Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas (séc. XIX-XXI) | Lená Menezes de Medeiros

Lena Menezes de Medeiros Imagem
Lená Menezes de Medeiros | Imagem: Extra

Portugueses no Rio de Janeiro. Negócios, trajetórias e cenografias urbanas, livro de autoria da historiadora Lená Medeiros de Menezes, publicado pela editora Ayran no segundo semestre de 2021, constitui, a um só tempo, um trabalho afetivo e acadêmico. Talvez isso desperte a curiosidade do leitor em geral, talvez, ainda, suscite a desconfiança do acadêmico, uma vez que afetividade e a abordagem objetiva próprias do ofício do historiador não costumam a se entrelaçar. Não costumam, mas podem sim conviver sem nenhum prejuízo à qualidade da obra. E é isso o que vemos aqui nesse livro, e sem nenhum desdoiro nem a sua dimensão acadêmica, nem à expressão dos seus afetos.

É bem verdade que a equação que une a cientificidade e a afeição manifesta para com o objeto de análise não é algo fácil de ser alcançado, podendo facilmente resvalar em incoerências, mascaramentos, excessos, ou mesmo em imprecisões. Mas aviso desde já aos leitores que nada disso se verifica nessa obra. E isso não se dá sem motivo. A razão principal para essa harmoniosa conjugação de fatores que tradicionalmente são tão distintos e excludentes é a maturidade da autora do livro. Lená Menezes é uma historiadora talhada pelo cinzel de uma longa caminhada acadêmica. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde o final da década de 60, passando por vários cargos e funções nessa instituição, entre eles a Pró-reitoria de graduação, além de ter fundado um dos mais importantes laboratórios de pesquisa sobre a imigração do Brasil, o LABIMI, que se destaca pela sua internacionalização, justamente, com o meio acadêmico português. É exatamente essa maturidade como pesquisadora que sustenta a delicada equação que aludimos e, mais ainda, a nosso ver, a torna fator de engrandecimento do livro. Tanto os leitores médios afeitos às coisas de Portugal podem lê-lo sem o temor da maçada que uma obra acadêmica pode inspirar, como aqueles que se debruçam academicamente no tema da imigração portuguesa podem o fazer sem o temor de qualquer desalinho com os bons padrões da pesquisa universitária. Leia Mais

História de crimes, justiça e instituições: fontes judiciais e agentes | Aguinaldo Rodrigues Gomes, Magda Nazaré Pereira Costa e Adson Rodrigo Silva Pinheiro

Magno Francisco de Jesus Santos 2014
Magno Francisco de Jesus Santos | Imagem: Infonet, 2014

A obra História de crimes, justiça e instituições: fontes judiciais e agentes é uma coletânea organizada por Aguinaldo Rodrigues Gomes, Magda Nazaré Pereira da Costa, Adson Rodrigo Silva Pinheiro e Raick de Jesus Souza, que tem como objetivo apresentar discussões sobre perspectivas de pesquisa em História Social. Reunindo estudos sobre diferentes temáticas e problemáticas do campo do conhecimento histórico, a presente coletânea é resultado da 12ª edição do Encontro de História da Anpuh-Pará, com o tema Passado e Presente: os desafios da história social e do ensino de história, realizado em formato virtual entre os dias 2 a 4 de dezembro de 2020.

A apresentação da coletânea foi escrita pelo historiador Francivaldo Alves Nunes, Presidente da ANPUH-Seção Pará, abordando em seu texto a importância da obra e da realização do evento para o diálogo entre o ensino de história e a história social como campos de pesquisa. Atentando para a relação entre passado e presente na pesquisa histórica, mediante questões socialmente vivenciadas, a proposta da coletânea é reunir trabalhos voltados para uma crítica historiográfica que possibilite ampliar discussões acerca de métodos e análises documentais no campo da História Social. Leia Mais

A formação da coleção latino-americana do MoMA: Arte, cultura e política (1931- 1943) | Eustáquio Ornelas Cota Junior

Publicada pela Paco Editorial em 2019, a obra Formação da Coleção Latino-Americana do MoMA: Arte, cultura e política (1931-1943), propõe historicizar os primeiros anos de funcionamento do Museu de Arte Moderna de Nova York, refletindo sobre a criação e trajetória do acervo de obras latino-americanas da instituição. O livro em questão é uma versão revisada da dissertação de Eustáquio Ornelas Cota Jr., defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo em 2016. Mobilizando um grande levantamento de documentos institucionais do MoMA, o historiador problematiza a constituição da coleção latino-americana do museu, entrecruzando esse processo às dimensões culturais e políticas das relações entre Estados Unidos e América Latina.

Eustáquio Ornelas Cota Jr. defende a articulação da instituição com a política da Boa Vizinhança, especialmente pela atuação da família Rockfeller, tendo Nelson Rockfeller sido presidente do MoMA. Além da relação política e consonância com um projeto de imperialismo estadunidense instaurado na gestão de Franklin D. Roosevelt, o historiador também aborda a problemática das identidades latino-americanas ao considerar que a formação dessa coleção de arte foi fundamental para a construção de discursos e representações sobre as culturas latinas sob a perspectiva dos Estados Unidos. Como tese central, a obra defende “a confluência entre as diretrizes da chamada política da Boa Vizinhança vigente nos Estados Unidos desde 1933 e a decisão de ampliar a inicial coleção de arte moderna mexicana, transformando-a em latino-americana”. (p. 215).

Estruturada em três capítulos, para além de introdução e conclusão, a obra se insere no campo da História da Arte nas Américas, em interface com a História Cultural e a nova História Política. A partir dos estudos de Peter Burke, Eustáquio Ornelas Cota Jr. considera que a arte não pode ser “desconectada do contexto e dos conflitos culturais do momento histórico, nem tampouco ela se configure apenas como um mero reflexo do contexto social. A arte atua para a construção de sentidos e se torna um importante testemunho do processo histórico” (p. 19). Neste sentido, sua abordagem parte de um estudo ampliado da arte, considerando-a como uma produção humana e um produto de seu tempo, mas que é constantemente ressignificada sob o olhar e a ação do “presente” dos sujeitos que a mobilizam. Essa perspectiva, parte de leituras contemporâneas do historiador da arte Georges Didi-Huberman, influenciada pelas teorias da montagem de Aby Warburg, compreendendo a existência de múltiplas relações entre imagem e tempo.1 Como destaca Maria Bernardete Ramos Flores, essa abordagem considera que “as imagens têm uma história, mas o que elas são, seu movimento próprio, seu poder específico, só aparecem na história como ‘sintoma’ de durações heterogêneas: a abertura repentina para um tempo pretérito e a aparição de uma latência ou de uma sobrevivência; da estranha conjugação entre diferença e repetição”. 2

O primeiro capítulo da obra, “O MoMA e a formação de sua coleção latino-americana”, aborda a criação do projeto do Museu de Arte Moderna de Nova York a partir de documentos institucionais disponíveis no próprio acervo da instituição, como press releases e publicações oficiais. Ao analisar o início do projeto do museu, Cota Jr. defende o protagonismo feminino na fundação, com destaque para três mulheres da elite estadunidense: Lillie P. Bliss, Mary Quinn Sullivan, Abby Aldrich Rockefeller. O MoMA, que abriu as portas oficialmente em 07 de novembro de 1929, tinha como pretensão ser uma das instituições de referência mundiais sobre arte moderna, projeto que foi capitaneado pelo historiador da arte Alfred Barr Jr., convidado a ser o primeiro diretor do museu. Segundo o autor, Alfred Barr Jr. possuía uma visão bastante ampla sobre o que seria a arte moderna, defendendo que as características desta classificação só poderiam ser percebidas pelas próprias obras.

Alfred Barr foi central para o estabelecimento do projeto do MoMA como um espaço aberto a experimentações artísticas, o que afastou o museu de outras instituições já consolidadas na mesma cidade como o Metropolitan Museum of Art. Apesar desse perfil, isso não significou que o MoMA estivesse fora de seu contexto social e político. Mesmo com o financiamento de elites locais e o apoio da família Rockfeller, o museu foi criado em um período de recessão econômica e da crise de 1929, o que contribuiu para que se criassem projetos de exposições temporárias e circulares em diferentes regiões do país e do continente americano. A ideia das exposições de circulação foi fundamental, segundo o historiador, não apenas para a manutenção financeira da instituição, mas também para a divulgação do MoMA e, principalmente, para constituição de seu acervo criado a partir de dois perfis de aquisição de obras: doações e compras.

Neste primeiro capítulo, Eustáquio Ornelas aborda os primeiros passos da constituição da coleção latino-americana do MoMA, iniciada em 1935 com a doação da obra Subway de Orozco pela Sra. John D. Rockefeller. Destacando a aquisição de obras de países como México e Brasil, o historiador aponta para o alinhamento da formação da coleção com as diretrizes da política externa estadunidense para o continente latino-americano. Uma das contribuições principais do autor neste capítulo é a observação da tentativa de construção de representações sobre a América Latina visando a trabalhar um imaginário sobre as culturas latino-americanas pela população (em especial a elite) estadunidense. Além disso, o acervo do museu (que continha também obras de artistas estadunidenses) foi utilizado na criação de exposições itinerantes específicas para a América Latina, integrando os projetos do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs.

O segundo capítulo da obra, intitulado “O catálogo da coleção e a história da arte latinoamericana contada por Lincoln Kirstein” analisa a principal fonte na qual se baseia o estudo: o catálogo da exposição “The Latin-American Collection of the Museum of Modern Art” (1943). A partir da publicação, o historiador problematiza a narrativa e o projeto cultural de criação da coleção latino-americana no MoMA, com destaque para o ensaio sobre a história da arte latina publicado por Lincoln Kirstein, consultor de arte latino-americana, no catálogo. Reflete-se sobre a construção do próprio acervo, e da equipe que dirigia o museu em 1943, defendendo que tal formação não pode ser vista como um empreendimento individual ou excluído de seu contexto, para em seguida se pensar quais eram os principais países representados no MoMA.

Países como México e Brasil seguiram ocupando as primeiras posições na nacionalidade das obras presentes na coleção, mas foi registrado um crescimento no número de obras argentinas e cubanas. Ao analisar os países de origem das obras, Cota Jr. considera que a coleção em 1943 estava “longe de ser um conjunto amplamente representativo no que se refere à arte produzida nos países da América Latina” (p. 104). Esse aspecto problemático é um dos pontos de tensão entre o acervo existente e o discurso que o próprio museu procurava elaborar, no qual se defendia um “empreendimento pioneiro” da instituição e do qual a instituição seria referência global.

Com relação à análise do texto de Lincoln Kirstein, intitulado “Latin-American Art”, o historiador afirma que sua publicação no catálogo “possui grande importância para os nossos estudos, pois as ideias nele contidas colaboraram substancialmente para embasar as visões da instituição sobre o tema, afinal, o editor era o consultor de arte latino-americana do MoMA na época”. (p. 106). Dividido em nove partes e em dois recortes temporais (antes e após as independências latino-americanas), o texto de Kirstein abordaria as produções de artistas latino-americanos, juntamente aos norte-americanos e europeus. Essa aproximação com artistas estadunidenses e europeus ocorria, principalmente, como forma de comparação e relação visando a explicar a arte latino-americana, produzindo uma representação sobre as identidades culturais e artísticas do continente. Um dos principais aspectos a esse respeito é a construção de uma visão dicotômica, apesar de por vezes aproximadas, entre latinos e estadunidenses, referenciados muitas vezes como “nós” e “eles” ou “os daqui” e “os de lá”.

Em “A arte moderna na América Latina”, terceiro e último capítulo, o autor prossegue com a análise do catálogo The Latin American Collection of The Museum of Modern Art, com foco nas análises de Lincoln Kerstein sobre a arte moderna na América Latina. O texto de Kerstein, que parte das próprias obras do acervo, é analisado por Cota Jr. juntamente as imagens presentes no catálogo, em articulação com outras fontes institucionais como relatórios e comunicados. Como questão central, o autor problematiza as “escolhas realizadas para compor a coleção, preferencialmente as indicações de artistas e obras ressaltadas nos textos e imagens no documento e que justificaram artisticamente o empreendimento do MoMA”. (p. 159). O historiador observa também a construção de textos específicos para definir a arte moderna em cada país da América Latina, que foram construídos a partir de biografias, comparações e relações de influência entre a arte latino-americana e o que seria definido como uma arte “mundial”, visando a orientar o leitor do catálogo e o visitante das exposições que usaram dessa coleção nos debates.

Segundo Cota Jr., os escritos de Lincoln Kerstein sobre a arte moderna na América Latina procuraram pontuar aspectos gerais e datas marcantes dos movimentos em cada país, como no caso do muralismo mexicano. Sobre as obras de artistas como Diego Rivera, José Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros, o responsável pelo departamento de arte latinoamericana do MoMA construiu uma narrativa que “demonstra a preocupação do autor em indicar a relação entre a produção artística mexicana e o processo histórico ocorrido a partir de 1910”. (p. 166). Ainda sobre o México, o autor destaca que, na perspectiva do catálogo produzido pelo MoMA, os Estados Unidos seriam os principais colecionadores e consumidores de arte mexicana, conferindo ao país um lugar de patrono e principal divulgador desse gênero.

Tais aspectos, problemáticas e contradições sobre a representação da arte latinoamericana são observados também nas análises sobre outros países como Brasil, Argentina e Cuba. Neste sentido, Cota Jr. percebe a dimensão não apenas discursiva presente na constituição da coleção, mas também a centralidade da curadoria no processo de seleção e aquisição de obras que foram “guiadas pela avaliação do MoMA sobre a relação entre os países e seus respectivos estágios de desenvolvimento e produção da arte moderna local, considerando as opiniões dos principais especialistas representantes do museu, que definiam o que deveria ou não ser valorizado na arte moderna de cada país”. (p. 178). A respeito dos processos de curadoria e da própria coleção, o autor encerra o capítulo analisando três conjuntos do acervo: o muralismo mexicano, as obras de Candido Portinari e as “novas” perspectivas para a arte moderna.

O livro de Eustáquio Ornelas Cota Jr. contribuiu diretamente para os estudos sobre a História das Américas e da Arte Latino-americana. Ao tematizar a formação de uma coleção do MoMA a obra possibilita perceber as relações entre arte, política e construção das representações de identidades latino-americanas nos Estados Unidos como forma de problematizar as relações entre o país e o restante do continente. Destaca-se, em especial, o esforço do autor em demonstrar que, como um projeto das elites que integrou as políticas da Boa Vizinhança e do imperialismo estadunidense, o MoMA contribuiu diretamente para formação de imaginários sobre as Américas a partir da arte, sendo a função da curadoria e a reflexão sobre a arte moderna elementos centrais de reflexão.

Notas

1 Cf.: DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo: historia del arte y anacronismo de las imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2015.

FLORES, Maria Bernardete Ramos. Olhar para as imagens como arquivos de histórias. Territórios e Fronteiras (Online), v. 8, p. 239-255, 2015, p. 250.

Igor Lemos Moreira – Doutorando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre e Licenciado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: igorlemoreira@gmail.com  https://orcid.org/0000-0001-6353-7540 http://lattes.cnpq.br/2889830742673964  O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, Brasil. Código de Financiamento 001.


COTA JUNIOR, Eustáquio Ornelas. A formação da coleção latino-americana do MoMA: Arte, cultura e política (1931- 1943). Jundiaí, SP: Paco, 2019. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 25, p. 397-401, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

Un arte vulnerable: la biografia como forma | Nora Avaro, Julia Musitano e Judith Podlubne

A obra Un arte vulnerable é resultado de um colóquio homônimo sobre escrita biográfica. O evento foi idealizado e organizado pelas autoras do livro na Faculdade de Humanidades e Arte, na cidade de Rosario, Argentina, entre os dias 11 e 12 de novembro de 2016. As organizadoras se mostram convictas de que não há teoria biográfica que possa suplantar a derivada da atividade própria de cada experiência narrativa de uma vida. Vale notar que tal convicção, mola propulsora para o evento acadêmico, é perceptível nos textos que compõem o livro. Os artigos reunidos são reescritas das apresentações dos convidados para o colóquio, com acréscimos advindos de discussões suscitadas durante o encontro acadêmico.[1]

A obra conta com dezoito capítulos distribuídos em quatro seções temáticas, que não são estanques, mas comunicam-se na medida em que a leitura flui. A primeira parte intitulada “Teorias em ato”, [2] apresenta uma gama variada de discussões como a questão da onisciência do biógrafo nas formas tradicionais de narrativas de vida; as possibilidades uma escrita biográfica com fronteiras permeáveis a infiltrações de incursões autobiográficas; o fetiche referencial; as ligações entre vida e obra; o método biográfico; o dispositivo da escrita; as conexões entre a biografia e o ensaio.

Antonio Marcos Pereira é autor do primeiro ensaio e toma Flaubert’s Parrot, de Julian Barnes, como linha de partida para questionar os limites entre biografia e ficção em uma rica abordagem sobre duas veredas metodológicas: a biografia canônica e a biografia processual. A primeira obedece à tradição de manter o máximo possível o biógrafo invisível na construção do texto. Já na biografia processual, o biógrafo deixa transparecer seu trabalho investigativo, as dificuldades de pesquisa, as disputas de memória. Enquanto a biografia canônica valoriza uma narrativa neutra, isenta de lacunas, a biografia como processo procura demonstrar os limites enfrentados pelo autor, as versões contraditórias. Antonio Marcos Pereira opta pelo segundo caminho, pois, para ele, as narrativas mais profundas seriam aquelas que possibilitam um estreitamento nos laços entre um leitor, o biógrafo e o biografado; o biografado e sua obra.

O que torna uma vida digna de ser narrada? É em reposta a esse questionamento que Carlos Surghi escreve o seu artigo valendo-se da hermenêutica de Wilhelm Dilthey para não só abordar de forma crítica os modelos biográficos que narram vidas teleobjetivadas como também as relações entre vida e obra. A análise instiga-nos a pensar sobre a “fascinação biográfica”, conceito que permite avaliar o rompimento com aquilo que Antonio Marcos Pereira já havia identificado no capítulo anterior como biografia canônica. O texto é um convite para deter-se em reflexões acerca da subjetividade do biógrafo: a faina investigativa, que gera uma obsessão incontrolável, um completar-se a si mesmo na medida em que se escreve sobre o outro.

O gênero biográfico, recorrentemente é ancorado numa aporia: ou se faz biografia ou se faz história. Há, portanto, uma tentativa, sempre frustrada, de se medir o teor biográfico e o ficcional de uma narrativa biográfica, na visão de Aldo Mazzucchelli. Em ritmo de ensaio e dotado de erudição, o autor realiza um exame das diferenças entre as concepções positivistas sobre documento e verdade em contraposição a ilusão do “texto puro”, livre de qualquer referência, conforme alguns modelos pós-estruturalistas. O texto apresenta ainda uma interessante discussão sobre a questão do chamado “retorno do autor” e, valendo-se de ideias de Heidegger sobre o papel social da escrita, reflete sobre os avanços tecnológicos e os seus efeitos nos processos de subjetivação do autor.

Na sequência, Julieta Yelin parte de uma provocação: existem biografias de animais? A autora nega a possibilidade de tal empreendimento, e, para justificar, estabelece relações entre o pensamento de Foucault e Heidegger no que concerne a questão da linguagem como prova do mundo, como efeito da bios. A zoografia se encontra perante um entrave: os animais não falam e a exigência vocal do biografado é inegociável. Assim, a possibilidade de se escrever uma zoografia seria mediante uma linguagem adequada para se falar de outras linguagens e outras formas de vida.

Lorena Amaro Castro fecha o bloco teórico com uma análise enriquecedora das contribuições de Virgínia Woolf no tocante à biografia e autobiografia. É destacado o papel da biógrafa inglesa na quebra de paradigmas ao realizar experiências profícuas com o referencial e o ficcional. “Flush: uma autobiografia” seria um ótimo exemplo desse rompimento com os rígidos modelos pré-estabelecidos, já que Woolf, de uma só tacada, escreve uma autoficção sob o ponto de vista de um animal de estimação, no caso um cocker spaniel e ainda, se lança em um terreno dominado pelos homens, questionando, portanto, as normatizações sociais sobre gênero e hierarquia familiar.

“O romance do biógrafo”, título da segunda seção, reúne textos de autores que publicaram biografias e aproveitam o espaço para compartilharem as experiências acumuladas ao longo desse processo. A ligação entre esse segundo bloco de textos e o primeiro é estabelecido por Irene Chikiar Bauer, biógrafa de Virgínia Woolf. O artigo expõe elementos da escrita biográfica de Bauer, como o uso da cronologia a fim de fugir das limitações temáticas que envolvem a biografada atendo-se ao seu fluxo de vida. Além da questão metodológica, é compartilhado com o leitor os desafios da pesquisa, da tarefa hercúlea de dar conta do enorme corpus documental e a difícil tarefa, autoimposta pela biógrafa, de se manter a distância da protagonista, a fim de não se envolver com a personagem cuja vida narrava.

Ana Inés Larres Borges relata a experiência de escrever a biografia da poetisa Idea Vilariño. Partindo do ceticismo de Jorge Luis Borges quanto às possibilidades de se efetivar os vínculos entre vida e obra, o texto problematiza não só esses limites, mas também a hegemonia estruturalista em sua faina antibiográfica. O mote do artigo em questão é pensar os dilemas e tensões entre vida e obra na junção de escrita da vida privada e da trajetória de um autor, ou seja, ponderar a velha demanda sobre a necessidade de se conhecer a vida para compreender a obra.

Carlos María Domínguez deixa claro que seu texto é muito mais uma reflexão sobre a experiência de escrever três biografias do que tratar de teorias sobre o gênero. São relatados os desafios inerentes, principalmente, à coleta de depoimentos. Diante das lacunas, das inconsistências e das contradições, o biógrafo se viu forçado a conjeturar a fim de não cometer enganos, propositais ou não. Cada uma das biografias apresentou desafios próprios que foram vencidos ou contornados por estratégias específicas para cada caso.

Osvaldo Baigorria encerra a segunda divisão da obra com o relato de como escreveu a biografia de Néstor Sánchez. O biografado desafiava uma narrativa de sua vida uma vez que o período mais importante de sua trajetória era envolto por em um breu de informações desencontradas ou faltantes. A saída, ao invés de romancear, foi elaborar uma narrativa conjetural, ou como o próprio autor classifica, uma “pós-autobiografia”. O texto é um relato saboroso, permeado pelas confissões de subjetivação do biógrafo, que, na execução do projeto, pegou-se indagando sobre si mesmo. A experiência de subjetividade acabou gerando não um livro sobre Sánchez, mas com Sánchez, resultando em uma “ilusão referencial” ou “superstição realista”.

A terceira seção do livro, “A vida em obra”, é a reunião de leituras críticas sobre biógrafos e biografados. Nessa etapa do trabalho, os autores procuram refletir sobre as escolhas metodológicas e teóricas, sobre as estratégias narrativas, sobre as motivações dos biógrafos e os comportamentos de determinados biografados. É outra visão da operação biográfica, [3] não mais sob o ângulo da subjetividade de quem escreveu uma história de vida, mas de quem analisa os modos pelos quais a vida de alguém foi colocada em forma escrita.

O elo entre a terceira subdivisão e a anterior é uma nova aparição de Osvaldo Baigorria. Todavia, não como autor de texto, mas como objeto de análise de Julia Musitano que se debruça sobre a biografia de Néstor Sánches. A pergunta seminal de Musitano é: o que levou o biógrafo a se interessar pelo biografado? Provavelmente, segundo o texto, porque Baigorria seria alguém fascinado pelo indivíduo nômade, aquele que prefere não pertencer a um só lugar. Assim, o biógrafo realiza com o biografado uma fusão, não autorizada, do seu eu com o outro, ou seja, aquilo que o próprio Baigorria admite ser uma pós-autobiografia.

Em seguida, Nieves Battistoni elege a biografia de Osvaldo Lamborghini escrita por Ricardo Strafacce para ser analisada. O curioso desse caso seria que Strafacce, com uma carreira dedicada ao exercício da advocacia, nunca havia escrito um livro até publicar a vida de Lamborghini. Apesar de o texto da biografia ser coordenado por uma cronologia rígida, há concessões narrativas que dão dinâmica ao texto, como flashbacks e fordwards, que geram tensão dramática e expectativa nas passagens de um capítulo para o outro. O uso da cronologia rígida teria como objetivo contrastar com a vida descontínua e nômade do personagem retratado, a fim de refutar os mitos de uma vida errática. Assim como ocorre com Baigorria, ocorre também uma síntese entre biógrafo e biografado, ou seja, uma narrativa com aspectos autobiográficos.

