer, o elemento fundante da ciência moderna:

a “fé no engenho das próprias mãos” humanas: A transferência, levada por Descartes, do ponto de vista arquimediano do conhecimento de um ponto fora da Terra para a própria mente humana canalizou a confiança humana exclusivamente para os processos que desencadeava e controlava. Esta fé no engenho das próprias mãos configura o pano de fundo entre o qual se desenrolará a inversão da posição hierárquica entre a vita contemplativa e a vita cativa. A inversão não é, a rigor, uma alternação de posições entre contemplação e ação em que esta ocuparia o espaço de destaque antes conferido àquela no pensamento clássico. A contemplação, no sentido de contemplar a verdade, perdeu todo e qualquer sentido. (p. 49).

O decisivo, como sublinhado por Correia, é que a partir daí registre-se uma subordinação das demais atividades humanas básicas às atividades de fazer e fabricar, as atividades características do homo faber. O que é especialmente válido para a ciência, já que agora aposta antes de tudo no “gênio experimental do cientista aliado ao uso da tecnologia, e a partir daí conhecer e fazer uso de instrumentos passam a ser momentos complementares”. Tanto mais que “o experimento, por outro lado, reforça a compreensão moderna que o homem só pode conhecer realmente o que ele mesmo pode desencadear.” (p. 47). O autor explica que a perda do mundo mediante a dignificação suprema do homo faber decorre justamente do fato de que o conceito de “processo” seja o substituto moderno para o antigo conceito de “Ser”: “é como se, do ponto de vista do homo faber, o processo de fabricação fosse mais importante que o produto acabado, como se o método fosse mais importante que qualquer fim singular.” (p. 48).

Mas à vitória moderna do homo faber se seguirá ainda a quase imediata vitória do animal laborans e a sua correspondente forma ainda mais radical de alienação do mundo. É naturalmente no âmbito da distinção entre trabalho e fabricação que o autor explora a segunda inversão no interior da vita activa. “A compreensão da atual fusão conceitual de tais atividades [trabalho e fabricação] permite”, nas palavras do autor, “um maior aprofundamento no que seria a ‘essência’ da era moderna.” (p. 51). Pois a absorção da fabricação, da atividade com que o homo faber constitui o mundo durável de coisas, pelo trabalho, o empenho infindável com que o animal laborans resta sempre adstrito aos imperativos vitais, deflagra outro tipo de processo pelo qual o homem se vê mais agudamente alienado do mundo: a concentração em torno ao processo vital.

No cerne da fusão moderna entre trabalho e fabricação em favor do trabalho, figura a diluição progressiva das fronteiras entre público e privado, o advento do social ou o surgimento de “uma sociedade completamente ‘socializada’, como a sociedade de massas de trabalhadores, a conceber todas as coisas como funções do processo vital”. Em tal sociedade em que “a distinção entre fabricação e trabalho passa a não existir.” (p. 60), a substituição do uso pelo consumo é a expressão radical de alienação e perda do mundo dinamizada na forma de imperativo econômico.

“Quem é o animal laborans?” é o quarto capítulo consagrado ao problema de precisar a ampla significação de tal conceito na obra de Hannah Arendt.

Refinando ainda mais o crivo de suas análises acerca das distinções e aplicações conceituais na obra arendtiana, interessa ao autor examinar o conceito de animal laborans como correlato da condição humana da vida, mas também como elemento conceitual unificador de suas transfigurações modernas. Daí que seu trajeto envolva as considerações sobre o animal laborans como personagem correlata à “dimensão fundamental da existência condicionada pela vida”, como “produto da sociedade atomizada” e como “mentalidade ou ‘modo de vida’ extraído das condições do mero viver.” (p. 71). Trata-se de considerações que o autor julga necessárias à compreensão da relação entre política e economia na modernidade. É nesse contexto que no espírito do capítulo precedente amplia a discussão em torno ao animal laborans como tipo vencedor na modernidade. Correia ainda tangencia e pondera com clareza a intrincada e ainda não resolvida questão da crítica de Arendt ao pensamento de Marx.

Como dimensão fundamental da existência condicionada pela vida, o conceito de animal laborans indica que

Enquanto viventes, […] somos sempre […] condicionados pelo processo vital biológico a realizar as atividades do trabalho e do consumo, abandonados no âmbito da estrita privatividade das funções corporais e do lar no qual a vida é o bem supremo. Presidida por uma temporalidade cíclica tipificada no incessante metabolismo com a natureza, no ciclo de esgotamento e regeneração, a atividade do trabalho não humaniza, não singulariza nem transcende a necessidade sem o auxílio de capacidade reificadora do homo faber, hábil na produção de objetos, dentre os quais cabe destacara as ferramentas e instrumentos que vêm em auxílio do animal laborans com vistas a sua liberação do aprisionamento ao imperativo da necessidade. (p. 88).

Como produto da sociedade atomizada animal laborans é o conceito que traduz a transformação moderna dos agentes políticos mediante o advento do social ou a organização pública do processo vital, pela qual também a vida em comum, politicamente organizada, passa a ser orientada segundo determinações do necessário à vida considerada como fenômeno coletivo. Somente do âmbito social como espaço para os empreendimentos coletivos no interesse da vida (portanto nunca da esfera pública na qual a ação imprevisível se norteia pela ideal de liberdade) é que se pode esperar a uniformidade comportamental que se presta à predição estatística.

Nessa esfera social, os interesses privados adquirem relevância púbica, ou, mais propriamente, o privado e o público dissolvem-se no coletivo, no qual não se espera por ação, mas por comportamento, na medida em que se impõe ‘inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária. Assim, para Arendt, esse gênero moderno de igualdade redunda necessariamente em uniformidade, na medida em que se baseia no conformismo constitutivo da sociedade’. (p. 89).

Daí que a terceira significação do animal laborans referida ao “modo de vida” vitorioso na modernidade extraído das condições da vida em sua elementaridade fundamental, só possa resultar para o autor como paradoxal no contexto das reflexões arendtianas. “Paradoxal porque o caráter compulsório da necessidade que está na base do mero viver, comparável à violência da tortura, não permite que se conceba um modo de vida, isto é, uma forma de vida livremente escolhida no âmbito das possibilidades humanas de autoconfiguração deliberada”. A transfiguração moderna da condição de animal laborans em “modo de vida” além de paradoxal é também apequenadora, já que da sujeição à necessidade resulta, nas palavras do autor, “implicações altamente danosas à dignidade humana, indissociável da singularidade e da capacidade de distinção de cada indivíduo.” (p. 102).

“‘A política ocidental é cooriginalmente biopolítica?’ – um percurso com Agamben” é o quinto capítulo em que (um pouco na continuidade do capítulo quarto quanto à discussão acerca da paradoxal tradução da vida em modo de vida) trilhando o caminho de Giorgio Agamben, mas ladeado por Hannah Arendt e também Michel Foucault, o autor pretende examinar a tese daquele reformulando-a de saída no tom contestatório da interrogação.

[…] A política ocidental é, portanto, cooriginalmente biopolítica”. A implicação fundamental dessa afirmação, em Agamben, é a suposição de que desde a pólis há uma imbricação entre vida biológica e política, em vista isso, não podemos conceber uma réplica política à modernidade biopolítica na história política ocidental. (p. 125).

À hipótese de Agamben de que o mais decisivo na modernidade não é tanto o ingresso da zoé na pólis, […] tão antiga na política ocidental, mas a diluição da fronteira entre exceção e regra e a consequente indistinção entre espaço da vida nua e espaço político, e entre zoé e bíos. (p. 108).

Correia opõe principalmente as insistentes posições em que Hannah Arendt registra o abismo entre os domínios público e privado como ancorado no modo como os gregos conceberam a distinção entre bíos e zoé. É neste espírito que o autor evoca, por exemplo, a representatividade que Arendt a este respeito reconhecia no testemunho de Aristóteles. Está em questão o fato de que em tal distinção os antigos “tinham por fundamental à política a demarcação entre as demandas naturais da sobrevivência e as demandas políticas da liberdade, que falavam ambas no cidadão”. Correia sublinha que é por ter em conta registros como os de Aristóteles que Arendt apreende o fenômeno político originário como o espaço para o desenvolvimento de uma segunda natureza, “não uma zoé transfigurada, mas uma segunda natureza, em acréscimo à vida privada natural que jamais suprimimos.” (p. 119).

Em Arendt e Foucault (e neste, desde o primeiro volume da História da sexualidade) o autor encontra os elementos em comum para pensar a imbricação entre vida e política no início da tradição ocidental da política, mas como um dos fenômenos inaugurais da modernidade:

Seguramente Arendt e Foucault, que não conheciam as obras um do outro, tinham juízos distintos sobre o significado da política e do poder, para mencionar o mais flagrante. Todavia, ambos julgavam que não podemos apreender os fundamentos da modernidade política sem percorrer a trilha privilegiada que traz à vista a progressiva implicação biológica no poder político. (p. 126).

