Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI) | Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon, Silvia Capanema P. Almeida

O Ano da França no Brasil, comemorado em 2009, para além de extensa programação no campo cultural, também inspirou a realização de uma série de eventos acadêmicos, que continuam a dar frutos. Sob a chancela da Editora 7 Letras e da Fundação Casa de Rui Barbosa veio a público em 2017 obra coletiva resultante de colóquio organizado naquele profícuo ano, que reuniu um rol diversificado de especialistas em torno das relações franco-brasileiras.

Abre o volume alentada introdução dos organizadores, que coloca em questão as visões eurocêntricas que fazem do Brasil um receptor, a um tempo passivo e fascinado, de valores e hábitos franceses, tomados como modelo de civilização. Os autores evidenciam que, pelo menos desde meados do século passado, não faltam exemplos de trabalhos a matizar essa leitura, a exemplo dos escritos de Roger Bastide, que já insistia nas trocas bilaterais. Em sintonia com a historiografia contemporânea, que tem evidenciado a força heurística das noções de transferências culturais, histórias conectadas, mestiçagem e história global, o que se propõe é ir além do comparatismo tradicional, que elege um padrão ideal para avaliar o outro, e das noções de centro e periferia, tarefa desafiadora e que se coloca na contra mão de visões cristalizadas e arraigadas no imaginário social e também na produção acadêmica, razão pela qual ainda continuam a se insinuar mesmo entre especialistas.

Seguem-se quinze capítulos, divididos em quatro partes. A primeira delas, “Civilização e barbárie”, traz contribuições de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Ingrid Hötte Ambrogi, Silvia Capanema P. de Almeida e Olivier Compagnon, que problematizam o dualismo enunciado no título a partir de diferentes situações históricas. Assim contemplam-se, respectivamente, as representações – bastante negativas, é bom sublinhar, – difundidas no início do oitocentos no Império português a respeito de Napoleão Bonaparte, quando a Família Real estava instalada no Rio de Janeiro; o ideal perseguido pelos estabelecimentos escolares da Primeira República, claramente calcados em modelos vigentes na França; as caricaturas publicadas a respeito da 1ª Guerra Mundial na Careta, com particular destaque para as que tematizavam a França e, ainda, o posicionamento, nem sempre uníssono, das nossas elites em relação aos contendores, bem como o impacto do conflito e seus desdobramentos nas relações entre os dois países. Trata-se, portanto, de diferentes momentos e contextos a atestar a diversidade de percepções em relação à imagem da França no Brasil, cuja centralidade, tão marcada no decorrer do século XIX, sofreu abalos significativos com a Grande Guerra, aspecto evidenciado por Almeida e Compagnon.

Questões de ordem estética e artística são contempladas nos quatro textos que compõem a segunda parte, “França, mãe das artes”. A produção de Nicolas-Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, que integraram a chamada “missão” francesa de 1816, denominação já relativizada pela rigorosa contextualização das circunstancias que trouxeram ao Rio de Janeiro um grupo de artistas comprometidos com a recém deposta ordem napoleônica, foram abordadas por Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Pires Lima. As contingências políticas, que fizeram da corte lusitana um refúgio seguro que oferecia, pelo menos em tese, várias oportunidades de trabalho, não significou o abandono das relações com a pátria distante, sobretudo em vista das dificuldades enfrentadas no Rio de Janeiro. Se a conjuntura no Hexágono era cuidadosamente acompanhada, tendo em vista o retorno ao solo europeu, a passagem pelos trópicos deixou marcas profundas na produção pictórica, como bem exemplifica a análise dos quadros de Taunay e sua recepção pela crítica francesa, pouco sensível às cores e aos tons da natureza brasileira, o que acaba por colocá-lo num entre lugar – francês no Brasil, estrangeiro em sua terra natal. Já a análise do pano de boca confeccionado por Debret para a coroação de D. Pedro I, que expressava uma certa concepção da jovem nação, sua composição social e futuro projetado, em sintonia com as necessidades e expectativas do poder, adquire outros sentidos quando remetido à posição que ocupou no interior da Viagem pitoresca e histórica no Brasil, às circunstâncias que possibilitaram a publicação da obra entre 1834 e 1839 e às condições reinantes no cenário político francês. Em ambos os casos, trata-se de vias de mão dupla, que problematizam a apreensão ancorada nas ideias de influência e recepção passiva.