Patrício Fontana inicia o seu texto com uma reflexão sobre a ideia do “retorno do autor” e do sujeito nas últimas décadas para depois analisar a biografia de Silvina Ocampo de autoria de Mariana Enríquez. Questões importantes são levantadas sobre os limites entre perfil biográfico e uma biografia propriamente dita. O “perfil” seria uma forma de se esquivar de dar conta de uma biografia “total”? Quanto de totalidade seria necessário para que um texto seja considerado biografia e não um perfil biográfico? Patricio Fontana responde não só a essas indagações como também sobre as relações da biógrafa com o seu texto e sobre os limites e as características do gênero em si.

Analía Capdevila analisa a biografia escrita por César Aira sobre a vida de Alejandra Pizarnik cuja espinha dorsal é o estabelecimento das vinculações entre vida e obra da biografada. São expostas as dificuldades do biógrafo em romper com os clichês, mitificações e estereótipos que cercam a biografada. Para tanto, a trama é conduzida por um narrador sempre cauteloso, que prefere expressões como “pode ter sido” ou “deve ser assim” do que uma afirmação categórica.

Judith Podlubne se encarrega de perscrutar a biografia de Oscar Masotta assinada por Carlos Correa, amigo do biografado, que confessa não ser guiado por nenhum método de escrita de vida. São convidadas para o texto análises da crítica literária em articulação com concepções de Virgínia Woolf, David Hume, George Luckács e Theodor Adorno no tocante a temas relacionados ao fazer biográfico, aos entrecruzamentos entre biografia e ensaio, ensaio e retrato, a fim de concluir que o estudo de caso apresentado evidencia a maneira como a escrita de uma vida afeta o biógrafo.

A terceira etapa do livro é encerrada com um artigo de Marcela Zanin sobre a biografia de Rúben Darío escrita por Vargas Vila. Diferentemente de alguns biógrafos que desejam explicar a obra a partir da vida, Vila se propõe a estabelecer os vínculos entre obra e vida, às vezes, para constatar a dissonância entre ambas. Trata-se de uma biografia com mesclas de autobiografia em razão das relações, nem sempre harmoniosas, que o biografado manteve com o biógrafo. Segundo Zanin, mais do que mesclar a própria vida com a do biografado, Vila quer viver paralelamente a vida de Darío.

Em “Cenas biográficas”, derradeira seção da obra, biógrafos contam suas vivências no exercício de suas atividades: as viagens para pesquisa de campo, os locais visitados em busca de inspiração ou coleta de documentos, arquivos e depoimentos, os pontos de partida e de chegada, os altos e baixos na experiência de narrar a história da vida de determinado personagem.

Mónica Szurmuk é biógrafa de Alberto Gerchunoff e usa o artigo para dar vazão à sua subjetividade com matizes de confissão, como ter aprendido a escrever biografia escrevendo uma biografia e também com base na leitura de outras histórias de vida; a forma como o desconhecimento e inexperiência com o gênero causou atrasos e grandes dificuldades na escrita que, por sinal, não estava sujeita a contratos, prazos; não sabia se a obra seria, inclusive, publicada ou se fosse, em qual língua, inglesa ou espanhola. O texto de Szurmuk permite, mais uma vez, evidenciar-se que o contato entre biógrafo e biografado acaba por levar a experiências de subjetivação.

Na sequência, Nora Avaro elabora um texto em que traz para a reflexão análises de autores que lhe fazem companhia em Un arte vulnerable como Irene Bauer, Antonio Marcos Pereira, Aldo Mazzucchelli e Ana Larre Borges. Nora Avaro mescla as análises desses autores com a sua própria experiência de biografar Adolfo Pietro, com considerações acerca dos métodos de escrita utilizados: uma combinação antagonista de exaustividade monumental e liberdades interpretativas. A biógrafa encerra com reflexões sobre a escrita biográfica e os processos de subjetivação do biógrafo que acaba se fundindo à narrativa da vida que elegeu para contar.

Martín Pietro fecha a coletânea com um texto dividido em subtítulos que funcionam como placas indicativas do percurso realizado pelo biógrafo em sua empreitada de escrever a vida de Juan José Saer: pesquisa, levantamento de dados, arquivos, documentação, entrevistas e viagens para pesquisa de campo. É possível acompanhar não só as etapas preliminares para a escrita, mas as concepções do biógrafo sobre o gênero: necessidade do uso maciço de documentação e pesquisa, a importância atribuída ao contexto e às redes de sociabilidade do protagonista, e, por fim, a valorização de se estabelecer os vínculos entre a vida e a obra do biografado.

Un arte vulnerable descortina um panorama rico de questões e abordagens no tocante à biografia e autobiografia no espaço latino-americano. A contribuição da obra é no sentido de oferecer reflexões sobre essas formas de escrita e suas peculiaridades, como a de alimentar-se da literatura e ao mesmo tempo impor a barreira documental como forma de legitimar o seu discurso. É justamente esse caráter híbrido da (auto)biografia que lhe confere, a um só tempo, vulnerabilidade, insipiência, vigor e movimento. [4]

Cabe ressaltar que os artigos que compõem a coletânea não devem ser tomados como conjuntos estanques. De fato, os textos convidam a imaginar outros arranjos e articulações possíveis. A título de exemplo, Nora Avaro estabelece relações com autores que assinam textos presentes na obra a fim de evidenciar as relações entre teoria e prática na escrita biográfica.

O livro apresenta importantes análises sobre temas candentes no tocante ao biografismo. 5 Essa publicação evidencia a complexidade de tomadas de posição sobre relações entre vida e obra, as fronteiras entre literatura e biografia, a problemática da subjetivação do biógrafo, os vínculos entre biógrafo e biografado, os usos do arquivo, dos documentos e das entrevistas, os desafios da pesquisa e da escrita da vida de um personagem. Trata-se de uma obra essencial para quem estuda a escrita biográfica e autobiográfica, seus limites e as suas possibilidades.

Notas

1. Ao todo, são dezoito autores que assinam os artigos, por economia optamos por não comentar dados básicos sobre formação, vínculos institucionais e linhas de pesquisa de cada um, por sinal, algo que poderia estar presente no livro. Em linhas gerais, a obra tem o mérito de reunir biógrafos e pesquisadores latino-americanos oriundos de Argentina, Brasil, Uruguai, Chile, que concentram seus estudos e atuações em áreas tais como literatura, ensaísmo, crítica literária, teoria literária e escrita biográfica.

2. Serão realizadas traduções livres tanto de expressões como de trechos da obra na medida em se fizerem presentes no texto desta resenha.

3. O conceito de operação biográfica procura realizar uma releitura da operação historiográfica de Certeau (CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982), mas a partir das demandas do gênero biográfico. Sobre o conceito de operação biográfica, ver: MUNIZ JUNIOR, João. Biografia e história em Raimundo Magalhães Junior: narrativas de panteonização e iconoclastia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2017, p. 105.

4. Sobre a questão do hibridismo, ver: DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EdUSP, 2009.

5 Sobre a noção de biografismo, ver: SILVA, Wilton C. L. Para além da ego-história: memoriais acadêmicos como fontes de pesquisa autobiográfica. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 11, n. 1, p. 71-95, jan.-jun. 2015.

João Muniz Junior – Doutorando em História, com bolsa da CAPES, pela Universidade Estadual Paulista – Campus Assis (UNESP/Assis). Mestre e graduado em História pela UNESP/Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.  E-mail: joaomuniz_jr@hotmail.com CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6369667028646263


AVARO, Nora; MUSITANO, Julia; PODLUBNE, Judith (Orgs.). Un arte vulnerable: la biografia como forma. Rosario: Nube Negra, 2018. Resenha de: MUNIZ JUNIOR, João. Os caminhos da biografia: teorias, métodos, experiências e possibilidades. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 22, p. 224-230, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política | Dainis Karepovs

Em artigo publicado na década passada, Dainis Karepovs ofereceu uma imagem para a historiografia dos instrumentos de luta da classe operária no Brasil. Segundo ele, a escrita da história dos organismos políticos de esquerda construiu um edifício, bem estruturado em alguns pontos e com lacunas a preencher em outros. A história do trotskismo no Brasil seria um “cômodo” da construção.1 Seguindo a imagem proposta por Karepovs, podemos dizer que o prédio e o cômodo destinado à história do trotskismo – que não é encerrado em si mesmo, estando interligado com os demais espaços da edificação – ganharam mais um ajuste com a publicação de Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política, obra que aborda a trajetória de atuação daquele que estava presente em Paris, em 1938, na conferência que fundou a IV Internacional, mas que também percorreu outros caminhos de elaboração e atuação política.

Dainis Karepovs já se encontrou antes com a figura de Mário Pedrosa. É dele – e de Fulvio Abramo – a organização do livro Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933), obra fundamental para os estudos posteriores acerca dos grupamentos de oposição de esquerda no Brasil, por publicar documentos que dão acesso às formulações políticas de sujeitos e organizações ligados ao pensamento dissidente. É lá que se encontra o clássico texto “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, produção que deu as bases teóricas e conceituais da Oposição de Esquerda no Brasil. A autoria é de Mário Pedrosa e Lívio Xavier, com os pseudônimos de M. Camboa e L. Lyon.2

Em Pas de Politique Mariô!, a escolha teórico-metodológica é a abordagem biográfica, na tentativa de compor uma “biografia política” de Mário Pedrosa. Desse modo, o período tratado no livro vai da década de 1920, com destaque para o ano de 1925, quando Pedrosa ingressa no Partido Comunista do Brasil (PCB), até 1980, ano de sua morte e de seu último ato de militância política, com a filiação ao Partido dos Trabalhadores em seu encontro fundacional.

Mário Pedrosa, nascido em 1900, era um estudante de Direito no Rio de Janeiro quando se aproximou dos comunistas. Leitor de publicações estrangeiras, sobretudo a revista francesa Clarté, Pedrosa adere às ideias de Leon Trotski e constrói uma Oposição de Esquerda no Brasil, junto de outros militantes comunistas como Lívio Xavier. Sua vinculação direta com o trotskismo vai até 1940, quando rompe com a IV Internacional diante da divergência acerca da caracterização da União Soviética como Estado Operário a ser defendido na Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, Pedrosa alinha-se aos norte-americanos na posição de considerar a URSS como Estado imperialista, tal qual as potências ocidentais sobreviventes ao conflito. As fontes utilizadas por Karepovs para apresentar a militância de Pedrosa na Oposição de Esquerda são de vários tipos. O autor utiliza a correspondência entre Pedrosa e Lívio Xavier, as publicações dos diversos organismos políticos trotskistas da década de 1930 e material da imprensa carioca.

O autor procura não tornar os momentos posteriores à militância de Pedrosa junto aos trotskistas como desdobramentos sucessivos de uma identidade política. Da mesma forma, a ruptura não é a extinção de qualquer relação com os sujeitos e as ideias que compunham a sua experiência nos anos 1930.

Após a ruptura com o trotskismo, Pedrosa engaja-se na construção da União Socialista Popular (USP), grupamento que levantava a bandeira da superação da ditadura de Vargas e visava a construção de um partido político socialista no país. Em 1945, a USP apoiou Eduardo Gomes para a presidência da República. No entanto, a tarefa principal de sua militância na década de 1940 foi a publicação de Vanguarda Socialista, jornal que apresentava-se como um órgão não submetido a nenhuma disciplina partidária, embora fosse construído por um grupo de pessoas com base intelectual comum. Karepovs destaca o papel do periódico como difusor de textos de autores marxistas de épocas e posições políticas distintas como Rosa Luxemburgo, Bukharin, Kautsky, Trotski, Karl Korsch e Julius Martov.

O autor chama a atenção para algo que se apresenta relevante: o trabalho intelectual como característica de um programa político. Mário Pedrosa, nos anos 1930, esteve à frente de um projeto editorial, capitaneado pela Editora Unitas, para pôr em circulação obras de autores marxistas. Nos grupamentos trotskistas dos quais fez parte, a educação política dos trabalhadores também possuía centralidade na atuação dos militantes. Isso leva a uma reflexão sobre a crença no poder da palavra, do estudo e da erudição como característica comum a um determinado grupo de militantes que se forjaram na Oposição de Esquerda na mesma década que Pedrosa, como Lívio Xavier e Edmundo Moniz.

O momento em que Pedrosa busca integrar Vanguarda Socialista à construção do Partido Socialista Brasileiro, ao lado da Esquerda Democrática, se apresenta como uma das contribuições mais inovadoras do livro. Filiado ao PSB a partir da segunda metade da década de 1940, Pedrosa desenvolve intensa oposição ao que considerava ser o varguismo e suas ramificações. Diante do suicídio de Vargas, reage com frieza, vendo aquele momento como oportunidade de libertação das massas frente às lideranças populistas. Tal oposição ao getulismo leva ao ponto alto de sua crítica, quando, após a vitória de Juscelino Kubitschek sobre Juarez Távora, Pedrosa questiona a legitimidade da votação do candidato vencedor. Tal posição o aproximava do udenismo, mas a retórica e as preocupações de Pedrosa mantém-se no campo da defesa do que imaginava ser os interesses do operariado brasileiro. As críticas ao presidente JK seriam amenizadas no fim da década, em um gesto de deslocamento de posições.

Outras elaborações relevantes são acompanhadas de perto pelo autor. Pedrosa, diante do golpe que depôs João Goulart, procura interpretar os motivos e os percursos do desenvolvimento da economia brasileira. Um militante, Pedrosa vai para o MDB e chega a se aproximar da Frente Ampla, mas sem participação efetiva. Busca reforçar as suas concepções ligadas à análise do “terceiro mundo” e se tornava cada vez mais próximo das ideias de Rosa Luxemburgo acerca do caráter da revolução e das organizações de trabalhadores. A “biografia política” se encerra com a morte de Pedrosa em um momento no qual ainda houve tempo de participar da construção do Partido dos Trabalhadores.

Karepovs destina uma segunda parte do livro à publicação de textos de excompanheiros de militância e atividade intelectual, publicados na imprensa partidária e comercial. O autor também apresenta anexos à obra. Lista os livros que compunham o programa editorial Biblioteca Socialista, a ser lançado pela Editora Unitas; relação dos artigos publicados em Vanguarda Socialista; inventário de textos, apresentações, prefácios e livros escritos por Mário Pedrosa. O autor oferece uma obra que realiza uma análise menos fragmentada da trajetória do biografado, demonstra como a identidade destinada à Mário Pedrosa como um trotskista se associou a um conjunto de elaborações muito distintas e conflitantes. Ao mesmo tempo, Karepovs realiza também um trabalho para o futuro, indicando fontes e contribuindo com pesquisas que virão.

Destaca-se o material presente no Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa – CEMAP, acervo que hoje encontra-se sob guarda do Centro de Documentação e Memória – CEDEM, da Universidade Estadual Paulista. Por fim, gostaria de citar uma lembrança curiosa. Ao visitar o arquivo em questão – no qual Karepovs teve papel destacado em sua criação – acessei um documento no qual estava uma relação de projetos de pesquisa a serem desenvolvidos pelos membros do CEMAP durante a segunda metade da década de 1980. Um dos projetos listados é a construção de um “Dicionário Biográfico” de militantes do movimento operário. No rol dos biografados, estão Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Hílcar Leite, Edmundo Moniz, entre outros. Aparentemente, o projeto vai se realizando, por outras formas, caminhos e ritmos.

Notas

1. KAREPOVS, Dainis. O Arquivo Edgard Leuenroth e a pesquisa sobre o trotskismo no Brasil. Cadernos AEL, v. 12, n. 22/23, p. 267-280, 2005.

2. ABRAMO, Fulvio; KAREPOVS, Dainis (orgs.). Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933). São Paulo: Brasiliense, 1987.

Victor Emmanuel Farias Gomes – Doutorando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil. Mestre em História pela Universidade Federal do Ceará; graduado em História pela Universidade Regional do Cariri. E-mail: victor.emmanuelfarias@gmail.com  ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1654-673X CV   Lattes: http://lattes.cnpq.br/5047979239664818


KAREPOVS, Dainis. Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política. Cotia, SP; São Paulo: Ateliê Editorial; Fundação Perseu Abramo, 2017. Resenha de: GOMES, Victor Emmanuel Farias. A opção intelectual: Mário Pedrosa e a política. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 22, p. 235-238, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

Octavio, o civil entre os 18 do Forte de Copacabana | Afonso Licks

A presente obra foi escrita por Roberto Licks, nascido em Montenegro, Rio Grande do Sul, em 1953. O autor é advogado, jornalista, com atuação em rádio, jornal, TV, revista e agência de notícias. O escritor traz a público um trabalho inédito, contribuindo para a história do Brasil República, a respeito de Octavio Augusto da Cunha Corrêa, apelidado de Moreno Corrêa, o único civil morto entre os Dezoito do Forte de Copacabana, em 1922, no Rio de Janeiro.

Licks, mesmo não sendo historiador, realiza um trabalho com farta investigação em documentos escassos, livros, jornais e em depoimentos, com a intenção de desvendar a vida daquele que foi o único civil a participar da última marcha para a morte em 1922, vindo a falecer aos 36 anos e que até então não havia despertado interesse pela historiografia brasileira. Cabe ressaltarmos que a imagem dos Dezoito do Forte de Copacabana, após o episódio, foi elevada a exemplo patriótico, seus participantes foram vistos como heróis, tendo seus nomes atribuídos a praças e ruas pelo país.

Para Licks, Corrêa, nascido em Quaraí, Rio Grande do Sul, sequer tem o nome grafado de forma correta nas placas que o homenageiam. Sua imagem acabou desaparecendo, os registros comuns se referem a ele como um engenheiro, advogado, um capitalista, um maluco que surgiu do nada para ir morrer num combate que não era seu.

Em 1922, a Revolta tenentista, ocorrida na tarde de 6 de julho, reuniu um grupo de jovens tenentes que não tinham um plano político claro, diferente, por exemplo, do movimento tenentista posterior, que ocorreu em 1924, em São Paulo. Com duração de apenas um dia, o movimento tenentista de 1922 tinha o intuito de modernizar o Brasil, lutar pelo fim da corrupção governista, combater as desigualdades sociais e enfrentar a concentração de poder em prejuízo das imensas maiorias do povo.

Um dos principais motivos que fizeram a Revolta ocorrer foi o episódio das cartas falsas que acabou cumprindo o seu papel de lançar as Forças Armadas contra a candidatura à Presidência da República do mineiro Artur Bernardes, representante das mazelas da política do café com leite. Neste conflito, antes de Bernardes assumir, o presidente Epitácio Pessoa saiu vitorioso, foi decretado o mais longo período de estado de sítio que o país foi submetido, encobrindo perseguições políticas a qualquer indivíduo que simpatizasse com os revolucionários.

No que diz respeito ao personagem principal desta história, o autor nos revela alguns fatos muito interessantes de Côrrea, como por exemplo, seu envolvimento com líderes tenentistas, bem antes do confronto final.

Em meio a organização do movimento revolucionário, no dia 4 de julho de 1922, os revolucionários perceberam que alguns conspiradores foram identificados após contato pelo telefone com o Forte de Copacabana. Assim, o comandante Euclydes Hermes, suspeitando de que a linha estava sob escuta da Polícia Política, foi convencido pelo tenente Siqueira Campos a aceitar a sugestão de Corrêa, de puxar diretamente um par de fios como extensão do telefone do cabaré Mère Louise, que ficava próximo ao Forte de Copacabana, até a sala de comando do mesmo, sendo que a linha do Forte sob escuta deveria ser evitada.

Por meio da obra, percebemos que o personagem se sentia à vontade no Rio de Janeiro, gostando muito de frequentar o Mère Louise, sentando sempre em uma mesa na varanda do cabaré, de frente para o mar de Copacabana. Era uma pessoa muita generosa, insistindo sempre em pagar a parte maior da conta. Corrêa também era muito querido pelos oficiais que frequentavam a boate, pois tinha bom humor, conhecimento de música e contava muitas histórias de aventura, apesar das provocações políticas. Devido a tais provocações, Euclydes Hermes da Fonseca havia proibido seus homens das discussões políticas no cabaré.

Um fato curioso, é que de todos os militares, o comandante do Forte de Copacabana era o que conhecia Corrêa há mais tempo e foi quem o apresentou aos oficiais, ressaltando sobre sua lealdade. Eles não se conheceram no Mère Louise e sim bem antes, devido ao relacionamento entre seus pais, o marechal Hermes e Carlos Alberto Corrêa, que conviveram como amigos gaúchos do senador Pinheiro Machado.

Corrêa era um homem muito rico, gostava de contar histórias sobre sua família e de como havia conquistado sua fortuna. Tinha decidido não se casar para não acabar cedendo à pressão do pai que o queria no campo, trabalhando como cabanheiro. Buscava diversão e mulheres, gastando e aproveitando o conforto.

Sua mãe se chamava Leopoldina, apelidada de Dona Pudica, sempre educando seus filhos de forma muito rígida. Côrrea também tinha quatro irmãos, o mais velho era chamado de Joca, tinha estudado em Pelotas com os jesuítas da escola São Luís Gonzaga. Gregório, outro irmão, foi para o Colégio Anchieta, na capital.

Com relação ao personagem, aos dez anos de idade foi enviado para a fronteiriça Quaraí à cidade de São Leopoldo, para estudar como interno no Colégio de Nossa Senhora da Conceição, onde acabou pegando gosto por Francês, Matemática e Música. Habilitou-se em Francês no terceiro ano da Escola Brasileira, na Rua Duque de Caxias, número 229, em Porto Alegre. Também estudavam nessa escola, os seus irmãos Adalberto e Carlos Zaccharias, além do amigo Getúlio Vargas.

Com relação aos principais acontecimentos da sublevação de 1922, Côrrea, no dia 6 de julho, por volta das 11 horas, do telefone do cabaré ligou para o Forte para saber o que estava acontecendo. Do outro lado da linha, o tenente Mário Carpenter atendeu e informou que havia uma trégua, tendo o comandante saído para negociar as condições de armistício com o ministro da Guerra. Carpenter pediu a Corrêa que o telefone ficasse livre, pois estavam aguardando as notícias que o capitão mandaria do Catete.

No final da manhã, Corrêa foi até o Forte de Copacabana, o tenente Newton Prado deixou o civil entrar, após os cumprimentos pela coragem, Siqueira Campos chamou Corrêa para ficar ao seu lado. Antes de sair do Forte, foi feita a contagem dos revolucionários, totalizando 28, contando com o civil.

Com o objetivo de aliviar a tensão, o tenente Carpenter riscou as paredes internas do Forte com pregos e baionetas para registrar os nomes dos que permaneceram. Havia no Forte de Copacabana uma bandeira do Brasil que foi cortada em 28 pedaços e entregue a cada membro que lá haviam ficado. Ao mesmo tempo, Corrêa recebeu de Siqueira Campos o pedaço da bandeira do Brasil destinado ao capitão Euclydes, que a esta altura já se encontrava preso. Ao sair do Forte, os 28 combatentes se reduziram para 18, depois, ao marcharem na altura da Praça Serzedelo, reduziram-se para 12.

Ao marchar junto com os tenentes pela calçada ondulada de Copacabana, Corrêa vestia um paletó e levava um fuzil Mauser na mão. Durante a troca de tiros, conseguiu acertar alguns adversários das tropas do governo, entre eles o sargento Narciso Baptista, até que um projétil de fuzil lhe atingiu o peito, levando-o a cair no mesmo instante. Segundo Licks o civil foi conduzido vivo ao hospital militar, resistindo até às 19 horas, quando veio a falecer de hemorragia.

Analisando a obra em si, observamos que ela apresenta um conteúdo inédito sobre a vida de Corrêa. Contudo, Licks tenta construir uma biografia heroica do personagem, destacando que desde criança já era uma pessoa diferenciada, como se seu destino já tivesse predestinado. Outra crítica que pode ser feito a obra é que o autor mescla um pouco de fato histórico e ficção, o que às vezes deixa a obra a desejar. Todavia, o livro é importante pelo fato de revelar outras facetas da insurreição tenentista de 1922, pois o que sabíamos até então, era que Corrêa foi apenas um civil que aceitou participar de última hora da marcha para a morte na calçada de Copacabana. Assim, a obra revela mais do que isso e nos mostra que o personagem já tinha uma relação com os principais tenentes e inclusive os auxiliaram nos preparativos para a Revolta. Além do mais, o livro é um atrativo para os historiadores que desejam realizar um futuro trabalho sobre a trajetória do personagem.