Fiel à proposta de seu livro, no sexto capítulo, “A esfera social: política, economia e justiça”, Correia analisa o conceito arendtiano de “social” à luz das análises críticas mais importantes e em contraste com o que ele julga ser “uma rígida distinção entre as esferas pública e privada, inspirada principalmente por sua interpretação do significado da pólis e do pensamento aristotélico.” (p. 130).

A despeito da ligação entre a vida privada e a vida pública ser indicada para Arendt, de acordo com Correia, pela vitória sobre as necessidades da vida relegadas ao âmbito da privatividade do lar constituir a condição para o exercício da liberdade no âmbito da pólis, a demarcação fundamental entre os dois âmbitos resta dada pelo fato de a necessidade ser o princípio ordenador da esfera privada e a liberdade o princípio ordenador da esfera pública. Para ao autor importa notar que na interpretação arendtiana o espaço da pólis é não apenas distinto do espaço do lar, consagrado à vida privada, como também foi desde o início concebido em completa oposição a ele. “A pólis, com efeito, não equivalia à localização física da cidade-estado, mas à organização das pessoas que resulta do agir em conjunto; correspondia ainda ao espaço da aparência no qual os cidadãos aparecem uns aos outros”, ao espaço “onde os homens existem não meramente como as outras coisas vivas ou animadas, mas fazem explicitamente seu aparecimento” (p. 132), por meio da ação e do discurso como modos exclusivos de condução dos assuntos públicos. Portanto, nunca como meios para perseguir interesses privados.

Ora, é justamente a moderna instrumentalização do domínio público pelos interesses privados que implica, na compreensão de Arendt, a recomposição das esferas correlatas à necessidade e à liberdade na esfera híbrida que ela chama de “social”, que Correia avalia ser “um dos elementos mais significativos, e por vezes mais incômodos, para a compreensão de A condição humana.” (p. 132).

Esse caráter devorador que Arendt confere à esfera social, conforme assinala Correia, decorre do fato de que “as questões privadas em sua dimensão coletiva (ainda que com implicações políticas), não constitui um espaço próprio, terceiro em relação ao público e o privado. O social seria como um câncer, que expande seu espaço na medida em que se espraia sobre o privado e o público” (p. 133). A “sociedade” é, enfim, o fato da dependência mútua em prol da sobrevivência e da acumulação, de objetivos em nome dos quais as atividades privadas adquirem relevância pública.

Mas há que se notar que na ponderação de Correia, à luz das mais expressivas críticas à rigidez e/ou incongruência da posição arendtiana acerca da questão social (às quais o autor não deixa de ter também suas reservas críticas), manifesta-se as dificuldades internas da relação entre as esferas pública e privada para assegurar o exercício da cidadania, assim como as dificuldades para se pensar a justiça a partir da referencial arendtiano:

As dificuldades surgem quando passamos a examinar questões pungentes de nossos tempos, com ampla repercussão na vida de todos e implicações no exercício da cidadania, mas que parecem não encontrar abrigo confortável na esfera pública tal como Arendt a compreende. A pobreza, tal como aparece na obra Sobre a revolução, por exemplo, é compreendida como danosa quando acolhida no domínio público, na medida em que poderia ser mais bem resolvida por expedientes técnicos e disposições administrativas, por um lado, e em que opera como um canal para o translado dos interesses privados para a esfera política, assim como da violência necessária para suplantar as necessidades vitais.

Compreendendo que nenhuma revolução resolveu a questão social e levando a crer que a tentativa de fazê-lo por meios políticos conduz ao terror, a lançar as revoluções à ruína, Arendt insere algumas dificuldades na já complexa relação entre as indispensáveis condições pré-políticas da cidadania e o engajamento dos cidadãos nos assuntos públicos. (p. 137).

No sétimo capítulo que tem por título “O caso do conceito de poder – Arendt e Habermas”, Correia se concentra em precisar o sentido e a singularidade do conceito de poder em Hannah Arendt num diálogo crítico com sua apropriação moduladora e associada às “incorreções” das interpretações empreendidas por Jürgen Habermas.

Para Habermas, a objeção fundamental que se pode fazer ao conceito de poder definido por Hannah Arendt é a de que “a política não pode ser idêntica […] à práxis daqueles que conversam entre si, a fim de agirem em comum”. Com efeito, seria necessário separar a gestação do poder, na qual pode ser aferida a legitimidade, do exercício legítimo do poder, que frequentemente supõe interações entre o governo e os cidadãos orientadas pela coerção e pela relação estratégica mando/obediência, que claramente têm de ser rejeitadas na práxis que presidiu a fundação da comunidade. (p. 162).

Correia destaca que a compreensão da crítica de Habermas ao conceito de poder em Hannah Arendt (que envolve um deslocamento interno ao próprio diálogo habermasiano com o pensamento político de Arendt), só pode ser compreendido à luz do que ele mesmo, num movimento apropriador, identifica como uma espécie de transposição do conceito arendtiano de poder do âmbito normativo ao nível descritivo/realista. Mas o que o autor não tarda a destacar é que Habermas emprega uma terminologia que Arendt seguramente denegaria:

Arendt, em seu exame do fenômeno do poder político, jamais pretendeu fazer teoria social ou ciência política, stricto sensu, mas também não almejava erigir um ideal normativo regulador. Em vista disso, seguramente para ela não seria uma objeção legítima a indicação da inaplicabilidade dos seus conceitos de ação, poder e política para a descrição da sociedade moderna. Para os leitores de A condição humana fica claro que, para Arendt, essa inaplicabilidade apenas reforça suas hipóteses com relação ao declínio da política na era moderna. (p. 163).

Operando sempre no âmbito da distinção conceitual, o pensamento de Arendt, conforme sublinhado por Correia e para lembrar o prólogo do seu livro, ao demarcar tais diferenças almeja a compreensão de fenômenos e não a descrição da realidade. Em todo caso, é parte do seu procedimento metodológico de distinção o fato de que ela busca indicar antes de tudo que nenhum poder advém da coerção violenta e nenhuma comunidade política pode se assentar estrita ou fundamentalmente na coerção – e é por isso que afirma que ‘a violência é a arma mais da reforma que da revolução. (p. 164).

Na contramão da compreensão de Habermas para quem o conceito arendtiano de poder é operativo apenas no sentido de precisar heuristicamente a maneira legítima de sua gestação, restando inválido para apreender a conservação das instituições e o exercício do poder, Correia assinala a insistência com que Arendt na obra Sobre a revolução registra que “não pode haver em uma comunidade política legítima uma ruptura entre a práxis que gesta o poder e a práxis que é o próprio exercício do poder” (p. 166), como pretendido por Habermas. E isso sob pena da nova ordem política, de espaço para a liberdade na forma de participação pública, se converter logo após a fundação em administração dos interesses sociais.

Com a tarefa adicional de mitigar o tentador diagnóstico de um traço “antimoderno” no pensamento de Hannah Arendt (conforme promessa firmada no capítulo sexto em que se examinou o conceito de esfera social como elemento decisivo para a relação de Arendt com a era moderna), o oitavo e último capítulo intitulado “Revolução, participação e direitos”, tem em mira o exame dos vínculos entre liberdade, engajamento e participação como expediente para reconstituir o pano de fundo sobre o qual Arendt afirma em Sobre a revolução, que “a liberdade política só pode significar a participação no governo”.

Um empreendimento que Correia procura levar com atenção focada “na oposição arendtiana à compreensão liberal de liberdade.” (p. 176) Daí que o referencial arendtiano para a reflexão sobre a liberdade seja justamente a experiência revolucionária, no marco da qual registra-se uma relação à parte entre a pensadora e a modernidade. Para Arendt, conforme Correia,

Apesar das imagens diferentes entre os acontecimentos e convicções dos dois lados do Atlântico, os revolucionários partilhavam o fundamental, isto é, “um interesse apaixonado pela liberdade pública”. O que os franceses chamavam de liberdade pública, como tradução da libertação do domínio despótico, os revolucionários estadunidenses já denominariam “felicidade pública”, em grande medida por já experimentarem essa liberdade aspirada pelos franceses. Sabiam, portanto, que “não poderiam ser totalmente ‘felizes’ se sua felicidade se situasse e fosse usufruída apenas na vida privada”. Concordavam que a liberdade pública consistira na participação nas atividades ligadas às questões públicas, que tal participação proporcionava “aos que se encarregavam delas um sentimento de felicidade que não encontrariam em nenhum outro lugar” e que “as pessoas iam às assembleias de suas cidades […] acima de tudo porque gostavam de discutir, de deliberar e de tomar decisões”. (p. 178).

A despeito das respectivas dificuldades que os revolucionários franceses e americanos tiveram para bem orientar a luta pela liberdade e para assegurá-la após a experiência política da fundação, em ambos os casos, conforme os registros de Correia das posições assumidas por Arendt, “a ideia central da revolução é a fundação da liberdade, isto é, a fundação de um corpo político que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer.” (p. 125). Portanto, restava em qualquer caso a compreensão comum de que a liberdade política não é, por exemplo, equivalente à experiência interior da vontade, mas antes algo que, à luz da antiga compreensão de liberdade, somente se efetiva mediante o engajamento ou a participação ativa de cada um no espaço público, nos assuntos comuns que ocupam o governo.

