Cidade expandida: estudos sobre o esporte nos subúrbios cariocas | Victor Andrade de Melo

O livro Cidade expandida: estudos sobre o esporte nos subúrbios cariocas apresenta uma original pesquisa sobre a prática de esportes nos subúrbios do Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e meados do século XX. Seu autor, Victor Andrade de Melo, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um experimentadíssimo pesquisador da história dos esportes, com mais de 257 artigos e 80 livros publicados. Quando um pesquisador experiente, com uma carreira consolidada e autor de uma produção acadêmica tão prodigiosa destaca o próprio livro como o “projeto de pesquisa mais feliz, mais engajado, mais significativo” (p. 13), convêm examiná-lo com atenção.

O primeiro capítulo do livro apresenta um arcabouço histórico e teórico de alguns dos principais tópicos que presidirão os seguintes, dedicados, cada um deles, à análise de seis circunstâncias mais específicas, como logo veremos. Em última instância, conforme se apresenta já nesse primeiro capítulo, o propósito mais geral do livro é analisar a história da urbanização do Rio de Janeiro. Todavia, tal empreendimento se realiza a partir de um ponto de vista original, que é aquele oferecido pelo estudo da prática de esportes nos subúrbios da cidade. Leia Mais

Territórios ao Sul: escravidão, escritas e fronteiras coloniais e pós-coloniais na América | María Verónica Secreto e Flávio dos Santos Gomes

O livro Territórios ao Sul organizado por Verónica Secreto e Flávio Gomes foi criado com o propósito de conectar histórias e historiografias de africanos e afrodescendentes no Atlântico sul diante da falta de diálogo sobre a influência mútua entre os processos históricos afro-latinos americanos. Os autores discorrem acerca dos silêncios comuns sobre América negra e o quanto são necessárias colaborações intelectuais para romper com os afastamentos entre os processos históricos negros nas Américas. Além do já consagrado Gilberto Freyre que desde a década de 1930 marcou o campo de estudos com seus esforços na tentativa de comparar histórias, também podemos incluir os organizadores dessa obra enquanto autores que se dedicam a relacionar os territórios negros na América Latina.

Desde 1998 Verónica Secreto vêm pensando no mundo rural brasileiro e argentino, sob a perspectiva comparada, o que deu origem ao livro Fronteiras em movimento: História comparada – Argentina e Brasil no século XIX (SECRETO, 2012), em sua obra a autora não deixa de incluir a população negra que é abordada em um capítulo denominado “Páginas de miséria e suor” sobre a mão-de-obra usada nos campos do Oeste Paulista e de Buenos Aires. Já Flávio Gomes, em trajetória enquanto intelectual negro é um estudioso de diversas faces da história dos africanos e afrodescendentes, seja sobre mentalidades ou as diversas formas de lutas políticas e sociais para a resistência ao sistema escravista e a obtenção de igualdade e cidadania. As histórias comparadas e conectadas se incluíram nas metodologias adotadas pelo autor em suas pesquisas desde o ano de 2003, se dedicando principalmente a afro-latino-América. Dentre suas diversas publicações, gostaria de destacar seu artigo sobre a formação de mocambos como uma forma de resistência escrava no Brasil e na Guiana Francesa (GOMES, 2003). Leia Mais

Pois temos touros: touradas no Brasil do século XIX | Victor Andrade de Melo

O livro “Pois temos touros: touradas no Brasil do século XIX”, publicado em 2017 pela editora 7 Letras, foi organizado pelo professor Doutor Victor Andrade de Melo – docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando nos Programas de Pós-Graduação em Educação e História Comparada; coordenador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer; e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Reconhecido por suas pesquisas sobre as práticas físicas de cunho historiográfico, Victor Andrade de Melo junto de mais cinco pesquisadores publicaram a referida obra, dedicando-se exclusivamente às dinâmicas tauromáquicas. Constituído por oito capítulos, o livro analisado tem a intenção de auxiliar os leitores a entender as atividades realizadas com touros em algumas cidades brasileiras, na Península Ibérica e em Moçambique, focando em revelar apontamentos sobre as origens históricas e antropológicas das dinâmicas tauromáquicas em cada contexto investigado. Leia Mais

Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI) | Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon, Silvia Capanema P. Almeida

O Ano da França no Brasil, comemorado em 2009, para além de extensa programação no campo cultural, também inspirou a realização de uma série de eventos acadêmicos, que continuam a dar frutos. Sob a chancela da Editora 7 Letras e da Fundação Casa de Rui Barbosa veio a público em 2017 obra coletiva resultante de colóquio organizado naquele profícuo ano, que reuniu um rol diversificado de especialistas em torno das relações franco-brasileiras.

Abre o volume alentada introdução dos organizadores, que coloca em questão as visões eurocêntricas que fazem do Brasil um receptor, a um tempo passivo e fascinado, de valores e hábitos franceses, tomados como modelo de civilização. Os autores evidenciam que, pelo menos desde meados do século passado, não faltam exemplos de trabalhos a matizar essa leitura, a exemplo dos escritos de Roger Bastide, que já insistia nas trocas bilaterais. Em sintonia com a historiografia contemporânea, que tem evidenciado a força heurística das noções de transferências culturais, histórias conectadas, mestiçagem e história global, o que se propõe é ir além do comparatismo tradicional, que elege um padrão ideal para avaliar o outro, e das noções de centro e periferia, tarefa desafiadora e que se coloca na contra mão de visões cristalizadas e arraigadas no imaginário social e também na produção acadêmica, razão pela qual ainda continuam a se insinuar mesmo entre especialistas.

Seguem-se quinze capítulos, divididos em quatro partes. A primeira delas, “Civilização e barbárie”, traz contribuições de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Ingrid Hötte Ambrogi, Silvia Capanema P. de Almeida e Olivier Compagnon, que problematizam o dualismo enunciado no título a partir de diferentes situações históricas. Assim contemplam-se, respectivamente, as representações – bastante negativas, é bom sublinhar, – difundidas no início do oitocentos no Império português a respeito de Napoleão Bonaparte, quando a Família Real estava instalada no Rio de Janeiro; o ideal perseguido pelos estabelecimentos escolares da Primeira República, claramente calcados em modelos vigentes na França; as caricaturas publicadas a respeito da 1ª Guerra Mundial na Careta, com particular destaque para as que tematizavam a França e, ainda, o posicionamento, nem sempre uníssono, das nossas elites em relação aos contendores, bem como o impacto do conflito e seus desdobramentos nas relações entre os dois países. Trata-se, portanto, de diferentes momentos e contextos a atestar a diversidade de percepções em relação à imagem da França no Brasil, cuja centralidade, tão marcada no decorrer do século XIX, sofreu abalos significativos com a Grande Guerra, aspecto evidenciado por Almeida e Compagnon.

Questões de ordem estética e artística são contempladas nos quatro textos que compõem a segunda parte, “França, mãe das artes”. A produção de Nicolas-Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, que integraram a chamada “missão” francesa de 1816, denominação já relativizada pela rigorosa contextualização das circunstancias que trouxeram ao Rio de Janeiro um grupo de artistas comprometidos com a recém deposta ordem napoleônica, foram abordadas por Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Pires Lima. As contingências políticas, que fizeram da corte lusitana um refúgio seguro que oferecia, pelo menos em tese, várias oportunidades de trabalho, não significou o abandono das relações com a pátria distante, sobretudo em vista das dificuldades enfrentadas no Rio de Janeiro. Se a conjuntura no Hexágono era cuidadosamente acompanhada, tendo em vista o retorno ao solo europeu, a passagem pelos trópicos deixou marcas profundas na produção pictórica, como bem exemplifica a análise dos quadros de Taunay e sua recepção pela crítica francesa, pouco sensível às cores e aos tons da natureza brasileira, o que acaba por colocá-lo num entre lugar – francês no Brasil, estrangeiro em sua terra natal. Já a análise do pano de boca confeccionado por Debret para a coroação de D. Pedro I, que expressava uma certa concepção da jovem nação, sua composição social e futuro projetado, em sintonia com as necessidades e expectativas do poder, adquire outros sentidos quando remetido à posição que ocupou no interior da Viagem pitoresca e histórica no Brasil, às circunstâncias que possibilitaram a publicação da obra entre 1834 e 1839 e às condições reinantes no cenário político francês. Em ambos os casos, trata-se de vias de mão dupla, que problematizam a apreensão ancorada nas ideias de influência e recepção passiva.

Os dilemas em torno das relações nacional e estrangeiro estão presentes nas contribuições de Marize Malta e Maria Luiza Luz Távora. A primeira diz respeito à decoração das residências nos anos 1920, discutida a partir da publicidade estampada na Revista da Semana e A Casa. Em debate os estilos de mobiliário: art-déco, neocolonial e modernismo, com suas linhas simples. Mais do que a opção por um modelo, o que Malta evidencia é o processo de hibridismo, a mistura entre estilos e a apropriação criativa, com a utilização de motivos nacionais, entre eles os marajoaras. Já a discussão suscitada pela presença do artista franco-alemão Johnny Friedlaender no curso inaugural do ateliê de gravura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1959 torna patente as resistências frente às experimentações e propostas estéticas diversas das imperantes no cenário artístico nacional, o que atesta, ainda uma vez, a tensa e complexa relação com as inovações que aqui aportavam, sobretudo numa conjuntura marcada por exacerbado nacionalismo.