Lucas Godoy Stringuett – Doutorando em História e Sociedade, com bolsa da CAPES, Pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista, Campus Assis (UNESP/Assis). Mestre em História e Sociedade pela UNESP/Assis; graduado em História pela UNESP/Assis. ORDCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9683-7873  CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4402566368145163 . O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Ele configura-se, igualmente, como complemento aos requisitos necessários à escrita da Tese de Doutorado em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis.


LICKS, Afonso. Octavio, o civil entre os 18 do Forte de Copacabana. Porto Alegre: Quattro Projetos, 2016. Resenha de: STRINGUETT, Lucas Godoy. A participação de Octavio Corrêa na Revolta dos 18 do Forte de Copacabana.  Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 22, p. 239-242, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI) | Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon, Silvia Capanema P. Almeida

O Ano da França no Brasil, comemorado em 2009, para além de extensa programação no campo cultural, também inspirou a realização de uma série de eventos acadêmicos, que continuam a dar frutos. Sob a chancela da Editora 7 Letras e da Fundação Casa de Rui Barbosa veio a público em 2017 obra coletiva resultante de colóquio organizado naquele profícuo ano, que reuniu um rol diversificado de especialistas em torno das relações franco-brasileiras.

Abre o volume alentada introdução dos organizadores, que coloca em questão as visões eurocêntricas que fazem do Brasil um receptor, a um tempo passivo e fascinado, de valores e hábitos franceses, tomados como modelo de civilização. Os autores evidenciam que, pelo menos desde meados do século passado, não faltam exemplos de trabalhos a matizar essa leitura, a exemplo dos escritos de Roger Bastide, que já insistia nas trocas bilaterais. Em sintonia com a historiografia contemporânea, que tem evidenciado a força heurística das noções de transferências culturais, histórias conectadas, mestiçagem e história global, o que se propõe é ir além do comparatismo tradicional, que elege um padrão ideal para avaliar o outro, e das noções de centro e periferia, tarefa desafiadora e que se coloca na contra mão de visões cristalizadas e arraigadas no imaginário social e também na produção acadêmica, razão pela qual ainda continuam a se insinuar mesmo entre especialistas.

Seguem-se quinze capítulos, divididos em quatro partes. A primeira delas, “Civilização e barbárie”, traz contribuições de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Ingrid Hötte Ambrogi, Silvia Capanema P. de Almeida e Olivier Compagnon, que problematizam o dualismo enunciado no título a partir de diferentes situações históricas. Assim contemplam-se, respectivamente, as representações – bastante negativas, é bom sublinhar, – difundidas no início do oitocentos no Império português a respeito de Napoleão Bonaparte, quando a Família Real estava instalada no Rio de Janeiro; o ideal perseguido pelos estabelecimentos escolares da Primeira República, claramente calcados em modelos vigentes na França; as caricaturas publicadas a respeito da 1ª Guerra Mundial na Careta, com particular destaque para as que tematizavam a França e, ainda, o posicionamento, nem sempre uníssono, das nossas elites em relação aos contendores, bem como o impacto do conflito e seus desdobramentos nas relações entre os dois países. Trata-se, portanto, de diferentes momentos e contextos a atestar a diversidade de percepções em relação à imagem da França no Brasil, cuja centralidade, tão marcada no decorrer do século XIX, sofreu abalos significativos com a Grande Guerra, aspecto evidenciado por Almeida e Compagnon.

Questões de ordem estética e artística são contempladas nos quatro textos que compõem a segunda parte, “França, mãe das artes”. A produção de Nicolas-Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, que integraram a chamada “missão” francesa de 1816, denominação já relativizada pela rigorosa contextualização das circunstancias que trouxeram ao Rio de Janeiro um grupo de artistas comprometidos com a recém deposta ordem napoleônica, foram abordadas por Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Pires Lima. As contingências políticas, que fizeram da corte lusitana um refúgio seguro que oferecia, pelo menos em tese, várias oportunidades de trabalho, não significou o abandono das relações com a pátria distante, sobretudo em vista das dificuldades enfrentadas no Rio de Janeiro. Se a conjuntura no Hexágono era cuidadosamente acompanhada, tendo em vista o retorno ao solo europeu, a passagem pelos trópicos deixou marcas profundas na produção pictórica, como bem exemplifica a análise dos quadros de Taunay e sua recepção pela crítica francesa, pouco sensível às cores e aos tons da natureza brasileira, o que acaba por colocá-lo num entre lugar – francês no Brasil, estrangeiro em sua terra natal. Já a análise do pano de boca confeccionado por Debret para a coroação de D. Pedro I, que expressava uma certa concepção da jovem nação, sua composição social e futuro projetado, em sintonia com as necessidades e expectativas do poder, adquire outros sentidos quando remetido à posição que ocupou no interior da Viagem pitoresca e histórica no Brasil, às circunstâncias que possibilitaram a publicação da obra entre 1834 e 1839 e às condições reinantes no cenário político francês. Em ambos os casos, trata-se de vias de mão dupla, que problematizam a apreensão ancorada nas ideias de influência e recepção passiva.

Os dilemas em torno das relações nacional e estrangeiro estão presentes nas contribuições de Marize Malta e Maria Luiza Luz Távora. A primeira diz respeito à decoração das residências nos anos 1920, discutida a partir da publicidade estampada na Revista da Semana e A Casa. Em debate os estilos de mobiliário: art-déco, neocolonial e modernismo, com suas linhas simples. Mais do que a opção por um modelo, o que Malta evidencia é o processo de hibridismo, a mistura entre estilos e a apropriação criativa, com a utilização de motivos nacionais, entre eles os marajoaras. Já a discussão suscitada pela presença do artista franco-alemão Johnny Friedlaender no curso inaugural do ateliê de gravura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1959 torna patente as resistências frente às experimentações e propostas estéticas diversas das imperantes no cenário artístico nacional, o que atesta, ainda uma vez, a tensa e complexa relação com as inovações que aqui aportavam, sobretudo numa conjuntura marcada por exacerbado nacionalismo.

A terceira parte, “Grandeza e decadência da mulher francesa”, é composta por três textos que tratam da imagem e do imaginário sobre o feminino, num arco temporal que vai de meados do século XIX às décadas iniciais do século XX, quando a presença da mulher no espaço público começava a alterar e mesmo suberventer a ordem estabelecida e papéis sociais consagrados. As pesquisas de Monica Pimenta Velloso e Lená Medeiros de Menzes privilegiam a figura da cocotte que, a exemplo da modista do início do Império, desfrutava de reputação duvidosa, o que não impedia que fosse objeto de irresistível curiosidade e atração, como bem demonstram as autoras. Velloso explora as ambiguidades do olhar francês sobre o Brasil, a partir de refinada análise do humor “debochado, caricato e anarquiante”, para retomar os seus termos, da revista Ba-ta-clan, que afrontava a sensibilidade e o orgulho locais. Contudo, esse material também permite desvelar valores, desejos e expectativas dos franceses radicados no Rio de Janeiro, num entrecruzamento ambiguo e nem sempre fácil de ser apreendido. Lená Medeiros, por seu turno, exemplifica o périplo transatlântico cumprido por algumas francesas que, contrariamente às suas expectativas e esperanças, enfrentaram uma realidade bem pouco glamourosa. A natureza calidoscópica da questão, diligentemente pontuada no texto, evidencia-se pelo recurso às colunas da Ba-ta-clan, que permitem avaliar o impacto do comportamento transgressor dessas mulheres, que alimentavam a percepção acerca dessas francesas atrevidas, duramente combatidas pelso guardiões da ordem. Fecha o conjunto a contribuição de Cláudia Oliveira, que retoma as representações de Salomé, tematizada na pintura, no teatro, nas revistas ilustradas, com fortes doses de sensualidade. Novamente o que se destaca é a ambivalência diante das mudanças provocadas pela modernidade, num ambiente marcado por significativas transformações na sociabilidade e cotidiano urbanos. Merece particular destaque a análise sensível da Salomé de J. Carlos, publicada em 1927 na revista Para Todos.

Sob a rubrica “O espelho do outro” estão reunidos outros quatro textos que retomam as relações interculturais franco-brasileiras, o primeiro deles a partir da temática da religiosidade e seu surpreendente sincretismo e interconexões, que remetem tanto para a presença de São Luís e outros personagens do ciclo de Carlos Magno nos nossos terreiros quanto à conversão de Pierre Verger, como revela Monique Augras ao explorar as trajetórias e transfigurações desses seres “encantados”. Intercâmbios que também se expressam em periódicos, livros e bibliotecas e na presença de tipógrafos, editores, livreiros, gravadores e litógrafos franceses, que desempenharam papel relevante na difusão da cultura letrada e na ampliação do espaço público, como bem pontua Tania Bessone, que não deixa de assinalar, em sintonia com outras colaborações, o esmaecer dessa presença a partir das primeiras décadas do século XX.

A importância estratégica, para as elites imperiais, de contar com uma percepção positiva a respeito do Brasil na França é discutida por Sébastien Rozeaux. Se, graças à intervenção de Ferdinand Denis e Saint Hilaire, esta expectativa pode ser atendida, a situação alterou-se frente aos relatos bastante ácidos publicados nos anos 1830 na prestigiosa Revue des Deux Mondes. O estudo da reação de indivíduos do calibre de Araújo Porto-Alegre e outras figuras de proa do nosso cenário intelectual permite evidenciar quais eram os anseios da geração romântica, que tomou a si a tarefa de construir uma nação civilizada nos trópicos e de elaborar um discurso autônomo sobre a mesma. O autor explora a sensação de traição e o choque ocasionado pela difusão de percepções pouco confortáveis, fosse a respeito dos vícios sociais, da mestiçagem ou da incomoda questão da escravidão, que maculavam uma imagem pacientemente urdida. Daí o empenho para, se não reparar, pelo menos atenuar as apreensões pouco abonadoras a partir de estratégias discursivas bem diversas: a agressividade e a ironia para o público interno, o tom bem mais conciliador e cauteloso quando o destinatário era o leitor francês. Os estereótipos nacionais figuram em outro registro na colaboração de Anaïs Fléchet, que investiga a maneira como as cidades de Paris e do Rio de Janeiro foram figuradas nas canções populares ao longo do século XX. Mais do que distanciamento, predominam os paralelismo, uma vez que ambas são referidas como lugares distantes, que ativam a imaginação e remetem às aventuras amorosas, compondo uma “geografia musical do imaginário”, na bela definição da autora. Não faltaram referências às mulheres de ambos os lados do Atlântico, descritas em consonância com modelos de há muito em circulação: refinamento/sedução/prostituição, do lado francês, jovem/disponível/ despudorada, no que concerne à brasileira, num quadro de imagens cruzadas – e não raro sobrepostas – que convida a refletir sobre a circularidade das trocas.

A título de conclusão, conta-se com o texto de Robert Frank, que assume o desafio de abordar as relações internacionais em suas dimensões culturais. Para tanto, o autor passa em revista as contribuições de Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle a respeito do significado das mentalidades para a elaboração e difusão de nacionalismos e na relação entre países. À detalhada reconstrução do arsenal analítico proposto, segue-se sua relativização à luz das mudanças introduzidas pelo cultural turn dos anos 1980, que consagrou interpretações ancoradas nas noções de representação, imaginário e identidade.

O rápido deambular por entre os vários capítulos, se não contempla todas as questões abordadas em cada uma das contribuições, é suficiente para evidenciar a importância das mesmas para a temática, que tem recebido atenção significativa nos últimos anos. Cabe ressaltar que as partes acima referidas não devem ser tomadas como conjuntos estanques. De fato, os textos convidam a imaginar outros arranjos e articulações possíveis. Assim, a título de exemplo, Napoleão e os imigrados que deixaram a França após a queda do Imperador são personagens retomados em vários capítulos, tanto quanto o declínio da presença francesa, as referências ao imaginário sobre as mulheres, a oposição (ou a adesão) aos ventos que sopravam da França, os esforços para estabelecer trocas de mão dupla, em lugar das rotas com sentido único. Por certo o leitor será capaz de propor outras possibilidades diante de um rol de contribuições que se revelam tão densas e complexas quanto o objeto a ser desvendado.

Tania Regina de Luca –  Professora Livre Docente em História do Brasil Republicano pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui doutorado e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo e graduação em História pela mesma instituição. Responsável, junto ao CNPq, pelo financiamento do projeto “Estudos de jornais em língua estrangeira” (Transfopress Brasil). E-mail: tania.luca@pq.cnpq.br


FLÉCHET, Anaïs; COMPAGNON, Olivier; ALMEIDA, Silvia Capanema P. de. Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7 Letras, 2017. Resenha de: LUCA, Tania Regina de. Sob o signo da complexidade: trocas interculturais entre França e Brasil.  Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 19, p. 216-220, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam | Philip Michael Penn

Ao contrário do que sugeriram alguns analistas em momento anterior, a religião não desapareceu do horizonte nestas primeiras décadas do século XXI. Ao contrário, o revival da militância religiosa, que não cessa de se fazer presente de diversas formas nos projetos e preocupações contemporâneas, constitui-se em um importante desafio às análises sobre as crises contemporâneas que nos afligem. Esses fenômenos de efervescência religiosa de amplas consequências sociopolíticas e culturais, contudo, não são desconhecidos dos historiadores. Talvez um dos mais importantes deles tenha sido o que se alastrou pelo Oriente Médio do primeira metade do século VII, onde se verificou o embate entre o cristianismo bizantino e o zoroastrianismo sassânida, o recrudescimento das disputas cristológicas que já dividiam as comunidades cristãs há duzentos anos, e o surgimento do Islã, que se apresentou ao mundo a um só tempo como religião e como projeto imperial. O espetacular ressurgimento do islamismo político em nossos noticiários faz com que olhemos para esses eventos de modo assustadiço e anacrônico, como se sementes ou prefigurações. As realidades que nos são apresentadas pela documentação de época, porém, são bastante mais complexas.

Infelizmente, nosso olhar para esta realidade ainda é míope. De acordo com o Anonymi auctoris Chronicon ad annum Christi 1234 pertinens, importante texto siríaco medieval, em 636, depois de vencer os persas e assistir às primeiras vitórias árabes a expensas de seus domínios, o imperador bizantino Heráclio abandonou Antioquia aos apetites de seus soldados e à iminente conquista muçulmana. A partir deste ponto, o Império Romano do Oriente perderia suas possessões no Oriente Médio e na África, passando geralmente a um combate defensivo contra o jovem Califado. Trata-se, no entanto, de uma virada não só na história da região e da humanidade, mas igualmente da historiografia. A maior parte dos historiadores interessados na história do cristianismo, ao se deparar com a década de 630, faz o mesmo que Heráclio e diz “Sozou, Síria!” O mais comum é que, em suas reconstituições e análises, o cristianismo médio-oriental, que durante séculos constituiu o coração pulsante do ecúmeno cristão, desapareça subitamente a partir daí; seus objetos de reflexão passam a ser, preferencialmente, os documentos e questões dos cristianismos latino e (em proporção muito menor) bizantino. Por outro lado, em uma pragmática divisão do trabalho intelectual, historiadores interessados na ascensão do Islã e na formação do ecúmeno muçulmano fazem o caminho inverso e se dedicam ao estudo intensivo dos textos em árabe e em persa referentes a tais fenômenos. Ambas as abordagens sobre esse período de crise, contudo, são problemáticas e, como se afirmou antes, míopes. Se não mais, porque ignoram as condições e perspectivas da maior parte da população então submetida ao domínio islâmico: cristãos não bizantinos e não latinos, que permaneceram por séculos sob o domínio do Califado sem passarem de modo necessário pelo processo de islamização.

Os membros das antigas Igrejas apostólicas do Oriente, que compunham talvez três quartos do número total de cristãos da segunda metade do primeiro milênio da Era Comum, assim marginalizados pela historiografia, o são por razões diversas. Duas são particularmente notáveis: o fato de serem sistematicamente ignorados – quando não deliberadamente silenciados – pelos historiadores da Igreja de matriz latina (católicos ou protestantes) e bizantina (gregos, russos, entre outros) como heterodoxos, cismáticos e, por consequência, supostamente menores; e, a dificuldade de acesso aos documentos por eles produzidos, em função de barreiras linguísticas e editoriais. Tal cenário é bastante trágico ao se considerar de uma só vista o crescente interesse pela história do Islã inicial e a precariedade ainda vigente dos estudos referentes aos textos escritos no âmbito das Igrejas de matriz siríaca. Ora, os escritos produzidos por cristãos sírios nos séculos VII a IX são simplesmente fundamentais para se reconstituir o processo de estabelecimento do Islã no centro daquelas partes que hoje conhecemos como sendo o mundo muçulmano. É certo que os especialistas em história islâmica dispõem de centenas de milhares de páginas de documentos de época, escritos em árabe e em persa, referentes à vida de Muhammad, ao governo dos primeiros califas e da dinastia omíada, mas a maior parte delas remonta efetivamente ao período posterior à ascensão dos abássidas, em 750, quando houve um grande investimento da parte dos novos donos do poder para sistematizar o que se conhecia sobre o passado do Califado como uma forma de corroborar suas reivindicações do exercício de uma autoridade, não apenas de fato, mas legítima. Não é fácil separar, no âmbito deste amplo acervo documental, o material realmente antigo das interpolações posteriores. Uma exceção evidente a este quadro é, sem dúvida, o Corão, mas se deve recordar que ainda há uma enorme resistência da parte de muitos pesquisadores (e não apenas entre os que são muçulmanos devotos) em submetê-lo a uma exegese histórico-crítica conveniente. Lidar com os textos siríacos da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII que mencionam o Islã não é, portanto, apenas se deparar com mais uma das visões cristãs sobre o movimento dos seguidores de Muhammad, mas com uma perspectiva particularmente esclarecedora para a própria história islâmica. E isso: 1) Porque se tratam de textos, em sua maior parte, contemporâneos das realidades às quais se referem; 2) Porque, ainda que seja verdade que os cristãos siríacos também compreenderam e descreveram o Islã de acordo com suas próprias formações e interesses, contudo, de um modo geral, seus escritos não foram tão profundamente marcados por um viés agressivo quanto os de autores bizantinos e latinos que produziram imediatamente diante da linha de fratura entre os Estados que os abrigavam e o Califado. Vivendo no interior da Dar alIslam, os cristãos siríacos tinham contato cotidiano e um conhecimento direto do que escreviam a respeito do Islã; se a confiabilidade histórica e o índice de distorção ideológica da realidade constante em seus testemunhos é diversa, entretanto, não se deve esquecer que eles se vinculam diretamente a um cenário onde esses cristãos comiam e negociavam com muçulmanos, casavam e trabalhavam com muçulmanos, educavam seus filhos junto com os filhos dos muçulmanos, e serviam como burocratas, soldados e diversos tipos de colaboradores no Estado Islâmico.

É no sentido de ter um primeiro contato com essa literatura que nos ajuda o When christians met muslims, de Michael Philip Penn, professor de Estudos da Religião, especialista em história do cristianismo primitivo, da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, EUA. Depois de estudar as interações entre rito e identidade nos textos cristãos da Antiguidade Tardia (em Kissing christians: ritual and community in Late Ancient Church, de 2005), Penn dedicou-se a investigar a presença dos cristãos siríacos no jovem mundo islâmico, projeto que rendeu a publicação simultânea, em 2015, de dois livros premiados: Envisioning Islam: syriac christians in the Early Muslim World e When christians met muslims, que é uma coletânea comentada de fontes utilizadas neste estudo. No livro sobre o qual aqui nos detemos, depois de uma breve introdução, Penn apresenta ao leitor vinte e oito escritos produzidos por cristãos siríacos nos quais está de alguma maneira tematizada a sua relação com os muçulmanos. Os textos, provenientes de diferentes nichos confessionais – miafisitas (inapropriadamente conhecidos como jacobitas), dioprosoponitas (inapropriadamente conhecidos como nestorianos), monotelitas e calcedônicos –, são dispostos em ordem cronológica e precedidos por parágrafos introdutórios nos quais se sintetiza o contexto de produção de cada escrito e o histórico de sua transmissão, desde o momento da possível composição até sua redescoberta pelos historiadores contemporâneos. Tratam-se de textos de diferentes estilos e funcionalidades (crônicas, epístolas, apocalipses, hagiografias, cânones sinodais, tratados teológicos e diálogos), dos quais, com a exceção de dois (a Controvérsia de Bēt Ḥalē e a Vida de Teódoto de Amida), omitidos por motivos não esclarecidos, Penn oferece novas versões em inglês. O conjunto é seguido por bons levantamentos bibliográficos, que encaminham eventuais interessados a estudos mais aprofundados a respeito de cada um dos documentos.

É indiscutível que é desejável que um historiador leia os documentos com os quais se propõe a lidar no idioma em que foram originalmente redigidos, assim como é preferível que, tratando-se de escritos que possuem variantes ou uma transmissão problemática, consulte diferentes manuscritos. Isso, entretanto, é virtualmente impossível aos estudantes mais jovens, não apenas os brasileiros, e por diferentes motivos. O mais importante talvez seja o fato de que ninguém se dispõe a investir horas de estudo aprendendo, digamos, o siríaco, se já não possuir um vivo interesse pelo que irá encontrar neste idioma. Nesse sentido, When christians met muslims é um manual importante, que pode despertar o interesse dos pesquisadores em exercício ou em formação para horizontes ainda muito pouco explorados, contribuindo para que, de fato, comecemos a dar passos no sentido de um estudo menos eurocêntrico de nosso passado comum. O livro é igualmente útil aos especialistas por fornecer bons levantamentos bibliográficos, material para exercícios de comparação e subsídio para uso em aulas e outras atividades de divulgação científica. Além disso, pode interessar cientistas da religião e teólogos, que ao pensar o cristianismo tardo-antigo e medieval lidam com contingências e desafios similares aos dos historiadores, assim como interessados em geral no contato entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio, no passado, mas também hoje. De fato, estou certo de que, ao recuperar as diferentes visões dos cristãos siríacos a respeito do Islã recém-surgido, os textos reunidos por Penn não só fornecem elementos para que entendamos melhor o desenvolvimento sociopolítico e cultural posterior da região, mas também nos ajudam no exercício, proposto em um livro de Carlo Guinzburg publicado há poucos anos em português, de “aprender a olhar o presente à distância, como se o víssemos através de uma luneta invertida”.

No caleidoscópio dos textos siríacos rememorados em When christians met muslims é inevitável que nos surja de novo a atualidade, “porém num contexto diferente, inesperado”; assim como não é possível encontrar hoje nem uma existência sempre harmoniosa entre cristãos e muçulmanos, nem um conflito permanente, necessário e inapelável entre essas partes, da mesma forma não se pode surpreender uma coisa ou outra da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII. A convivência entre cristãos e muçulmanos, que a tantos aflige, continua, portanto, como uma questão histórica e política reiteradamente em aberto.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz – Doutorando em História Política pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).  E-mail: bccruz.alfredo@gmail.com

PENN, Michael Philip. When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam. Oakland: University of California Press, 2015. Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Testemunhos de um mundo partilhado. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 18, p. 277-280, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

A Guerra da Restauração no Baixo Alentejo – (1640-1668) | Emília Savado Borges

Mestre em História Moderna e pós-graduada em História Regional e Local pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Emília Salvado Borges desenvolve, fundamentalmente, investigação sobre a história da região Alentejana, no período correspondente ao Antigo Regime. Nascida na Vila de Cuba, em Portugal (Alentejo), dedicou boa parte dos seus esforços investigativos às histórias que envolviam a sua municipalidade e o seu entorno. Neste livro, a autora procura desvendar uma realidade pouco explorada por uma historiografia muito extensa e de debates acalorados, produzida principalmente pelos historiadores portugueses.

A produção acerca da Restauração é extremamente ampla e prolixa. Segundo Torgal, em artigo publicado poucos anos após a Revolução dos Cravos, a Restauração foi a grande vítima em Portugal, pois se prestava muito mais a justificar as ideologias que vicejavam em terras lusas do que a apresentar ao leitor um trabalho assentado em bases plenamente verificáveis [1]. Se isso prejudicou a objetividade, certamente não afetou a quantidade de textos produzidos, pois tanto durante o movimento, como séculos após, muito se publicou a respeito dos acontecimentos que colocaram a dinastia Brigantina à frente do governo lusitano.

Essa situação começou a mudar quando nos anos 1990, a historiografia sobre a Restauração se alargou consideravelmente, graças à contribuição de uma geração de historiadores tributários, em boa parte, dos trabalhos de António Manuel Hespanha [2], Fernando Bouzas Alvares [3], Rafael Valladares [4], entre outros. Estes trouxeram à baila uma série de questões, até então, pouco abordada por esta historiografia. Temas relativos à governança, à diplomacia, à cultura, entre outros, passaram a estar no foco das lentes desses pesquisadores.