Não obstante o malogro dos empreendimentos revolucionários devido em parte também ao fato de que “a busca da felicidade não teve seu caráter público claramente definido”, tendo enfim operado ambiguamente “desde o início como canal para a confusão entre felicidade pública e bem-estar privado” (p. 179), a liberdade pública, para Arendt, é algo a que os seus agentes realmente aspiraram. Mas o ideal revolucionário, como assinalado por Correia, não pôde resistir em nenhum dos dois lados do Atlântico aos clamores da “questão social”, quer em sua feição francesa, quer em sua feição americana.

Mais uma vez, em ambos os casos, a consequência derradeira foi a dissolução da liberdade política em direitos civis.

[…] a questão social interferiu no curso da Revolução americana com o mesmo grau de intensidade, embora não tão dramática, que teve no curso da Revolução francesa”. A questão social nos EUA aglutina-se na obsessão com a abundância: “nesse sentido, a riqueza e a pobreza são apenas as duas faces da mesma moeda; as cadeiras da necessidade não precisam ser de ferro: podem ser feitas de seda”. Com efeito, “o crescimento econômico algum dia pode se revelar uma maldição, e não uma benção, e em nenhuma hipótese ele pode levar à liberdade ou constituir prova de sua existência. (p. 181; grifos do autor).

Há que se notar, contudo, o empenho de Correia em registrar que a “convicção arendtiana de que a paixão pela liberdade e pela felicidade públicas pode ainda inspirar o engajamento político para além de demandas estritamente econômicas e sociais, ainda que frequentemente provenha delas.” (p. 195).

No epílogo à obra, partindo de considerações que exorcizam os derradeiros resquícios da recepção caricatural de Sobre a revolução, quando de sua publicação em 1964, Correia mostra que no âmago da tese de Arendt acerca da perda do espírito revolucionário (que se traduz no fracasso para consolidar uma forma de governo capaz de preservar a liberdade), figura a constatação do ressurgimento recorrente do sistema de conselhos como os espaços políticos revolucionários para a participação direta. Elemento reiteradamente derrotado das revoluções, o espírito revolucionário, explica Correia, tem se “cristalizado no sistema de conselhos ou [n]a oportunidade de salvar a república ao ‘salvar o espírito revolucionário por meio da república.’” (p. 200-201).

Dentre as ressurgências que manifestaram o espírito revolucionário para além da das revoluções francesa e americana na forma de sistemas de conselhos que elas mesmas conceberam, constam no âmbito das indicações de Arendt apontadas pelo autor: a Comuna de Paris de 1871, as Revoluções Russas de 1905 e 1917, o movimento Alemão de 1918 e 1919 e a Revolução Húngara de 1956.

“Para Arendt”, conforme afirma Correia, “são várias as razões para que os sistemas de conselho, que desempenharam um papel decisivo nas revoluções, não tenham ainda se convertido em uma forma de governo consolidada”.

Dentre as razões identificadas por Arendt o autor considera particularmente esclarecedora para a questão que intitula o epílogo, a oposição entre o sistema de conselhos e o sistema partidário. Há de se notar que, que desde os fenômenos revolucionários até os últimos ressurgimentos do sistema de conselhos, é flagrante a ideia reacionária do sistema partidário que reconhece nos conselhos apenas “organizações transitórias a serem suplantadas junto com o próprio processo revolucionário.” (p. 203). Contra as insistentes reações à espontaneidade do sistema de conselhos, mas também contra toda expectativa de interdição da capacidade humana de iniciar algo novo de que este movimento espontâneo é apenas um testemunho, é o caso de se registrar com Adriano Correia que

Arendt, que jamais acreditou no progresso e inclusive o julgava uma ofensa à dignidade humana, nunca tomou parte no catastrofismo ou em qualquer outra convicção de que o futuro pudesse estar predeterminado e de que a liberdade só poderia se dar paradoxalmente em alguma pretensa dinâmica predeterminada da história. Pensava que na modernidade como em épocas anteriores poderíamos estar à altura de nossa dignidade como agentes livres, a testemunhar a singularidade de cada um e a pluralidade que articula a todos. O espírito revolucionário, um tesouro a ser encontrado, conformou para ela a mais flagrante imagem moderna da liberdade, a unir liberdade e começo, ruptura e fundação, o iniciar e o levar a cabo em conjunto. Reaviva-se assim a promessa de que a liberdade possa ser restituída como um experiência política e se afirme em oposição à prevalência de uma vida que não aspira redimir-se do aprisionamento ao âmbito da necessidade, ampliado pelo crescimento não-natural do natural que é também marca distintiva da era e do mundo modernos. (p. 209).

Adriano Correa – Professor  de  filosofia  em  estágio  pós-doutoral  na  Faculdade  de  Filosofia  (FAFIL)  da  UFG.  Bolsista  do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD-CAPES).

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Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história – DILTHEY (V)

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: MERTENS, Roberto Saraiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 3, p. 223-226, set./dez. 2012.

Durante décadas, em nosso país, os estudos das ciências humanas (especialmente as sociais) se serviram das leituras de Marx ou de autores marxistas para compor massa crítica. Repertório criado, é preciso dizer que, ainda hoje, muitas das pesquisas nessa área continuam a receber orientação do referido paradigma. Sem querer apreciar a validade ou a aplicabilidade dessas matrizes em nosso momento atual (e da necessidade ou não de uma gradativa substituição por um novo paradigma para as humanidades), apenas ponderamos que, talvez pelo seu longo período de vigência, ficou inibido o interesse de pesquisadores e das editoras por outros autores representantes das demais linhas de pensamento. Sanando este débito, vemos alguns nomes e títulos clássicos da filosofia e das ciências humanas sendo traduzidos e publicados recentemente para o português do Brasil, entre eles está Wilhelm Dilthey (1833-1911) e sua Introdução às ciências humanas (1883).

Uma avaliação empírica nos permite indicar que o autor é pouco conhecido fora das rodas acadêmicas e precariamente estudado mesmo no interior delas, de sorte que a presente obra pode oportunizar um contato com as ideias deste filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiador e pedagogo, que foi um dos primeiros a lançar um olhar lúcido sobre a inadequação dos métodos que elas importaram das ditas ciências naturais.

Para Dilthey, a metodologia das ciências naturais exerceria um efeito negativo sobre as outras, isso porque, por valer-se de compreensões hipotéticas (ou ainda, “hipostasiadas”), as ciências naturais posicionariam os objetos das ciências humanas tal como fazem com os objetos da natureza, interpretando-os como dados em sua mera aparência e duração. Desse modo, as ciências naturais (positivas) exerceriam uma ação “abstrativa” sobre o conhecimento acerca do humano. Tal ação seria decorrente da lida hipotético-positiva das ciências naturais, e tal lida oferece o risco de descaracterização da experiência humana na pauta das ciências que dela se ocupa. Nos termos do pensamento diltheyano, a ação das ciências abstrativas retira os “objetos” das ciências humanas do horizonte que lhes é próprio, na medida em que decompõe, esfacela e destrói o referido horizonte (a isso o filósofo chama de “desvivificação”).

Com essa descrição, central na Introdução às ciências humanas, a crítica às ciências abstrativas disparada por Dilthey abriu terreno para uma enxurrada de análises e desdobramentos que, em sua época (décadas finais do século XIX e iniciais do XX), chegaram a alçar até mais notoriedade do que as premissas de seu primeiro propositor. Spengler, Scheler e Spranger são apenas alguns nomes que, seguindo as pegadas de Dilthey, reforçam a premissa de que as ciências do homem, da sociedade e da história precisariam assentar-se em um solo que lhes garantisse fundamentação adequada (uma vez que esse embasamento, como já vimos, não poderia ser fornecido pelas ciências naturais, mas, antes, seria dado na humanidade das ciências do espírito).

Mas, o que, nesta tarefa de embasamento, chamaríamos de ciências da realidade histórico-social? Em que terreno se poderia lançar os alicerces das ditas ciências humanas? Onde se poderiam fundamentar as ciências do espírito de modo às mesmas não padecerem da mencionada “desvivificação”? A resposta do filósofo dada em seu livro não poderia ser mais simples: no próprio espírito, no horizonte humano, horizonte que Dilthey especifica com o termo vivência. “O ponto de partida é a vivência”. Tal sentença será repetida à exaustão ao longo das quase quinhentas páginas da obra em apreço.

Tomando por consideração as vivências (a própria vida dos fenômenos, realidade absoluta que garante a correlação entre a consciência e seus objetos em um contexto efetivamente histórico), Dilthey se serve do método hermenêutico para, com ele, reconstituir o laço que as ciências humanas possuem com o humano. Assim, uma fundamentação das referidas ciências ocorreria ao passo em que, hermeneuticamente, se possibilitaria um compreender acerca de como o conhecimento humano se faz desde o horizonte próprio ao espírito, sem que os procedimentos explicativos (abstrativos) do positivismo nisso interfiram.

