Fotografia, Cultura Visual e História: perspectivas teóricas e metodológicas / Estudos Ibero-Americanos / 2018

Nos últimos 25 anos a fotografia consolidou-se, no campo dos estudos históricos, como fonte de pesquisa e objeto de análise. Ultrapassamos uma história da fotografia, tradicionalmente, concebida como história da técnica ou do gênero fotográfico, para incorporar as dimensões de prática social e de experiência histórica associadas aos modos de ver, dar a ver e representar fotograficamente o mundo social. Os dispositivos óticos associados à visão, os espaços de sociabilidade em que se desenvolveu uma cultura visual cada vez mais complexa, contemplando públicos e observadores com objetivos e propósitos diferentes, passaram a integrar as problemáticas de pesquisa história. As noções de visualidade, a ideia de observador, de público, de prática fotográfica, de experiência visual se tornaram familiares à oficina da História, embora o mundo das imagens não seja desprovido de conflitos, ganhamos muito com a adesão das imagens à causa historiográfica.

Os artigos reunidos nesse dossiê se debruçam sobre a relação entre fotografia e história em diferentes chaves de abordagem. Um primeiro conjunto de artigos aborda questões associadas aos debates teóricos, metodológicos, filosóficos e estéticos. A esse primeiro grupo de questões fundadoras se desdobram abordagens que se dedicam a compreender os percursos de algumas fotografias em seus deslocamentos no mundo das imagens, nos levando para os universos onde as imagens habitam e ganham materialidade, fotolivros, revistas ilustradas, séries fotográficas e exposições. Ressalta-se, entretanto, que na riqueza das diferentes abordagens que compõem o dossiê reside a sua melhor qualidade.

Os estudos sobre os gêneros fotográficos ganham especial atenção no artigo de John Mraz, “Analysing Historical Photographs: Genres, Functions, and Mehodologies”. Na proposta de Mraz, a análise histórica desempenha papel fundamental na definição dos gêneros fotográficos por meio da diferenciação das situações em que as fotografias foram produzidas. Na perspectiva do autor, trata-se de compreender que o fotojornalismo como um gênero se apresenta em diferentes funções: fotografia de imprensa, fotojornalismo, documentalismo e foto-ensaio, impondo a análise histórica como condição para que não se confunda gênero fotográfico com a sua função.

Em “Fotografia e Antropogenese: o melhor amigo do homem”, Mauricio Lissovsky nos proporciona uma reflexão singular sobre homens e cães. Escreve no ritmo das analogias visuais e vai buscando para cada um dos sintomas da imagem que permite a comparação, uma história, uma narrativa que afasta a semelhança entre os duplos nos remetendo para novas imagens. O resultado disso é uma fabulação em que a imagem se torna sujeito de uma aventura, em que humanos e caninos se duplicam e transmutam-se, revelando situações extraordinárias. Em suas reflexões a câmera fotográfica como máquina antropológica, segundo Agamben, desvelaria a humanidade de cada sujeito fotografado.

No potencial teórico-metodológico da fotografia de moda assenta-se a base de argumentação de Maria do Carmo Rainho em “Imagens encenadas? Atos performativos e construção de sujeitos nas fotografias de moda”. Sua reflexão apoia-se em uma larga trajetória com pesquisas sobre vestuário, circuitos de moda e representação do corpo tendo a fotografia como fonte e objeto de análise, o que a possibilita traçar percursos possíveis para pesquisas em que a fotografia de moda ilumine questões sobre a sociedade que a produz e a consome. O valor epistemológico dos estudos sobre imagem da moda, na concepção de Rainho, reside em tomar sua dimensão estética como agente de representações sociais, o que permite transcender o valor utilitário da moda como mercadoria, e da fotografia de moda como ilustração.

Nos deslocamos das questões teóricas e metodológicas operadas em marcos mais amplos, para a análise de trajetórias de imagens particulares e individualizadas. No artigo, “Circuitos e potencial icônico da fotografia: o caso Aylan Kurdi”, as pesquisadoras Solange Ferraz de Lima e Vania Carneiro de Carvalho tomam a fotografia de Aylan Kurdi, produzida pelo fotógrafo Nilfüfer Demir, como ponto de partida para refletir sobre a materialidade da imagem na era digital, seu potencial icônico e sua capacidade de guardar marcas do acontecimento registrado. O exercício de análise apoia-se na consagrada abordagem de Ulpiano Bezerra de Meneses, em uma das suas brilhantes referências para o estudo da imagem, em especial, da imagem fotográfica. Entretanto, mais do que fazer valer uma metodologia de análise fotográfica, as autoras nos proporcionam uma profunda reflexão sobre o papel da imagem na cultura contemporânea das mídias digitais em rede.

Os estudos visuais sobre fotografia, em chave interdisciplinar, se fazem presentes na abordagem de Cleopatra Barrios e Mariana Giordano, em “Violencia, memoria y mito. Espectacularización de la muerte en la fotografía de Isidro Velázquez (Argentina)”. Em sua análise, a espetacularização da morte e da violência são operados por meio do estudo da relação entre fotografia pública, representações iconográficas do corpo morto e a cultura visual Latino-Americana. Avalia-se os circuitos e os percursos das fotografias de Isidro Velázquez de registro policial à santificação popular.

Ainda na linha das trajetórias das imagens se insere a abordagem de Marcos Felipe de Brum Lopes, no artigo “Migrantes e fantasmas: imagens e figuras de Benjamin Constant”. A imagem heroica do fundador da República Benjamin Constant é analisada pelo autor através do mapeamento das trajetórias das figuras de diferentes tamanhos e formatos em que essa imagem foi materializada. Ao analisar os significados históricos das imagens em trânsito por diferentes suportes, Lopes, defende a ideia de que o movimento positivista buscou configurar, no final do século XIX, um observadorcidadão, que acreditava no poder das imagens seculares e heroicas. Ponderar sobre o poder de mobilização das imagens em situação de crise política é o desafio que o artigo nos coloca ao final.