A terceira parte, “Grandeza e decadência da mulher francesa”, é composta por três textos que tratam da imagem e do imaginário sobre o feminino, num arco temporal que vai de meados do século XIX às décadas iniciais do século XX, quando a presença da mulher no espaço público começava a alterar e mesmo suberventer a ordem estabelecida e papéis sociais consagrados. As pesquisas de Monica Pimenta Velloso e Lená Medeiros de Menzes privilegiam a figura da cocotte que, a exemplo da modista do início do Império, desfrutava de reputação duvidosa, o que não impedia que fosse objeto de irresistível curiosidade e atração, como bem demonstram as autoras. Velloso explora as ambiguidades do olhar francês sobre o Brasil, a partir de refinada análise do humor “debochado, caricato e anarquiante”, para retomar os seus termos, da revista Ba-ta-clan, que afrontava a sensibilidade e o orgulho locais. Contudo, esse material também permite desvelar valores, desejos e expectativas dos franceses radicados no Rio de Janeiro, num entrecruzamento ambiguo e nem sempre fácil de ser apreendido. Lená Medeiros, por seu turno, exemplifica o périplo transatlântico cumprido por algumas francesas que, contrariamente às suas expectativas e esperanças, enfrentaram uma realidade bem pouco glamourosa. A natureza calidoscópica da questão, diligentemente pontuada no texto, evidencia-se pelo recurso às colunas da Ba-ta-clan, que permitem avaliar o impacto do comportamento transgressor dessas mulheres, que alimentavam a percepção acerca dessas francesas atrevidas, duramente combatidas pelso guardiões da ordem. Fecha o conjunto a contribuição de Cláudia Oliveira, que retoma as representações de Salomé, tematizada na pintura, no teatro, nas revistas ilustradas, com fortes doses de sensualidade. Novamente o que se destaca é a ambivalência diante das mudanças provocadas pela modernidade, num ambiente marcado por significativas transformações na sociabilidade e cotidiano urbanos. Merece particular destaque a análise sensível da Salomé de J. Carlos, publicada em 1927 na revista Para Todos.

Sob a rubrica “O espelho do outro” estão reunidos outros quatro textos que retomam as relações interculturais franco-brasileiras, o primeiro deles a partir da temática da religiosidade e seu surpreendente sincretismo e interconexões, que remetem tanto para a presença de São Luís e outros personagens do ciclo de Carlos Magno nos nossos terreiros quanto à conversão de Pierre Verger, como revela Monique Augras ao explorar as trajetórias e transfigurações desses seres “encantados”. Intercâmbios que também se expressam em periódicos, livros e bibliotecas e na presença de tipógrafos, editores, livreiros, gravadores e litógrafos franceses, que desempenharam papel relevante na difusão da cultura letrada e na ampliação do espaço público, como bem pontua Tania Bessone, que não deixa de assinalar, em sintonia com outras colaborações, o esmaecer dessa presença a partir das primeiras décadas do século XX.

A importância estratégica, para as elites imperiais, de contar com uma percepção positiva a respeito do Brasil na França é discutida por Sébastien Rozeaux. Se, graças à intervenção de Ferdinand Denis e Saint Hilaire, esta expectativa pode ser atendida, a situação alterou-se frente aos relatos bastante ácidos publicados nos anos 1830 na prestigiosa Revue des Deux Mondes. O estudo da reação de indivíduos do calibre de Araújo Porto-Alegre e outras figuras de proa do nosso cenário intelectual permite evidenciar quais eram os anseios da geração romântica, que tomou a si a tarefa de construir uma nação civilizada nos trópicos e de elaborar um discurso autônomo sobre a mesma. O autor explora a sensação de traição e o choque ocasionado pela difusão de percepções pouco confortáveis, fosse a respeito dos vícios sociais, da mestiçagem ou da incomoda questão da escravidão, que maculavam uma imagem pacientemente urdida. Daí o empenho para, se não reparar, pelo menos atenuar as apreensões pouco abonadoras a partir de estratégias discursivas bem diversas: a agressividade e a ironia para o público interno, o tom bem mais conciliador e cauteloso quando o destinatário era o leitor francês. Os estereótipos nacionais figuram em outro registro na colaboração de Anaïs Fléchet, que investiga a maneira como as cidades de Paris e do Rio de Janeiro foram figuradas nas canções populares ao longo do século XX. Mais do que distanciamento, predominam os paralelismo, uma vez que ambas são referidas como lugares distantes, que ativam a imaginação e remetem às aventuras amorosas, compondo uma “geografia musical do imaginário”, na bela definição da autora. Não faltaram referências às mulheres de ambos os lados do Atlântico, descritas em consonância com modelos de há muito em circulação: refinamento/sedução/prostituição, do lado francês, jovem/disponível/ despudorada, no que concerne à brasileira, num quadro de imagens cruzadas – e não raro sobrepostas – que convida a refletir sobre a circularidade das trocas.

A título de conclusão, conta-se com o texto de Robert Frank, que assume o desafio de abordar as relações internacionais em suas dimensões culturais. Para tanto, o autor passa em revista as contribuições de Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle a respeito do significado das mentalidades para a elaboração e difusão de nacionalismos e na relação entre países. À detalhada reconstrução do arsenal analítico proposto, segue-se sua relativização à luz das mudanças introduzidas pelo cultural turn dos anos 1980, que consagrou interpretações ancoradas nas noções de representação, imaginário e identidade.

O rápido deambular por entre os vários capítulos, se não contempla todas as questões abordadas em cada uma das contribuições, é suficiente para evidenciar a importância das mesmas para a temática, que tem recebido atenção significativa nos últimos anos. Cabe ressaltar que as partes acima referidas não devem ser tomadas como conjuntos estanques. De fato, os textos convidam a imaginar outros arranjos e articulações possíveis. Assim, a título de exemplo, Napoleão e os imigrados que deixaram a França após a queda do Imperador são personagens retomados em vários capítulos, tanto quanto o declínio da presença francesa, as referências ao imaginário sobre as mulheres, a oposição (ou a adesão) aos ventos que sopravam da França, os esforços para estabelecer trocas de mão dupla, em lugar das rotas com sentido único. Por certo o leitor será capaz de propor outras possibilidades diante de um rol de contribuições que se revelam tão densas e complexas quanto o objeto a ser desvendado.

Tania Regina de Luca –  Professora Livre Docente em História do Brasil Republicano pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui doutorado e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo e graduação em História pela mesma instituição. Responsável, junto ao CNPq, pelo financiamento do projeto “Estudos de jornais em língua estrangeira” (Transfopress Brasil). E-mail: [email protected]


FLÉCHET, Anaïs; COMPAGNON, Olivier; ALMEIDA, Silvia Capanema P. de. Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7 Letras, 2017. Resenha de: LUCA, Tania Regina de. Sob o signo da complexidade: trocas interculturais entre França e Brasil.  Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 19, p. 216-220, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

Em nome da palavra e da Lei: relações de crédito em Minas Gerais no Oitocentos | Rita de Cássia da Silva Almico

O mercado de crédito. Aparentemente um tema árduo e entediante, que é abordado por Rita de Cássia da Silva Almico de forma original e interessante. Emprestar e tomar emprestado são os dois lados de uma moeda que envolveu os mais diversos setores da sociedade, de fazendeiros, negociantes, pequenos comerciantes, carpinteiros a costureiras, e que, por isso, descortina relações sociais muitas vezes encobertas por análises centradas nos grandes agentes ligados ao complexo cafeeiro. Justamente por não ter por objeto o crédito bancário, mas o mercado de crédito como um todo, abrangendo as relações de empréstimo de dinheiro, bens e serviços, a autora analisa os diferentes aspetos que permitem vislumbrar as relações cotidianas da população de Juiz de Fora da segunda metade do século XIX. Essa é certamente a grande contribuição do livro Em nome da palavra e da Lei: relações de crédito em Minas Gerais no Oitocentos, resultado da tese de doutorado, defendida no PPGH da Universidade Federal Fluminense, em 2009.

O texto flui ao longo de cinco capítulos que escrutinam diferentes aspectos envolvidos nas relações de crédito em Juiz de Fora e seus distritos, buscando não apenas comprovar a existência de um mercado de crédito, mas também analisar suas diversas variáveis. A escolha desse município justifica-se pelo seu papel na região, a Zona da Mata, enquanto “capital regional” (p. 25), cidade destacada não apenas na Província (depois Estado) de Minas Gerais, mas um polo dinâmico integrante do complexo cafeeiro brasileiro, com fortes vínculos com o Rio de Janeiro. O período analisado é delimitado pelos anos de 1850 e 1906, corte cronológico que determinou outra contribuição importante da pesquisa de Almico, pois enfoca as relações de crédito inseridas em uma nova conjuntura institucional, ou seja, a vigência do Código Comercial Brasileiro (Lei n. 556, de 25/06/1850). Conjuntura que sofreu uma inflexão pela crescente intervenção do governo federal a partir do Convênio de Taubaté (1906).