O conceito de vivência, a clássica distinção entre compreender e explicar, ao lado de outros pontos que compõem bases para as ciências particularidades da sociedade e da história, são apresentados satisfatoriamente por um Dilthey ocupado em oferecer uma visão de conjunto das ciências do espírito, na conexão com uma ciência fundante necessária. Esta primeira parte da obra, por definir conceitos e métodos; delimitar o lugar autônomo das ciências da realidade histórico-social frente às ciências naturais; fornecer visões gerais sobre as ciências particularidades da sociedade e da história e distinguir entre as duas classes de ciência, é considerada por Max Weber (outro seguidor de Dilthey) o primeiro estudo sério no qual se aborda o problema metodológico das chamadas ciências humanas.

A obra, entretanto, não se limita apenas a uma apresentação deconceitos e temáticas acerca de pontos que o filósofo julgava impres-cindíveis no campo das ciências. Intuindo (semelhantemente ao Hegel da Fenomenologia do espírito) que toda ciência depende das condições de nossa consciência, Dilthey dedica a segunda parte da obra à interpretação da constituição definitiva da ciência histórica e, por meio dela, das ciências humanas em geral. Realiza-se, assim, a tentativa de fundamentar o estudo da sociedade e da história (como o subtítulo da Introdução anuncia). O que se presencia neste momento é, então, a análise dos fatos constituintes do núcleo das ciências humanas e sua correspondência com a história; história, esta, apreendida como manifestação da vida sob o ponto de vista da humanidade.

Ao longo das quatro seções que compõem esta segunda parte do livro, vemos Dilthey buscar a restauração de elementos da base histórico-material que constitui o conhecimento humano; base, essa, que teria sido tanto negligenciada pelo projeto crítico do kantismo, quanto pelo idealismo radical hegeliano. Ao retomar essas bases históricas, Dilthey tenta esclarecer que as vivências da consciência, e as visões de mundo que elas constituem em cada época, acabam por traduzir as concreções do espírito objetivo em um tempo. Isso explica a extensa narrativa historiográfica contida no tópico intitulado Metafísica como base das ciências humanas: seu domínio e sua decadência, na segunda parte do livro. No referido momento, o filósofo descreve e analisa visões de mundo dos povos antigos e de seu pensamento místico, os povos europeus modernos e seu estágio metafísico, e a dissolução da posição metafísica ante a realidade. Fica patente, ali, a admirável erudição do autor que dedica, além de leituras refinadas de Platão e Aristóteles, dezenas de páginas à filosofia medieval árabe, ultrapassando em muito as expectativas do leitor com formação filosófica média que, geralmente, não costuma ir além de notícias sobre Avicena e Averróis (fato que justifica o entusiasmo de Eugenio Imaz, seu tradutor para a língua espanhola, que reputa sua cultura “prodigiosa”, “oceânica”). Aspecto que, por si só, já é suficiente para legitimar a publicação do livro.

Avaliada sob o ponto de vista da tradução, a edição brasileira apresenta uma versão elaborada de maneira atenta à tendência dos estudos mais atuais da obra de Dilthey. Desse modo, mesmo a tradução da expressão alemã Geisteswissenschaften por “ciências humanas” (que poderia ser contestada em favor da literal “ciências do espírito”) encontra precedente nas traduções de língua inglesa e endosso junto a comentaristas especializados, que se inclinam a acatar que “ciências humanas” traz melhor a conexão de sentido da realidade histórica e social do que a nomenclatura “ciências do espírito”, na qual a noção de “espírito” facilmente pode sugerir erroneamente uma independência de homens reais. Não fosse esse argumento suficiente, a escolha se mostra editorialmente plausível, uma vez que cria maior identidade com o público de alguns dos cursos universitários brasileiros, dos denominados cursos de ciências humanas.

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Estuda o autor alemão Martin Heidegger desde o ano de 1995, tendo interesse também pela filosofia clássica alemã. Autor de Heidegger & a Educação (Autêntica, 2008). E-mail: [email protected].

 

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Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault – DUARTE (ARF)

DUARTE, André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: FERNANDES, Antônio Batista. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.135-140, 2012.

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Autobiografia – KELSEN (NE-C)

KELSEN, Hans. Autobiografia. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. Resenha de: BATALHA, Carlos Eduardo. O jurista como verdadeiro teórico do Estado. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.

Não parece datada a afirmação de que “ocupa-se uma posição no espaço jurídico conforme se está mais perto ou mais longe de Hans Kelsen”1. Ainda hoje diversos juristas referem-se ao autor da Teoria pura do Direito como uma espécie de símbolo, ao mesmo tempo central e superior, para a compreensão do Direito.

Contemporâneo de uma geração de intelectuais austríacos que se destacaram para além do contexto europeu, Kelsen estudou e lecionou na Universidade de Viena no começo do século XX. Dirigiu-se à Alemanha em 1930, mas sua origem judaica e sua imagem pública como redator e guardião judicial da primeira Constituição democrática da Áustria o tornaram vulnerável à perseguição nazista. Após buscar refúgio em outros países, chegou aos Estados Unidos em 1940, onde se estabeleceu e se aposentou como professor da Universidade da Califórnia, vindo a falecer em 1973. No Brasil, sua obra tornou-se referência a partir da elaboração da Constituição de 19342, e, por volta de 1950, foi aqui consolidada no campo da Filosofia do Direito, ganhando lugar cativo em manuais e monografias dedicados às questões da justiça, da ciência do Direito e da estrutura do ordenamento jurídico3.

Tão ampla foi a recepção das concepções kelsenianas que ela própria acabou por se tornar objeto de discussão. Ao menos desde 1970, tanto herdeiros quanto críticos de Kelsen têm se preocupado com a reavaliação da apropriação de sua teoria. De modo geral, é possível dizer que esse reexame tem sido marcado por três atitudes distintas. Por um lado, tem-se a revisão dos fundamentos da Teoria pura do Direito, seja reconsiderando os vínculos de Kelsen com o neokantismo, seja promovendo sua aproximação com o neopositivismo lógico e a filosofia analítica. Por outro lado, há a atualização do horizonte de inserção da obra de Kelsen, na busca por sua integração ao debate contemporâneo sobre a jurisdição e o papel da interpretação na determinação do direito. Há também, por fim, a denúncia da trivialização do pensamento kelseniano, decorrente da simplificação e da distorção de suas ideias para fazê-las circular no dia a dia dos juristas como uma espécie de “senso comum teórico”4.

Como resultado desse reexame, várias sutilezas do pensamento de Kelsen obtiveram reconhecimento. Vê-se agora com maior clareza o equívoco de atribuir a ele “a redução do direito à lei”, “a existência de um direito sem moral”, “a desconsideração da dimensão humana e seus valores”, ou de acusá-lo de “ter colocado no mesmo nível as normas de um Estado totalitário e as de um Estado democrático”. Contudo, ainda há muitos outros aspectos de sua obra a serem revistos, atualizados e descobertos.

A recente publicação da tradução brasileira da autobiografia escrita por Kelsen em 1947 coloca em evidência alguns desses aspectos. Acompanhada de uma “autoapresentação” — elaborada em 1927 como explicação da gênese intelectual da Teoria pura do Direito —, a autobiografia ultrapassa tanto o testemunho pessoal quanto a condição de museu dos conceitos kelsenianos. Por meio de rigorosa seleção de episódios, Kelsen enfatiza elementos que o debate filosófico-jurídico no Brasil muitas vezes considerou secundários. Nesse sentido, ainda que por contraste, sua autobiografia nos auxilia a traçar os caminhos pelos quais sua teoria foi aqui incorporada à Filosofia do Direito. Ao mesmo tempo, ela também nos ajuda a entender melhor os limites de nossa apropriação da Teoria pura do Direito.

Como se sabe, o ambiente que recepcionou a obra de Kelsen no Brasil começou a se configurar antes mesmo da criação dos primeiros cursos jurídicos nacionais. Ao longo do século XVIII, um pequeno grupo da sociedade brasileira já se dirigia à metrópole portuguesa para realizar estudos superiores em Direito. E o debate intelectual que ali se encontrava não era exatamente o moderno confronto entre a tradição romano-canônica e a nova orientação do direito racional. Enquanto as concepções jusnaturalistas assumiram pela Europa uma função crítica e revolucionária, as reformas pombalinas incorporaram o discurso jusnaturalista para articular ortodoxia religiosa e manutenção do poder real em Portugal. Difundia-se um jusnaturalismo pela via do catolicismo, a serviço do Estado nacional, da centralização administrativa e das prerrogativas da monarquia. Essa perspectiva encontra-se claramente delineada no Tratado de Direito Natural escrito pelo futuro inconfidente Tomás Antônio Gonzaga5. Elaborado como tese para concurso na Faculdade de Leis de Coimbra, esse tratado examinava as concepções propostas por Grotius, Pufendorf e Thomasius para submetê-las à crítica, assentando, em primeiro lugar, a origem divina de imutáveis princípios necessários para o Direito natural e civil. Tal associação entre jusnaturalismo e filosofia católica nunca deixou de compor o quadro da Filosofia do Direito no Brasil, seja no século XIX, por meio de obras marcadas por certo ecletismo espiritualista, seja no século XX, com o empenho de diversos juristas na restauração da tradição escolástica6.