O estado atual das investigações sobre a Restauração permite identificar, primeiro o desaparecimento das grandes sínteses sobre o movimento, e em segundo, a tendência de abordagens de questões relativas aos impressos, à religião, à guerra em seus diversos palcos e à diplomacia. E é nesse sentido que podemos inscrever este trabalho de Emília Salvado Borges, que revela nas suas primeiras páginas a forte influência dos estudos de Antônio Manuel Hespanha, principalmente no que tange à obra “As vésperas do Leviatan”.[5]

Esses novos objetos permitiram uma variação temática maior que vem sendo explorada em suas mais variadas vertentes. Essa mudança de foco revelou novas questões e este livro é fruto disso. Com uma descrição geográfica muito precisa, que tenta trazer o leitor para a região do Baixo Alentejo, Emília Salvado apresenta a fronteira hispano-portuguesa com todas as suas cores. Nessa obra, o leitor, mesmo que tenha tido pouco ou nenhum contato com o tema Restauração, consegue perceber que a região foi marcada por tensões permanentes. Tendo sido por este caminho que, em 1580, Felipe II mandou o Duque de Alba iniciar a ocupação de Portugal.

Profundas inimizades, ódios, rancores, saques, cercos, entre outros, são retratados em profusão, sempre muito bem documentados e ancorados nas fontes. Aliás, vale destacar que a pesquisa realizada pela autora, nos diversos arquivos distritais da região, é um dos grandes diferenciais do trabalho. Pois, além dos tradicionais arquivos portugueses, sai dos grandes centros decisórios de Portugal buscando nas periferias novas fontes de estudo, inserindo novos interlocutores nesse cenário, até então desconhecidos dos estudos tradicionais.

Sempre bem distante dos centros políticos, tanto de um lado como de outro da fronteira, mas sempre muito próximo dos efeitos que cabem em uma guerra, foi ali que as decisões de Lisboa e Madri tiveram o seu efeito prático. Consequências que conduziram ao despovoamento e à ruína do homem comum que sofreu com a guerra tanto na hora em que era convocado para defender a Coroa, quanto nos momentos em que ocorreriam ataques das hostes inimigas, são os assuntos abordados ao longo do livro.

Parte muito significativa do trabalho de Emília Borges tem sua base comprobatória, além das fontes impressas, em registros manuscritos. Esse cabedal muito rico e multifacetado de textos reflete as realidades vivenciadas naquela região, demonstrando a incidência dos “pequenos” fatos no cotidiano das pequenas povoações. Precedido de um detalhado índice e uma breve introdução, a autora divide seu extenso trabalho em três partes, onde cada parte possui seções e subseções muito bem definidas ao longo de 550 páginas. Ao fim, a obra ainda conta com três anexos em que o leitor, ao longo do texto, é constantemente convidado à consulta.

A primeira parte é distribuída em quatro seções e estas em muitas subseções. Sob o título de Cenário e actores, a autora aborda temas como A terra, que curiosamente não possui nenhuma subseção, Os homens, que em sua primeira subseção estuda as diversas tipologias dos integrantes do Exército Restauracionista. Continuando os estudos sobre os homens de guerra e os alentejanos a próxima subseção gira em torno de como eram pesadas as pressões sofridas pelas povoações locais quando estas tinham que ceder seus paisanos às levas e alistamentos no Baixo Alentejo.

A invocação de privilégios é frequente, tanto nos clamores contra as levas como na resistência dos homens ao recrutamento. O quadro geográfico do Baixo Alentejo, com suas extensas planícies forçam a ação da guerra, sendo um lugar propício ao ataque e à defesa. Os atores são obrigados a protagonizar combates bélicos mesmo contra a sua vontade. Esta realidade conduz à terceira seção dos estudos do Exército alentejano, o qual a autora qualifica como sendo um Exército de papel, diferenciando entre os que andam ausentes daqueles que protagonizaram a deserção e os que andam vadios e calaceiros na Corte. Por fim, centra a sua atenção no estudo das opções estratégicas do Exército de D. João IV, e sua forma peculiar de guerra ofensiva que privilegia as entradas e a pilhagem sobre o território inimigo.

A quarta seção enumera diversos incidentes em que se exemplificam estas entradas em território inimigo. Centrando os estudos nos protagonistas, no caso, as tropas de ambos os lados, seu enfoque se coloca dentro de quatro marcos temporais (1641-1646; 1647-1656; 1657-1666 e 1661-1668). Assim, aparecem situações de elevada violência como é o caso do O arrasamento de Barrancos (1641); O assalto Português a Valencia de Mombuey (1641) e etc.

Contributo dos Povos, a segunda parte de seu livro, se subdivide em três seções e variadas subseções. Em Despesas com a defesa, a autora se dedica a estudar aspectos diversos, como por exemplo, o peso dos impostos nas comarcas alentejanas, a complexa problemática ligada aos alojamentos dos soldados nas povoações e as despesas com as obras de fortificação nas comarcas de Campo de Ourique e Beja. Seguindo, em Carros, carretas e cavalgaduras para a guerra, Salvado aprofunda a questão da exigência de se ter eficientes meios de locomoção como forma de defesa e ataque. Finaliza essa parte com a sessão que aborda o abastecimento do exército.

No que tange ao terceiro trecho da obra, o destaque é direcionado para a Conflitualidade, decadência e morte. Tratando da pressão militar: prepotência e conflitualidade, diferencia o confronto entre o poder militar e o poder civil no espaço dos conselhos, assim como traça as difíceis relações entre os povos e os militares. A prepotência dos poderosos, não é deixada de lado, e nesse sentido, apresenta diversas e interessantes provas de uma situação de guerra que se registra e se padece em ambos os lados da Fronteira. Em O fim da prosperidade, destaca os assuntos demográficos, concluindo com um interessante aprofundamento das atitudes e comportamentos das pessoas comuns, paisanos e soldados perante a guerra.

Reafirmamos a ideia de que esta é uma obra que aborda de forma muito completa a problemática da Guerra da Restauração sob uma ótica muito peculiar. Como destaca Salvado Borges, grande parte dos trabalhos e publicações anteriores sobre este período de guerra peninsular ou está centrado exclusivamente na ótica militar, contendo uma análise de forte conteúdo estratégico ou se limita a destacar suas implicações políticas com particulares visões sobre as decisões tomadas ao nível central do Estado.

A autora, ao atrelar a diversidade de orientações, relacionando de forma causal as informações políticas, sociais e econômicas com outras de alcance mais local, consegue prender a atenção do leitor desvendando novas e instigantes situações desse cativante tema. No entanto, ao utilizar um marco espacial bem definido e delimitado com os métodos e teorias comuns da História, realiza além de um texto direcionado a todo e qualquer tipo de leitor, um excelente trabalho historiográfico.

Notas

1. TORGAL, Luís Manuel Soares dos Reis. A Restauração. Revista de História das Ideias, Coimbra, n. 1, p. 23-40, 1977. p. 23.

2. HESPANHA, António Manuel de. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político Portugal século XVII. Coimbra: Almedina, 1994.

3. ALVAREZ, Fernando Bouza. Papeles y opinión: políticas de publicación en el Siglo de Oro. Madrid: Editorial CSIC, 2008.

4. VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal, Guerra e Restauração (1640-1680). Lisboa: A esfera dos livros, 2006.

5. A proximidade com a obra de Hespanha está na abordagem geográfica, descrevendo a paisagem com detalhes muito precisos que tentam transportar o leitor para o ambiente estudado.

Luiz Felipe Vieira Ferrão – Mestre em História Política pelo Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ e possui especialização em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes. Atualmente é Doutorando em História Social do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, onde é orientado pelo Prof.º Dr. Carlos Ziller Camenietzki. O foco de seu trabalho tem como pano de fundo a Restauração Portuguesa. E-mail: felipevf3@gmail.com


BORGES, Emília Salvado. A Guerra da Restauração no Baixo Alentejo – (1640-1668). Lisboa: Edições Colibri, 2015. Resenha de: FERRÃO, Luiz Felipe Vieira. A guerra vista de longe: o Baixo Alentejo e a Restauração. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.16, p. 238-241, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]

 

Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura | Robert Darnton

Publicado pela Norton, de Nova York, em 2014, Censors at Work: How States Shaped Literature, o mais recente livro de Robert Darnton chegou ao Brasil em 2016 pela Companhia das Letras com tradução de Rubens Figueiredo, como Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura.

Em setembro de 2012, Darnton esteve no programa Roda Viva [1] e dentre vários temas abordados analisou a importância que o historiador deveria dar à pesquisa presencial nos arquivos. Para ele, desta maneira é possível encontrar o que se procura e dar espaço à serendipidade, ambos os movimentos de relevância para o desempenho do ofício.

Desde O grande massacre de gatos, seu primeiro livro no Brasil, saído do prelo da editora Graal em 1986, o historiador apresenta com maestria uma dinâmica que une pesquisa, análise, uso de fontes arquivísticas e escrita da História. Constitui, sem dúvida, um dos mais importantes historiadores do livro e da leitura de nossa época, que busca, a partir de uma metodologia rigorosa tratar de objetos aparentemente não tão evidentes, tomando como ponto de partida perguntas cuja forma de responder evidencia a necessidade do recurso à micro-história com reconstruções que poderiam passar ao largo de pesquisador menos experiente. Com Darnton, os personagens, suas vozes e ações emergem de documentos silentes.

Apesar de vultoso, este seu método segue semelhante como em outros livros de igual sucesso e publicados pela mesma editora que agora traz ao público brasileiro o resultado da sua nova investigação.

A História do Livro e da Leitura na França é uma constante em suas publicações assim como a força e o poder do impresso, seja de livros ou de folhetos, como analisou em O diabo na água benta (2012) ou na rede comunicação provinda de canções na frança oitocentista como nos mostrou em Poesia e Política (2014).

Controle, censor e censura freqüentemente estiveram na linha de conduta de governos ao longo da história. No século XX, caso de nosso país, especificamente a literatura foi alvo em dois momentos, durante o Estado Novo e na Ditadura Militar, antes, no século XIX, as mordaças estiveram nas mãos de Portugal. Para ambos os séculos, historiadores brasileiros ainda se debruçam e analisam os danos causados pelos censores não só na literatura, mas na música, cinema e teatro, no caso do último século.

No que tange às contradições e as diferentes “censuras”, cabe citar um exemplo nacional. De volta ao nosso período colonial, em 2007, no artigo “O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: outra visão da censura” a historiadora Márcia Abreu apresentou análise inovadora, dentro de temporalidade que abrange dois séculos examinando a ação da censura portuguesa nos romances. Com base em documentação impressa e manuscrita, a pesquisadora analisa as contradições e formas de análise do aparato censor para uma mesma obra – por exemplo. Estabelece a clara distinção entre circulação e produção de livros, discutindo os níveis de controle e, sobretudo, a forma de agir dos censores e sua trama no mundo tipográfico.

De igual modo, o autor norte-americano consegue traçar o perfil de alguns censores e das redes que se estabeleciam com as concessões e negociações de privilégios a tipógrafos e autores. Percebeu que, apesar das sucessivas mudanças na organização das instituições e na correlação de forças interna, o controle sobre os livros mantinha inalteradas muitas de suas práticas. Revelou também uma cultura política baseada em concessões, bajulações, trocas de interesses e uma censura que surpreendentemente considerava conveniência política, religiosa e moral, mas também sua qualidade estética. Por fim, um dos grandes méritos do texto foi seccionar uma imagem de uma censura puramente canhesca, maniqueísta e monolítica que havia sido cristalizada por estudos históricos do século XX.

Por essas razões, como método de análise Darnton propõe a etnografia e deixa apenas para as conclusões uma explicação que poderia ter sido apresentada ao leitor no início o livro. Para ele “uma visão etnográfica da censura a trata de maneira holística, como sistema de controle que permeia as instituições, colore as relações humanas e alcança as engrenagens ocultas da alma”. Como sempre traz uma pesquisa documental profunda e rigorosa, o que faz o livro ultrapassar o conteúdo que pretende e ser também um excelente exemplo de metodologia. Reforça que o “trabalho de campo nos arquivos leva o historiador a deparar com exemplos estarrecedores de opressão”.

O autor considera a literatura como um sistema cultural incorporado à ordem social e assim a propõe analisar, ponderando como a censura pode mudar a face da literatura, algumas vezes de forma muito explícita e de outras mais escamoteadas. Com grande brilhantismo, mostra a uma articulação entre temporalidades e contextos díspares, tendo como fio condutor o ato arbitrário do controle estatal das idéias através da censura.

A obra é dividida em três partes que sustentam a pergunta inicial: o que é censura? Para responder, indaga os próprios censores. Dois através dos arquivos – por exercício exegético fabuloso – e o último pessoalmente. Negociações, comprometimento, cumplicidade e negociação, ações que aparecem como práticas transgeracionais entre os censores e censurados. Assim, o livro perpassa três países em três épocas distintas. Em comum: três sistemas autoritários, ilustrando como a cultura política se consolida em cada caso.

Darnton abre o livro a partir da discussão sobre o ciberespaço que no início configurava-se um terreno fértil e livre, mas que com o passar do tempo virou um terreno de disputas, divisão, controle e vigilância. Lança uma questão que deveria estar constantemente em pauta: “será que a tecnologia moderna produziu uma nova forma de poder, que levou a um desequilíbrio entre o papel do Estado e os direitos dos cidadãos?”. A análise retroage ao passado e busca tratar do interior das operações de censura e evidencia que seja hoje ou no passado o objetivo era controlar a comunicação. Buscará na história comparativa a forma para tentar reconstruir a censura tal como operava em três sistemas autoritários: na monarquia dos Bourbon na França do século XVIII, no governo britânico na Índia – o Raj, do século XIX – e na ditadura comunista na Alemanha Oriental, no século XX. O autor considera que “cada um deles vale um estudo particular, mas quando tomados em conjunto e comparados, permitem repensar a história da censura em geral”.

A afirmação de Darnton se confirma ao longo dos capítulos, pois nos trará sistemas e formas distintas de exercer o controle. O autor se posiciona contrário à forma simplória que a censura foi estudada nos últimos cem anos. Parte do princípio de que não podemos falar em “a censura”, mas em censuras, pois elas diferem de acordo com lugares, tempos e personagens, por isso propõem uma abordagem etnográfica do objeto. Ele acredita que é preciso aprofundar a análise da dicotomia “repressão e liberdade” a fim de relativizá-la e perceber seus matizes. Ontem e hoje a censura poder ser muito mais sutil do que se supõe.

O primeiro capítulo, “A França dos Bourbon: privilégio e repressão”, é dividido em oito subseções, mas seu ponto nevrálgico se concentra em “A polícia do livro” e “Um sistema de distribuição: capilares e artérias”. Nele, Darnton articula os mecanismos para concessão de privilégios e mostra a fluidez e as promiscuidades da relação entre censores – em sua maioria professores da Sorbonne – os tipógrafos e autores. A burocracia, que aparece na França em 1750 com seus complexos sistemas de funcionários, simplificou e complicou o trabalho do censor. Eles atuaram praticamente como colaboradores de autores e as dedicatórias agiam como poderoso instrumento, mas era uma faca de dois gumes, pois “uma personalidade pública que aceitasse a dedicatória de um livro o endossava implicitamente e se identificava com ele”. Curioso fato foi que “apesar das disputas ocasionais”, escreve Darnton, “ a censura […] levou os autores e os censures a juntarem-se e não a separá-los”.

Tanto a trama de atuação dos censores quanto os seus critérios descritos por Darnton fazem lembrar o trabalho de Márcia Abreu – citado a cima – para os portugueses no mesmo século XVIII. O historiador americano apesar de mencionar várias vezes que o privilégio estava presente em outras partes da Europa, não nos indica onde ou como começou. Fermín de los Reyes Goméz no artigo “Con privilegio: la exclusiva de edición del libro antigo español”, publicado na Revista General de Información y Documentación (2011), informa que os primeiros privilégios foram conferidos na Itália, em 1469, a pedido de Antonio Caccia em Milão e de Johannes de Spira, primeiro impressor de Veneza. Deixa evidente que era um mecanismo que favorecia muitos tipógrafos e livreiros que a partir de então buscaram a proteção para seus negócios. De certo que não era nada ligado à proteção da propriedade intelectual, mas ao direito e aos regulamentos para exploração do comércio de livros. E assim como Darnton, verificou que o privilégio também englobava as mudanças de formatos do livro, uso de tipos diferentes e etc.

O segundo capítulo avança para o século XIX sob o título “Índia Britânica: liberalismo e imperialismo” e contêm igualmente oito partes, sendo a subseção “Vigilância” o ponto central do período tratado pelo autor. Ele relata o caso de James Long, um missionário anglo-irlandês em Bengala, que tentou “examinar tudo impresso em bengali entre abril de 1857 e abril de 1858”, a fim de ajudar o serviço civil indiano recém-criado a acompanhar o que estava sendo escrito, num esforço para “entender os indianos, não apenas para derrotá-los”, por isso “tudo foi pesquisado, mapeado, classificado e catalogado, incluindo seres humanos […]”. O governo britânico acreditava que para “manter seu império, eles precisavam de informação, que provinha, antes de tudo, do material impresso”. Surpreendidos pela Revolta dos Cipaios, em 1857, o Estado queria se antecipar aos revoltosos, ou seja, conhecer sua filosofia, seus pensamentos – uma justificava usada atualmente para controlar a vida de milhares de cidadãos. Para isso, Long colabora fazendo um levantamento de tudo o que foi impresso em bengalês entre abril de 1857 e abril de 1858, inspecionando as gráficas de Calcutá e comprando todos os livros publicados em 1857.

Darnton apresenta o processo de calúnia que Long sofreu após publicar um livro que tratava de um melodrama sobre a opressão dos trabalhadores nativos por plantadores britânicos. O historiador conclui com a pergunta: “o que se passava nos tribunais do Raj?”. Censura, vigilância e controle. Os britânicos mantinham o poder e exerceram a repressão com mão pesada.

Ao encetar o olhar para este exemplo, Darnton nos induz a pensar e questionar as práticas “justificadas” de controle e vigilância que vivemos hodiernamente no ciberespaço. Conhecer os hábitos, os costumes, a língua são algumas estratégias usadas há séculos como forma de dominação e exercício de poder.

O capítulo três, que adentra o século XX sob o título “Alemanha oriental comunista: planejamento e perseguição”, composto por também oito seções – equidade que mostra mais uma faceta do rigor metodológico do autor. Nesta parte, Darnton lança mão de fontes arquivísticas e de entrevistas com dois censores feitas nos anos de 1990, período em que esteve na Europa pesquisando.

Para compreender a forma de trabalho e o seu sistema, desta vez o historiador utiliza o relato de quem estava por dentro da máquina de censura. Como resultado, é proposto um diagrama – que pode ser adaptado para pesquisas afins – que mostra como funcionou o mecanismo de controle da literatura na RDA.

Ao longo da entrevista são detalhados os mecanismos de duas formas bem antigas de censura: os expurgos, quando parte do conteúdo era apagado ou rasurado e a prévia, quando a manipulação se dava no manuscrito. Tudo isto, baseado em um documento por escrito, o “Plano”, que funcionava como forma de guia sobre assuntos que poderiam ser publicados, mas também de controle sobre determinadas palavras. O entrelaçamento com práticas de censura de outras épocas e lugares é claramente ilustrado com o envolvimento de autores, editores, burocratas, e também leitores. Queria-se um a Alemanha Oriental livre da influência nefasta – assim reputada – do Ocidente, e para isto a literatura foi francamente manipulada.

Não resta dúvida tratar-se de uma obra que se sugere entusiasticamente pelo assunto – que nos interessa sempre – e por mais uma aula de metodologia utilizada por Darnton. O livro inova com sua desafiante análise comparativa envolvendo três séculos – mesmo com as dificuldades e riscos inerentes.

Nota

1. TV Cultura.

Fabiano Cataldo de Azevedo – Bibliotecário, professor assistente da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO. Dourando em História Política do Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. E-mail: barleus@gmail.com


DARNTON, Robert. Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: AZEVEDO, Fabiano Cataldo de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.16, p. 242-246, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]

 

Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem | Eliane Garcindo de Sá

! Ay, señora Juana!

Vusarcé perdone,

y escuche las quejas de un mestizo pobre [2]

 

Um dos temas mais polêmicos e dramáticos do mundo contemporâneo é a invasão de imigrantes africanos ao continente europeu. Assistimos, diariamente, pela mídia, ao drama desses refugiados e à recusa dos países da comunidade europeia em abriga-los, utilizando uma série de subterfúgios. O candidato republicano à presidência da República dos Estados Unidos da América, Donald Trump, acirra o debate anunciando a expulsão do país dos mulçumanos e a construção de um muro para inibir a entrada dos mexicanos em território norte-americano, caso venha a ser presidente. O encontro/confronto entre diferentes culturas e etnias é sempre ameaçador.

Sabemos que essa polêmica não é recente. Cada época marca seu motivo. A verdade é que os movimentos de população permitiram o povoamento do mundo e significaram a expansão de etnias, línguas, religiões e conhecimento num emaranhado processo que dá ao mundo atual os traços de grande diversidade e riqueza cultural.

As chamadas Grandes Navegações, por exemplo, foram responsáveis pela colonização do continente americano a partir do século XVI e significaram a difusão da cultura dos europeus, a qual entrou em choque com as culturas das comunidades indígenas que já habitavam o território. Esse deslocamento populacional foi estimulado pelo expansionismo territorial das potências europeias da época que buscavam fontes de matéria-prima e novos mercados para seus produtos, portanto, tinham motivação geopolítica e econômica. Essa migração aumentou maciçamente no século XIX e começo do XX e resultou, além de outros fatores, na miscigenação dos povos, recriando novas características étnicas e culturais no continente americano.

A historiadora Eliane Garcindo de Sá tem estudado temas sobre o caráter desses deslocamentos e, consequentemente, o encontro/confronto entre diferentes culturas ao longo de sua vida acadêmica. Publicou vários trabalhos científicos, que trazem reflexões originais e marcadamente inovadoras sobre o assunto. A publicação do livro Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a Mestiçagem é resultado do conjunto desses estudos ordenados de forma que permitem acompanhar o desenvolvimento do pensamento da autora. Baseada em significativo estudo de fôlego documental e extensa pesquisa bibliográfica, a obra é muito bem escrita ressaltando a fluidez da narrativa e erudição, colocando de maneira bastante clara os problemas levantados e conduzindo o leitor a refletir sobre questões importantes que ainda afligem nossa sociedade.

A “questão da mestiçagem” na América Ibérica fornece o eixo central em torno do qual se articulam as duas partes em que se divide o livro. Nessa obra, a historiadora também promove o debate, ainda bastante contemporâneo, sobre a tradição do pensamento social latino-americano e, através de múltipla abordagem da cultura mestiça, induz considerações sobre seu imbricamento com a construção simbólica da nacionalidade.

O Prólogo é escrito pelo professor Serge Gruzinski, detentor de alentada obra sobre a conquista e colonização da América. Em seu texto, Gruzinski justifica a opção da autora por uma abordagem latino-americana do tema: “Atualmente, inseridos em uma outra mundialização que passa por redefinição do papel continental e mundial do Brasil, nós não podemos continuar a escrever histórias confinadas na prisão das memórias nacionais”.[3]

A primeira parte do livro, “Mestiço no Universo Colonial”, é composta por quatro textos que esquadrinham uma série de problemáticas relacionadas à cultura mestiça durante o período colonial. A segunda, “Reflexões sobre o Universo Mestiço”, traz quatro textos que compõem as diferentes reflexões da autora sobre o tema. Gruzinski conclui em seu Prólogo:

Ao analisar a questão da mestiçagem, fundamental nas transformações sociais desta parte do mundo, e da emergência das sociedades coloniais, a historiadora carioca nos guia nos meandros do pensamento latinoamericano, de Buenos Aires ao México, de Sarmiento a Vasconcelos da raça cósmica, de Diego Rivera a Candido Portinari.[4]

O texto “Visões das Gentes na Experiência Colonial” dá início à primeira parte do livro e trata do impacto da grande imigração entre os continentes europeu e americano durante os séculos XV e XVI. Esse “encontro/confronto” entre sociedades e culturas distintas desorganiza todas as referências socioculturais de ambos os lados, forçando novas conexões, crenças e valores. Eliane assinala que “diante da novidade de descobertas de outras terras e outras gentes, diante do desafio das diferenças e estranhamentos” os protagonistas da formação da nova sociedade “elaboram produção em que expõem a construção de referências”.[5] Como suporte às suas reflexões, a autora usa obras dos cronistas Garcilaso de la Vega, Frei Vicente do Salvador, Felipe Guamán Poma de Ayala e Ambrósio Fernandes Brandão.