A autora demonstra que Código Comercial contribuiu para a formação do mercado de crédito ao normatizar esse tipo de relação, fornecendo garantias aos credores e estabelecendo canais formais/legais para sua proteção. O recurso sistemático às execuções das dívidas e a celeridade do processo são evidências da eficiência dos mecanismos estabelecidos para a proteção dos credores. É nesse contexto que surge a principal fonte primária utilizada, as ações de execução de dívidas. Ao optar por essa fonte, a autora, conscientemente, limita sua pesquisa àquelas relações de crédito que, diante da inadimplência, foram cobradas judicialmente. Conclui-se que um grande número de relações de crédito escapou à análise, o que deixa várias dúvidas acerca do tamanho desse mercado, sobre os valores envolvidos e a proporção entre as ações de execução e a totalidade das relações de crédito no período estudado. Mas esse limite é sobrepujado pela riqueza de informações que a fonte oferece e por sua abrangência, levando a autora a tomar as relações judicializadas como referência representativa desse universo. Se os inventários post-mortem, com suas dívidas ativas e passivas, e os registros de hipotecas, fontes primárias também exploradas pela autora, oferecem uma visão estática da relação de crédito, as ações de execução de dívida permitem conhecer sua dinâmica, suas características e dar voz a todos os agentes nelas envolvidos. Dessa forma, surgem na análise variáveis como as taxas de juros praticadas, os prazos, as razões para a tomada da dívida e para a inadimplência, o papel das relações familiares e pessoais, os montantes emprestados, as categorias sociais de credores e devedores, a dispersão espacial das relações de crédito, entre outras. Essas ações abrangem relações de empréstimo de dinheiro, serviços e bens, incluindo as hipotecas, mas também aquelas sem esse tipo de garantias. A originalidade do trabalho se encontra em grande parte na sensibilidade de escolher e explorar competentemente essa fonte.

As informações constantes nas ações de execuções de dívidas, complementadas e contrapostas àquelas constantes nos inventários post-mortem e nas escrituras de hipotecas, para além da análise qualitativa, receberam um aprumado tratamento quantitativo, sintetizado em tabelas e gráficos. A análise desses dados permitiu à autora adentrar ao mundo das relações de crédito, não apenas corroborando sua hipótese de existência desse mercado regional de crédito em Juiz de Fora, mas também caracterizando de forma aprofundada a oferta e a demanda por crédito, assim como a trajetória dessa relação nas diferentes conjunturas econômicas do Brasil da segunda metade do século XIX.

A construção da obra traduz esse movimento, integrando a análise qualitativa e a quantitativa dos dados em constante diálogo com a historiografia econômica brasileira e estrangeira. O primeiro capítulo, intitulado “Dar crédito é acreditar: relações de crédito em uma sociedade do século XIX”, além de uma minuciosa análise da origem, da tramitação e implicação das ações de execução de dívidas, estabelecidas pelo Código Comercial de 1850, traz a definição dos conceitos essenciais à análise, tais como o conceito de mercado, de crédito e de circulação da informação. A autora segue a definição de crédito expresso pela historiadora portuguesa Maria Manuela Rocha (Viver de crédito: práticas de empréstimos no consumo individual e na venda a retalho. – Lisboa, séculos XVIII e XIX. Working Papers , Lisboa, GHES, n. 11, 1998), que abrange as trocas de bens e serviços, excetuando alguns casos, tais como dotes e heranças.

Contrapondo sua análise a várias outras que abordaram o crédito envolvendo bancos, comissários do café ou grandes “capitalistas” e relacionadas exclusivamente ao financiamento das atividades do complexo cafeeiro, a autora afirma que não irá utilizar “essa divisão em categorias sociais específicas” (p. 76), o que lhe permitiu visualizar a sociedade de Juiz de Fora nas diversas categorias declaradas pelos agentes, expondo a capilaridade do emprestar e do dever. Nesse sentido, o trabalho insere-se entre as recentes abordagens da historiografia econômica sobre o tema que trouxeram novas questões, tais como a importância e o peso das relações pessoais, os mecanismos informais de crédito, os aspectos não monetários dessa relação, etc.

O segundo capítulo, “Pedir e emprestar: o mercado de crédito em uma comunidade cafeeira”, analisa as diferentes conjunturas econômicas brasileiras na segunda metade do século XIX aos primeiros anos do século seguinte, com destaque para os movimentos decorrentes da crise da Casa Souto (1864) e a crise do Encilhamento, movimentos que tiveram impacto sobre as relações de crédito no Brasil. Demarcados esses momentos e à luz desses movimentos, a autora passa a apresentação do mercado de crédito de Juiz de Fora, apresentado dados gerais da documentação trabalhada, tais como número de processos, valores das dívidas e sua distribuição temporal e espacial, frequência com que os agentes emprestavam e tomavam emprestado, taxas de juros, prazos, garantias, etc. Trata-se de uma visão abrangente, mas que permite ao leitor compreender a pertinência da hipótese da autora, caracterizando, em linhas gerais, a existência de um mercado de crédito em Juiz de Fora e suas imbricações com o mercado nacional.

A partir do terceiro capítulo, “Regiões que emprestam e suas relações de crédito: a natureza das dívidas e a cobrança de juros”, a autora passa a caracterizar as relações estabelecidas nesse mercado: a dispersão espacial de credores e devedores, as taxas de juros praticadas e natureza das dívidas. A análise da distribuição espacial dos credores corrobora a hipótese do caráter regional do mercado de crédito nucleado pela cidade de Juiz de Fora, que abrange preponderantemente a Zona da Mata mineira, mas que se vincula fortemente com a Província/Estado do Rio de Janeiro, com destaque para a capital. Ao analisar a natureza das dívidas, a autora observa o predomínio de fazendeiros, negociantes e bancos nessas relações, as quais envolviam preponderantemente empréstimos de dinheiro (16,5% dos valores e 37% das transações), hipotecas (55,9% dos valores e 25,9% das transações) e letras (14,2% dos valores, representando 15,4% do total de transações creditícias). No entanto, a pesquisa traz à luz vinte e dois tipos de dívidas, revelando as várias formas assumidas pelo crédito, abrangendo o arrendamento de terras, compras de gêneros, jornais de escravos, vales, penhor, serviços prestados, compra e juros de debêntures, etc. Dados que demonstram a diversidade de relações envolvidas. Ponto interessante no trabalho foi demonstrar que as taxas de juros anuais variavam consideravelmente (de 4% a 30% a.a.), mas que predominava, em quase 50% dos contratos de crédito, a taxa de 12% a.a. Confrontando esses dados com os de outros historiadores, Almico observa que as taxas não eram elevadas, não havendo encontrado queixas em relação a cobranças extorsivas nas ações de execução de dívidas pesquisadas.

Os dois últimos capítulos tiveram como objeto de análise os dois polos da relação de crédito: o credor e o devedor. No capítulo “Se constitui meu devedor: credores e suas relações no mercado regional de crédito”, a autora analisa os agentes que emprestavam recursos, em diferentes aspectos, tais como categoria social, número de ações, valores transacionados, etc. O predomínio de emprestadores residentes em Juiz de Fora, seguidos daqueles do Rio de Janeiro, corrobora estudos que evidenciam a origem local dos recursos que financiavam o setor cafeeiro brasileiro, fato que em parte pode ser atribuído ao reduzido número e tardio surgimento de bancos que atendessem à demanda por crédito dos produtores de café. O predomínio de emprestadores residentes em Juiz de Fora corrobora uma das hipóteses da autora, a da existência de um mercado de crédito regional polarizado por aquele município e a importância da circulação de informações na região com uma variável que viabilizava a concretização desses negócios. O universo de credores era composto de 30 ocupações, dentre as quais se encontravam advogados, padeiros, carpinteiros, médicos, etc. Dentre os emprestadores, destacavam-se, em número e nos valores transacionados, aqueles que se identificaram com fazendeiros e negociantes. A participação destacada dos fazendeiros, segundo a autora, traduz a concentração de renda e da propriedade associada à sociedade brasileira e, particularmente, de uma região vinculada ao complexo cafeicultor, mas também permite verificar um transbordamento de recursos gerados pelo setor cafeicultor para outros setores da sociedade através das relações de crédito. Importante observar que os bancos se envolveram em um número pequeno de ações de execução de dívidas (1,93%) quando comparados aos fazendeiros e negociantes; no entanto, é relevante o elevado valor que suas transações, ocupando o terceiro lugar no conjunto do período (19,83%). As ações de execução movidas por bancos tornaram-se mais frequentes somente a partir da década de 1880, e tinham como devedores apenas fazendeiros e negociantes. Fato que evidencia que a maior parte dos devedores buscava recursos junto a outros agentes privados.

Os devedores foram analisados no quinto e último capítulo, “Devo que pagarei: devedores e suas relações no mercado regional de crédito”. Sendo as ações de execução de dívida abertas no município de domicílio dos devedores, esses eram quase que inteiramente residentes em Juiz de Fora e seus distritos (97,4% das ações), excetuando-se apenas aqueles que mudaram após a abertura do processo. Dentre esses destacavam-se os produtores de café, tomados como sinônimo de fazendeiros (62%). Interessante observar que o grupo de devedores era menos diversificado que o de credores; pois suas declarações abrangeram 21 ocupações diversas incluindo, entre outros, barbeiros, carpinteiros, marceneiros, um boticário e um operário. Como a fonte indica, se os fazendeiros se destacavam dentre os tomadores de empréstimos, eram aqueles que tiveram as dívidas executadas com maior frequência, as quais ocorreram predominantemente em conjunturas de crise econômica. Muito relevante é a evidência de que os fazendeiros buscavam empréstimos preferencialmente junto a outros fazendeiros. Da mesma forma, os que se identificavam como negociantes buscavam recursos prioritariamente junto àqueles de mesma ocupação. Fatos que demonstram que a boa circulação de informações, o conhecimento das condições de mercado e, infere-se, as relações pessoais desempenharam um papel importante nessas transações. O capitulo é encerrado com um estudo de caso, o de José Bernardino de Barros, Barão das Três Ilhas, produtor de café de um distrito de Juiz de Fora. Esse caso ganha relevância pela forma como seus credores se articularam em torno dos irmãos do devedor, dentre os quais, Gabriel Antônio de Barros, Barão de São José Del Rey, para reaver seus direitos. A autora demonstra que a ação dos irmãos, administrando as fazendas do devedor, foi pautada pelo desejo não apenas de preservar o patrimônio familiar, mas de garantir os direitos dos quarenta e dois credores.