Os dilemas em torno das relações nacional e estrangeiro estão presentes nas contribuições de Marize Malta e Maria Luiza Luz Távora. A primeira diz respeito à decoração das residências nos anos 1920, discutida a partir da publicidade estampada na Revista da Semana e A Casa. Em debate os estilos de mobiliário: art-déco, neocolonial e modernismo, com suas linhas simples. Mais do que a opção por um modelo, o que Malta evidencia é o processo de hibridismo, a mistura entre estilos e a apropriação criativa, com a utilização de motivos nacionais, entre eles os marajoaras. Já a discussão suscitada pela presença do artista franco-alemão Johnny Friedlaender no curso inaugural do ateliê de gravura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1959 torna patente as resistências frente às experimentações e propostas estéticas diversas das imperantes no cenário artístico nacional, o que atesta, ainda uma vez, a tensa e complexa relação com as inovações que aqui aportavam, sobretudo numa conjuntura marcada por exacerbado nacionalismo.

A terceira parte, “Grandeza e decadência da mulher francesa”, é composta por três textos que tratam da imagem e do imaginário sobre o feminino, num arco temporal que vai de meados do século XIX às décadas iniciais do século XX, quando a presença da mulher no espaço público começava a alterar e mesmo suberventer a ordem estabelecida e papéis sociais consagrados. As pesquisas de Monica Pimenta Velloso e Lená Medeiros de Menzes privilegiam a figura da cocotte que, a exemplo da modista do início do Império, desfrutava de reputação duvidosa, o que não impedia que fosse objeto de irresistível curiosidade e atração, como bem demonstram as autoras. Velloso explora as ambiguidades do olhar francês sobre o Brasil, a partir de refinada análise do humor “debochado, caricato e anarquiante”, para retomar os seus termos, da revista Ba-ta-clan, que afrontava a sensibilidade e o orgulho locais. Contudo, esse material também permite desvelar valores, desejos e expectativas dos franceses radicados no Rio de Janeiro, num entrecruzamento ambiguo e nem sempre fácil de ser apreendido. Lená Medeiros, por seu turno, exemplifica o périplo transatlântico cumprido por algumas francesas que, contrariamente às suas expectativas e esperanças, enfrentaram uma realidade bem pouco glamourosa. A natureza calidoscópica da questão, diligentemente pontuada no texto, evidencia-se pelo recurso às colunas da Ba-ta-clan, que permitem avaliar o impacto do comportamento transgressor dessas mulheres, que alimentavam a percepção acerca dessas francesas atrevidas, duramente combatidas pelso guardiões da ordem. Fecha o conjunto a contribuição de Cláudia Oliveira, que retoma as representações de Salomé, tematizada na pintura, no teatro, nas revistas ilustradas, com fortes doses de sensualidade. Novamente o que se destaca é a ambivalência diante das mudanças provocadas pela modernidade, num ambiente marcado por significativas transformações na sociabilidade e cotidiano urbanos. Merece particular destaque a análise sensível da Salomé de J. Carlos, publicada em 1927 na revista Para Todos.

Sob a rubrica “O espelho do outro” estão reunidos outros quatro textos que retomam as relações interculturais franco-brasileiras, o primeiro deles a partir da temática da religiosidade e seu surpreendente sincretismo e interconexões, que remetem tanto para a presença de São Luís e outros personagens do ciclo de Carlos Magno nos nossos terreiros quanto à conversão de Pierre Verger, como revela Monique Augras ao explorar as trajetórias e transfigurações desses seres “encantados”. Intercâmbios que também se expressam em periódicos, livros e bibliotecas e na presença de tipógrafos, editores, livreiros, gravadores e litógrafos franceses, que desempenharam papel relevante na difusão da cultura letrada e na ampliação do espaço público, como bem pontua Tania Bessone, que não deixa de assinalar, em sintonia com outras colaborações, o esmaecer dessa presença a partir das primeiras décadas do século XX.