Nos três textos seguintes, “Entre os papéis da Audiência de Lima: as imagens dos mestizos”, “Os Cronistas e a Construção da Representação do Mestizo” e “Inca Garcilaso de la Vega: a representação do mestizo”, a autora optou por discutir aspectos necessários para fundamentar seus argumentos a respeito das diferentes conotações e representações sobre a palavra mestizo. Eliane Garcindo de Sá chama a atenção para o fato de que:

Os sistemas de representação forjados nas sociedades coloniais decorreram radicalmente da insuficiência patente dos recursos anteriormente disponíveis entre as sociedades “originais” em confronto. A intromissão de novos elementos obrigou à criação de novas designações, nomeações […].[6]

Essa complexidade de referências e significados é estudada com base na riquíssima documentação da Audiência de Lima (1543-1620) [7] em cotejo com os cronistas, o mestiço Inca Garcilaso de La Vega e o índio Felipe Guamán Poma de Ayala.

A segunda parte tem início com o artigo intitulado “Um Mundo ‘Uno’”, seguido de outro denominado “Ocidentalização” onde a autora analisa os efeitos da mundialização/ocidentalização nas sociedades hispano-americanas e a convergência de visões apocalípticas que marcaram os primeiros anos da Conquista da América. A historiadora ressalta a importância dos trabalhos de Serge Gruzinski, particularmente La penseé métisse [8] e a Primeira América, [9] este escrito em conjunto com Carmen Bernand, os quais consolidam questões pertinentes à ocidentalização e à perda de identidade/alteridade entre conquistadores e conquistados. O primeiro texto termina com a afirmação: “O mestiço foi, sem dúvida, um ‘outro’ construído”.[10]

Dois outros artigos compõem esse segundo bloco: “Raça Cósmica” e “Mestiço Ideal”. Chega-se, assim, à questão que norteia o pensamento da autora: por qual motivo e como se formou, no imaginário de alguns indivíduos, a conexão entre a mestiçagem e um complexo emaranhado de representações? O mexicano Jose Vasconcelos sugere uma “raça final”, a “raça cósmica”, idealiza uma “raça feita com o tesouro de todas as outras, cósmica, apontando para uma síntese superadora de uma questão que se coloca na região […]”.[11] Segundo a autora, para Vasconcelos “a mestiçagem era uma marca de originalidade ibero-americana, qualidade que marcaria as diferenças entre as sociedades na América ibérica, América anglo-saxã e ‘Velho Mundo’”,[12] entretanto o autor retira da conotação do vocábulo a negatividade presente em muitos outros escritores e cronistas.

Já o peruano Inca Garcilaso de la Vega, “diante de condições muito específicas de sua trajetória construiu e protagonizou o personagem do mestiço, que se construiu em referência dessa representação e do mito, com o qual se confunde”.[13] Garcilaso, o mestiço culto que superou sua condição social, passa a representar e referenciar o modelo do mestiço ideal. Entretanto, ao contrário de Vasconcelos, o Inca Garcilaso deixa indícios de sua visão negativa do mestiço e da mestiçagem. Nessas circunstâncias, os temas étnicos estarão no centro da discussão sobre identidade e carácter dos povos. Esse é outro ponto interessante das reflexões da autora buscando articulação entre a mestiçagem e os atributos que vão constituir as sociedades nacionais. O grande dilema dos protagonistas da independência da América espanhola foi o redimensionamento da questão nacional com a composição étnica, cuja grande maioria de negros, índios e mestiços, necessariamente teriam que estar incluídos nos projetos nacionais nascentes.

Em “Considerações Finais”, a epígrafe que abre o texto sintetiza determinadas ideias daquele contexto envolto pelo estranhamento dos “diferentes” e referências imagéticas desse confronto/encontro. Em sua fala, Garcilaso ressalta o confronto de visões em relação ao próprio continente: “[…] que no hay más que un mundo, y aunque llamamos Mundo Viejo y Mundo Nuevo, es por haberse descubierto éste nuevamente para nosotros, y no porque sean dos, sino todo uno”.[14] O cronista, que transitou nos “dois mundos”, não os entende divididos, mas como parte de uma mesma formação social, histórica e cultural. A historiadora considera que o conceito de pensamento mestiço cunhado por Serge Gruzinski é importante categoria de análise para o confronto de questões impostas pelas relações sociais durante o período de conquista. É com base nesse referencial que Eliane Garcindo de Sá conclui sua exposição de ideias: “A intensificação e o aprofundamento da mundialização, os efeitos da globalização, potencializam o fluxo e as contradições das relações entre as sociedades e suas parcelas, entre cada um e cada grupo que se autorreferencia ou é visto como um outro”.[15]

Não se pode deixar de mencionar as ilustrações selecionadas para o livro, uma vez que completam e corroboram o discurso que fundamenta a obra. No primeiro grupo, encontram-se seis ilustrações de Felipe Guamán Poma de Ayala onde, na narrativa sobre a conquista, escrevia e desenhava os acontecimentos que queria relatar. No segundo, Eliane recorre a diferentes artistas, Cândido Portinari, Jose Clemente Orozco, Diego Rivera e Emiliano Di Cavalcanti, e, através da linguagem plástica, complementa os significados com diferentes representações sobre o mestiço.

Assim, nos oito textos que compõem o livro, a historiadora consegue demonstrar sem observância cronológica rígida, porém obedecendo determinada linha de tempo, as condições que permitiram a formação de uma cultura mestiça e seus desdobramentos. Essa visão da autora está consubstanciada nas relações de encontro/confronto como nos processos de mundialização e ocidentalização. Nesse sentido, o trabalho apresenta o panorama geral das diligências da autora sobre o tema e fomenta impacto no ambiente acadêmico, uma vez que as discussões de questões relativas à mestiçagem, particularmente em países miscigenados como os da América Latina, são sempre muito relevantes. Por outro lado, as reflexões sobre raças e etnias são questões contundentes para sociedades contemporâneas na luta contra o racismo e a discriminação étnica-cultural.

Em suma, pode-se dizer que a obra de Eliane Garcindo de Sá discute, de forma muito precisa, mas dialética, problemas que contribuem de maneira importante para a compreensão de referências que explicam, em parte, nosso preconceito contra o “outro”. A documentação é densamente trabalhada, e as obras dos cronistas analisadas nos textos avaliam a presença e a função dessas obras nos contextos anterior e posterior à conquista da América. A emergência dessas ideias e as condições que permitiram a mobilização em uma sociedade majoritariamente indígena é parte relevante da obra.

O livro apresenta uma das mais importantes análises sobre a ”questão da mestiçagem”. A publicação da obra referenda e demonstra a complexidade de determinadas visões consolidadas sobre aquela que foi, e talvez ainda seja, a principal matriz histórica e cultural do continente latino-americano.

Notas

2 OQUENDO, Marco Rosas de. Nova Espanha: finais do século XVI. In: GONZÁLEZ, Luiz. El encontro de la conquista: sesenta testemonios. Mexico: Cien-SEP, 1984. p. 234-236.

3 CNRS – Centre National de la Recherché Scientifique; EHESS – L’Ecole des Hautes Estudes en Sciences Sociales. Princeton University.

4 GRUZINSKI, Serge. In: GARCINDO DE SÁ, Eliane. Universo Mestiço: resenha de Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Prólogo.

5 GARCINDO DE SÁ, Eliane. Op. cit., p. 29.

6 Id., p. 63.

7 Na parte dedicada às fontes, p. 305-313, a autora identifica toda a documentação pesquisada na Audiência de Lima.

8 GRUZINSKI, Serge. La Pensée Métisse. Paris, Éditions Fayard, 1999.

9 BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. In: Historia de Nuevo Mundo 2: (1550-1640). Mexico: Fondo de Cultura Econòmia, 1999.

10 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 61.

11 VASCONCELOS, José. La raza cósmica. Mexico: Espasa-Calpe Mexicana SA, 1948.

12 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 199.

13 VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios Reales. 1ª parte. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 1985.

14 Id., p. 159.

15 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 270.

Francisca Nogueira de Azevedo – Historiadora, professora associada do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Autora do livro Carlota Joaquina – na Corte do Brasil, Civilização Brasileira, 2003. E-mail: franciscazevedo@uol.com.br


GARCINDO DE SÁ, Eliane. Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2013. Resenha de: AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.15, p. 221-225, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

 

Books and Periodicals in Brazil 1768-1930: a Transatlantic Perspective | Ana Cláudia Suriani da Silva e Sandra Guardini Vasconcelos

Publicado na Inglaterra no final de 2014, Books and Periodicals in Brazil 1768- 1930: a Transatlantic Perspective é o primeiro volume dedicado ao Brasil a integrar a série “Studies in Hispanic and Lusophone Culture”. É o nono livro a ser publicado nesta série, voltada prioritariamente para os estudos literários. As organizadoras, Ana Cláudia Suriani da Silva e Sandra Guardini Vasconcelos, são, respectivamente, professora (lecturer) de estudos brasileiros na University College London e professora titular de língua e literatura inglesa na Universidade de São Paulo. A julgar pelas temáticas abordadas e os nomes envolvidos, o livro parece ser fruto, direto ou indireto, do projeto de cooperação internacional “A circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século XIX”, coordenado por Márcia Abreu e Jean-Yves Mollier. Sendo assim, suscita comparação com outro volume editado em 2014, A circulação transatlântica dos impressos – conexões, organizado por Márcia Abreu e Marisa Midori Deaecto, e publicado por meio digital pela Unicamp.1 Por questões de espaço, no entanto, a presente resenha irá tratar unicamente do livro em língua inglesa, que talvez seja de acesso mais difícil para pesquisadores no Brasil.

Na introdução, as organizadoras ressaltam que não há publicação recente em língua inglesa voltada exclusivamente para a temática dos livros e impressos brasileiros. Apesar da grande quantidade de estudos realizados nessa área nos últimos trinta anos, quem não lê português (ou, pelo menos, francês) fica restrito praticamente ao Books in Brazil: a History of the Publishing Trade, de Laurence Hallewell, publicado originalmente em 1982, antes de ganhar fama em sua edição brasileira de 1985. De fato, existe uma discrepância muito grande entre o chamado ”estado da arte” do campo, no Brasil, e sua percepção por estudiosos estrangeiros. Nesse sentido, é oportuna a iniciativa de dedicar um volume da série “Studies in Hispanic and Lusophone Culture” ao assunto. Infelizmente, o presente volume preenche essa lacuna apenas em parte e de modo bastante desigual.

A circulação dos impressos é assunto fascinante e complexo não somente por sua capacidade de atravessar fronteiras geográficas, mas também disciplinares. Por ser um ponto de cruzamento entre saberes literários (escrita e autoria), artísticos (design e ilustração), tecnológicos (impressão e fabricação), sociológicos (sociabilidade e práticas de leitura), econômicos (comércio e mercado), políticos (censura e propaganda), assim como entre os aspectos propriamente editoriais e jornalísticos, trata-se de uma área que requer conhecimentos múltiplos e abordagens fortemente transdisciplinares. Um livro que busca apresentar o público estrangeiro à “pletora de materiais – teses, livros, artigos e números especiais de periódicos”,2 dedicados ao assunto nos últimos anos teria obrigação de tentar abordar, minimamente que fosse, cada um desses saberes, oferecendo um corte transversal do campo de estudos e fornecendo pistas para que o leitor pudesse buscar se aprofundar. Embora o volume em questão cumpra bem a promessa de oferecer uma perspectiva transatlântica – e, portanto, transcultural –, ele tropeça no desafio de elaborar um painel transdisciplinar do seu objeto de estudos. Sua visão da história dos impressos é voltada prioritariamente para um entendimento literário, com alguma atenção para práticas de leitura, sociabilidades e, em muito menor grau, questões políticas. As dimensões material (papel e tipografia), tecnológica (máquinas) e trabalhista (operários e empresas) – tão importantes no século que viu nascer a indústria gráfica – são praticamente ignoradas, assim como o são as facetas artísticas e gráficas de projeto e construção do impresso, que não recebem nenhuma consideração.

Mais grave ainda, o volume não cumpre a promessa, subentendida em seu título, de oferecer um panorama representativo da história dos livros e dos periódicos no período em foco. Como falar dos periódicos dessa época sem mencionar uma única vez Semana Ilustrada ou Revista Ilustrada; Careta, Fon-Fon ou O Malho? Apesar de a capa do livro estampar uma imagem retirada do famoso semanário de Henrique Fleiüss, nem a Semana, nem as produções do concorrente Angelo Agostini são referidas ao longo dos quatorze ensaios que o compõem. Igualmente omitidos da discussão estão figuras essenciais como Raphael Bordallo Pinheiro, Julião Machado e Correia Dias, candidatos mais do que óbvios a um estudo que se propõe ”transatlântico”. Francisco de Paula Brito, um dos maiores editores brasileiros do século XIX, ganha apenas duas menções passageiras – uma como autor3 e a segunda numa tabela, listado entre outros editores4 – e não há nenhuma a Benjamim Costallat, o editor-escritor que provocou um terremoto no meio editorial brasileiro à época em que o furacão de Monteiro Lobato ainda não passava de um vendaval. Hipólito da Costa, José da Silva Lisboa, Sisson, Lombaerts, Weiszflog, Rui Barbosa, Rodrigo Octavio, Edmundo Bittencourt, Humberto de Campos, Pimenta de Mello, J. Carlos, Raul Pederneiras, entre muitos e muitos outros são nomes cuja importância para a imprensa e os impressos o livro parece ignorar.

As omissões se estendem para um número significativo de estudiosos que têm se debruçado sobre aspectos da história dos impressos em anos recentes. Não há nenhuma referência (nem na bibliografia) aos escritos de Cláudia de Oliveira, Gilberto Maringoni, Isabel Lustosa, Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, Marcelo Balaban, Marize Malta, Mônica Pimenta Velloso, Paulo Knauss, Rafael Cardoso (autor desta resenha), Renata Santos, Vera Lins – responsáveis conjuntamente por quase duas dezenas de livros sobre a história dos impressos, ao longo da última década – e muitos outros que ainda não tiveram ocasião de publicar um livro, mas cujos trabalhos estão amplamente disponíveis em forma de artigos. Esse fato evidencia uma preocupante tendência a tomar o grupo do qual se participa como único parâmetro e divulgá-lo no exterior como representante do Brasil como um todo. Feita essa crítica, deve-se elogiar o esforço das organizadoras para constituir uma rede, à medida que os autores representam instituições de São Paulo (9), Rio de Janeiro (3), Rio Grande do Sul (2), Minas Gerais (1) e Paraná (1), além de duas do exterior.

O volume começa com uma introdução, assinada pelas organizadoras, que busca situar a problemática do livro e da leitura em um país conhecido historicamente por suas taxas altas de analfabetismo e pouca atenção à cultura letrada. Essa tarefa é cumprida de modo sucinto (4 páginas), passando rapidamente para um apanhado do conteúdo, capítulo a capítulo. O caráter um tanto apressado da introdução é indicativo de certas falhas recorrentes ao longo do livro. É uma pena que, logo no início, o texto seja prejudicado por uma tradução bastante deficiente. Ao que indicam os agradecimentos, os ensaios foram vertidos para o inglês, e posteriormente revisados, por grupo grande de pessoas. A falta de uniformidade da linguagem, de um capítulo para outro, sugere que não foi feito esforço suficiente de padronização editorial. A maioria dos ensaios evidencia domínio bom ou muito bom da escrita inglesa (capítulos 4, 5, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14); outros, uma fluidez ainda razoável (capítulos 1, 2, 6). Os demais, porém, trazem erros que dificultam a compreensão de pontos mais nuançados e deixam dúvidas sobre o sentido de citações brasileiras – que, no mais das vezes, não são dadas no original. Essa desatenção para com a qualidade da linguagem estende-se também à revisão editorial no sentido geral. Em certos pontos do livro ocorrem remissões a nomes, fatos ou dados faltantes. Em outros, opções de terminologia causam confusão desnecessária – e.g., a imprecisão de datas e nomenclatura que cerca o uso do termo ”Império” ou, ainda, a decisão incompreensível de creditar o nome da Fundação Biblioteca Nacional como “National Library of Rio de Janeiro”.

O primeiro capítulo, de Márcia Abreu, intitulado “Reading in Colonial Brazil”, tenta desfazer a impressão equivocada de que não se lia no Brasil colonial. A autora vem explorando o assunto de modo sistemático desde antes do seu O caminho dos livros (2003), e traça aqui a circulação de livros de Portugal para o Brasil por meio de pedidos de autorização à Mesa Censória, à Mesa do Desembargo do Paço e ao Santo Ofício. Embora acrescente pouco de novo para quem já conhece seus trabalhos anteriores (sendo versão atualizada de texto publicado em português, em 2002), a inclusão desse capítulo logo no início do volume ajuda a estabelecer algumas questões de fundo, suprindo sua falta na introdução. O argumento central – de que as pessoas no Brasil-Colônia liam sim, mas não necessariamente o que era preconizado pelas autoridades morais e intelectuais da época ou por estudiosos posteriores – continua instigante, mesmo que esteja menos bem elaborado aqui do que em outras produções da autora.

O segundo capítulo, “Booksellers in Rio de Janeiro: the Book Trade and Circulation of Ideas from 1808 to 1831”, de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, é contribuição exemplar da função que deveria servir esse volume. Ao consolidar informações oriundas de anos de pesquisa e expô-las de modo sistemático, o ensaio traça um panorama geral do comércio livreiro visto por intermédio dos anúncios publicados na imprensa da época. Trata-se de apanhado seguro e sólido, capaz de abrir para o leitor estrangeiro uma visão equilibrada do assunto e apontar as principais discussões e referências da atualidade. Seu êxito em realizar esses propósitos contrasta com a ausência de ensaios que façam o mesmo para outros grandes temas: por exemplo, o comércio livreiro e o meio editorial durante o Segundo Reinado.

O terceiro capítulo, “Seditious Books and Ideas of Revolution in Brazil (1830-71)”, de Marisa Midori Deaecto e Lincoln Secco, promete uma discussão interessantíssima, mas fica no limite de aprofundar-se nela. Ao focar as personalidades de Libero Badaró e Álvares de Azevedo, mais importantes para o contexto paulista, o texto passa batido pela influência maior do ideário socialista no Brasil, que abarca a Revolução Praieira e outros movimentos de contestação. O Socialismo (1855), do general Abreu e Lima – talvez o exemplo mais notório de um livro com potencial sedicioso no período –, é descontado em três linhas. Além de ser prejudicado pela tradução, o ensaio embasa-se num arcabouço teórico e metodológico bastante frágil, com dependência excessiva sobre uma historiografia datada e certos momentos alarmantes em que arrisca conjecturas a partir de evidências como anotações anônimas a lápis em exemplares de livros encontrados em sebos. Há pouco sentido em incluir uma pesquisa de caráter tão exploratório num volume voltado para o público estrangeiro.

O capítulo 4, “Migratory Literary Forms: British Novels in Nineteenth-century Brazil”, de Sandra Guardini Vasconcelos, trata do impacto dos romances britânicos sobre o fazer literário no Brasil, demonstrando a insuficiência do modelo histórico que quer ver a França como matriz única ou primordial. Trata-se de outra contribuição sólida, que situa o leitor em relação a grandes temas como: surgimento do romance, repertório e cânone no Brasil, empréstimos e migrações, tomando cuidado sempre para relacionar esses fenômenos no campo literário com questões sociais maiores, como o lugar da mulher na sociedade patriarcal.

O capítulo 5, “The Library that Disappeared: the Rio de Janeiro British Subscription Library”, de Nelson Schapochnik, é de vivo interesse para especialistas no campo abrangido pelo livro. Com trinta páginas, trata-se do ensaio de mais fôlego do volume e destaca-se também como um dos poucos que traz quantidade de informações novas. Esse texto constitui um aporte valioso para a historiografia do campo, ao traçar a história da biblioteca que atendeu à comunidade britânica do Rio de Janeiro entre 1826 e 1892. O autor retoma, assim, e consolida o que já havia publicado sobre o mesmo assunto para o projeto temático “Caminhos dos Romance no Brasil séculos XVIII e XIX”.

O capítulo 6, “The History of a Pseudo-Dumas Novel: The Hand of the Dead”, de Paulo Motta Oliveira, trata de assunto interessante, porém de relevância apenas tangencial. A trajetória do romance A mão do finado, lançado pelo autor português Alfredo Hogan, em 1853, como sequência apócrifa ao Conde de Monte Cristo, é narrada em minúcia. Em meio à sua estranha carreira internacional, o livro teve aparições sucessivas no contexto brasileiro – algumas movidas pela ganância editorial da década de 1950. Além de sua incongruência com relação ao recorte do volume, o ensaio baseia-se em pesquisa ainda incompleta – suscitando conclusões “vagas e incertas”,5 no dizer do autor – e, portanto, a decisão de incluí-lo é temerária.

O capítulo 7, “Revista Nacional e Estrangeira (1839-40): a Foreign or a Brazilian Magazine?”, de Maria Eulália Ramicelli, aborda a questão crucial da relação entre ”nacional” e ”estrangeiro” na historiografia das revistas do século XIX. É difícil determinar o caráter nacional de muitos periódicos publicados durante o período em que cultura brasileira ainda era conceito em plena formação. Assim, várias revistas têm sido subestimadas por estudiosos de cepa nacionalista, por conta do seu recurso a textos e clichês importados ou por serem escritas em idiomas outros que o português. Apesar da relevância do tema, o ensaio se perde no desequilíbrio entre abstrações mal digeridas (e.g., ”classe dirigente”, “ideologia burguesa”) e uma compreensão nem sempre matizada do contexto político imediato dos anos finais da Regência.

O capítulo 8, “The Role of the Press in the Incorporation of Brazil into the Paris Fashion System”, de Ana Cláudia Suriani da Silva, volta suas atenções para o papel da imprensa em divulgar a moda no Brasil e elege o Correio das Modas como aquele que “estabeleceu o padrão para as revistas de moda”.6 Feita essa constatação, porém, a sequência do texto não se aprofunda na análise da revista, lamentavelmente. Prejudicado pela tradução problemática, o texto incorre numa série de afirmações confusas ou duvidosas – como, por exemplo, que “o Brasil fazia parte do sistema de moda parisiense antes que fosse consolidado”.7 Aliás, o próprio conceito de um ”sistema parisiense de moda” – pego de empréstimo a um estudo sobre o mundo da moda atual – assenta-se de maneira pouco confortável sobre o figurino do século XIX.

Uma pequena preciosidade do livro é o capítulo 9, “The Brazilian and the French Bas de Page”, de Lúcia Granja, pois recapitula a evolução da crônica jornalística, de modo comparativo entre Brasil e França. O texto retoma, assim, o importante trabalho de Marlyse Meyer sobre a história do folhetim, bem como as investigações anteriores da própria autora sobre esse tema. Juntando leitura detalhada de textos de época a um olhar atento para questões de diagramação da página, o ensaio oferece um apanhado instigante dos paralelos e das diferenças entre o que se fazia no Rio, sob influência francesa, e o que se passava na França. Afasta assim – sem grande alarde, mas com eficácia – a questão capciosa da cópia ou importação de modelos, e abre perspectivas para compreender melhor a natureza das inovações operadas no contexto brasileiro.

O capítulo 10, “How to be a Professional Writer in Nineteenth-century Brazil”, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, é a terceira contribuição de peso ao propósito de mapear o território brasileiro para o público estrangeiro. Trazendo uma discussão arejada das questões de direitos autorais e contratos editoriais, o ensaio traça um histórico da evolução das relações entre escritores, editores e legislação, calcado em leitura abrangente e pesquisa minuciosa. As autoras dão seguimento, assim, ao trabalho iniciado com seu importante O preço da leitura (2001). Um único problema de tradução, bastante grave, exemplifica as falhas de revisão do livro. Os estabelecimentos editoriais chamados de “tipografia”, no contexto brasileiro, são denominados reiteradamente de ”typography” e “typographer” – termos usados, em língua inglesa, exclusivamente para referir questões gráficas ligadas ao desenho e a fundição de tipos. O leitor monoglota terá dificuldade para entender, portanto, por que o autor brasileiro da época precisava conseguir “o acordo dos tipógrafos para publicar um livro”.8

O capítulo 11, “Print Technologies, World News and Narrative Form in Machado de Assis”, de Jussara Menezes Quadros, traz uma reflexão inteligente sobre o lugar do telégrafo e das incipientes agências de notícias na escrita de Machado. Contudo, a análise das “tecnologias de impressão”, prometida no título, fica limitada à sua influência indireta sobre formas narrativas. Trata-se mais de discutir as angústias e os entusiasmos provocados pela percepção de modernização das comunicações do que investigar qualquer impacto das novas tecnologias sobre os impressos. Embora não corresponda à intenção da autora, a presença do seu ensaio acaba por realçar a indiferença do volume com relação à materialidade dos objetos impressos. Tecnologia, aqui, é uma ideia literária, mais do que um fator concreto de transformação. O capítulo é o único que menciona – muito embora, não discuta – o advento da fotografia como inovação de relevância para os meios de comunicação no período.