Um ponto que causa estranhamento é o fato da filiação teórica-metodológica da autora não haver sido explicitada na introdução da obra. Como alertou José Jobson de Arruda (p. 19), na apresentação do livro, essa só é declarada na conclusão, ou seja, quando a autora explicita a influência de historiadores marxistas como Joseph Fontana, François Furet, Eric Hobsbawm e a sua filiação à história quantitativa e serial. O lidar com números, a construção de séries e o manejo de um grande volume de dados são, por si, tarefas árduas que exigem não apenas seleção criteriosa e crítica das fontes, mas também reflexão cuidadosa sobre os métodos empregados. Justamente por isso, sente-se falta de uma discussão mais profunda da metodologia utilizada e de seus pressupostos teóricos na introdução. No entanto, a leitura do livro supre essa lacuna inicial, desvendando um dos méritos da obra. Essa opção metodológica impõe ao historiador muitos cuidados para fugir à armadilha de simplesmente “ler” as tabelas e gráficos ou perder-se em análises baseadas na correção entre variáveis descoladas da realidade. Escapando à armadilha, tão em voga, de tomar o método como um fim em si mesmo, de fazer uma história “sem pessoas”, na qual os números são considerados necessários e suficientes para abrir a janela do passado, Almico busca “qualificar o quantificável” (p. 261). Ela pensa o passado com base nas evidências quantificáveis, as quais analisa em seus contextos para desnudar agentes e processos nem sempre presentes nos estudos sobre a Zona da Mata mineira ou o complexo cafeeiro. Assim, a autora construiu um livro interessante e original sobre um tema aparentemente árduo, revelando, para além de bancos, fazendeiros e grandes negociantes, relações que abrangiam diferentes categorias sociais até então desconhecidas como ofertantes e demandantes de crédito.

Marcia Eckert Miranda – Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]


ALMICO, Rita de Cássia da Silva. Em nome da palavra e da Lei: relações de crédito em Minas Gerais no Oitocentos. Rio de Janeiro: 7 LETRAS, 2015. Resenha de: MIRANDA, Marcia Eckert. Entre devedores e credores: o mercado de crédito em Juiz de Fora, MG, 1850-1906. Almanack, Guarulhos, n.12, p. 209-213, jan./abr., 2016.

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Inconfidência no Império: Goa de 1787 e Rio de Janeiro de 1794 | Anita Correia Lima de Almeida

Publicado em 2011, Inconfidência no Império é fruto da tese de doutorado de Anita Correia Lima de Almeida defendida em 2001 na UFRJ. A obra é um exercício de história comparada que aborda duas Devassas ocorridas em duas colônias geograficamente distantes do Império Português: a prisão dos padres em Goa, no ano de 1787, e a devassa contra os membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, em 1794. Sobre a primeira, existem pouquíssimos estudos publicados no Brasil, enquanto a respeito da Devassa contra os letrados cariocas há uma quantidade considerável de estudos publicados ao longo das últimas décadas.

A divisão do livro em três partes é embasada na noção do século XVIII “de que a máquina política deveria amparar-se nos prêmios e nos castigos” (p.22), sendo a primeira “Os Castigos” (capítulos 1 e 2), a segunda “Os Prêmios” (capítulos 3 a 7) e a terceira, “O louco desejo da liberdade” (capítulos 8, 9 e conclusão). Na introdução da obra, a autora denota que o estudo não seguirá um aporte historiográfico tradicional sobre o tema das “Inconfidências”, distanciando-se da categoria de “Revolução Atlântica”, de Jacques Godechot e buscando a semelhança de ambos os eventos “pelo fato de tanto os letrados naturais de Goa como os fluminenses terem sido alvos da mesma política pombalina que se espraiou de Lisboa para todo o Império na segunda metade do século XVIII” (p.19-20). Parte a autora, portanto, da “relação entre os letrados do ultramar e o pombalismo”. (p.20) A escolha em trabalhar esses dois episódios se deveu não só à interação entre os letrados e a coroa, mas ao fato de que entre os acusados em ambas as Devassas não estão arrolados homens de grandes posses ou endividados com a coroa portuguesa (caso, por exemplo da Inconfidência Mineira). Aqui, no tocante à Devassa do Rio de Janeiro, a autora segue em grande parte o caminho interpretativo de No rascunho da nação: Inconfidência no Rio de Janeiro (1992), de Afonso Carlos Marques dos Santos, realizando boas considerações acerca do quadro, redigido por A. Santos, de composição social dos acusados e testemunhas no processo, e conclui que “a maior parte deles é constituída, certamente, por homens em cujas vidas o estudo formal ocupara um papel importante. (…) E mesmo quando os acusados são oriundos de extratos menos favorecidos, a possibilidade de participar dos ‘conventículos’ está dada pela instrução que possuíam.” (p.67)

Ponto fulcral para o trabalho é a desilusão que os letrados residentes em Goa e na América Portuguesa tiveram com a política imperial e que, no primeiro caso, resultou em um plano de sublevação e, no segundo, em conversas sobre temas proibidos. Ademais, a escolha do uso do vocábulo Inconfidência se deve ao sentido de traição que esta palavra acarreta, “a traição contida na atitude de homens que – aliciados – deveriam ter sido fiéis até o fim, e não o foram”. (p.23)

Outro aspecto relevante está na percepção do caráter exemplar que assumiu a Revolução Americana de 1776 para os letrados luso americanos, o que A. Almeida evidencia ao analisar o episódio das cartas assinadas “por um brasileiro” (p.67), com o pseudônimo de Vendek, a Thomas Jefferson. Na continuação deste excerto, a autora afirma existir um grande descontentamento entre os nascidos na América Portuguesa (aos quais insistentemente utiliza a denominação de “brasileiros”), sendo “os homens de letras” (p.68) responsáveis por liderar a fila de descontentes com o Império.

Cabe atenção também à relevância que a autora dá a uma suposta dicotomia entre reinóis e nascidos na colônia, tendo por base argumentativa a interpretação de Charles Boxer de que “preconceitos raciais” explicariam a grande diferença no número de condenados à morte na Inconfidência de Goa, quinze, e na Inconfidência Mineira, um. Para ratificar essa observação, a autora considera que a conjuntura política teria se modificado nos dois anos que separam ambos os movimentos, considerando que “as notícias da Revolução Francesa chegaram a Lisboa junto com as notícias do frustrado levante em Minas” (p.70). Assim, a maior radicalização na conjuntura europeia teria levado a um “processo de acomodamento” e um “estreitar dos compromissos entre os colonos e a Coroa” (p.70) que ajudariam a explicar a punição menos severa aos inconfidentes de Minas. Tal explicação parece contestável se levarmos em conta a severidade com a qual foi levada a perquirição sobre o suposto plano de levante no qual estavam envolvidos os presos da Devassa de 1794. Foram mais de dois anos de cárcere para esses acusados, sendo que a situação só foi resolvida devido à pressão dos réus junto ao Ministro do Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, que ordenou ao Vice-Rei Conde de Resende decidir-se entre soltá-los ou enviá-los a Portugal. Portanto, percebe-se aqui que a busca por enquadrar as “Inconfidências” dentro de um processo maior, europeu, e de um modelo historiográfico que procurou enquadrar esses movimentos como “reflexos” da Revolução Francesa e de suas ideias, em primeiro lugar e, em menor escala, da influência da Revolução Americana. Tal perspectiva acaba por reduzir as especificidades do pensamento dos envolvidos nas devassas pesquisadas. Poderia ser proveitosa a inclusão, no livro, de mais trabalhos de István Jancsó, sobretudo seu capítulo na História da Vida Privada no Brasil, bem como da tese de Gustavo Tuna sobre o episódio de 1794, defendida na USP em 2009.

Uma arguta observação feita pela autora sobre os documentos de ambas as Devassas, Goa e Rio de Janeiro, e que tem por base dois artigos de David Higgs, é a coexistência de certas críticas à religião e à monarquia de longa data (por exemplo ao refutarem a veracidade da Sagrada Escritura), com críticas relacionadas a conjuntura das Devassas, como no deboche ao reinado de D. João V e ao fanatismo do príncipe D. João VI.