No entanto, com a criação dos cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, após a Independência, surgiram condições para que trabalhos doutrinários introduzissem elementos característicos da modernidade na determinação do Direito. A defesa de limitações constitucionais ao poder governamental, assegurando áreas de autonomia à vida privada, fez com que instituições e princípios próprios do Estado liberal começassem a ser empregados na compreensão da estrutura legal do país. A divulgação do liberalismo veio acompanhada da importação de teorias ligadas ao iluminismo francês e ao idealismo alemão, com especial atenção para a filosofia de Immanuel Kant, lida por intermédio das obras de Karl Krause e Ludwig Noiré. O que se assimilou do kantismo, porém, não foi suficiente para apreender seu projeto de filosofia crítica. Fala-se em “filosofia transcendental”, “apriorismo” e “coisa em si mesma”, menciona-se a combinação de liberdade e coerção no domínio do Direito, mas o criticismo não é mais que um “ponto intermediário” entre as atitudes dogmáticas e céticas, de modo a conciliar a tradição escolástica com os valores emergentes das revoluções burguesas. Também havia dificuldades práticas para consolidar a compreensão liberal da ordem jurídica como um sistema impessoal, fundamentado em princípios gerais e aplicado segundo critérios objetivos. O aparato jurídico então existente não deixava de ser considerado, em sua aplicação, como um instrumento manipulável, a serviço de arranjos pessoais, trocas de favores e relações orientadas por critérios de lealdade. O que se desenvolve a partir da criação das academias de Direito é, portanto, a percepção da distância — quando não do desencontro e da contraposição — entre as “diretrizes básicas” da formação jurídica nacional e as “necessidades reais” da vida social, gerando um debate, que se torna recorrente no ensino jurídico do país, sobre a relação entre “as leis abstratas e formais” e “a prática concreta e material” do Direito7.

Nesse contexto, a referência a Kant acabou por adquirir novos contornos a partir da segunda metade do século XIX. Os ensaios e estudos do germanista Tobias Barreto articularam a inserção do Direito no âmbito da cultura e essa perspectiva o levou a negar a universalidade do fenômeno jurídico, em face da historicidade do ser humano. Influenciado pela obra de Rudolf von Ihering, Barreto acabou por atribuir maior peso às noções de finalidade e valor, como elementos definidores do próprio homem. Com isso, encaminhou-se para a substituição do jusnaturalismo por um humanismo (que depois repercutirá no culturalismo de Miguel Reale). Além disso, o que se destaca na filosofia do direito de Barreto é sua vinculação às teorias evolucionistas de Ernest Haeckel. Graças a essas teorias, sua recepção do pensamento de Kant e Ihering resultou em um naturalismo evolucionista, que não só abriu os estudos jurídicos brasileiros para o campo sociológico, como também propagou por aqui a definição do Direito em função da coação.

Esse naturalismo evolucionista ainda não correspondia, porém, à afirmação do método positivo como base para o conhecimento jurídico. Tobias Barreto chega a mencionar Augusto Comte em alguns ensaios, mas ao longo do século XIX as obras jurídicas nacionais ainda se inseriam no domínio das belles-lettres. O desenvolvimento dos estudos científicos no Brasil ocorreu inicialmente entre engenheiros, médicos e militares. E o movimento positivista obteve maior repercussão quando essas categorias profissionais alcançaram a posição de “nova burguesia” do país, a partir de 18708. Para os juristas, essa situação somente começou a se alterar com o debate entre Pedro Lessa (inclinado ao positivismo e ao naturalismo spenceriano) e João Mendes Júnior (herdeiro da tradição escolástica), que colocou a questão da Ciência no centro da Filosofia do Direito. Depois, já na primeira metade do século XX, o problema recebeu atenção particular (e orientação assumidamente positivista) de Pontes de Miranda, que manteve alguns elementos do pensamento de Ihering, mas os incorporou em uma concepção de ciência jurídica como ciência causal, não finalista, para assim aproximar o “processo de revelação científica da norma” à metodologia das ciências naturais e comprovar valores “com os números das estatísticas e com as realidades da vida”9. Foi nesse contexto que as diferentes linhas do debate filosófico-jurídico no Brasil acabaram por articular uma versão peculiar da contraposição entre compreensões jusnaturalistas (ainda orientadas pela tradição escolástica) e enfoques positivistas (aqui vinculados a um naturalismo evolucionista).

A recepção brasileira da teoria kelseniana ocorreu a partir dessa contraposição. Enquanto Kelsen era identificado como “niilista político” na edição de 1939 da Meyers Konversations-Lexikon, uma das principais enciclopédias alemãs (que expressava então o discurso nacional-socialista)10, sua obra era caracterizada entre nós como “apogeu da corrente do positivismo jurídico” e “ponto culminante da escola técnico-jurídica”11. A Teoria pura do Direito foi situada, antes de tudo, como oposição ao jusnaturalismo. Uma vez inserida na polêmica com a tradição do Direito natural, a preocupação kelseniana de delimitar, com exatidão, o objeto da ciência jurídica transformou-se em um programa de “reducionismo”. Devido à sua recusa sistemática a ultrapassar o Direito positivo na construção do conhecimento jurídico, Kelsen seria o mais típico defensor da redução simplificadora do Direito à norma jurídica, afirmando que “não há outro Direito além do Direito positivo” e que este “não é mais do que seriação gradativa de normas”12.

Na condição primordial de positivista reducionista, Kelsen não chega a ser igualado a outros teóricos então presentes no cenário nacional. Nota-se, por exemplo, que sua teoria diverge da proposta de Pontes de Miranda quanto à utilização da causalidade como nexo necessário para formulação da ciência jurídica. A importância atribuída à categoria da imputação nunca deixou de ser reconhecida. Contudo, a peculiaridade kelseniana que impressiona os juristas brasileiros de imediato parece ser a oposição entre ser e dever ser. Essa oposição os leva muitas vezes a entender que o estudo do Direito estaria todo no domínio do dever ser, “não existindo ponto de contato” com o “ser”. O neokantismo em Kelsen deixaria o jurista “desconectado do direito enquanto ser”, no plano da pura normatividade lógica, separando de modo tão radical realidade natural e norma jurídica que isso o levaria a “separar não menos radicalmente o social e o jurídico”. A identificação do elemento formal do Direito (sua normatividade) implicaria “sacrifício ou esquecimento” pelos juristas da própria realidade do Direito, deixada para o estudo exclusivo dos cientistas sociais. O positivismo reducionista seria, na verdade, puro normativismo.

O “purismo”, porém, não se esgota nesse “desligamento” da realidade. Ele também é entendido desde o início como “ausência de juízos de valor”, tendo em vista a criação de condições para descrição “objetiva” da realidade jurídica. Essa leitura da pureza metodológica de Kelsen pode ser vinculada ao célebre debate alemão, ocorrido no início do século XX, sobre a importância de distinguir conhecimento e valor no âmbito das ciências sociais13. Mas o que dela se retira na recepção brasileira é a defesa de uma completa subjetividade de todos os juízos de valor. Por meio de uma confusão entre “relativização dos conteúdos normativos”, “relativismo moral” e “ceticismo”, entende-se que Kelsen teria introduzido na ciência jurídica “o desprezo pela concepção do Direito como realização da ideia de justiça”, relegando a moral e a política ao “plano da ideologia”. Desse modo, o positivismo teria como fruto o relativismo dos valores, a começar pelo valor da justiça.

No lugar dos valores, o fundamento do fenômeno jurídico estaria deslocado na teoria de Kelsen para uma norma hipotética, de caráter lógico-transcendental e validade pressuposta, que obrigaria o pensador do Direito a tomar como o primeiro de uma série hierárquica um enunciado prescritivo posto, tornando possível pensar um conjunto de normas juridicamente válidas como um ordenamento (uma unidade sistêmica) sem recorrer a elementos “metajurídicos”, “extrapositivos” ou “não científicos”. Não é estranho, pois, que o debate em torno do positivismo de Kelsen sempre acabe por dedicar muitas páginas à teoria da norma fundamental. Também não deve espantar que, entre diversas questões levantadas por essa teoria, o problema da relação entre validade e eficácia receba grande destaque entre os juristas brasileiros. Trata-se, pois, de um recorte que assume o puro normativismo e o relativismo para colocar Kelsen em oposição direta ao discurso jusnaturalista, que, por meio de uma teoria da justiça, dedicava-se à identificação absoluta dos pressupostos éticos e políticos do Direito positivo.