O estudo de caso mais instigante do livro é o capítulo 12, “The Brazilian Book Market in Portugal”, de Patrícia de Jesus Palma. Comportando quantidade de informações desconhecidas, pelo menos daqueles estudiosos que miram seu olhar míope no Brasil como cultura insular, o ensaio oferece uma análise perspicaz e crítica do mercado para livros brasileiros em Portugal durante a segunda metade do século XIX. O foco é a figura de Ernesto Chardron, livreiro francês radicado no Porto, cuja atuação, em parceria com Camilo Castelo Branco, ajuda a desvendar alguns segredos da intrincada relação de chamego e despeito que une Portugal e Brasil. O ensaio contribui, com muito, para uma compreensão transcultural do meio editorial oitocentista.

O capítulo 13, “Popular Editions and Best-sellers at the End of the Nineteenth Century in Brazil”, de Alessandra El Far, é mais um ensaio a cumprir de modo exemplar a função que deveria servir esse volume. Partindo de pesquisas divulgadas em seus trabalhos anteriores – em especial, Páginas de sensação (2004) –, a autora pinta um quadro sucinto e animado das edições populares, dos romances de sensação e dos romances para homens que constituíram filão importantíssimo do mercado editorial brasileiro entre as décadas de 1880 e 1890. Bem fundamentado e escrito com vivacidade, o texto oferece ao leitor estrangeiro um estudo autorizado da primeira modernização do público leitor e das editoras, desfazendo velhos lugares comuns e iluminando práticas sociais correntes.

O capítulo 14, “The Brazilian Publishing Industry at the Beginning of the Twentieth Century: the Path of Monteiro Lobato”, de Cilza Bignotto e Milena Ribeiro Martins, parte do pressuposto batido e errôneo, atribuído a Hallewell, de que Monteiro Lobato “revolucionou a indústria editorial então estagnada do país”9 Lida na sequência do ensaio anterior, essa afirmação soa quase cômica. Mais uma vez, fez falta uma revisão editorial que assegurasse maior harmonia entre as partes do livro. De resto, sem grandes novidades em relação à polpuda bibliografia existente, o ensaio oferece um resumo da atuação editorial de Monteiro Lobato, assim como sua formação intelectual, destacando seus elos com o mercado argentino. O discurso nacionalista do grande editor é tomado, de modo acrítico, como virtude. Não se oferece ao leitor estrangeiro uma janela, ao menos, para entrever o lado mais obscuro do polemista que se deixou associar ao Integralismo, ao antissemitismo e a outras causas menos do que nobres.

Com esse último capítulo, voltado umbilicalmente para certo ufanismo paulista, o livro reafirma os limites de sua capacidade de dimensionar para o público estrangeiro a história dos impressos no Brasil. O saldo são cinco ensaios sólidos de fundo geral e quatro estudos de caso excepcionais. Se os cinco ensaios restantes tivessem sido substituídos por outros que abarcassem as temáticas faltantes – em especial, questões ligadas a materialidade e tecnologias – e incluíssem pelo menos alguns dos muitos autores ignorados – em especial, os que atuam no Rio de Janeiro –, aí, sim, teríamos um livro que poderia redefinir o “estado da arte” do campo.

Notas

1. Disponível em: http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/index.php?cd=3&lang=pt

2. p. 5.

3. p.80-81.

4. p.155.

5. p.130.

6. p. 157.

7. p.153.

8. p. 182.

9. p.245.

Rafael Cardoso – É escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art (Londres), professor colaborador do programa de pós-graduação do Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autor/organizador dos livros Impresso no Brasil, 1808-1930: Destaques da história gráfica no acervo da Biblioteca Nacional (Verso Brasil, 2009) e O design brasileiro antes do design: Aspectos sociais no Brasil, séculos XIX e XX.E-mail: rafaelcardoso.email@gmail.com


SILVA, Ana Cláudia Suriani da; VASCONCELOS, Sandra Guardini (Orgs.). Books and Periodicals in Brazil 1768-1930: a Transatlantic Perspective. Londres: Legenda; Modern Humanities Research Association and Maney Publishing, 2014. Resenha de: CARDOSO, Rafael. Impressões do Brasil. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.12, n.14, p. 153-160, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975 | Alessandra GAsparotto

O livro é resultado de uma adaptação da dissertação de mestrado de Alessandra Gasparotto, agraciada com o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas 2010. Portanto, a obra cumpre com o pré-requisito de reunir informações relevantes sobre os fatos da história política recente no país a partir de meticulosa pesquisa.

O tema desenvolvido é o dos “arrependimentos” durante a ditadura civil-miliar no Brasil, em que jovens militantes de esquerda foram apresentados aos veículos de comunicação entre 1970 e 1975, renegando suas atividades na luta-armada e oposição ao regime imposto em 1964. Como apurado no livro, “as retratações eram apresentadas na forma de manifestações públicas, entrevistas coletivas, cartas escritas “de próprio punho” e aparições em programas de televisão, além de declarações de arrependimento atribuídas aos militantes por autoridades policiais e militares”. A autora coloca os termos “arrependidos” ou “arrependimento” sempre em itálico, pois considera que foram construídos pelo regime autoritário e pela imprensa da época.

Através de 42 casos referidos no livro, fica evidente que o período de maior incidência desses casos deu-se entre 1970 e 1971, porém o artifício estendeu-se de forma esporádica até 1975. A estratégia do regime foi a de apresentar uma mudança radical no posicionamento e no sentido das ações de antigos militantes que lutaram conta ele de armas na mão. Uma vez “arrependidos”, passavam a defensores do regime ao qual combateram. Essas retratações eram tidas como ações individuais, de militantes que se arrependeram da luta por aquisição de consciência de seus erros, foram exploradas com o objetivo apontar a fraqueza moral da esquerda e, principalmente, da luta armada.

Apresentados como “terroristas arrependidos”, também chamados na época de “desbundados” os militantes tiveram suas vidas sujeitadas à exposição, ganhando muito destaque na mídia nacional. Em alguns casos os protagonistas nunca foram perdoados pela suposta delação ou abandono da causa. Seus atos repercutiram “nas celas dos presídios, no isolamento da clandestinidade ou do exílio, foram recebidos como traição”, observa a autora. O tema nebuloso da traição e do arrependimento é tratado de forma madura, sem explicações simplistas e sem julgamentos de valores precipitados.

Preocupada em contextualizar de forma criteriosa e não repetir a desqualificação a qual foram submetidos por longos anos os “arrependidos”, a autora transita pela bibliografia do tema ditadura civil-militar com desenvoltura e naturalidade, dando assim um sentido acurado na análise de suas fontes primárias que são diversas e muito qualificadas: jornais, revistas, vídeos feitos para televisão, entrevistas pela internet, entrevistas com os “arrependidos” e familiares. Dessa maneira, Gasparotto dá voz as suas fontes, mas coteja suas posições com outros dados e caminhos de forma equilibrada, fazendo um balanço contextualizado e jamais anacrônico ou abusivo.

Merece destaque no livro, além de toda a construção teórico-metodológica clara, a abordagem muito bem articulada na reconstrução dos passos do primeiro grupo de “arrependidos” tornado público em 22/5/1970 no Rio Grande do Sul e veiculado com destaque pela televisão e nas capas de três dos principais jornais de Porto Alegre. Mobilizados por Rômulo Fontes, um grupo de cinco jovens chegou a tecer elogios ao governo do presidente Médici e sua realizações. Essa retratação serviu como pedra basilar na construção de uma estratégia de retratações. Foi de fato uma manifestação arquitetada pelos militantes “arrependidos”, porém o episódio espontâneo deu o tom para uma série de outros “arrependimentos”, ora negociados com contrapartidas de redução de penas ou liberdade, ora impostos a partir de brutal tortura. Também deu margem para diversos convites ao arrependimento e, ainda, falsificação ou alegação de arrependimentos. Então, se houve um movimento espontâneo, ele foi logo ampliado e transformado em ação psicológica para atingir a população, seus desdobramentos contaram com o terrorismo de Estado como meio de convencimento para os reticentes.

Pouco depois do primeiro caso de arrependimento, ganhou notoriedade o caso de Massafumi Yoshinaga de 21 anos, cuja entrevista foi exibida na TV Tupi de São Paulo, no Telejornal Ultra-Notícias do Dia, também foi capa da Revista Veja. Yoshinaga teria sido inclusive referido em discurso do próprio Presidente segundo a Folha de São Paulo em 4 de julho de 1970, e sua manchete “Médici indica o caminho da reconciliação”. O teor da matéria dava voz ao Presidente da República: “afirmou que a política nacionalista de desenvolvimento é o caminho para vencer o terrorismo e reconciliar o país, unindo a todos no esforço para a construção de um futuro promissor”. Médici ainda teria citado “o caso do ex-terrorista Massafumi Yoshinaga, que se entregou às autoridades em São Paulo, impressionado pelas recentes iniciativas do Governo”. Anos mais tarde, sem conseguir estabilidade emocional o jovem Yoshinaga suicidou-se.

Ainda no campo dos casos célebres, a autora dedica uma análise considerável a Celso Lungaretti. Foi tratado de forma muito dura, durante muitos anos por antigos militantes da esquerda que o responsabilizavam, ao que tudo indica injustamente, pela delação de um campo de treinamento da VPR. Ao ser apresentado na televisão, Lungaretti havia sido terrivelmente torturado.

“Foi assim que, na noite do dia 9 de julho de 1970, durante a exibição do Jornal Nacional, os telespectadores da TV Globo que esperavam por mais um capítulo da novela Irmãos Coragem, grande sucesso da época, viram-se surpreendidos pela aparição de Lungaretti – um jovem franzino, de 19 anos e aparência abatida, que renegou sua militância política, negou a tortura nos porões do regime, fez um apelo à juventude para que não ingressasse na luta armada e chegou até mesmo a elogiar algumas obras do Presidente Médici” (Gasparotto, 76-77).

Os anos do governo Médici atestam a face mais dura do regime, mas também revelam a mídia em estreita colaboração com o regime na desqualificação de seus opositores. A televisão foi vista como veículo apropriado para atingir o ambiente psicossocial dos grandes centros urbanos, sua utilização foi priorizada por uma ótica de comunicação capaz de mobilizar e sensibilizar a opinião pública ao mesmo tempo em que ela própria, a TV, se valia do tema do “terrorismo arrependido” para e aumentar os índices de audiência.

Ao longo de seu trabalho Alessandra Gasparotto não somente localiza, data, organiza e expõe de forma consistente como foram explorados na época através da televisão e das páginas de jornal as retratações públicas dos ditos “arrependidos”. Na verdade, ela investiga, dá voz e valoriza a subjetividade dos envolvidos, interpreta resgatando memórias e construindo a história como deve ser; rica e plural. A construção do objeto de sua pesquisa é minuciosamente desenvolvida, sem que isso prejudique a narrativa e a compreensão do leitor, seu rigor não é rigidez, mas compromisso com os personagens, com o contexto, com a memória e com a história, buscado na fluidez de sua escrita e nos filtros de diferentes prismas e fontes. Livro essencial para quem estuda a história do período da ditadura Civil-militar, livro essencial para a memória do Brasil.

Nilo Andé Piana der Castro –  Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. Resenha de: CASTRO, Nilo Andé Piana der. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.11, p. 138-140, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

 

Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII | Robert Darnton

O historiador norte-americano Robert Darnton, amplamente conhecido no ambiente acadêmico brasileiro, é um dos grandes pesquisadores da história intelectual do século XVIII – um tema que geralmente abrigamos sob o guarda-chuva conceitual do Iluminismo.

Sua familiaridade com a antropologia cultural, sobretudo por conta da sua proximidade com os estudos de Clifford Geertz, bem como o cuidado obsessivo que dedica à pesquisa documental nos arquivos franceses fazem dos seus trabalhos verdadeiras incursões em universos desconhecidos, causando, como ocorre com as boas descrições etnográficas, estranhamento em relação às realidades que julgamos conhecer.

Neste Poesia e polícia não é diferente. Darnton, que dirige a biblioteca da Universidade de Harvard, volta aos arquivos parisienses e consegue reconstruir uma intrincada rede que ligava o submundo francês ao ambiente da corte de Luís XV no final da década de 1740. Uma denúncia anônima de um espião em 1749 leva a estrutura policial da monarquia à perseguição e à prisão de catorze indivíduos, entre estudantes universitários, jovens clérigos e pequenos funcionários da estrutura da justiça, envolvidos na produção e na difusão clandestina de poesias e canções que satirizavam medidas do governo e ofendiam o rei e sua amante, Jeanne-Antoinette Poisson, a marquesa de Pompadour.

Com idades que variavam entre dezesseis e trinta e um anos, os envolvidos no “Caso dos Catorze”, como ficou conhecido, eram provenientes das camadas médias parisienses. Pessoas que não faziam parte da elite política francesa mas eram bem educadas e em dia com as decisões da monarquia referentes à política externa e seus desdobramentos internos. Clérigos jansenistas que não se dobravam à vontade do rei, estudantes irreverentes (de Direito, majoritariamente), professores conectados às discussões científicas, funcionários desobedientes – pessoas capazes de versificar sátiras em francês e em latim e ouvir o burburinho das ruas, combinando tudo isso com os mexericos da corte. O personagem mais intrigante desta rede, sobre quem Darnton dedica, infelizmente, pouca atenção, era o professor de filosofia chamado Pierre Sigorne. O professor se negou a falar, não entregou um único nome e a investigação emperrou nele. Entusiasta dos princípios newtonianos, Sigorne era o centro de um grupo do qual faziam parte, entre outros, Anne Robert Jacques Turgot (futuro ministro das Finanças de Luís XVI) e Denis Diderot (futuro editor da Enciclopédia).

Os versos apreendidos naquela ocasião atacavam o centro do poder real e eram recitados, copiados, emendados, recriados, musicados, memorizados e discutidos por pessoas que se preocupavam com seus aspectos políticos e poéticos. Retornando às sátiras cantadas em 1747, Darnton consegue observar uma sutil mudança no corriqueiro hábito de maldizer autoridades através do riso, identificando fatos da vida política que acabaram constituindo interseções entre a velha política da corte e uma crescente conexão entre indivíduos do mundo da rua interessados em falar sobre uma esfera de decisões da qual estavam alijados. Como isto ocorreu?

Darnton, a partir de documentos de arquivo e de memórias produzidas ao longo do século XVIII, reconstitui os eventos que levaram à demissão do conde de Maurepas, secretário de Estado, em abril de 1749. O astuto nobre foi responsável por um vazamento de informação sobre um jantar oferecido pelo rei e por sua amante, informação esta que chegou às ruas de Paris por meio de uma sátira – Pompadour havia oferecido aos poucos convivas, entre eles o próprio Maurepas, flores brancas (fleurs blanches), o que se tornou, nos cafés e becos parisienses, “fluxos brancos” (flueurs blanches), referência a doença venérea. A polícia foi acionada e passou a fazer as prisões, levando à Bastilha pessoas acusadas de pertencer a uma rede que recitava e distribuía poemas satíricos, em cujos versos também apareciam medidas impopulares de Luís XV, como a ordem de prisão contra um príncipe inglês exilado em Paris, um acordo de paz vexatório e o lançamento de um novo imposto. Nos poemas e nos cantos que circulavam na capital francesa, reproduzidos na íntegra na obra, as fofocas cortesãs sobre a vida íntima dos governantes estavam associadas à carência de virtude nas decisões reais recentes. Mais do que isso: aparentemente, o rei e seus auxiliares mais próximos passaram a se importar de uma maneira até então não vista sobre a forma como estas conexões estavam sendo feitas em lugares públicos, sem o controle das autoridades.

A estrutura repressiva francesa, a partir daí, infiltrou espiões, pagou informantes, prendeu e interrogou suspeitos cujos depoimentos oferecem ao historiador de hoje material para entrar em contato com este universo nem sempre muito distante do nosso: a tentativa, nunca suave, de estabelecer um ambiente público de discussão.

Ficou de fora do trabalho uma discussão mais detida sobre o papel da sátira nas sociedades da Época Moderna. Embora se preocupe em observar aspectos tradicionais da cultura popular no maldizer público de autoridades, Darnton não atenta para aspectos intrínsecos à atitude satírica que poderiam oferecer outra camada de significados para o Caso dos Catorze, bem como para a maledicência social ao longo do Antigo Regime. Gilbert Highet, em estudo clássico sobre o tema, demonstra a ambivalência da atitude satírica, que pode ser cáustica em relação aos indivíduos atacados, mas tende a reforçar uma determinada ordem social. [1] As sátiras que fazem parte do caso estudado por Darnton são paródias, versificações compostas sobre estruturas monológicas previamente conhecidas pela audiência, o que reforça ainda mais o impacto de valores previamente defendidos por um público amplo – por exemplo, a gravidade cristã da vida sexual do rei, que estaria refletida, de algum modo, em suas virtudes políticas. Darnton também deixa de fora questões específicas relativas às estruturas poéticas ou narrativas utilizadas pelos letrados para produzir as sátiras, abrindo mão, portanto, de ferramentas oriundas da análise poética ou da crítica literária, de modo algum desprezíveis para a consideração de poemas como fontes para o historiador. Mais preocupado em reconstruir conexões entre grupos e acontecimentos políticos e culturais, pouco avança no escrutínio de um complexo cultural que também era informado por uma dimensão discursiva habitada e manipulada por indivíduos letrados.

Autor de obra clássica sobre um ícone do Iluminismo [2] – a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert –, Darnton há muito também se dedica à “subliteratura” que roía, nos becos, nos cafés e nos salões menos nobres, as imagens até então impolutas dos velhos poderes. Um exemplo recente é o seu O diabo na água benta, saído no Brasil em 2012 [3], no qual acompanha a corrida de gato e rato entre a polícia francesa e os autores de libelos que se espalhavam dos dois lados do Canal da Mancha no século XVIII.

O historiador se dedica, em Poesia e polícia, às relações entre personagens anônimos que levavam e traziam palavras proibidas, mostrando que, além dos textos, as relações dos indivíduos e dos grupos com o conhecimento e com os escritos acabaram por engendrar um ambiente novo, base de um mundo que nos deveria ser familiar.

De linguagem acessível, a obra estabelece brevemente os problemas conceituais referentes à esfera pública, fazendo alusão aos textos basilares de Foucault e Habermas – o primeiro, mais preocupado com uma abordagem filosófica, segundo a qual uma coisa só existe quando é nomeada (portanto, a “opinião pública” não poderia existir antes de ser assim nomeada, no final do século XVIII), enquanto o segundo está mais interessado em uma abordagem sociológica (isto é, a coisa existe desde que seja percebida como tal pelo estudioso, no presente). Sem se satisfazer completamente com nenhum dos dois teóricos, Darnton lança mão das ferramentas vindas da antropologia – a imersão em uma cultura estranha e a tentativa de compreendê-la a partir dos seus próprios termos – para tentar ouvir as vozes de um mundo distante do século XXI. Assim, observa, por um lado, como Condorcet, um matemático, historiador e filósofo iluminista cooptado pelo Estado francês nos estertores do Antigo Regime, acreditava no projeto ilustrado de estabelecimento gradual da razão a partir da discussão pública, impressa, serena, que levaria a sociedade ao progresso; e, por outro, como Luis-Sébastien Mercier, dramaturgo, jornalista, escritor mediano, descreveu “o público” como um poder que vinha da rua, irresistível e contraditório, mas capaz de destronar a tirania. Condorcet foi decapitado durante o Terror; Mercier, que desprezava o heliocentrismo e a física newtoniana, foi nomeado professor de história pelo governo revolucionário.

Embora curto, o livro de Robert Darnton é uma esclarecedora incursão em um momento-chave no complicado processo de estabelecimento de um lugar de discussão política alheio à vontade do Estado. O resultado é belíssimo, sobretudo para nós que, autocentrados, acreditamos que inventamos, por força da internet, a sociedade da informação. A cultura não oficial, fragmentada e transmitida habilmente entre jovens indivíduos descontentes fez estragos na vida de quem morava em palácios nos século XVIII.

Notas

1. HIGHET, Gilbert. The anatomy of satire. Princeton: Princeton University Press, 1962.

2. DARNTON. Robert. O Iluminismo como negócio: história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800. Tradução Laura Teixeira Motta e Marcia Lucia Machado (textos franceses). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

3. DARNTON. Robert. O diabo na água benta Ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão. Tradução Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Rodrigo Elias –  Revista de História da Biblioteca Nacional. E-mail: rodrigoelias2@gmail.com


DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Resenha de: ELIAS, Rodrigo. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.10, n.10, p. 152-154, 2014. Acessar publicação original [DR]

 

José Bonifácio. O patriarca vencido | Miriam Dolhnikoff

De súdito fiel do Império português à Patriarca da Independência do Brasil, eis a trajetória que emerge do livro de Miriam Dolhnikoff – José Bonifácio. O patriarca vencido – inserido na Coleção Perfis Brasileiros, destinada tanto a especialistas quanto ao público em geral.

Por algumas décadas, a biografia ficou relegada à situação marginal no meio acadêmico por sua ligação com a história política événementielle, centrada na vida dos grandes homens. No final do século XX, no entanto, propiciada por novos olhares e atribuições, ela ressurgiu como outra possibilidade de abordagem, ainda capaz de desmistificar a história dos heróis, mas igualmente de revelar, na visão de Philippe Levillain,1 a condição humana em sua diversidade. A tentativa de reconstruir a trajetória científica, política e pessoal de José Bonifácio de Andrada e Silva mostra-se um trabalho de fôlego de Miriam Dolhnikoff. Conhecedora dos textos de José Bonifácio, que reuniu, em parte, no livro Projetos para o Brasil2, a historiadora, especialista em Brasil Império, revela-se agora uma experiente analista das diversas facetas que compõem a personalidade complexa desse homem: a de formador das primeiras estruturas do Brasil independente, a de homem de ciência, a de poeta e a de um ser comum, que conhecia paixões e abrigava ambições como qualquer indivíduo a partir de certa época.

Não é fácil trazer à tona figura tão rica, que soube viver um momento de mudanças profundas no Império português e no Império do Brasil. Inserido entre as cinzas do Antigo Regime e uma nova ordenação do mundo, a que designamos por modernidade, José Bonifácio surge da pena de sua biógrafa como “um homem formado em determinado contexto material e marcado por um conjunto de ideias”, mas que pode “tentar mudar esse contexto através de uma ação individual baseada em novas concepções por ele formuladas”. Assim, a autora apresenta um indivíduo que, para além de sua ação central nos episódios da Independência, passou grande parte de sua vida na Europa, dedicando-se à carreira de naturalista.

Nesse sentido, o enfoque de Dolhnikoff não se restringe apenas a José Bonifácio enquanto Patriarca da Independência e que se tornou, por algum tempo, o poderoso ministro de Pedro I. Mostra diversas conexões que enriquecem a vida de uma existência, que ultrapassam o frio explicar de uma trajetória e que privilegiam certos elementos entre o jogo de possibilidades do construir de uma vida.

Verifica-se que José Bonifácio é tanto fruto de seu tempo, cuja ação é possibilitada pelas concepções políticas e culturais de uma época, pois cada sociedade apresenta um código de interpretação em que sistemas de valores são comuns a seus membros, quanto foi capaz de tentar moldar essa mesma época segundo sua visão e opinião. Coube assim à biógrafa construir pressupostos e procurar projetar uma vida que não se esvaiu mesmo depois da morte.