Na segunda parte do livro, No capítulo “O alvará pombalino contra a discriminação dos naturais de Goa”, a autora se vale do argumento novamente de Charles Boxer sobre a “aproximação entre os letrados de várias regiões do ultramar, alvos dos mesmos projetos pedagógicos” e da “política de não discriminação dos naturais” (p.92) para realizar a comparação entre os nascidos na América e os nascidos em Goa (inclusive apontando semelhanças entre a legislação do norte da América Portuguesa com a aplicada em Goa). Inicia o capítulo com apontamentos de Matias Aires sobre a necessidade de se valorizar uma “nobreza de espírito” (letrada) em contraposição à “nobreza de sangue” (p.75) e à tentativa de Pombal levar em conta essa diferenciação, inclusive pelo fato do ministro ser um “novo rico” (p.76). A autora associa essa problemática à discriminação que setores mais conservadores, sobretudo os padres responsáveis pelo ensino, tinham perante os nascidos em Goa e no Rio de Janeiro, pois para a autora ambos “foram alvos de políticas que conservavam algo em comum” (p.92). Políticas estas que, segundo Almeida, buscavam tornar “os naturais habilitados para todas as honras, dignidades, empregos e postos” (p.84). Essa valorização está explicita na análise que a autora faz da Instrução Quatro de 1774 na qual a decadência de Portugal só seria revertida se os portugueses conseguissem “atrair e aliciar a afeição dos naturais” (p.89). Uma dificuldade enfrentada por estas medidas era a concepção por parte de certos atores políticos do período de uma suposta superioridade na cultura portuguesa e europeia em relação às indígenas, bem como a intolerância com os costumes destes demonstrada na atividade de órgãos como o Tribunal da Inquisição de Goa e da parte dos jesuítas, que em seus aldeamentos tutelavam a população local e atrasariam a incorporação desses grupos como súditos do Império. A autora cita o caso dos brâmanes, que na sociedade de castas eram associados a postos de maior prestígio, ligados à religião e à educação, enquanto na “sociedade indo-portuguesa” (p.91) perderam postos na hierarquia social.

No capítulo “O Projeto de reedificação da cidade de Goa”, é feita uma análise dos projetos urbanísticos empreendidos pela coroa portuguesa desde D. João V, e aprimorados por Pombal. O texto trata da reconstrução de Lisboa após o terremoto, momento em que se traça um projeto sistemático que, segundo A. Almeida, seria a expressão de uma “nova mentalidade urbana” (p.96). Na América Portuguesa, existiria um planejamento urbanístico (em cidades do Norte da colônia como Belém, Macapá e Mazagão) associado, segundo a historiadora, a um “‘projeto civilizacional’, criado a partir da necessidade de mediar os conflitos entre colonos e índios” (p.97). Nessa interpretação, salta aos olhos o bom uso de bibliografia de pesquisadores da arquitetura colonial, como Roberta Marx Delson e sua proposta de planificação das cidades coloniais brasileiras; ao aproveitar esse argumento para tratar do caso de Goa, A. Almeida faz um interessante aporte sobre a situação insalubre da “Goa Velha”, atingida por constantes epidemias de cólera, tifo e malária. Aborda o projeto pombalino de reedificação da vila, decretado em 1774, ponto a ponto, bem como a atuação do governador D. Pedro José da Câmara. O projeto não avançou, e para a autora é justamente a expectativa imbuída neste plano que importa: “o que terá significado para esses letrados naturais as tentativas pombalinas de reforma da Índia Portuguesa (…) numa espécie de utopia regressiva e ao mesmo tempo voltada para o novo e, por outro lado, na possibilidade de absorção dos naturais, através do fim da discriminação, que se espraiava o projeto civilizacional pombalino para o oriente português” (p.105).

Ao abordar a Reforma dos Estudos Menores, reforma esta atrelada à reformulação dos currículos da Universidade de Coimbra em 1772, é feito um esboço sobre o cenário existente antes da implementação das Aulas Régias, bem como do pensamento educacional português de meados do século XVIII (principalmente de Ribeiro Sanches e Verney) e a vontade política de Pombal e seus ministros em reduzir o controle jesuítico perante a educação, sobretudo no ambiente colonial, procurando modernizar o sistema e acabar com os métodos empregados pelos religiosos.

A criação das Aulas Régias de Latim, Grego, Retórica e Filosofia Racional e Moral em 1772 propiciou, segundo a autora, a profissionalização do magistério e retirou o vínculo dos professores da esfera eclesiástica, ao mesmo tempo em que valorizou os mestres outorgando-os títulos de nobreza. Entretanto, na prática, muitos problemas surgiram, como a falta de pagamento dos professores régios e a disputa por alunos com os padres.

A figura do padre Caetano Vitorino e suas requisições na Corte pela ordenação de goeses a cargos eclesiásticos e administrativos tem aspecto central para construir a justificativa da autora em comparar os anseios dos letrados da América Portuguesa e de Goa. A autora compara o padre Vitorino a Silva Alvarenga no tocante à confiança de ambos nos “novos tempos” (p.155) trazidos pelo governo de Pombal, e na possibilidade de obterem reconhecimento social por seus serviços prestados à coroa.

No capítulo “a Sociedade Literária, Silva Alvarenga e a Arte Poética”, há o aprofundamento na questão das Academias e de como estas se tornavam espaço de desenvolvimento de estudos sobre a viabilidade econômica de plantas e outros produtos coloniais. No caso do Rio de Janeiro, é abordada a Academia Científica de 1772, fundada com apoio do Vice-Rei Marques de Lavradio com o intuito de aprimorar a produção e utilização de produtos coloniais, como o linho do cânhamo ou a guaxima, além de investirem na descoberta de plantas de uso comercial e/ou medicinal. Assim, esta associação, estava inexoravelmente ligada ao projeto pombalino, assim como a Sociedade Literária esteve, e a atividade do seu membro e professor régio, João Manso Pereira, mineralogista que pesquisou diversos assuntos, comprova. É bastante contundente a observação de como os textos dos agremiados debatiam renomados autores europeus como Buffon, refutando inclusive argumentos deste a respeito da “formação do universo” (p.172).

A autora correlaciona o fato de Manuel Inácio da Silva Alvarenga pertencer a academia à sua preocupação em justificar a utilidade didática de sua poesia, concatenando o “discurso literário” a uma “obrigação cívica” (p.181). Para A. Almeida, esse tipo de preocupação expressaria a “função” do letrado de ser uma espécie de ponte entre a “civilização europeia e sua terra natal” (p.183). É a partir desse excerto que a autora desemboca em um dos principais argumentos de sua tese, de que a frustração dos letrados com o insucesso de seus planos em ascenderem dentro da burocracia imperial, atrelados a um objetivo maior da Coroa Portuguesa, seriam a base, ou justificativa, para o movimento revoltoso de Goa e os acalorados debates sobre temas escusos que levou a prisão dos letrados no Rio de Janeiro. Assim, o fracasso das aulas régias, a não equiparação prática entre reinóis e nascidos em Goa, a insatisfação com o governo do Conde de Resende seriam parte dos “planos abandonados pelo meio, de promessas que o futuro não cumpriu, na qual, acredita-se, encontram-se as raízes do descontentamento dos homens de letras do ultramar” (p.194).

No último capítulo da obra intitulado “O precipício”, a autora considera que o aprendizado da Retórica teria uma “função heurística, de descoberta” (p.204). Ou seja, foi o principal instrumento disponível para os letrados no ambiente colonial poderem questionar as atitudes da metrópole. Assim, aponta-se uma contradição da política pombalina que, segundo a autora, Antônio Nunes Ribeiro Sanches já havia demonstrado em seus escritos a respeito das aulas régias nas colônias, sendo que estas “tinham ajudado a criar entre os súditos naturais o desejo de adquirirem honras (…) e, facilitado certo aprendizado político” (p.204). Portanto, para a autora, “como se quer sugerir, a transformação dos letrados reformistas em inconfidentes tenha sido auxiliada pelo próprio pombalismo, que ofereceu alguns caminhos, como o da retórica” (p.204). Influenciados pela conjuntura internacional, os letrados ressignificavam as obras de Mably e Reynal a partir de sua insatisfação e de seus desejos em se rebelarem contra a metrópole, assim como os revolucionários das Treze Colônias fizeram. A autora reafirma, ao fim do capítulo, a sua proposição de que foi do desejo frustrado em se tornarem vassalos úteis do Império Português que esses letrados “abraçaram ideias – que lhes eram então oferecidas com fartura – contrárias à autoridade da metrópole e, por fim, ao próprio estatuto colonial”.

Ao analisar minuciosamente duas Devassas ocorridas em colônias espacialmente distantes e, em um plano maior, as políticas do Império Português na segunda metade do século XVIII o livro traz as semelhanças que a trajetória dos padres inconfidentes de Goa e os letrados devassados do Rio de Janeiro tinham dentro do projeto pombalino, e as suas decepções ao perceberem o insucesso deste. Inconfidência no Império é uma obra que alia a exaustiva pesquisa documental a uma leitura fluida e agradável, e é de suma importância para os estudiosos da história do Império Português em fins do século XVIII, no ministério de Pombal e no impacto de suas políticas pombalinas no ultramar e aos que buscam compreender a conjuntura das colônias neste fin-de-siècle politicamente agitado.

Lucas Gallo Otto – Graduando no departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil) e bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Anita Correia Lima de. Inconfidência no Império: Goa de 1787 e Rio de Janeiro de 1794. Rio de Janeiro: 7 letras, 2011. Resenha de: OTTO, Lucas Gallo. Frustração, retórica e sublevação: uma leitura sobre as “Inconfidências” de Goa (1787) e do Rio de Janeiro (1794). Almanack, Guarulhos, n.8, p. 157-161, jul./dez., 2014.