A importância estratégica, para as elites imperiais, de contar com uma percepção positiva a respeito do Brasil na França é discutida por Sébastien Rozeaux. Se, graças à intervenção de Ferdinand Denis e Saint Hilaire, esta expectativa pode ser atendida, a situação alterou-se frente aos relatos bastante ácidos publicados nos anos 1830 na prestigiosa Revue des Deux Mondes. O estudo da reação de indivíduos do calibre de Araújo Porto-Alegre e outras figuras de proa do nosso cenário intelectual permite evidenciar quais eram os anseios da geração romântica, que tomou a si a tarefa de construir uma nação civilizada nos trópicos e de elaborar um discurso autônomo sobre a mesma. O autor explora a sensação de traição e o choque ocasionado pela difusão de percepções pouco confortáveis, fosse a respeito dos vícios sociais, da mestiçagem ou da incomoda questão da escravidão, que maculavam uma imagem pacientemente urdida. Daí o empenho para, se não reparar, pelo menos atenuar as apreensões pouco abonadoras a partir de estratégias discursivas bem diversas: a agressividade e a ironia para o público interno, o tom bem mais conciliador e cauteloso quando o destinatário era o leitor francês. Os estereótipos nacionais figuram em outro registro na colaboração de Anaïs Fléchet, que investiga a maneira como as cidades de Paris e do Rio de Janeiro foram figuradas nas canções populares ao longo do século XX. Mais do que distanciamento, predominam os paralelismo, uma vez que ambas são referidas como lugares distantes, que ativam a imaginação e remetem às aventuras amorosas, compondo uma “geografia musical do imaginário”, na bela definição da autora. Não faltaram referências às mulheres de ambos os lados do Atlântico, descritas em consonância com modelos de há muito em circulação: refinamento/sedução/prostituição, do lado francês, jovem/disponível/ despudorada, no que concerne à brasileira, num quadro de imagens cruzadas – e não raro sobrepostas – que convida a refletir sobre a circularidade das trocas.

A título de conclusão, conta-se com o texto de Robert Frank, que assume o desafio de abordar as relações internacionais em suas dimensões culturais. Para tanto, o autor passa em revista as contribuições de Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle a respeito do significado das mentalidades para a elaboração e difusão de nacionalismos e na relação entre países. À detalhada reconstrução do arsenal analítico proposto, segue-se sua relativização à luz das mudanças introduzidas pelo cultural turn dos anos 1980, que consagrou interpretações ancoradas nas noções de representação, imaginário e identidade.

O rápido deambular por entre os vários capítulos, se não contempla todas as questões abordadas em cada uma das contribuições, é suficiente para evidenciar a importância das mesmas para a temática, que tem recebido atenção significativa nos últimos anos. Cabe ressaltar que as partes acima referidas não devem ser tomadas como conjuntos estanques. De fato, os textos convidam a imaginar outros arranjos e articulações possíveis. Assim, a título de exemplo, Napoleão e os imigrados que deixaram a França após a queda do Imperador são personagens retomados em vários capítulos, tanto quanto o declínio da presença francesa, as referências ao imaginário sobre as mulheres, a oposição (ou a adesão) aos ventos que sopravam da França, os esforços para estabelecer trocas de mão dupla, em lugar das rotas com sentido único. Por certo o leitor será capaz de propor outras possibilidades diante de um rol de contribuições que se revelam tão densas e complexas quanto o objeto a ser desvendado.

Tania Regina de Luca –  Professora Livre Docente em História do Brasil Republicano pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui doutorado e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo e graduação em História pela mesma instituição. Responsável, junto ao CNPq, pelo financiamento do projeto “Estudos de jornais em língua estrangeira” (Transfopress Brasil). E-mail: [email protected]


FLÉCHET, Anaïs; COMPAGNON, Olivier; ALMEIDA, Silvia Capanema P. de. Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7 Letras, 2017. Resenha de: LUCA, Tania Regina de. Sob o signo da complexidade: trocas interculturais entre França e Brasil.  Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 19, p. 216-220, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]