Por conseguinte, nesta obra, José Bonifácio se faz ver, em geral, por meio do contexto em que esteve inserido. Não um contexto rígido e imóvel, mas através de sua ação, possibilitando interpretar suas vicissitudes biográficas à luz da conjuntura que vivenciou – o final do século XVIII até 1838, quando faleceu. Dessa maneira, ela procura estabelecer uma relação de reciprocidade entre a personagem e seu campo de atuação: a América portuguesa, local em que nasceu Bonifácio em 1763; a sede do Império (1783), onde estudou e passou a maior parte da vida, até retornar novamente ao Brasil (1819), trazendo larga bagagem intelectual de homem público.

No entanto, não chegava mais na antiga colônia de Portugal, mas sim em território ultramarino do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Muitos anos se tinham passado. A terra que havia trocado pela sede do Reino se modificara profundamente, ganhando novas instituições políticas que preparavam sua autonomia, consagrada em 1822 com a Independência. Apesar de defender fortemente a monarquia dual, na perspectiva do Império luso-brasileiro, José Bonifácio teve grande atuação nesse processo, a fim de fazer do Brasil uma monarquia constitucional centralizada nas mãos de um Bragança. Liberal, pois não aceitava as ações do despotismo, como demonstra Dolhnikoff, não foi um revolucionário, pois acreditava no poder das reformas, especialmente na capacidade do conhecimento enquanto instrumento eficaz para transformar a sociedade e gerar a imagem de grandeza que o novo Império na América parecia anunciar.

Como convém a um trabalho de história, uma pesquisa aprofundada, compreendendo fontes diversas, e referências historiográficas atualizadas sobre a época da Independência e do Primeiro Reinado constituem o fundamento de Dolhnikoff para levar adiante seu estudo. Deve-se destacar que José Bonifácio publicou um livro de poesias e alguns trabalhos científicos. Produziu, porém, muitos manuscritos, que segundo a autora eram “papéis soltos que rabiscava em seu gabinete de trabalho”, projetos de leis, discursos no Parlamento, correspondência abundante tanto com amigos quanto com políticos, e artigos de jornais, amplamente utilizados pela pesquisadora.

Partindo da discussão de uma vertente nacionalista da historiografia, que considerou José Bonifácio “Patriarca da Independência”, como a obra de Otávio Tarquínio de Sousa,3 uma das biografias mais completas sobre ele, e chegando a trabalhos recentes, que procuram desmistificar um pouco o grande herói, como o de Berenice Cavalcante,4 ou os que apontam aspectos distintos – como faz o de Alex Varela5 com o cientista José Bonifácio – a autora traça a trajetória de sua personagem, pontuada por elementos diversos das estruturas culturais, políticas, sociais e econômicas de seu tempo.

Do menino nascido em Santos, emerge um homem que aperfeiçoa seus conhecimentos em Coimbra e nas viagens como naturalista por diversos países da Europa, considerada então sinônimo de civilização. Em seguida, o cientista ingressa na administração portuguesa, integrando um grupo seleto de letrados em torno da figura de Rodrigo de Sousa Coutinho, que tinha por objetivo primordial transformar o Império sem cair nas armadilhas que os novos tempos revolucionários ofereciam. Veio a ocupar, assim, diferentes cargos de prestígio, inclusive o de sócio da Academia das Ciências de Lisboa.

Como fiel súdito do Império português, participou das lutas contra os invasores franceses. E se, no fundo, desejava o regresso ao Brasil, precisava fazê-lo enquanto funcionário da Coroa, cujo retorno autorizado assegurasse uma pensão real. Ao chegar ao Brasil, pretende ser somente o naturalista. Logo depois da Revolução Vintista do Porto e de suas repercussões no lado de cá do Atlântico, no entanto, José Bonifácio volta-se para a política por longo período, tentando garantir que o novo Império se erija com base nas concepções que partilhava com a maior parte da elite ilustrada lusa. Vitorioso, foi ministro do Império; “patriarca vencido”, nas palavras de Miriam Dolhnikoff, viu-se exilado. Ao retornar, seu mérito não deixou de ser reconhecido por Pedro I que, quando da abdicação, dele fez tutor do filho e herdeiro. Nos últimos anos, porém, acabou desprestigiado por antigos inimigos políticos, passando a viver em Paquetá, em relativo ostracismo, dedicado às ciências e às letras, em companhia de uma filha natural, já legitimada.

A maior parte dos eventos talvez seja conhecida, mas Miriam Dolhnikoff sabe entremeá-los com dados novos e curiosos, como, por exemplo, o caráter autoritário e a paixão pelas mulheres. Desse modo, por meio de uma narrativa instigante das ações, das atitudes e dos possíveis pensamentos e sonhos que fizeram parte da vida de José Bonifácio de Andrada e Silva, que ela consegue situar dentro de uma moldura histórica, extrapolando a simples descrição da vida de uma grande personagem, esta biografia converte-se em um caminho de mão dupla entre o indivíduo e a sociedade, entre o passado e o presente, entre a memória construída de uma nação e o projeto de país que se pretendia edificar. Merece, por isso, ser lida por todos aqueles que desejam conhecer melhor esse período decisivo da História do Brasil.

Notas

1. LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: Rémond, René (org.). Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Fundação Getúlio Vargas, 1996, pp. 143-150.

2. DOLHNIKOFF, Miriam. Projetos para o Brasil: José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

3. SOUSA, Octávio Tarquínio. José Bonifácio. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1988 (Coleção Fundadores do Império do Brasil, v. 1)

4. CAVALCANTE, Berenice. Razão e Sensibilidade. José Bonifácio. Uma História em três tempos. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001.

5. VARELA, Alex G. Varela. Atividades Científicas na “Bela e Bárbara” na Capitania de São Paulo (1796-1823). São Paulo: Annablume, 2009 e “Juro-lhe Pela Honra de Bom Vassalo e Bom Português”: Análise das Memórias Científicas de José Bonifácio de Andrada e Silva (1780-1819). 1. ed. São Paulo: Annablume, 2006.

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves –  Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: lb@uol.com.br


DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio. O patriarca vencido. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Resenha de: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.10, n.10, p. 155-157, 2014. Acessar publicação original [DR]

Le Présent dans le Passé. Autour de quelques Périclès du XX e siècle et de la possibilite d’une vérité en Histoire | José Antônio Dabdab Trabulsi

O professor José Antônio Dabdab Trabulsi, da UFMG, já nos acostumou a saborear, com frequência, seus livros publicados em Besançon, todos bem argumentados e escritos, uma satisfação tanto para especialistas, como para o público culto mais amplo. Dabdab presenteia-nos, agora, com um volume que recolhe suas reflexões sobre leituras dos séculos XX e XXI de um dos mais reverenciados personagens históricos de todos os tempos, Péricles, o líder ateniense do século V a. C., retomado, tantas vezes, ao longo dos séculos, por literatos, intelectuais e governantes. A primeira e principal premissa do autor está enunciada nas palavras introdutórias:

Para o historiador, um horizonte de verdade é necessário, ou então a profissão se tornaria impossível ou sem sentido. Mas a confiança de poder chegar a ela é ingênua, segundo me parece. A História, como o diz, de forma sublime de De Sanctis, como comentarei no livro, antes que mestra da vida, é sua discípula; a História é uma estranha mistura de conhecimento e opinião, motivo pelo qual nunca será possível extirpar a parte relativa à opinião; e, em não podendo, não será jamais possível chegar à verdade (p. 15).

O volume congrega alguns dos principais historiadores que se debruçaram sobre a figura singular de Péricles, como Gaetano de Sanctis (com dois capítulos), Mario-Attilio Levi, Léon Homo, Marie Delcourt, Donald Kagan, A. Burn, assim como uma série deles que contribuíram para um número recente do Nouvel Observateur. Predominam latinos (francófonos e italianos), mas não falta o mundo anglo-saxão. Dabdab lamenta não dominar o idioma alemão (“a língua de Goethe me é inacessível”, p. 11) e não considera a hipótese de obras relevantes em outros idiomas – como o castelhano, o português ou o grego moderno. Quantos de nós não faríamos escolhas semelhantes? Nada desmerece tais eleições, mas, de toda maneira, são reveladoras de um viés generalizado e que não está muito atento à produção que poderíamos chamar de periférica, oriunda de centros de estudos menos centrais e tradicionais. Mais do que um defeito, esta é uma manifestação da centralidade que ocupa na reflexão historiográfica, mesmo em autores de fora daqueles ambientes, das grandes narrativas e dos cânones. Não riamos, para parafrasear Horário (Sátiras 1,1, 69: Quid rides? De te fabula narratur), pois se trata do nosso discurso sobre o passado, que mesmo quando almeja a liberdade nem sempre consegue desvencilhar-se de escolhas fundadas na autoridade e na tradição.

Dabdab elogia, assim, de forma inspiradora os lampejos da única autora estudada, assim como condena, de forma peremptória e reiterada tudo que cheire e apoio ao imperialismo e apoia toda manifestação mais simpática à democracia grega antiga, assim como reitera as críticas à democracia representativa moderna, simulacro frágil da ateniense. Dabdab não hesita em julgar e condenar, de forma cabal, os autores: “visão inaceitável” (p. 169, 177), a respeito de Paul Veyne, “opiniões anti-povo” (p. 75), “preconceito bem francês contra os comerciantes” (p. 83), “um erro fundamental” (p. 124), “uma ingenuidade – ou cegueira – do historiador” (p. 125), “como tantos outros, Burn se recusa a ver as realidades frente a frente” (p. 155). Tais afirmações ex auctoritate, condenações peremptórias, não combinam bem com os objetivos gerais de Dabdab, que, como ele explicita tantas vezes, consiste em valorizar o povo, a democracia e a criticar os usos do passado para os fins mais nefastos e destruidores, como no fascismo, para citar um caso paradigmático e muito bem explorado no volume.

Tais observações, de modo algum, diminuem os méritos da obra, que são muitos, a começar pela obstinada intenção do autor de mostrar como o presente, como as circunstâncias dos autores analisados e os contextos históricos e sociais, foram determinantes em suas análises do passado. Em outras palavras, como Péricles serviu, ao longo do tempo, para políticas mais ou menos libertárias ou opressivas. Para uns e em determinadas circunstâncias, o dirigente grego foi um ditador, um limitador do povo inculto, como se tivesse sido um Mussolini – ou, poderíamos dizer, um Perón ou um Vargas. Para outros, Péricles representou parte de um sistema no qual as pessoas comuns, os cidadãos (não a maioria, que era escrava) podiam se expressar e no qual parte da elite podia ter uma atuação que favorecia essa mesma massa e certa liberdade, em geral. Autores de nossa época, como Veyne, seriam menos otimistas com relação ao plethos (muitos), e mais atentos à parrhesía (franqueza) e ao tema da diversidade, palavra pouco presente no volume de Dabdab.

O volume de Dabdab, tão logo esteja disponível em vernáculo, poderá contribuir, de forma significativa, para uma discussão tão necessária sobre a relação entre passado e presente. Sua relevância ultrapassa, em muito, os âmbitos estreitos da academia, dos estudiosos da Antiguidade, poucos que somos, mas atinge o cerne dos temas de nosso tempo: democracia, verdade, imperialismo (temas presentes no volume), mas também, mesmo na ausência, diversidade, liberdade e franqueza. Sua leitura não deixará de enriquecer e sua discussão só tende a contribuir para uma sociedade menos fundada na hierarquia.

Pedro Paulo Abreu Funari –  Universidade Estadual de Campinas.


TRABULSI, José Antônio Dabdab. Le Présent dans le Passé. Autour de quelques Périclès du XX e siècle et de la possibilite d’une vérité en Histoire. Besançon: Presses Universitaires de Franche-Comté, 2011. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.9, n.9, p.179-181, 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Madri di uomini e di dèi. La rappresentazione della maternità attraverso la documentazione numismatica di epoca romana | Anna Lina Morelli

A Profª Anna Lina Morelli atua como docente de Numismática do Departamento de História Antiga da Università degli Studi di Bologna (Itália) e se insere, com tal trabalho, no projeto para a realização do Lexicon Iconographicum Numismaticae Classicae et Mediae Aetatis (LIN). Neste projeto conjunto, promovido pelas Universidades de Messina, Bolonha, Gênova e Milão, a autora se distingue por ter colocado em foco o papel da mulher no império romano; particularmente, através da coletânea de todas as moedas que trazem a representação dos membros femininos da domus imperial, pesquisa a ideologia que conduz à sucessão dinástica centralizada na figura da Mater e na própria idéia de maternidade em suas múltiplas acepções: desde que a concessão do título de Mater correspondia à designação oficial do Filius e a legitimação do poder imperial em âmbito dinástico. Mater era aquela que havia concebido e dado à luz, e ainda à qual o papel materno era atribuído juridicamente, com base no sistema da adoptio. Mas também era quem que assumia a função de maternidade social e institucional, da qual derivam ações de proteção e tutela dos exércitos (Mater Castrorum), do Senado ou mesmo da Pátria, sendo este último um papel paralelo à paternidade da figura do imperador.

A Autora reconstruiu e evidenciou não só a representação da figura da Mater (mãe do Augusto ou dos Augustos, mãe dos filhos mortos e divinizados, mãe adotiva de filhos destinados à sucessão imperial), mas também seu domínio semântico, ligando-o a aspectos jurídicos, militares, religiosos, éticos e ideológicos; e se entrelaça com questões complexas como a sucessão, a gestão do poder, o controle social e a realidade institucional.

Os documentos recolhidos (moedas) são exaustivamente examinados e criteriosamente apresentados, pois foram cunhadas não somente na casa da moeda central de Roma, mas ainda nas casas de moeda provinciais e periféricas, desde a época tardo-republicana até Otacília Severa, a última Augusta identificada como Mater. A Autora analisa as diferenças no emprego de metais e nominais como forma de estabelecer uma hierarquia no papel dessas imperatrizes, os diversos papéis iconográficos de seus retratos, em confronto com os dos imperadores, bem como os tipos monetários: estes últimos ressaltam a relação das mães da domus imperial com as mães divinas (deusas), geradoras no que diz respeito aos ciclos da natureza e da fertilidade da terra; e especificamente com relação à esfera política, como geradoras divinas da estirpe imperial, e transmissoras do poder real. Em seu caráter alegórico, numa dimensão de Fecunditas, seja genética, seja moral, a Mater é vista ainda como a base da Concordia familiar, por sua vez fundamento da Aeternitas do império e garantia de Felicitas Temporum.

Assim, o elemento feminino da domus imperial, em todas as suas acepções e manifestações icônicas foi recordado, através de excelente análise no plano histórico, exímia metodologia de pesquisa, e pleno domínio da interpretação iconográfica; além disso, mostra a suma relevância do papel da moeda nas estratégias de comunicação, propaganda e manutenção do poder.

O plano da obra se apresenta com o Prefácio da renomada Profª Maria Caccamo Caltabiano (Università di Messina), Premissa e Introdução da Autora. A análise histórica se inicia com o uso político da maternidade e as premissas da idade republicana, a figura da mater em época Augustana, e consequentemente de Lívia, mãe de Tibério e ícone da legitimação. Ainda dedicados à dinastia Júlio-Cláudia são os capítulos sobre Agripina Maior (enquanto mater do imperador Calígula), Antônia Menor (“a maternidade calada” da mãe de Cláudio) e Agripina Menor, mãe, irmã e mulher de imperadores (de Nero, de Calígula e Cláudio, respectivamente). Sobre o período dos Flávios, encontramos um estudo sobre Domícia (mulher de Domiciano), Júlia (filha de Tito) e sua ausente descendência dinástica. Subsequentemente, a estudiosa enfoca Plotina, mulher de Trajano, e Sabina, mulher de Adriano (as chamadas “mães adotivas”) e as Augustas Antoninas, entre maternidade genética, tutela social e implicações religiosas. Os últimos capítulos são dedicados a Júlia Domna (mulher de Septímio Severo), mãe de homens e de deuses, e as outras Augustas dos Severos; e enfim Otacília Severa (mulher de Felipe I), a última Augusta identificada como mater, como já dito antes.

Seguem-se as Conclusões e uma Tabella de equivalência extremamente útil, com as ocorrências dos termos mater / meter nas legendas e nas iconografias correspondentes, nas emissões oficiais e locais. A Bibliografia é exaustiva, atualizada e de altíssimo nível, e as 83 Figuras de moedas exemplificam os diversos capítulos com precisão e competência, algumas dentre as várias qualidades da Autora. O volume traz precioso conteúdo de pesquisa, e não exclusivamente para estudiosos de Numismática, mas ótimo documento de consulta, de amplo espectro, para os que se dedicam à História e à Arqueologia romana, e à Antiguidade em geral.

Maricí Martins Magalhães –  Museu Histórico Nacional.


MORELLI, A.L. Madri di uomini e di dèi. La rappresentazione della maternità attraverso la documentazione numismatica di epoca romana. Collana Ricerche 1. Bologna: Ante Quem soc. coop., 2009. Resenha de: MAGALHÃES, Maricí Martins. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.9, n.9, p. 182-184, 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Qual o valor da história hoje? | Márcia A. Gonçalves, Helenice Rocha, Luís reznik e Ana Maria Monteiro

Coletânea resultante de um seminário ocorrido em 2010, intitulado o valor da história hoje, o livro organizado pelos historiadores Márcia de Almeida Gonçalves, Helenice Rocha, Luís Reznik e Ana Maria Monteiro, lança uma interrogação que desloca a certeza presente no título original para um ponto ignoto, ao qual concorrem os mais diversos juízos, e que como a própria apresentação da obra sugere, tem a intenção de indicar o caráter movediço do dilema.

Qual o valor da história hoje? revisita a problemática relação constituída entre a teoria da história e a didática da história, só que com a singularidade de uma argumentação tecida com base em objetos pouco habituais neste tipo de tema: é a tensão resultante da inter-relação entre memória e história, e a necessidade do ingresso de debates sobre questões do tempo presente – ou ao menos que estabeleçam ligações com ele – na sala de aula, que orientam as discussões.

A obra reúne as reflexões de um significativo contingente de pesquisadores com estudos voltados principalmente para questões de teoria e método. O desafio do livro reside na conciliação entre as abordagens mais atinentes à epistemologia da disciplina histórica e aquelas que partem de elementos vinculados aos aspectos cognitivos da pedagogia. O primeiro ponto de convergência é a temática que atravessa as divisões do livro: as permissões e interdições impostas pelos sentidos atados à experiência – a vivência e a sua correlata memória –, ao estabelecimento do discurso histórico. Um segundo ponto, este inferido por um menor número de textos, está no entendimento de que um dos lugares onde essa questão se apresenta com maior riqueza é a sala de aula.

O efeito das aproximações e distanciamentos entre os textos se nota na ordem instituída pela organização dos capítulos. Como as rubricas, memória, tempo, e ensino de história, perpassam a maioria dos textos, de fato, parece impossível que se imputasse classificações fechadas que satisfizessem indubitavelmente alocações conjuntas ou separações dos textos. Ainda assim, o resultado é bastante inteligível.

A coletânea se divide em três partes: Formas de escrever e ensinar história, Memória e identidade e Tempo e alteridade. Apesar de atenderem a designação dos subcapítulos, a organização dos textos indica o estabelecimento de uma gradação que ultrapassa os aspectos mais visíveis. Tempo e alteridade relaciona os artigos que melhor trataram da relação entre os formatos e tipos de transmissão da narrativa e a sala de aula; Memória e identidade se apresenta como uma miscelânea de textos que guardam significativa distância entre si, aproximadas em grande parte por discussões que circundam a bandeira do nacionalismo e os sentidos de identidade; e Formas de escrever e ensinar história ensaia uma discussão relativa à variação de tropos, problemas, e parâmetros de subjetividade na escrita da história.

Uma característica que fica clara é que enquanto alguns textos, como os de José Ricardo Oriá Fernandes e Margarida de Souza Neves, acerca da literatura de Viriato Correa, e da relação entre cartografia e memória, respectivamente, buscam suas respostas em elementos pertinentes à pesquisa no âmbito acadêmico, salientando um determinado valor da cultura histórica que se prolonga até o espaço escolar, outros se baseiam em manifestações contíguas à sala de aula, atentando para aspectos que vão das interpretações e entonações presentes no discurso do professor ao desdém dos alunos quanto à possibilidade de futuro, como é o caso dos textos Alteridade e ensino de história: valores, espaços-tempos e discursos de Cecília M. A. Goulart e Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incerteza: reflexões e desafios para o professor de história, de Sônia Regina dos Santos.

Apesar da existência de dois vieses de análise, a prevalência dos questionamentos acerca das vicissitudes de uma pedagogia da história, para o entendimento do valor da história hoje, fica clara mesmo quando olhamos os artigos em separado. Embora a Parte I seja, dentre as três divisões, a única a trazer no título uma referência direta ao ensino, a temática predomina nos títulos ou conteúdos dos textos. As exceções ficam por conta dos artigos: O valor da vida dos outros… de Márcia de Almeida Gonçalves, Uma província em disputa: como os fluminenses lidaram com a memória imperial na década de 1920, de Rui Aniceto Nascimento Fernandes, e Memória e reconhecimento: notas sobre disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil, um trabalho conjunto de Lucianna Heymann e José Maurício Arruti.

Apresentando, respectivamente, a singularidade dos valores cognitivos dos relatos vivenciais, os usos políticos da construção memorialista, e as disposições e disponibilidades da gestão da história quanto às reivindicações e anseios reparatórios, os citados artigos procuram a atualidade da disciplina na reavaliação de velhos tópicos. A vinculação destes textos com os demais artigos se dá, principalmente, pelas opções de abordagem e teóricos mobilizados. É nítida a preocupação em estabelecer as diferentes modalidades de apreensão de passagem do tempo, e as subjetividades que derivam de cada definição.

Da fenomenologia de Husserl à crítica moral nietzschiana, vemos uma variedade de formas de inquirição das bases teóricas das principais acepções e conceitos de tempo histórico, e de suas inclinações meta-históricas, trabalhadas por um copioso número de perspectivas, tanto em função dos objetivos dos autores dos artigos, quanto pela diversidade de pensadores evocados. Apesar disto, no conjunto da obra, as preferências são claras: Wilhelm Dilthey, François Hartog, Reinhart Kosseleck, Jörn Husen, e Paul Ricouer recebem um tratamento mais aprofundado.

A pluralidade dos usos da história é uma premissa fundamental na organização da obra. Dado que, inclusive, engendra interessantes antíteses. Se na narrativa sobre as transformações das percepções do conceito de história, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, mergulhamos na história da história e somos apresentados às dissoluções e afirmações de sentido desta maneira de explicar o mundo, mais adiante recebemos a interdição de Valdei Lopes de Araújo à imputação de sentido, e somos recomendados a também mostrarmos aquilo que, do ponto de vista de uma tradicional ética presente nas análises historiográficas, não encontram amparo. Em que pese o fato de que mostrar: “a tragédia, a injustiça, o, o horror como parte integrantes de nossa condição”, nem sempre fez parte do discurso historiográfico, a asserção nos remonta a uma perspectiva contemporânea de história.

Este é um ponto fundamental. A condição humana como o valor premente da história hoje, surge como um discurso comum, e dá a uniformidade à coletânea para apresentar experiências e olhares distintos sobre a história, sobre a educação, ou sobre ambos. Se as definições, e conceitos sobre temporalidade ocupam uma parte considerável do livro, remetendo a uma maior proximidade com a academia, o reconhecimento de como esses conceitos podem ser instrumentalizados para produzir uma ética – vincada ao presente e a partir da sala de aula – nos dá a conhecer uma série de pesquisas e propostas que instigam a construção de um ensino de história diferente, abrangendo desde as séries mais elementares. Indo além, podemos dizer que os artigos colocam em xeque o próprio modelo de ensino de história.

O panorama que os textos descortinam reflete a preocupação em levar para o ambiente escolar a perspectiva de uma necessária orientação em relação a cultura histórica ampla, oferecendo alternativas à dominante narrativa canônica, muitas vezes derivadas do livro didático, e às concepções que parecem atemporais. É nessa chave que podemos interpretar as investigações encetadas pelas supracitadas Cecilia M. A. Goulart e Sônia Regina Fernandez, e por Luis Fernando Cerri e Helenice Rocha.

Esses textos ilustram a diversidades de interpretações que atualmente suscitam os relatos ou as conformações históricas. Tomando como referência apenas os dois últimos: em Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história, de Cerri, se destacam as tonalidades e margens de discordância sobre os aspectos tradicionais e as novas questões em relação à nação e ao sentimento nacional entre os alunos. Já em A leitura da aula de história como experiência de alteridade, de Helenice Rocha, é reveladora a discussão que apresenta a maneira como os comentários e leituras com base no livro didático são modeladas pelas representações construídas pelo docente, não somente acerca dos conteúdos, como também da capacidade de entendimento do corpo discente.