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As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América | Keila Grinberg

O livro “As Fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América”, compilado pela professora e historiadora Keila Grinberg é resultado de um seminário organizado pela mesma autora, e que foi realizado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em junho de 2011. Pode-se dizer que o seminário foi fruto do que diversos historiadores têm produzido nos últimos anos sobre o tema da escravidão e da liberdade nas fronteiras platinas. A nova historiografia da escravidão – como assim tem sido chamada – permitiu que novos assuntos entrassem em pauta, ampliando as facetas da organização da sociedade escravista e complexificando as relações entre senhores e escravos.

Em todos os textos que compõem este livro é possível perceber os novos debates realizados no seio da ciência histórica e que consequentemente afetaram também a temática da escravidão e da liberdade no sul da América. Novas narrativas, novos personagens, novas fontes. Parece que o célebre livro Nouvelle Histoire, organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora ainda dão eco em nosso tempo. O leitor verá também que cada artigo traz importantes contribuições de pesquisas desenvolvidas por especialistas na área. Não há dúvida que Keila Grinberg conseguiu unir em seu seminário os principais historiadores da atualidade que se debruçam sobre os temas da fronteira, escravidão e liberdade.

O texto introdutório de Keila Grinberg não busca ser somente um apanhado do que o leitor encontrará no livro, mas apresenta algumas questões que a autora considera pertinentes para entender a história da escravidão e liberdade no sul da América. A primeira delas é que o livro apresenta histórias de “pessoas escravizadas”. Ou seja, um olhar microscópico, em que as experiências dos indivíduos são ricas para se entender o intricado processo de formação dos estados nacionais. Lembramos aqui da própria tese da professora Keila, que buscou investigar a trajetória do mulato Antônio Rebouças e usou sua história como porta de entrada para entender questões de direito, justiça e cidadania no século XIX (O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).

Sobre essa questão é importante recordar dos trabalhos de Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), e o de Giovanni Levi, A Herança Imaterial (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000). Ambos utilizavam a trajetória de um indivíduo para analisar os costumes de toda uma sociedade. Ginzburg usou o moleiro Menóquio para mostrar como um indivíduo excêntrico, que sabia ler e escrever num tempo onde isso era raro, tencionou com os dogmas da Igreja Católica. E Levi utilizou o pároco Chiesa para evidenciar a importância do nome e da influência de seu pai na vila de Piemonte. Estes trabalhos foram os grande ícones da Micro-História italiana e inspiraram toda uma geração de historiadores. Jacques Revel, já na década de 1990, trazia o conceito de jogos de escalas, em que a estrutura social e os indivíduos não eram antagônicos, mas eram visões diferentes que podiam ser somadas e complementadas. O leitor verá nesta resenha histórias de escravos e libertos enquanto sujeitos históricos, conscientes de sua vida e de seus limites.

Keila Grinberg também destaca o conceito de fronteira que os autores do livro utilizam. Não como uma barreira, um limite político que separam nações, mas como uma construção histórica. Afinal, a fronteira é também o que os atores fazem dela. É pertinente lembrar também do conceito de fronteira manejada, aplicada por uma das autoras deste livro, Mariana Thompson Flores, em sua tese recentemente publicada (Crimes de fronteira. A criminalidade na fronteira meridional do Brasil, 1845-1889. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014). Mariana faz uma excelente revisão historiográfica sobre este conceito, mostrando que os historiadores mais tradicionais buscavam uma fronteira que o ajudassem a justificar a condição brasileira original. Ou seja, transformar o Rio Grande do Sul integrado mais ao Brasil do que às colônias platinas. A partir da década de 1990 a fronteira passa a ser vista menos como um limite e mais com um espaço de trocas e embates. Esta visão, mais conciliatória, foi defendida por historiadores brasileiros (Helga Piccolo, César Guazzelli, Helen Osório, Enrique Padrós), mas também por estudiosos uruguaios e argentinos. Posteriormente, historiadores como Mariana Thompson Flores e Luís Augusto Farinatti, muito envolvidos em fontes primárias, perceberam que a fronteira era mais dinâmica do que as polarizações defendidas anteriormente. A fronteira manejada, ou seja, construída, era uma mutação que se alterava em virtude da ação humana e também dos conflitos políticos e sociais existentes no local. Este último conceito será bem percebido nos textos aqui resenhados.

Um dos temas mais frequentes que o leitor verá neste livro são as chamadas fugas para o além-fronteira, conceito cunhado pelo historiador Silmei Petiz. Keila mostrará que a fuga era coisa antiga, que desde a Colônia de Sacramento, em 1762, havia decretos que davam a liberdade aos escravos que fugissem. O mesmo acontecerá ao longo do século XIX, nas colônias espanholas de Jamaica, Cuba e Santo Domingo. Ou seja, as fugas traziam tensões e problemas diplomáticos, pois havia, em toda América, nações abolicionistas e escravistas que faziam fronteiras entre si. É o caso, por exemplo, de Brasil e Uruguai.

Hevelly Ferreira Acruche será a única historiadora a tratar do século XVIII e, mais especificamente, do caso de Buenos Aires, Argentina. Seu artigo apresenta duas histórias e três personagens: o primeiro, Joaquim Acosta, desertor de Rio Pardo, que fugiu em 1772 e obteve do vice-rei de Buenos Aires, Pedro de Cevallos, a possibilidade de estabelecer-se em terras hispânicas como pessoa livre; e os pardos Jerônimo e Francisco, que vieram do Brasil para serem vendidos como escravos em Buenos Aires, porém, mesmo afirmando serem de condição livre foram devolvidos ao comerciante Domingos Peres, por não apresentarem provas suficientes de suas liberdades. Acruche aponta para uma questão importante: as histórias de Joaquim e de Jerônimo e Francisco tiveram resultados distintos, o que evidencia que as questões de escravidão e liberdade que chegavam a Buenos Aires eram complexas e precisam ser analisadas particularmente, dentro de contextos específicos.

O texto seguinte é da historiadora uruguaia Natalia Stalla, que apresenta dados interessantes sobre o peso demográfico da população africana no litoral e na fronteira do Uruguai. Seu artigo, a partir de uma análise mais quantitativa, analisou a população dos departamentos de Colônia e Soriano, regiões litorâneas, buscando comparar com dados anteriores sobre escravidão na fronteira com o Brasil. Em ambos os departamentos, a população masculina era mais numerosa do que a feminina, e tratava-se de uma escravaria jovem, contando com cativos em idade produtiva. No entanto, os números de escravos foram baixos. Em Colônia, 8% e Soriano, 7% dos habitantes. Principalmente, comparando com os dados de Cerro Largo (25%), Tacuarembó (29%), Rocha, (26%). A contribuição de Stalla está em evidenciar a população negra no Uruguai a partir de dados quantitativos, que permitem comparar com as populações afrodescendentes do Brasil e da Argentina.

O artigo de Rachel Caé trata da produção de discursos abolicionistas no Uruguai no ano de 1842, estudando principalmente como a imprensa percebeu o tema da liberdade e da cidadania dos negros, escravos e libertos. O jornal El Nacional defendia a abolição total da escravidão, já o El Constitucional rechaçava tal decisão. A imprensa em Montevidéu estava dividida. Não havia consenso. A contribuição de Caé está em mostrar que as questões de abolição no Uruguai não estavam, somente, atreladas a guerra, mas sim a um conjunto de discursos de liberdade que foram suscitados e eram anteriores ao conflito.

Em seguida temos o ensaio de Carla Menegat, que aborda a presença de proprietários brasileiros estabelecidos no Uruguai entre os anos de 1845 e 1864. A partir de um interessante conjunto de listas, Carla busca mostrar a importância da presença brasileira em solo uruguaio e utiliza a família Brum da Silveira para evidenciar as suas estratégias no que tange os negócios e sua cidadania. Seu trabalho também aponta para como os uruguaios trataram o processo de abolição da escravatura em virtude da presença brasileira em seu solo. Segundo Menegat, com o passar dos anos surgem campanhas de “orientalização” em busca de uma homogeneização da língua e do abandono do uso do português. Em outras palavras, se queria tornar o Uruguai mais unido e com uma identidade nacional própria.

O tema das fugas cativas volta em cena com o texto de Daniela Vallandro de Carvalho. Especificamente, Daniela trabalha com as fugas em tempos de guerra, usando como mote a Guerra dos Farrapos e a Guerra Grande. A autora utiliza também algumas trajetórias para dar vida e sentido para os planos dos escravos. Para Carvalho, a guerra era um excelente momento para que os escravos obtivessem a liberdade: ou por servirem em fileiras de guerra, ou para serem leais e conseguirem mais prestígio com seus senhores. Uma de suas importantes contribuições está em demonstrar que os cativos usavam o Exército para sua maior mobilidade e posterior liberdade.

O artigo de Marcelo Santos Matheus foca em um município fronteiriço específico, o de Alegrete. Sua questão-problema levantada foi como a fronteira influenciou diferentes agentes históricos, tanto os cativos como seus senhores. Alguns casos mostraram como os escravos utilizavam estratégias para chegarem à liberdade e ao mesmo tempo como os senhores manejavam a fronteira ao seu favor. Um dos destaques de seu texto está em mostrar como os escravos usavam a Justiça para conseguirem sua alforria, usando para isso uma interpretação das leis de abolicionistas uruguaias que servisse aos seus interesses. Foi o caso dos cativos que pediam alforria por terem trabalhado no Uruguai após a lei abolicionista de 1842.