Das imagens dotadas de corpo para as imagensmeio, os artigos que se somam ao dossiê abordam um conjunto de questões que envolvem: os objetos-meios em que as fotografias circulam; o papel da imprensa na consolidação dos espaços públicos visuais; da fotografia como mensagem de amplo alcance; os circuitos sociais das fotografias e seus usos públicos. Em “Cornucópia visual mexicana: as fotografias do livro México seus recursos naturais, sua situação atual, 1922”, Carlos Alberto Sampaio Barbosa, analisa o discurso visual criado pelo corpo diplomático mexicano como forma de propaganda da cultura e da política do México no Brasil. A publicação em formato de livro, amplamente ilustrado com fotografias, foi elaborada como parte dos preparativos da comitiva mexicana na Exposição do Centenário da Independência do Brasil em 1922, constituindo-se uma narrativa visual sobre o México que se complementava com outros aspectos da participação mexicana no evento.

Em “Imagens da desigualdade em fotolivros do Rio de Janeiro: a visualidade na história de um conceito”, Maria Inez Turazzi reune a abordagem da história dos conceitos à da história visual para problematizar a natureza complexa das narrativas visuais e textuais que compõem os fotolivros. No caso em estudo, a cidade do Rio de Janeiro torna-se palco em que se encenam representações de desigualdade, o meio de circulação da mise-en-scène são livros-objetos, fotolivros, sobretudo um especialmente produzido sobre o Rio de Janeiro (Zauberhaftes Rio / Strolling through Rio, 1958) pelo fotógrafo alemão Hans Mann, como parte de seu trabalho sobre a América do Sul realizado entre as décadas de 1940 e 1950. Em sua análise, Turazzi busca problematizar a visualidade da pobreza na representação da “paisagem carioca”, compreendida nas dimensões de construção simbólica e patrimonial.

As revistas ilustradas merecem destaque no artigo de Cora Gamarnik, “La fotografía en la revista Caras y Caretas en Argentina (1898-1939): innovaciones técnicas, profesionalización e imágenes de actualidad”. A revista Caras y Caretas, publicação argentina, atua como plataforma para Gamarnik avaliar as profundas transformações que a imprensa passou com a introdução massiva de fotografias como forma de registrar as notícias, eventos sociais, políticos e acontecimentos em geral, atraindo novos leitores e ampliando seus públicos por meio da imagem. Paralelamente, a autora avalia as mudanças operadas na dinâmica da imprensa com a valorização da fotografia tanto como atrativo e estratégia de venda, como meio de figurar a modernização nacional e os conflitos políticos que esse processo envolveu. Apoiada em minuciosa análise das fontes, o estudo revela aspectos importantes sobre a consolidação sul-americana de um espaço público visual nos primeiros trinta anos do século XX.

O potencial indiciário da fotografia é explorado no artigo de Marco Antonio León León, “Pesquisas visuales – Representación e identificación criminal a través de revistas policiales chilenas (1934-1961)”, que tem como objeto três revistas publicadas pela Polícia de Investigação chilena entre 1934 e 1961. Em sua análise, León centra-se na seção “galeria de delicuentes” para descortinar os sentidos atribuídos visualmente aos criminosos e delinquentes para que o público pudesse identificar, em registro lombrosiano, os inimigos sociais. Em diálogo com as tradições francesas de identificação criminal, o autor avalia o papel da fotografia de registro criminal para a conformação de um discurso de controle social no Chile.

A fotografia humanista no pós-Segunda Guerra é o tema do artigo “As famílias dos homens. Os trânsitos do humanismo na fotografia internacional e brasileira”, de Erika Zerwes. Parte-se de uma das primeiras séries fotográficas realizada por Claudia Andujar, sobre famílias brasileiras (1960-62), para em registro comparativo com a série de fotorreportagens intitulada People are people the world over (1948-49) e a exposição Family of Man (1955), avaliar os percursos da fotografia humanista. As imagens em trânsito, movidas por impulsos diferentes, mas com o mesmo propósito: documentar a experiência humana fotograficamente. Da busca de compreender o outro por meio da linguagem universal da fotografia, no caso de Claudia Andujar, passando pelo registro de como viviam as pessoas mundo a fora, no caso da fotorreportagem publicada no Ladies’ Home Journal, e chegando ao apelo universalista da exposição do MOMA, afirma-se uma prática fotográfica de viés humanista, que nos leva a indagar sobre o destino das imagens em um mundo de contrastes e desigualdades em dimensões globais.

Nosso dossiê completa-se com uma entrevista com a historiadora da arte e professora Annateresa Fabris, enfatizando as relações entre fotografia, artes e estudos da imagem como parte da trajetória de uma das mais importantes autoras sobre o tema em âmbito nacional e, não seria exagero dizer, internacional. Concluindo-se com duas resenhas de livros voltados para a problemática da fotografia na pesquisa histórica e em arquivos – “Más allá de la simple imagen: fotografía e investigación” – e para a os itinerários históricos da fotografia na América Latina – “Notas sobre uma história da fotografia na América Latina”, escritos respectivamente por duas especialistas em estudos sobre a fotografia, Núria Rius e Carolina Etcheverry.

Boa leitura!

Ana Maria Mauad – Professora titular do Departamento de História e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF. E-mail: [email protected]

Charles Monteiro – Professor adjunto do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: [email protected]


MAUAD, Ana Maria; MONTEIRO, Charles. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 1, jan. / abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

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