A leitura das memórias de Kelsen nos permite, todavia, ir além dos limites desse recorte. A começar pela curiosa carência de menções aos temas mais discutidos entre nós. Não há nenhum destaque para a formulação da concepção de norma fundamental ou mesmo para a discussão da relação entre validade e eficácia. A respeito da discussão do papel dos juízos de valor ocorrida entre os sociólogos alemães, também não há indicação alguma. Kelsen apenas cita de passagem um contato tardio com Max Weber, reconhecendo que demorou a se familiarizar com seus escritos, pois, mesmo no período em que estudou em Heidelberg, não frequentou o círculo mais próximo do sociólogo14. Na autobiografia, o enfoque empírico-relativista surge tão somente como pressuposto da compreensão da contraposição entre formas autocráticas e democráticas de governo15. E a elaboração de uma teoria sistemática do positivismo jurídico, ligada à crítica do Direito natural, não aparece como ponto de partida. Tal teoria teve como marco a publicação de As bases filosóficas da doutrina do Direito natural e do positivismo jurídico em 1928 e somente foi desenvolvida após a mudança para a Alemanha em 193016. Foi nesse período que a preocupação com a ideia de justiça tornou-se parte das investigações científicas de Kelsen, que passou a se dedicar à redação de uma história da teoria do Direito natural sob a forma de uma “sociologia da crença na alma” como “crítica fundamental de toda a metafísica”17. Em seu autorretrato, Kelsen explicita que sua “estrela-guia desde o início” foi a filosofia de Kant18. Por isso, encontra-se já em suas primeiras obras o recurso à oposição entre ser e dever ser. A pureza não se reduz à defesa de um “puro normativismo”. Ela está ligada a outras questões.

Para que se tenha uma boa medida dessas questões, merece atenção a narrativa feita por Kelsen das dificuldades enfrentadas durante o período em que atuou na Corte Constitucional que ele mesmo projetara19. Ocupando mais de dez páginas no centro da autobiografia, essa narrativa jamais caracteriza a atividade de magistrado como simples função técnica. Diante das dúvidas interpretativas decorrentes de um Código Civil com princípios contraditórios sobre a possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial20 e dos problemas sociais decorrentes dos tribunais que começaram a declarar de ofício a invalidade dos mesmos casamentos cuja celebração tinha sido autorizada por órgãos administrativos do Estado21, a atuação dos magistrados da Corte tinha em vista tanto a preservação do direito existente quanto a manutenção da autoridade do Estado baseada nesse direito. Sua decisão, assim, foi

determinada não apenas por sua prática em adotada em casos de conflito de competência, mas também pelo esforço de restaurar a autoridade do Estado ameaçada pelo conflito aberto entre os tribunais e as autoridades administrativas.22

Esse e outros episódios reforçam a percepção de que o significado da obra de Kelsen não se deixa apreender por meio da contraposição esquemática entre jusnaturalismo e positivismo jurídico. Por toda a autobiografia (e também na “autoapresentação”) parece claro que a reflexão kelseniana está enraizada em outro debate, relativo à unidade política e à crise da teoria geral do Estado23. Antes da Primeira Guerra Mundial, ela se dedica a ressaltar que a “vontade do Estado” não poderia ser uma entidade fisicamente real como a vontade dos indivíduos, mas apenas uma expressão antropomórfica do dever ser do ordenamento estatal24. De modo próximo a Windelband, que tomou a filosofia kantiana como base para atribuir aos valores uma existência própria, não psicológica, estruturada como a dimensão de “validade do dever ser”, Kelsen opera a transição da teoria geral do Estado para o plano da “validade objetiva”, apartado da esfera subjetivista do psicologismo. Com isso, alcança um duplo resultado: por um lado, identifica o significado não psicológico e exclusivamente normativo do conceito de vontade específico para a teoria do Direito; por outro lado, compreende que os problemas da teoria geral do Estado “mostravam ser problemas de validade e produção de um ordenamento normativo coercitivo”25. Formula, então, sua tese da identidade do Estado com o direito positivo, que é a verdadeira base tanto para a proposição da unidade entre Estado e Direito quanto para a defesa de que Direito é somente Direito positivo26. Em suas palavras,

A questão decisiva com relação à essência do Estado me parecia ser o que constitui a unidade na multiplicidade dos indivíduos que compõem essa comunidade. E não pude encontrar outra resposta cientificamente fundamentada a essa questão senão a de que é um ordenamento jurídico específico que constitui essa unidade, e de que todas as tentativas de fundamentar essa unidade de modo metajurídico, ou seja, sociológico, devem ser consideradas fracassadas.27

Após a Primeira Guerra, quando a crise prática e téorica da unidade política se agrava, a reflexão kelseniana encaminha-se para a discussão das tendências anarquistas da teoria marxista do Estado, a defesa do parlamentarismo ante quaisquer ditaduras e a compreensão da ideologia libertária da democracia por meio de um duplo contraste: por um lado, o confronto entre essa ideologia e a realidade social, entendida esta como o sentido efetivo dos ordenamentos jurídicos positivos tidos como democráticos; por outro lado, o confronto entre ideologia democrática e a situação psicológica dos indivíduos submetidos aos ordenamentos jurídico-democráticos28. Não abandona, porém, a tese fundamental de que o Estado, do ponto de vista de sua essência, é um ordenamento jurídico relativamente centralizado. Com essa tese, o poder deixa de ser um fenômeno quase natural para se tornar um fenômeno jurídico. A coerção jurídica é vista agora como um poder autorizado e as prescrições somente possuem significado jurídico se emanam de uma instância que foi autorizada dentro de uma ordem escalonada de normas produzidas juridicamente. A criação legislativa é aplicação do direito, da mesma forma que uma decisão judicial é continuação (ainda que formal) do processo jurídico de produção do direito. Isso permite a Kelsen algo mais do que se opor à tradição jusnaturalista: com a concepção de autorização, torna-se possível também rejeitar influentes teorias imperativistas do Direito (por exemplo, as teorias de Hobbes e Austin), que associavam o fenômeno jurídico aos comandos de um soberano juridicamente ilimitado29.

No que diz respeito ao “purismo” proposto por Kelsen, sua autobiografia deixa claro que essa proposta foi se constituindo aos poucos, por meio de diferentes atitudes metodológicas30. Inicialmente, a teoria pura se caracterizava pelo objetivo central de determinar a relação precisa (e não a desconexão) entre o dever ser (da norma jurídica) e o ser (da realidade natural) no conceito de Direito31. A purificação das doutrinas jurídicas correspondia basicamente à tarefa de encontrar, entre os dois extremos dessa relação, “o meio-termo correto”. Assim sendo, ela operava por meio da substituição de postulados metafísicos por categorias transcendentais como condições da experiência, acompanhada pela transformação das oposições entre direito objetivo/direito subjetivo, direito público/direito privado, Estado/Direito, antes consideradas absolutas (por serem “qualitativas e transistemáticas”), em diferenças relativas (de caráter “quantitativo e intrasistemático”). Somente mais tarde, Kelsen se dirigiu à crítica da tendência ideológica de dar aparência de justiça ao Direito positivo32. A pureza revelou-se então como exigência de despolitização33. Foi assim que a Teoria pura do Direito acabou por desenvolver seu caráter “radicalmente realista”, que se manifesta na recusa à valoração do Direito positivo34.

A autobiografia também indica que o projeto de purificação se adequa à preocupação de Kelsen com o desencontro entre conhecimento e ação, ou seja, com a difícil relação entre teoria e prática. Essa preocupação aparece em tantos momentos que se tem a impressão de que ela é a legítima constante de todas as fases da Teoria pura do Direito. Ela aparece, por exemplo, de modo discreto, na lembrança dos episódios ligados à questão do equilíbrio europeu. Ao final da Primeira Guerra, Kelsen se vê envolvido nas negociações entre o governo austríaco e o movimento nacionalista tcheco, quando ainda pretendia-se conciliar a formação de novos Estados nacionais, fundados no direito de autodeterminação dos povos, com a manutenção do bloco austro-húngaro no centro da Europa35. Em outro contexto, às vésperas da Segunda Guerra, acompanha a resistência do governo tchecoslovaco em admitir que os movimentos separatistas dos sudetos e dos eslovacos ampliavam suas forças em face do progressivo desmoronamento do sistema internacional estruturado em Versalhes. Kelsen foi consultado oficialmente em ambas as situações. E sugeriu diretamente aos dirigentes políticos que as dificuldades decorrentes das demandas por autonomia nacional fossem contornadas com a formação de um Estado federado. Suas propostas, porém, não tiveram condições de passar para o plano da ação: quando foram levadas em consideração, “era tarde demais” — repete o jurista — e acabaram por perecer diante de outros eventos históricos36.