Seguindo pelo pagos de Alegrete, o texto de Mariana Thompson Flores nos brinda novamente com o tema das fugas, mas deixa claro de que mesmo que tal assunto tenha sido abordado com frequência, ainda existem aspectos que merecem ser melhor explorados. É o caso do papel dos sedutores que ajudavam e convenciam os escravos a fugirem. Nos processos criminais analisados, Mariana encontrou cinco casos onde os escravos fugiam por conta própria e catorze situações onde houve a participação do sedutor, que os persuadia a uma vida melhor do outro lado da fronteira. A Justiça bem que tentou incriminar os sedutores de escravos e, em muitos casos, conseguiu. Porém, Mariana apresenta diversos casos empíricos que mostram como escravos e sedutores (homens livres ou libertos) aproveitaram deste contexto fronteiriço e se beneficiaram disso.

Continuando com o tema das fugas de escravos para o além-fronteira, Thiago Araujo apresenta o assunto em outra perspectiva, focando nas dificuldades do percurso e na difícil tarefa dos escravos romperem com o mundo da escravidão. Seu objetivo foi mostrar quais eram os mecanismos de controle e vigilância que os senhores acionavam num universo de escravidão na pecuária. A partir do caso de fuga de José, Leopoldino e Adão, Araújo mostra como os senhores de escravos precisavam pensar em políticas de domínio para evitar a fuga de seus cativos. Araújo evidencia que em alguns casos nem a família escrava impedia que os cativos fugissem.

Se Thiago Araújo investigou a fuga de escravos para o Uruguai, o texto de Rafael Peter de Lima aborda outra faceta da escravidão em regiões de fronteira: os sequestros e raptos de negros uruguaios que eram vendidos como escravos no Império do Brasil. Rafael mostra como era difícil definir a condição de afrodescendentes em áreas de fronteira. E mais do que isso. Os problemas diplomáticos e internacionais que surgiam devido a questão do fim ou da permanência da escravidão. Lima também apresenta dados muito interessantes como, por exemplo, o sexo e a idade das vítimas dos sequestros. As mulheres em idade produtiva eram as mais raptadas neste cenário. Por fim, Rafael também nos brinda com dados que apontam que os cônsules uruguaios tiveram sucesso na defesa dos negros orientais na Justiça. Em pouquíssimos casos eles permaneciam na escravidão.

E para finalizar temos o artigo da historiadora uruguaia Karla Chagas que, dos textos apresentados aqui, é o que mais se diferencia em termos de tema e delimitação temporal. Karla avança os marcos da escravidão e apresenta uma entrevista realizada a uma afrodescendente, Cecília, nascida em Rivera em 1904. Seu ensaio pretendeu analisar as linhas de ruptura e de continuidade que houve nas condições de vida da população afro-uruguaia na virada do século XIX para XX. Destacam-se as diferentes estratégias que Cecília utilizou para melhorar suas condições de vida como a fuga de uma casa onde a maltratavam.

O conjunto de textos ora apresentados mostra o avanço das pesquisas sobre a escravidão no espaço platino nos últimos anos. Infelizmente historiadores argentinos não escreveram textos para este livro. Mas muito se tem pesquisado sobre a influência e o impacto da fronteira na vida de senhores e escravos. Também a importância que as leis abolicionistas uruguaias de 1842 e 1846 tiveram para a (des)organização do sistema escravista brasileiro, principalmente, no Rio Grande do Sul. Este livro é o resultado deste cenário. Mostra, entre outras coisas, como as especificidades regionais precisam ser levadas em conta, mas sem perder de vista que os sujeitos históricos possuíam planos próprios que, por vezes, desafiavam o contexto que os mesmos estavam inseridos. Quem for ler o livro “As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América”, organizado pela professora e historiadora Keila Grinberg verá histórias individuais amalgamadas em um contexto mais amplo de disputa e consolidação dos Estados Nacionais. A riqueza está na coletividade e no diálogo que gerou este livro.

Jônatas Marques Caratti – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: [email protected]


GRINBERG, Keila (org.). As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. CARATTI, Jônatas Marques. Escravidão e Liberdade nas fronteiras platinas. Almanack, Guarulhos, n.8, p. 166-169, jul./dez., 2014.

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Combatentes da Paz: os comunistas brasileiros e as campanhas pacifistas dos anos 1950 | Jayme F. Ribeiro

Parece claro a todos nós – como bem nos lembra E. Hobsbawn – que o olhar retrospectivo sobre os acontecimentos é a “arma final do historiador”. O distanciamento temporal dos fatos ocorridos permite-nos um entendimento dos mesmos sob uma perspectiva inalcançável à época em que ocorreram. E é exatamente este exercício que Jayme Ribeiro nos oferece em seu livro sobre a atuação dos comunistas brasileiros nas campanhas pacifistas dos anos 1950. Utilizando extensa pesquisa nos jornais comunistas (assim como nos da grande imprensa) e revistas – e uma boa base iconográfica – o pesquisador, professor e historiador carioca nos remete aos intensos anos 1950, em um momento solidamente marcado pelo recrudescimento da ameaça atômica e da possibilidade de destruição de toda a humanidade em uma guerra entre as superpotências. À sua maneira, os comunistas brasileiros se apropriaram desta conjuntura para lançar no país as bases de uma campanha que buscava mobilizar a militância – e a população de modo geral – em torno de uma suposta “crença no caráter pacifista da URSS”. Leia Mais

América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização | Maria T. T. Lemos

O livro América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização, organizado por Maria T. Toríbio Lemos (Professora da UERJ), tem o objetivo central de realizar um amplo estudo sobre a cultura latino-americana. Fruto das pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudos das Américas (NUCLEAS) e pelo Laboratório de Estudos das Américas (LEPAS) do Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenados pela Professora Toríbio Lemos e pelo Professor Paulo Seda, reúne oito artigos de diferentes pesquisadores e de distintas abordagens da história da América Latina, unidos entre si pela preocupação com as questões atinentes à identidade latino-americana. Em síntese, os textos revelam a inquietude e a particularidade de cada pesquisador ao debruçar-se sobre as adversidades e problemas presentes nas sociedades sulamericana e caribenha “como a violência, a pobreza, a educação, a exclusão social, as grandes diferenças sociais entre ricos e pobres, além dos problemas políticos e econômicos dos diversos países” (p.7).

A obra se desdobra em dois blocos, Sociedades tradicionais e Modernidade e globalização, que dão ao leitor a dimensão espaço-temporal sobre a qual os estudos se lançam. O primeiro bloco, constituído por três artigos, transita “pelas práticas culturais e representações das sociedades tradicionais”, trazendo à luz discussões acerca da alteridade, exercício do poder, mitologia, cerimônias e festividades; já o segundo bloco, composto por cinco textos, transcende os aspectos primários das sociedades ditas “tradicionais”, atingindo “a complexidade das estruturas modernas das sociedades ocidentais” (p.7), abordando as relações da religião e do poder, a efemeridade do tempo presente, a educação e a pluralidade cultural, a economia global e, por fim, o contexto da América Latina no processo das migrações internacionais.

Após essa concisa apresentação da obra, antes de olhar minuciosamente cada artigo, convém lembrar que a questão da identidade mostra-se fundamental nos estudos culturais, na medida em que examinam os contextos dentro e por meio dos quais tanto os indivíduos quanto os grupos constroem, negociam e protegem sua identidade. Desse modo, os estudos culturais valem-se das interpretações que defendem a identidade como uma resposta para algo externo e diferente dela, a alteridade. Notadamente, o reconhecimento dessa identidade como algo que não é somente construído, mas também dependente da existência de um outro, abriu um lócus para grupos marginalizados e oprimidos historicamente objetarem e renegociarem as identidades que lhes foram impostas no processo de dominação. Este entendimento de identidade é a chave para a leitura da obra ora resenhada.

Ao longo do primeiro capítulo, Mundo Novo e Paraíso Terrestre: O Transe dos Viajantes na Conquista da América, Alexandre Belmonte expõe os encontros e confrontos entre culturas a partir de fontes como os registros dos viajantes (exploradores e conquistadores), da cartografia européia do século XV e de obras literárias. Destarte, contextualiza o período, discorrendo sobre a complexidade e as dificuldades em se realizar uma viagem de longo curso para o “Mundo Novo”, sobretudo pela onerosidade de cada aventura e pela necessidade de se conseguir financiamentos que, em geral, provinham do Estado, do clero ou da ascendente burguesia, quando não por todos ao mesmo tempo. Além disso, segundo o autor, havia no imaginário europeu a herança da mentalidade medieval que fomentaria uma perspectiva pessimista em relação às viagens, representada pelos mitos do além-mar.

Todavia, o eixo central deste capítulo começa a ser delineado a partir do retorno dos viajantes para a Europa, visto que “o retorno evocava uma „operação escrituraria‟ […] em que a alteridade era definida por um corte que marcava a diferença” (p.16). Eis o ponto. Para Belmonte não interessa tanto os modos de ser e viver dos ameríndios, pois “são muito mais interessantes as próprias possibilidades discursivas dos europeus sobre a alteridade representada pelos indígenas do Mundo Novo do que o modus vivendi destes” (p.17). Assim, o olhar europeu transcrito nos relatos e narrativas dos viajantes, permite ao pesquisador observar as cosmovisões e os imaginários que colocaram o europeu em contato com a alteridade cultural de forma abrupta e total.