Está claro que a publicação indica a ideia de que a história hoje é móvel, e essa mobilidade confronta tabus e abre novas perspectivas. Prova disso são as reiteradas citações sobre as possibilidades de produção de saberes pela incorporação de um viés anacrônico na aula de história. Perpassa-se o juízo de que os embates em torno do tempo, em torno da história, estão presentes de diversas formas a todo tempo, e em todo lugar; o que de maneira implícita reforça a sua contraparte: a experimentação da história está para além dos formatos que procura imprimir o historiador. Por isso, o livro também ilustra uma imposição de um fazer específico e profissional sobre um campo aberto.

A concepção da vigência de uma atualidade permeada de referências históricas, presente com clareza em Ana Maria Monteiro, com Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão e Carmem Teresa Gabriel, e seu Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?, por exemplo, também circunda os outros textos. Eles sinalizam para o ensejo de uma reelaboração da figura do historiador/ educador diante deste quadro, em que a apreciação das narrativas põe em evidência um caráter valorativo da história concernente tanto à sua faculdade de orientação, quanto à sua capacidade em reafirmar e desqualificar memórias no jogo de legitimação de legados e realidades, que se sobrepõe, excluem-se e se complementam.

Apesar da miríade de possibilidades sugeridas e defendidas, e questões postas, a sintonia entre os artigos, e o objetivo claro da realização de uma problematização do campo, arrefecem, no leitor, o típico afã da obtenção de respostas definitivas. Todavia, os encaminhamentos são muito sugestivos. Na verdade, a sensação é de que a vertigem causada pelo profundo abismo, derivado do afastamento entre a sala de aula e a academia, já nos deixa menos mareados. Como ‘orientação’ desponta como a insígnia de Qual o valor da história hoje?, reafirmando a incerteza e a condição humana do fazer histórico, pode-se atribuir está qualidade à publicação, em termos de mapeamento das dificuldades a serem enfrentadas e de propostas que precisam ser evidenciadas.

O que se vê não é uma contraposição, e nem mesmo de complementaridade entre teoria da história e didática da história, mas a idéia de um prolongamento não-hierárquico entre os dois fatores. Se durante muito tempo, o precipício forjado entre ensinar e pesquisar se afigurou como virtualmente intransponível, hoje os esforços de superá-lo são explícitos, sendo Qual o valor da história hoje? parte integrante desse movimento. Fincando estacas nos dois lados do dilema, os artigos reunidos na coletânea procuram estender uma ponte obre a falha, possibilitando que a interpenetração de conceitos e a circulação de saberes gere para a disciplina histórica algo maior que a soma das partes.

Welinton Serafim da Silva.

GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís; MONTEIRO, Ana Maria Orgs). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. Resenha de: SILVA, Welinton Serafim da. Construindo pontes, superando abismos: o valor da conciliação entre o ensino e a pesquisa em história. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.8, n.8, p.345-350, 2012. Acessar publicação original [DR]

 

A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização | Fernand Báez

A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização é um dos estudos mais completos sobre o continente americano. O autor aborda em 390 páginas a saga da conquista e da submissão dos povos nativos ao modelo politico europeu.

É uma obra intensa, fundamentada em fontes primárias, coletadas em arquivos europeus e latino-americanos. Fernando Báez analisa criticamente a destruição dos bens culturais, tradições e costumes dos povos nativos e assinala aspectos paradoxais da conquista europeia na América, como a construção do Novo Mundo. Segundo Báez, para o êxito da obra da conquista foi necessário destruir e saquear as sociedades nativas.

A proposta do autor é apresentar a invasão das terras americanas e a destruição das sociedades nativas por meio do ‘genocídio cultural’. Dessa forma, Báez tece considerações sobre a ética da conquista e o sucateamento do Novo Mundo durante os séculos XVI aos dias atuais.

O livro é bem construído metodologicamente. A coleta de dados em arquivos, bibliotecas, acervos particulares, além do apoio de estudiosos e familiares, é apresentada no início da obra, quando Báez estende seus agradecimentos a todos que o auxiliaram durante quatro anos de pesquisa. Pela intensidade da pesquisa, o livro já é um referencial teórico para a história da América.

Deve-se destacar também nesse estudo a construção de novos conceitos para explicar a trajetória da ‘conquista e destruição cultural da América Latina’ e os percalços acadêmicos enfrentados pelo pesquisador como entraves burocráticos para a consecução de uma obra instigante que se confronta com teorias já cristalizadas sobre a história do Novo Mundo. Por fi m, deve-se salientar o fragmento do brilhante discurso de Tácito sobre o sentido de devastação das culturas e a ação dos predadores do mundo.

A obra é elaborada em três partes temática se um Apêndice. Cada parte é composta de capítulos. Na primeira parte, Báez discorre sobre o saque da cultura americana, apontando as causas do ‘etnocídio’, desde o assassinato da memória, quando a estátua da deusa Coatlicue, detentora da vida e da morte dos homens, é encontrada em 1790 e levada para o pátio da Universidade do México. Naquela ocasião, após uma análise ligeira, foi sugerido que deveria ser novamente enterrada para que sua presença não despertasse a recordação da religião antiga entre os ‘indígenas insensíveis à bondade do cristianismo (p.55)’. Em 1804, o barão alemão Alexander von Humboldt, após examinar aquela arte indígena, mandou que a enterrassem. Apenas em 1982 o governo mexicano permitiu que fosse exposta ao público. O mesmo ocorreu com a descoberta da Pedra do Sol, um gigantesco monólito com um calendário asteca, encontrada na Plaza Mayor, e guardada na Catedral Metropolitana. Só a pressão popular conseguiu que a Pedra do Sol fosse levada para o Museu.

Assim como a estátua de Coatlicue e a Pedra do Sol, a memória coletiva e os imaginários astecas foram arrancados da história dos antigos mexicanos.

A História da destruição cultural das sociedades americanas estava apenas começando. Associada à ação predatória dos símbolos materiais, a Igreja inicia o processo de dessacralização da religião indígena para ressacralizar a vida espiritual através evangelização e da força da Inquisição.

Ainda na primeira parte, Báez trata da grande catástrofe que resultou na transição colonial, na censura intelectual e espiritual, além da aplicação de um programa de transculturação definitiva. Este consistiu na aplicação da educação escolástica, através dos princípios rígidos da Contrarreforma para apagar os vestígios da educação indígena dos Calmecacs, no México e dos Amautas, nos Andes. Não se esqueceram, nessa perseguição insana, da cultura africana, abatida da mesma maneira durante os longos séculos de devastação.

A segunda parte do livro focaliza do saque cultural, as guerras, comércio e a implantação do império. Báez discorre sobre os estragos, os primeiros butins e alcança o século XX com o saque nazista. Lembra o Holocausto, a aniquilação sistêmica de milhares de judeus e, sobretudo, o memoricídio, quando milhões de bens culturais tangíveis e intangíveis foram destruídos em expurgos inimagináveis (p.208).

Báez traça um paralelo com a destruição mundial e lembra os saques dos chineses, as questões da Palestina a Sarajevo, além dos ataques à Bamyane à Bagdá.

Na terceira parte, o autor discute a Transculturação e o Etnocídio na América Latina, enfatizando a fatalidade da memória, os esquecimentos e sobretudo, a identidade cultural. No capitulo III apresenta os novos conceitos introduzidos para análise da destruição cultural da América Latina, destacando etnocídio, memoricidio, aculturação e transculturação. Enfatiza também a estratégia do predador, assinalando que a primeira coisa que se ataca numa guerra, entendidas como contenda, confusão e discórdia, é a memória coletiva. Assim, analisa guerra como a arte de confundir o inimigo (p.300) e complementa que qualquer guerra fica incompleta se não causar desconcerto por meio do ataque aos símbolos de identidade, que são fundamentais para a resistência. Dessa forma, a hegemonia, entendida como a supremacia de um estado ou grupo sobre o outro, requer a aniquilação dos motivos principais da resistência do adversário com propaganda ou destruição indireta ou direta (ataque psicológico ou cultural), explica Báez.

O autor conclui, em sua análise sobre a destruição cultural da América Latina, que:

  • O saque cultural foi um etnocídio e memoricídio premeditado para mutilar a memória histórica e atacar a base fundamental da identidade das populações
  • Com essa estratégia perderam- -se 60% do patrimônio tangível e intangível da região.
  • A transculturação produziu uma operação bem sucedida de alienação.

Maria Teresa Toribio Brittes Lemos.

 


BÁEZ, Fernando. A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2010. Resenha de: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.7, n.7, p.199-201, 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Entre mares: o Brasil dos portugueses | Maria de Nazaré Sarges

Brasil, berço dos imigrantes

Sua raça é mistura

Sem cessar Roberto Ribeiro e Jorge Lucas (Samba Enredo da Escola de Samba Império Serrano, 1977)

A idéia do Brasil como um berço de imigrantes não é mera licença poética, daquelas que o carnaval permite. Italianos, libaneses, espanhóis, húngaros, alemães, japoneses, chineses e poloneses, entre imigrantes de outras nacionalidades, alcançaram o país em diversos momentos, especialmente a partir da formulação de políticas de incentivo à imigração, do último quartel do século XIX em diante. A introdução desses imigrantes conformou definitivamente os rumos da vida brasileira, de modo que as correntes migratórias estabelecidas desde então e a imigração como processo constituíram-se em objetos de estudos especializados.[2]

Visto como aquarela, como cadinho no qual foram forjadas uma nacionalidade e uma identidade singulares, o país se pensa e é pensado a partir da mistura. Autores emblemáticos, constituintes da gênese da moderna historiografia brasileira, participaram da conformação dessa tese, enfatizando o lugar preponderante dos portugueses na conformação dos tipos sociais e da cultura brasileiras. Entre nós, que vivemos e produzimos história a partir da Amazônia, Arthur Cezar Ferreira Reis foi, certamente, o gestor dessa perspectiva. Suas obras repercutem aquela tese para a trajetória histórica da Amazônia. [3]

Os vínculos que unem Portugal e Brasil contribuíram para que o país se tornasse um dos destinos preferenciais de portugueses interessados em emigrar. Aqueles homens e mulheres trouxeram em sua bagagem mais que o interesse de mobilidade e ascensão social, de melhoria das condições materiais de existência; seus valores, tradições, códigos de conduta, vícios e virtudes também compuseram o rol de utensílios que os acompanharam.

As trajetórias percorridas por esses emigrantes têm sido pesquisadas sob diversos aspectos.[4] O livro Entre mares: o Brasil dos portugueses participa da discussão sobre imigração no Brasil por meio da análise das correntes migratórias lusitanas para o Brasil. Nascido a partir do encontro de instituições brasileiras e portuguesas [5] em torno da temática da imigração lusa para o Brasil, o livro apresenta contribuições relevantes à temática, por meio dos artigos que o compõem, os quais resultam das reflexões apresentadas por seus autores no V Seminário Internacional sobre a migração portuguesa, ocorrido em Belém, no Pará, em setembro de 2009.

O livro está dividido em três partes: a primeira trata da presença portuguesa na Amazônia; a segunda aborda as experiências portuguesas em outras partes do Brasil; a terceira e última parte versa sobre aspectos diversos, como legislação, projetos políticos e registros de emigrados. Mais do que sugerem os títulos das partes, os artigos constituem um panorama revelador das possibilidades dos estudos sobre imigração.

Rafael I. Chambouleyron e Paulo C. Gonçalves, cada qual em seu artigo, analisam as motivações dos emigrantes. O primeiro considera a transferência de portugueses para o Estado do Maranhão no século XVII, o segundo sopesa a interferência dos interesses de Estado nos projetos de migrantes portugueses desejosos de se transferirem para o Brasil, ao longo do século XIX. A perspectiva adotada por esses dois trabalhos é complementada por outros que analisam aspectos quantitativos do fenômeno migratório, considerando a saída de portugueses das diversas localidades lusitanas. Maria da C. C. Salgado, Isilda B. da C. Monteiro, Ricardo Rocha, Susana S. Silva, Diogo Ferreira e Fernando de Sousa elaboram estudos que dão conta do perfil dos emigrantes, considerando faixa etária, gênero, funções exercidas e o que mais a documentação permitir, em áreas como a região do Douro e Trás os Montes, o universo insular açoriano e a parte Norte do país, desde o século XIX até bem entrado o século XX. Antonio O. de Souza Jr. e Daniel Barroso consideram o universo brasileiro por essa mesma perspectiva ao analisarem o fluxo de imigrantes portugueses para o Grão-Pará, no início do século XIX.

Outra dimensão dos estudos sobre imigração é satisfeita pelos trabalhos que analisam a experiência dos imigrantes no Brasil. É o caso da reflexão desenvolvida por Eliana R. Ferreira, que considera a presença portuguesa na Vila de Óbidos, no Pará do século XIX. Sênia Bastos analisa a distribuição dos diferentes estratos de imigrantes portugueses pela cidade de São Paulo, nas décadas de 1930 e 1940. Nessa dimensão, destacam-se, particularmente, as pesquisas sobre formas de sociabilidade, estabelecimento de vínculos e estratégias de ascensão social forjadas pelos imigrantes lusos, desde meados do século XIX até a segunda metade do século XX. Roseli Boschilia, Celina Fiamoncini e Giseli C. Passos, Vitor M. M. da Fonseca, Maria A. F. Pereira e Maria S. G. Frutuoso, Andréa T. da Corte, Ismênia Martins, Maria de N. Sarges e Caue Morgado, Cristina D. Cancela e Daniel Barroso e Yvone D. Avelino são autores dos artigos que tratam dessa fração importantíssima do universo imigrante, desvendando a interferência das diversas comunidades portuguesas no mundo em que se inserem. Maria Izilda S. de Matos e Lená M. de Menezes, em artigos próprios, participam desse grupo de trabalhos verificando as estratégias de sobrevivência e inserção social formuladas por mulheres imigrantes.

Aspectos reveladores do fluxo migratório português para o Brasil são perscrutados por outros artigos. O posicionamento da classe política lusa sobre a emigração para o Brasil é analisado por Paula Barros. José S. R. Mendes faz percurso inverso, ao considerar as reflexões dos constituintes brasileiros, de 1946, sobre a participação portuguesa na formulação da cidadania brasileira. Ainda com relação às formulações das elites, Paula M. Santos, Pedro Leitão e Filipe Ramos consideram a legislação portuguesa, produzida durante o Estado Novo português, e Paulo M. dos Santos Jr. analisa a apropriação das teses raciológicas, do final do século XIX, pela imprensa amazonense do início do século XX. O trabalho de Magda Ricci configura contraponto a este conjunto de trabalhos, pois, além de considerar a participação da comunidade luso-paraense na conformação de identidades locais, sopesa a percepção das populações indígenas e negras sobre a emergência daquelas identidades.

Dois trabalhos sugerem um caminho promissor para os estudos sobre imigração ao debruçarem-se sobre trajetórias individuais de imigrantes. É o caso da pesquisa de Aldrin M. de Figueiredo sobre o interessantíssimo caso de um pajé português no Pará oitocentista e o trabalho de Alexandre Hecker sobre a participação de um militante português nos processos iniciais do socialismo no Brasil. Finalmente, o trabalho de José J. de A. Arruda propõe reflexão sobre a apropriação, pelas pesquisas sobre imigração portuguesa, das contribuições formuladas pelos trabalhos que tratam do novo regime de temporalidade.

O livro Entre mares: o Brasil dos portugueses, especialmente pela diversidade dos temas que abarca e das perspectivas adotadas, oferece oportunidade para a reflexão sobre imigração no Brasil e, particularmente, para a consideração da participação portuguesa na conformação de nossas especificidades. Boa leitura!

Notas

2. Destaco os seguintes trabalhos, em os diversos estudos disponíveis: Boris FAUSTO. Negócios e ócios: histórias da imigração. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Jeffrey LESSER. Negociando a Identidade Nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2001; Giralda SEYFERTH; Helión POVOA NETO; Maria C. C. ZANINI. Mundos em Movimento: ensaios sobre migrações. Santa Maria: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2007; Nelma BALDIN. Tão fortes quanto a vontade – história da imigração italiana para o Brasil: os vênetos em Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 1999; Núncia Santoro de CONSTANTINO. Italiano na cidade: a imigração itálica nas cidades brasileiras. Passo Fundo/Porto Alegre: Editora da Universidade Federal de Passo Fundo/ACIRS, 2000; SEYFERTH, Giralda. A Colonização Alemã no Vale do Itajaí-mirim: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Movimento, 1974; Maria Yume TAKEUCHI; Maria Luiza Tucci CARNEIRO (orgs.). Imigrantes Japoneses no Brasil: Trajetória, Imaginário e Memória. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008; Hiroshi SAITO. A presença japonesa no Brasil. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

3. Arthur Cezar Ferreira REIS. A Amazônia que os portugueses revelaram. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1994; A política de Portugal no Vale Amazônico. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1993; A formação espiritual da Amazônia. São Paulo: SPVEA, 1964.

4. Destaco, aqui, os trabalhos que analisam os fluxos migratórios e os percursos de imigrantes portugueses, como os de: Eulália Maria Lahmeyer LOBO. Imigração portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001; José Aurivaldo Sacheta Ramos MENDES. Laços de sangue: privilégios e intolerância à imigração portuguesa no Brasil (1822-1945). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

5. CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, do Porto; Universidade do Porto, Universidade Lusíada; Universidade dos Açores; ISCTE: Universidade Federal do Pará: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: Universidade de São Paulo: Universidade Federal Fluminenses: Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Universidade do Estado de São Paulo e Universidade Mackenzie.

Mauro Cezar Coelho – Professor Adjunto da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará.


SARGES, Maria de Nazaré e outros (Org.). Entre mares: o Brasil dos portugueses.  Belém: Paka-Tatu, 2010. Resenha de: COELHO, Mauro Cezar. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.6, n.6, p.229-232, 2010. Acessar publicação original [DR]

 

Trajetórias de vida na História. | Fernando Tadeu de M. Borges

Trata-se de um livro original, sui generis e excêntrico, escrito por uma coletividade de autores não para exaltar personalidades, mas com o difícil objetivo de compreender, nas entranhas, o processo histórico latino-americano. Sem dúvida, tarefa complicada, não apenas para historiadores profissionais, mas principalmente para pessoas de outras áreas do conhecimento. Mesmo assim, os vinte e quatro artigos publicados por vinte e sete autores diferentes fixaram-se em aspectos instigantes do conhecimento histórico, oferecendo ao leitor interpretações que passam pela família patriarcal brasileira, pelas presenças das mulheres nos discursos históricos e pelas reminiscências da pracinha da vovó, só para citar alguns exemplos.

A satisfação dos autores não é descabida com o resultado do trabalho. Uma publicação como esta poucas vezes acontece nas trajetórias de vida dos próprios escritores. Desde o lançamento em 2008 o livro revelou-se de grande interesse para o público em geral. Centenas de exemplares já foram vendidos e a procura vem aumentando.

Acredito que o grande mérito dos organizadores tenha sido reunir temas tão distintos, alguns até bastante excêntricos, com autores tão variados, tornando o livro, de certa forma, bastante provocativo.

O livro conta com um breve comentário do Professor Marcos Prado de Albuquerque, que ressalta o mérito acadêmico do trabalho, mas enfatiza que o mesmo pode ser lido com muito prazer pelo público em geral e, também, com a epígrafe instigante de Sara Beatriz Guardia, pesquisadora do Instituto de Investigación de la Facultad de Ciencias de la Comunicación de la Universidad de San Martín de Porres (Lima, Peru). A apresentação dos organizadores é um verdadeiro convite à leitura da obra.

Devo registrar que esta coletânea tem para mim um elemento de grande interesse pessoal, pois grande parte dos temas estudados faz parte das minhas predileções como leitor indisciplinado e voraz. Desejo chamar a atenção, por mero interesse subjetivo, para o artigo “Corumbá, Campo Grande, Brasília e Cuiabá: quatro capitais na vida de José Fragelli”, de autoria do Professor Vinícius de Carvalho Araújo. É certo que não posso considerar as minhas experiências pessoais como exemplares, mas tive o privilégio de ser vizinho da família Fragelli, quando residi em Aquidauana, na rua Marechal Mallet. Conservei as mais gratas recordações daquela época na qual me senti completamente enraizado na sociedade mato-grossense, pois a residência da família Fragelli me parecia uma extensão de Cuiabá. Dona Lurdes é uma figura emblemática da cultura local e memória viva. Aproveito para sugerir aos organizadores deste livro um capítulo complementar para a próxima edição sobre esta personalidade feminina que afirma ter lembranças do Conde Labatut, autor de um interessante estudo sobre a Fazenda Francesa visitada, no final dos anos 30 do século XX, por Claude LéviStrauss. Não sei ao certo se as recordações de Dona Lurdes sobre o “nobre” francês são reais, mas o certo é que ela foi lembrada por Nelson Werneck Sodré em um dos seus livros de memórias.

Parece-me, finalmente, interessante confrontar os artigos com as experiências de pesquisas dos autores em diferentes arquivos e com fontes variadas. Logo evidenciam-se a riqueza da literatura historiográfica apresentada ao público e o esforço redobrado de alguns pesquisadores que passaram anos a fio elaborando, burilando, corrigindo e revendo seus temas. É um trabalho de fôlego para ser devorado com sofreguidão pelos amantes da boa história.

Cezar Benevides –  Professor Titular da UFMS.


BORGES, Fernando Tadeu de M. et al (org.). Trajetórias de vida na História. Cuiabá: EdUFMT, Carlini e Caniato Editorial, 2009. Resenha de: BENEVIDES, Cezar. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.6, n.6, p.233-234, 2010. Acessar publicação original [DR]

 

Impérios na história | Francisco Carlos Teixeira da Silva, Ricardo Pereira Cabral e Sidnei J. Munhoz

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; CABRAL, Ricardo Pereira e MUNHOZ, Sidnei J. Impérios na história. Rio de Janeiro: Campus; Elsevier, 2009. Resenha de: CHAVES, Daniel Santiago. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.5, n.5, p.203-205, 2009.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Paisagem estrangeira: memória de um bairro judeu no Rio de Janeiro | Fania Friedman

FRIEDMAN, Fania. Paisagem estrangeira: memória de um bairro judeu no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. Resenha de: SILVA, Lúcia. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.4, n.4, p. 213-216, 2008.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Deserdados: dimensões das desigualdades sociais | Silvio de Almeida Carvalho

CARVALHO, Silvio de Almeida et al. Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro: H.P. Comunicações Editora, 2007. Resenha de: PAIXÃO, Marcelo. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.4, n.4, p.209-212, 2008.

Acesso apenas pelo link original [DR]

História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder | Lúcia Maria B. P. das Neves, Marco Morel e Tânia M. Bessone Ferreira

NEVES, Lúcia Maria B. P. das; MOREL, Marco; FERREIRA, Tânia M. Bessone da C. (Orgs.). História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder.  Rio de Janeiro: DP&A / FAPERJ, 2006. Resenha de: CORRÊA, Maria Letícia. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.3, n.3, p.179-182, 2007.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Portugueses no Brasil: migrantes em dois atos | Ismênia de Lima Martins

MARTINS, Ismênia de Lima; SOUSA, Fernando (Orgs.). Portugueses no Brasil: migrantes em dois atos.  Niterói: Muiraquitã, 2006. Resenha de: KUSHNIR, Beatriz. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.3, n.3, p. 183-184, 2007.

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João do Rio.  A cidade e o poeta | Antonio Edmilson Martins Rodrigues

RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. João do Rio.  A cidade e o poeta.  O olhar de flanêur na Belle Époque Tropical. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. Resenha de: LESSA, Mônica Leite. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.2, n.2, p. 193-195, 2004.

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O Império do Brasil | Lucia Bastos P. das Neves

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira; MACHADO, Humberto. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.2, n.2, p.186-189, 2004.

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Os indesejáveis: desclassificados da modernidade.  Protesto, crime e expulsão na capital federal (1890-1930) | Lená Medeiros de Menezes

MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade.  Protesto, crime e expulsão na capital federal (1890-1930).  Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. Resenha de: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.134-136, 1999.

Acesso apenas pelo link original [DR]

 

 

 

 

 

 

 

 

Maracanan | UERJ | 1999

Maracanan 2

Maracanan (Rio de Janeiro, 1999-) é a publicação científica editada pelo corpo docente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Periodicidade quadrimestral

Acesso livre

ISSN 1807-989X (Impresso)

ISSN 2359-0092 (Online)

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Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889) | Lucia Maria Paschoal Guimarães

GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.  Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889).  Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1997. Resenha de: MOREL, Marco. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.137-138, 1999.

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