Em outros momentos, a preocupação com a relação entre conhecimento e ação é enunciada diretamente. Na narrativa dos fatos que conduziram à sua nomeação para o cargo de professor ordinário em Viena37, bem como nos episódios da promoção de Leo Strisower à posição de professor catedrático38 e da aprovação da livre-docência do marxista Max Adler39, Kelsen expressa com clareza sua orientação geral de que o conhecimento científico deve permanecer independente da ação política. Por um lado, entende que “um professor e pesquisador não deve se filiar a partido nenhum”. Por outro lado, defende que a filiação a um partido político não poderia ser um motivo para excluir pessoas da carreira acadêmica, “à condição de que seus trabalhos tivessem a qualidade científica necessária”. A expressão dessas diretrizes é também a oportunidade para que Kelsen assinale:

pessoalmente, tenho toda simpatia por um partido socialista e ao mesmo tempo democrático, e nunca dissimulei essa simpatia. Porém, mais forte do que essa simpatia era e é minha necessidade de independência partidária na minha profissão. O que eu não concedo ao Estado — o direito de limitar a liberdade da pesquisa e da expressão do pensamento — eu não posso conceder a um partido político por meio da submissão voluntária à sua disciplina.40

Ao final de suas memórias, Kelsen retoma mais uma vez sua preocupação, ao registrar as peculiaridades da formação jurídica norte-americana. Nesse contexto, destaca que as faculdades de Direito estadunidenses, com seus cursos profissionalizantes, não apresentam interesse por uma teoria científica do Direito. Chega a pensar que talvez o Direito como objeto de conhecimento científico estaria mais bem localizado no âmbito de uma faculdade de Filosofia, História ou Ciências Sociais. Entretanto, também assinala que em Viena seus professores de Direito público (Edmund Bernatzik e Adolf Menzel) lhe pareciam pouco ou nada interessados em problemas téorico-jurídicos41. E afirma: durante todos os anos como professor no departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia, em Berkeley, não encontrou um único aluno que quisesse se especializar em teoria do Direito ou mesmo em Direito internacional42. Nesses termos, Kelsen parece concluir que no Direito não há interesse por Ciência, da mesma forma que na Ciência não há interesse por Direito.

Todas as preocupações, porém, não fazem com que a conclusão geral trazida por estas memórias seja qualquer espécie de “derradeira negativa”. Ainda que Kelsen tenha afirmado que “a relatividade dos valores experimentei em minha própria carne”43, sua autobiografia não se apresenta, ao final, como um conjunto de lições de relativismo. Se é certo que o lugar da justiça não é preenchido no interior da Teoria pura do Direito, não é adequado, porém, esquecer que seu autor aproveita todas as oportunidades para assumir e defender o valor da independência. Não apenas sob a forma de liberdade científica ou política, mas também, na autobiografia, como independência dos magistrados e das instituições jurídicas. O episódio que levou a seu afastamento da Corte Constitucional austríaca serve para registro e reafirmação da importância desse valor44. Relembrando situações nas quais o problema da relação entre teoria e prática se tornou evidente, Kelsen não se abstém de expressar sua convicção de que a verdade e as formas jurídicas constituem o campo apropriado para a construção de uma teoria do Estado. Em meio às artes de governar, o jurista é revelado como o mais apropriado teórico do Estado, não apenas por formular o discurso da soberania, mas principalmente por manifestá-lo como supremacia do ordenamento jurídico e, em especial, da Constituição. E, se o jurista é o verdadeiro teórico do Estado, seu positivismo jurídico transforma-se, socialmente, em um projeto de Estado de Direito. Conclusão menos niilista não poderia existir. Resta à Filosofia do Direito no Brasil dar a esse projeto a devida atenção.

Notas

1 Cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 118.         [ Links ] 2 Cf. ALENCAR, Ana Valderez A. N. “A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados constitucionais”. Revista de Informação Legislativa, v. 15, n. 57, jan.-mar.1978, pp. 239-         [ Links ]43; Prutsch, Ursula. “Instrumentalisierung deutschsprachiger Wissenschafter zur Modernisierung Brasiliens in den dreißiger und vierziger Jahren”. In: Lechner, Manfred; Seiler, Dietmar (orgs.). Zeitgeschichte.at. 4. österreichischer Zeitgeschichtetag’ 99. Innsbruck: Studienverlag, 1999, pp. 361-         [ Links ]69.
3 Cf., em particular, ABREU, João Leitão de. A validade da ordem jurídica. Porto Alegre: Globo, 1964, pp. 49-71 e 125-         [ Links ]71.
4 Para a primeira atitude, temos como exemplo obras de Sônia Broglia Mendes, Fernando Pavan Baptista e Henrique Smidt Simon. Para a segunda atitude, consideramos os trabalhos de Gilmar Ferreira Mendes e Lenio Luiz Streck. Já a atitude de denúncia foi aqui caracterizada segundo a obra de Luís Alberto Warat.
5 Cf. MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Rio de Janeiro: mec,         [ Links ] 1953; Grinberg, Keila. “Interpretação e Direito natural”. In: Gonzaga, Tomás Antônio. Tratado de Direito natural. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. VII-         [ Links ]XXXV.
6 Cf. PAUPÉRIO, A. Machado. A Filosofia do Direito e do Estado e suas maiores correntes. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, pp. 153-         [ Links ]6.
7 Cf. FERRAZ Jr., Tercio S. “A Filosofia do Direito no Brasil”. Revista Brasileira de Filosofia, v. 45, n. 197, 2000, pp. 14-         [ Links ]6.
8 Cf. COSTA, João CruzContribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, pp. 138-         [ Links ]46.
9 Cf. FERRAZ Jr., “A Filosofia do Direito no Brasil”, op. cit., p. 24; NADEr, Paulo. Filosofia do Direito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 278-         [ Links ]81.
10 ENGLARD, Izhak. “Nazi criticism against the normativist theory of Hans Kelsen: its intellectual basis and post-modern tendencies“. Israel Law Review, n. 32, 1998, p.         [ Links ] 183.
11 A expressão aparece na tese escrita por Miguel Reale entre 1939 e 1940, para concurso à cátedra da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Cf. Reale, Miguel. Fundamentos do Direito. 3. ed. fac-símile. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 151 e 157.         [ Links ] 12 A ênfase na caracterização de Kelsen como positivista estrito ou pleno pode ser encontrada em vários autores. Aqui tomamos por base, além da tese de Miguel Reale, obras de Alysson Leandro Mascaro, Aurélio Wander Bastos, Eduardo C. B. Bittar, Fábio Ulhoa Coelho, Paulo Dourado de Gusmão e Paulo Nader.
13 Cf. LOSANO, Mario. Introdução. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. x-         [ Links ]xv.
14 Idem, ibidem, p. 49.
15 Idem, ibidem, p. 32.
16 Kelsen, Hans. Autobiografia, p. 97.         [ Links ] 17 Idem, ibidem, p. 98.
18 Idem, ibidem, p. 25.
19 Idem, ibidem, pp. 81-93.
20 Idem, ibidem, p. 84.
21 Idem, ibidem, p. 87.
22 Idem, ibidem, p. 90.
23 BERCOVICI, Gilberto. “Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução conservadora”. In: ALMEIDA, Jorge; Bader, Wolfgang. Pensamento alemão no século XX — Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol. I. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 69-         [ Links ]72. Nesse sentido, as origens da obra de Kelsen estão ligadas à sua crítica à teoria do Estado de Georg Jellinek. Cf. Dias, Gabriel Nogueira. Positivismo jurídico e Teoria geral do Direito na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 116-23 e 137-         [ Links ]40.
24 Kelsen, Autobiografia, op. cit., p. 25.
25 Idem, ibidem, p. 31.
26 Idem, ibidem, p. 28.
27 Idem, ibidem, p. 72.
28 Idem, ibidem, pp. 32-33.
29 Cf. HÖFFE, Ofried. Justiça política — Fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 127-         [ Links ]31.
30 KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 43.
31 Idem, ibidem, p. 29.
32 Idem, ibidem, p. 25.
33 Idem, ibidem, p. 27.
34 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984, pp. 161 e 292;         [ Links ] Kelsen, Hans. O problema da justiça. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.         [ Links ] 70.
35 KELSEN, Autobiografia, op. cit., pp. 60-4.
36 Idem, ibidem, pp. 104-5.
37 Idem, ibidem, p. 69-70.
38 Idem, ibidem, p. 73.
39 Idem, ibidem, p. 74.
40 Idem, ibidem, p. 71.
41 Idem, ibidem, p. 51.
42 Idem, ibidem, p. 108.
43 Cf. KELSEN, Hans. Testimonio radiofônico — Radio Bremen, 1958. Revista de investigaciones juridicas, México, n. 27, 2003, p.         [ Links ] 142.
[44] KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 92.

 Carlos Eduardo Batalha – Professor titular de Filosofia Jurídica da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e membro do núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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A Escrita da História | Michel de Certeau

Nesta resenha almejamos abordar os pensamentos de Michel de Certeau, os quais estão contidos no capítulo referente à Operação Historiográfica, na obra A Escrita da História. O autor argumenta que a História seria ao mesmo tempo uma disciplina, uma prática e uma escrita (CERTEAU,1982, p.66). Através destes pontos nós veremos ao longo desta análise quais seriam as concepções de Certeau sobre a História e o historiador.