A constatação do alto grau de organização e desenvolvimento dos Astecas, feita pelos espanhóis quando da chegada ao México, é explorada pelo professor Paulo Roberto Gomes Seda. Este os ordena a partir da influência da religião praticada pelos Astecas do período arcaico e pelos remanescentes da civilização Tolteca. Guerra, religião e poder entre os Astecas, assim chama-se o segundo capítulo, no qual o autor mostra com muita perspicácia que o contato, o conflito e a conjugação de costumes, tradições, ritos e mitos, ocorridos na peregrinação dos “bárbaros” Astecas para as regiões das cidades do lago, onde aconteceu o choque com as tribos que ali viviam, transformaria definitivamente a história desses povos, alçando os Astecas à condição de herdeiros das brilhantes civilizações do México central, tornando-os senhores de um vasto império.

O cerne do trabalho de Seda imperiosamente se coloca na exposição da organização e do exercício do poder entre os Astecas, ocorrida progressivamente a partir da religião e de uma dualidade por ela forjada que, em menos de dois séculos, intensificou-se e espraiou-se para todos os âmbitos da vida pública e privada deste povo, altamente ritualístico e crente. De um lado, o culto aos deuses guerreiros Huitzilopochtl e Tezcatlipoca, respectivamente, o grande deus solar e o deus do céu noturno, das trevas e do vento da noite; de outro, a incorporação dos deuses da terra e da água das civilizações sedentárias: Tláloc, deus camponês; e Quetzalcoatl, deus padroeiro dos sacerdotes. O paradoxo assinalado pelo autor incide justamente na questão da religião, pois esta mesma construção identitária, religiosa, dicotômica, que elevou os Astecas à hegemonia do Altiplano central, também foi, segundo ele, um dos fatores capitais para a derrocada dos Astecas frente aos conquistadores espanhóis, uma vez que essa religiosidade “contribuiu para modificar profundamente a hierarquia de valores reconhecidos por uma civilização dividida em si mesma pela dualidade de suas origens. […] dualidade presente, inclusive, diante dos conquistadores (deuses ou humanos), levando à posição vacilante do imperador e da própria sociedade” (p.53).

Dando continuidade às questões religiosas, mitológicas e ritualísticas das sociedades tradicionais, o estudo de caso intitulado Mitos e ritos andinos – Wana kawri Waka – Percursos entre as tradições orais e a contextualização dramatizada da história, apresentado pela professora Maria Teresa Toríbio B. Lemos, encerra o primeiro bloco do livro. Neste terceiro capítulo, a autora descreve aspectos das práticas culturais e representações simbólicas da antiga sociedade quéchua em homenagem ao deus Wana Kawri, considerado pelos camponeses da região andina “um deus protetor e reprodutor, que fertiliza o solo e multiplica a produção naquela região árida dos Andes” (p.56). Nesta parte, Lemos acentua a importância dos mitos para essas sociedades, distinguindo-os do rito e da cerimônia, e busca no relato de Felipe Guaman Poma de Ayala – um dos principais cronistas do Vice-Reino do Peru no século XVII – a recuperação histórica das narrativas míticas e ritualísticas quéchuas, fontes valiosas para “o conhecimento desses dois universos em confronto, o da sociedade nativa quéchua e o do dominador espanhol na América” (p.59). Ao fim e ao cabo, Maria Lemos discorre sobre a estratégia praticada pelos espanhóis na conquista da região andina e aponta para a importância do cristianismo, da evangelização mediada pela aproximação e identificação das divindades indígenas, como poderoso mecanismo de aculturação desses povos. Dessa forma, à medida que se desqualificavam os deuses indígenas, impunha-se legitimamente o Deus cristão e, por conseguinte, a cultura européia. Para além destas questões, o estudo se justifica pela tenacidade desses mitos que, ainda hoje, são reproduzidos, ressignificados e reelaborados pelo imaginário e pela memória coletiva dessas comunidades durante as festas agrícolas e folclóricas na região andina do Peru, Bolívia e Equador.

O quarto capítulo inaugura o segundo bloco e traz como principal discussão as relações de poder, expressadas, neste caso, pela instituição religiosa e/ou pelas “autoridades” religiosas. Sob o título Religião e Poder na América Latina: Um breve estudo sobre a religião como forma de controle social no Brasil, Gilberto Angellozi recorda que as relações de poder se estabelecem em todos os níveis, formal ou informal, por um determinado período ou perpetuamente. Igualmente, enfatiza que violenta ou não, a coerção não deixa de existir e aquele que a exerce ou faz uso dos seus mecanismos adquire poder sobre o outro e isso lhe dá prazer. Ocorre que, para o autor, o poder religioso passa por esse mesmo princípio e “o exercício do poder se estabelece ainda hoje como forma de libertação, especialmente nos meios religiosos, onde os fundamentalismos, sejam de direita ou de esquerda, tendem a reproduzir estruturas de dominação” (p.70). Nesse momento, o leitor tem a falsa impressão de que determinados segmentos religiosos, menos radicais, não estariam submetidos aos mecanismos do poder e aos sistemas de coerção anteriormente descritos como presentes “em todos os níveis” da vida social. É possível que essa afirmação derive da própria influência religiosa do autor que, entre outras formações, é teólogo. Talvez por isso acredite internamente em alguma forma de religião não dominadora. Afora esta crítica pontual, o estudo revela-se desvelado de uma ideologia cristã. Aliás, notoriamente, Angellozi apresenta a religião como fonte de poder e dominação, assinalando no desrespeito ao próximo, ao diferente, um dos principais causadores dos problemas sociais do passado e do presente, pois “sempre que alguém usa alguém para garantir o alicerce de um projeto pessoal, a figura do outro desaparece. Ocorre assim o desrespeito pela vida, que se traduz em destruição da natureza e das relações sociais e políticas” (p.80).

No quinto capítulo intitulado Pós Modernidade – O Sólido se Desmancha – O Eterno é Provisório e o Futuro é Presente, Raimundo Lopes Matos propõe uma análise prospectiva da Pós-Modernidade e ressalta a importância da mudança de paradigma ao observar as suas influências e conseqüências na vida do homem nos seus múltiplos domínios. Antes de tudo, o autor conceitua e situa historicamente a Pós-Modernidade, tarefa que lhe ocupa boa parte do texto. Também utiliza outros conceitos fundamentais para o entendimento deste tempo presente como, por exemplo, a globalização e a desterritorialização. Conclui afirmando que todos, em todos os âmbitos, estão envolvidos na cultura do consumismo, do veloz, do instantâneo e do on-line, “celebrando uma nova época”, “resultando em uma pluralidade de fragmentos complexos e um fluir de uma presentidade inarredável” (p.94).

Luiz Henrique Nunes Bahia, Maria Cristina Leal e Célia Linhares, escrevem conjuntamente o sexto capítulo denominado Debate sobre o pluriculturalismo na Gestão da Educação Pública: Estado do Rio de Janeiro e Rede Municipal de Nova Iguaçu. Dentro da conjuntura atual, os autores entendem que há uma pluralização da cultura urbana como resultado direto do confronto de múltiplas mensagens e ideais dispersos na sociedade globalizada. Essa dinâmica é projetada para as relações de poder e dominação de grupos e instituições, onde os pesquisadores exploram “os contrastes e tensões entre culturas políticas manifestas nos depoimentos de professores e demais segmentos da comunidade escolar” (p.99). Especificamente, nesta pesquisa, fez-se a análise comparativa entre duas regiões e contextos distintos: a rede pública estadual de ensino (RJ) e a rede pública municipal (Nova Iguaçu/RJ). Analiticamente, observaram que a pluralidade cultural encontrada hoje nas cidades mantém as hegemonias do centro decisor maior, mas conserva lugares ainda de natureza local que permitem entender as formas hegemônicas de poder.

O sétimo capítulo, As negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio e o papel do Mercosul, de Aléxis Toríbio Dantas, esboça sucintamente a evolução do Mercosul e suas ações nas negociações recentes, de maneira especial, frente à OMC, sublinhando a importância dos acordos regionais para os países emergentes, garantia de maior poder de barganha destes países perante os Estados Unidos e à União Européia. Já no último capítulo, intitulado Movimentos sociais da América Latina e a construção de novas identidades, Maria Luzia Landim trata da questão imigratória no nordeste do Brasil e reflete sobre as dinâmicas geradas nos processos de adaptação e estabelecimento físico destas pessoas, especialmente, no que concerne aos sentimentos de perda de identidade, imediatamente compensados pela procura ou criação de novos contextos e retóricas identitárias.

Finalmente, se, pelo exposto, pode-se ter uma noção sobre a questão identitária na América Latina, o conjunto de artigos apresentados mostra a amplitude e a pluralidade de temas que emergem desse recorte temático, bem como deixa muito claro que este não é um debate estanque, inexorável, mas sim uma discussão que se renova e se amplia a cada dia. Portanto, o principal mérito do livro reside na proposta abrangente e aberta dos autores de trazerem à luz assuntos polêmicos sem a pretensão de oferecer respostas definitivas, sem dúvida, instigando o leitor mais inquieto a buscar suas próprias conclusões.

Fábio Bastos Rufino – Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Bolsista CAPES.


LEMOS, Maria Teresa Toríbio (org.). América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. Resenha de: RUFINO, Fábio Bastos. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 146- 151, jul. / dez., 2009.

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