Vamos neste primeiro momento efetuar uma breve apresentação do autor, segundo os pensamentos da historiadora Leila Maria Massarão. No artigo Michel de Certeau e a Pós-Modernidade: Ensaio sobre pós-modernidade, História e impacto acadêmico, Massarão destaca que Certeau fez parte da Terceira Geração dos Annales [2]. Massarão aponta para o fato de que Michel de Certeau ter sido um estudioso da religiosidade francesa dos séculos XVI e XVIII [3]. As suas reflexões sobre a multiplicidade cultural, as práticas sociais e as teorias da História foram grandes contribuições do autor para a historiografia.

No capítulo introdutório sobre a operação historiográfica podemos perceber que o historiador possui como sua função dar voz ao não – dito. Através do campo teórico-metodológico o profissional da História constrói e confere sentido a um determinado acontecimento ou artefato, o qual sendo visto fora do seu contexto não nos apresentaria uma informação relevante.

Ao analisarmos a História como uma disciplina se poderia pensar que ela faz parte de um lugar social. Segundo Certeau: “A escrita da história se constrói em função de uma instituição” (CERTEAU,1982, p. 66). O autor baseia sua argumentação no fato de que é através dos interesses da instituição que a História enquanto uma disciplina vai se organizar. Os desejos institucionais vão atuar desde a metodologia empregada, ou até mesmo na seleção das fontes, para as pesquisas a serem elaboradas. Certeau frisa em seus estudos que é necessária a utilização de uma teoria para as produções historiográficas, assim se evitando a construção de dogmas. O pensamento do autor é importante, para relativizarmos as nossas idéias sobre os nossos objetos de estudo e não criarmos em nossa escrita histórica uma tendência à produção de verdades.

Certeau nos precisa que o discurso acadêmico possui um conjunto de regras a serem utilizadas, mesmo estando essa imposição no silêncio (CERTEAU,1982, pp. 70-1). As regras são expressões da instituição e da ordem social na qual a disciplina de História está inserida. A validade de um discurso acadêmico depende da aprovação de outros historiadores (CERTEAU,1982, p. 72). A não aceitação das leis acadêmicas acaba por levar um historiador a ser marginalizado da comunidade científica, o que demonstra um ordenamento de pensamentos científicos, os quais não se devem ser negligenciados.

O autor no término da sua exposição sobre o lugar social ressalta a atividade de pesquisa. Michel de Certeau afirma que a atividade de pesquisa histórica está inserida em um lugar, no qual de acordo com os seus interesses definirá o que pode vir a ser feito e o que não é permitido ser realizado. Através destes apontamentos Certeau nos deixa claro sobre o peso que a instituição e o lugar social dos indivíduos possuem sobre a construção do discurso do historiador. Além disso, o que podemos ver seria a necessidade dos usos de técnicas e métodos científicos, para legitimarem a História como disciplina e o que nela vem a ser produzido.

Ao pensarmos sobre a História como uma prática, a argumentação de Certeau começa calcada na necessidade de uma técnica para a realização da produção historiográfica (CERTEAU,1982, p. 78). O pensamento de Certeau é ratificado através da referência, que o mesmo faz a Serge Moscovici. Para o intelectual Moscovici a história seria mediatizada pela técnica (CERTEAU,1982, p. 78). As idéias de ambos convergem na visão de que a técnica faz parte da prática do historiador. O nosso historiador realça que as maneiras de se fazer História e as técnicas por ela empregadas vão variar devido aos distintos contextos culturais, que cada sociedade poderia vir a possuir (CERTEAU,1982, p. 78).

A prática do historiador se centraria em transformar um objeto em histórico, em historicizar um elemento, o qual não sendo analisado dentro de um contexto possivelmente ficaria no espaço do não – dito. Através de Certeau vemos que a prática do historiador se assemelha a de um operário. Assim ele declara que o historiador trabalha sobre um material, o que teria como objetivo transformar ele em História. O processo de manuseio do material deve obedecer a regras estabelecidas pela academia, e por último caberia ao historiador realizar o transporte do seu produto do campo cultural para o histórico. A descrição da prática muito se assemelharia à ação de um metalúrgico, como Certeau comparou em seus escritos (CERTEAU,1982, p. 79).

Em linhas gerais caberia à pratica do historiador a articulação entre o natural e o cultural e a seleção de suas fontes com as quais ele pretende trabalhar. Contudo, é importante pensar que o próprio recorte da documentação está sujeito às ações do lugar social onde o individuo está inserido (CERTEAU,1982, p. 81-2).

Na visão de Michel de Certeau a História como disciplina necessitaria de adotar uma perspectiva interdisciplinar. A História buscaria segundo o autor por modelos e conceitos de outras áreas, criticando-os, experimentando-os e assim controlando o que poderia estar coerente e o que estaria equivocado (CERTEAU,1982, pp. 88-9). Assim, através da ação das instituições a prática do historiador também possui um limite dado pela disponibilização de documentos e métodos para os seus estudos.

A História como uma escrita depende da passagem do que o historiador realizou em sua prática, para uma elaboração de um texto histórico. Esse processo ocorreria pela própria relação com o limite, a qual a atividade histórica possui. Para Michel de Certeau a história enquanto uma escrita está submetida a uma ordem cronológica do discurso, a uma arquitetura harmoniosa do texto e ao fechamento do artigo ou livro, mesmo que se acredite em uma pesquisa histórica, a qual nunca se esgote em suas possibilidades de estudo (CERTEAU,1982, p. 94).

A escrita da História faz parte de uma prática social, pelos pensamentos de Certeau. Para o autor ela está controlada pelas práticas, as quais são frutos de diversos interesses do lugar social. Assim, uma das funções da História enquanto uma escrita estaria na sua função de passar valores e assumir um caráter didático. Certeau argumenta que a escrita acaba por fazer a história, como também por contar histórias, sendo assim de interesse ao caráter de ensinamento, para a sociedade (CERTEAU,1982, p. 95).

O autor reflete sobre as várias formas de discurso existentes: o literário, o lógico e do historiador. Michel de Certeau frisa que o discurso histórico pretende possuir um conteúdo verdadeiro (verificável), na forma de uma narração, para se ter validade (CERTEAU,1982, p. 101). Uma das formas de conferir uma legitimação a um argumento seria através da citação. Esta modalidade indicada anteriormente leva o citado à categoria de referencial, para dar credibilidade as suas idéias. Não podemos esquecer que há um comprometimento nos estudos históricos, com aquilo que pode ser verificado e atestado cientificamente.

A escrita da História, na visão de Certeau, seria a ação do: “conteúdo” sobre “a forma” (CERTEAU,1982, p. 105). A visão se baseia na construção e desconstrução, a qual faz parte do cotidiano da operação historiográfica, na qual o conceitual vem dar um amparo a exposição do conteúdo, que é hegemônico na maioria dos textos. Logo, o texto é o lugar do discurso histórico, da delimitação de um recorte espacial e temporal, para ser analisado.

Vemos que a escrita histórica não é feita unilateralmente pelo historiador, mas sim em coletivo, já que é fruto da validação acadêmica e das relações com as idéias de nossos pares. Além disso, a escrita histórica é fruto das vivencias do profissional da História, as quais suas idéias perpassam ao texto devido às escolhas existentes dele e do lugar social no qual está inserido.

Podemos concluir que como disciplina a História está submetida ao contexto social na qual está situada. Sendo vista como prática, ela possuiria um conjunto de técnicas, que normatizariam a operação historiográfica. Ao seguirmos as normas estabelecidas, daríamos credibilidade à produção de uma pesquisa histórica. Assim como a prática, vemos que a escrita possui leis, para legitimarem a sua validade acadêmica. Após as leituras sobre Certeau podemos perceber que a escrita da História não pode ser fruto de apenas desejos pessoais sem uma relação com o lugar social onde estamos inseridos. Nossos escritos necessitam possuir uma relevância para a sociedade, se for almejado receber um reconhecimento de nossos pares, pela nossa produção do saber.

Notas

2. Ver parágrafo 12 do artigo: Michel de Certeau e a Pós-Modernidade: Ensaio sobre pós-modernidade, História e impacto acadêmico. Acessado: 04/05/09. Capturado do site: http://www.klepsidra.net/klepsidra24/certeau.htm

3. Ibidem, parágrafo 15.

Referências

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

Referências de site

MASSARÃO, Leila. Michel de Certeau e a Pós-Modernidade: Ensaio sobre pós-modernidade, História e impacto acadêmico. In: Klepsidra. Publicado Originalmente em 1999. Acessado: 04/05/09. Capturado do site: http://www.klepsidra.net/klepsidra24/certeau.htm

Carlos Eduardo da Costa Campos – Licenciando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador PIBIC/CNPQ do Núcleo de Estudos da Antiguidade – UERJ, sendo orientado pela Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido NEA/PPGH/UERJ. O referido investigador atua na linha de pesquisa Religião, Mito e Magia no Mediterrâneo Antigo.


DE CERTEAU, Michel. A Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. Resenha de: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.6, p. 211-214, jan. / jun., 2010.

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