Quadrinhos & cultura visual: modos de ver e ler histórias | ArtCultura | 2019

Este dossiê pretende apresentar novos olhares sobre as pesquisas em torno de cultura visual e HQs. Longe de pensá-las como meros reflexos da sociedade, os artigos aqui reunidos elaboram análises a partir de aspectos concernentes à linguagem das HQs (quadros, balões etc.), bem como examinam os seus impactos na construção do olhar ao longo do tempo. Sendo este um campo passível de exploração por pesquisadores das humanidades, espera-se que essas colaborações contribuam para estabelecer as HQs como um modo de expressão fundamental para o estudo da cultural visual dos séculos XIX e XX.

O trabalho de abertura de Arthur Valle (UFRRJ) procura delinear conexões entre duas modalidades de História: a História em Quadrinhos e a História da Arte. Com base nas HQs centradas no universo da produção artística, o autor analisa procedimentos e caminhos adotados por quadrinistas que, por vezes, assemelham-se àqueles percorridos por historiadores da arte. Tal relação é enfrentada sem medos por Valle, que sugere a seguinte provocação: em que medida a abordagem de historiadores da arte como John Berger e Aby Warburg não se aproximaria dos tipos de narrativa visual que associamos mais diretamente às HQs? Leia Mais

Fotografia, Cultura Visual e História: perspectivas teóricas e metodológicas / Estudos Ibero-Americanos / 2018

Nos últimos 25 anos a fotografia consolidou-se, no campo dos estudos históricos, como fonte de pesquisa e objeto de análise. Ultrapassamos uma história da fotografia, tradicionalmente, concebida como história da técnica ou do gênero fotográfico, para incorporar as dimensões de prática social e de experiência histórica associadas aos modos de ver, dar a ver e representar fotograficamente o mundo social. Os dispositivos óticos associados à visão, os espaços de sociabilidade em que se desenvolveu uma cultura visual cada vez mais complexa, contemplando públicos e observadores com objetivos e propósitos diferentes, passaram a integrar as problemáticas de pesquisa história. As noções de visualidade, a ideia de observador, de público, de prática fotográfica, de experiência visual se tornaram familiares à oficina da História, embora o mundo das imagens não seja desprovido de conflitos, ganhamos muito com a adesão das imagens à causa historiográfica.

Os artigos reunidos nesse dossiê se debruçam sobre a relação entre fotografia e história em diferentes chaves de abordagem. Um primeiro conjunto de artigos aborda questões associadas aos debates teóricos, metodológicos, filosóficos e estéticos. A esse primeiro grupo de questões fundadoras se desdobram abordagens que se dedicam a compreender os percursos de algumas fotografias em seus deslocamentos no mundo das imagens, nos levando para os universos onde as imagens habitam e ganham materialidade, fotolivros, revistas ilustradas, séries fotográficas e exposições. Ressalta-se, entretanto, que na riqueza das diferentes abordagens que compõem o dossiê reside a sua melhor qualidade.

Os estudos sobre os gêneros fotográficos ganham especial atenção no artigo de John Mraz, “Analysing Historical Photographs: Genres, Functions, and Mehodologies”. Na proposta de Mraz, a análise histórica desempenha papel fundamental na definição dos gêneros fotográficos por meio da diferenciação das situações em que as fotografias foram produzidas. Na perspectiva do autor, trata-se de compreender que o fotojornalismo como um gênero se apresenta em diferentes funções: fotografia de imprensa, fotojornalismo, documentalismo e foto-ensaio, impondo a análise histórica como condição para que não se confunda gênero fotográfico com a sua função.

Em “Fotografia e Antropogenese: o melhor amigo do homem”, Mauricio Lissovsky nos proporciona uma reflexão singular sobre homens e cães. Escreve no ritmo das analogias visuais e vai buscando para cada um dos sintomas da imagem que permite a comparação, uma história, uma narrativa que afasta a semelhança entre os duplos nos remetendo para novas imagens. O resultado disso é uma fabulação em que a imagem se torna sujeito de uma aventura, em que humanos e caninos se duplicam e transmutam-se, revelando situações extraordinárias. Em suas reflexões a câmera fotográfica como máquina antropológica, segundo Agamben, desvelaria a humanidade de cada sujeito fotografado.

No potencial teórico-metodológico da fotografia de moda assenta-se a base de argumentação de Maria do Carmo Rainho em “Imagens encenadas? Atos performativos e construção de sujeitos nas fotografias de moda”. Sua reflexão apoia-se em uma larga trajetória com pesquisas sobre vestuário, circuitos de moda e representação do corpo tendo a fotografia como fonte e objeto de análise, o que a possibilita traçar percursos possíveis para pesquisas em que a fotografia de moda ilumine questões sobre a sociedade que a produz e a consome. O valor epistemológico dos estudos sobre imagem da moda, na concepção de Rainho, reside em tomar sua dimensão estética como agente de representações sociais, o que permite transcender o valor utilitário da moda como mercadoria, e da fotografia de moda como ilustração.

Nos deslocamos das questões teóricas e metodológicas operadas em marcos mais amplos, para a análise de trajetórias de imagens particulares e individualizadas. No artigo, “Circuitos e potencial icônico da fotografia: o caso Aylan Kurdi”, as pesquisadoras Solange Ferraz de Lima e Vania Carneiro de Carvalho tomam a fotografia de Aylan Kurdi, produzida pelo fotógrafo Nilfüfer Demir, como ponto de partida para refletir sobre a materialidade da imagem na era digital, seu potencial icônico e sua capacidade de guardar marcas do acontecimento registrado. O exercício de análise apoia-se na consagrada abordagem de Ulpiano Bezerra de Meneses, em uma das suas brilhantes referências para o estudo da imagem, em especial, da imagem fotográfica. Entretanto, mais do que fazer valer uma metodologia de análise fotográfica, as autoras nos proporcionam uma profunda reflexão sobre o papel da imagem na cultura contemporânea das mídias digitais em rede.

Os estudos visuais sobre fotografia, em chave interdisciplinar, se fazem presentes na abordagem de Cleopatra Barrios e Mariana Giordano, em “Violencia, memoria y mito. Espectacularización de la muerte en la fotografía de Isidro Velázquez (Argentina)”. Em sua análise, a espetacularização da morte e da violência são operados por meio do estudo da relação entre fotografia pública, representações iconográficas do corpo morto e a cultura visual Latino-Americana. Avalia-se os circuitos e os percursos das fotografias de Isidro Velázquez de registro policial à santificação popular.

Ainda na linha das trajetórias das imagens se insere a abordagem de Marcos Felipe de Brum Lopes, no artigo “Migrantes e fantasmas: imagens e figuras de Benjamin Constant”. A imagem heroica do fundador da República Benjamin Constant é analisada pelo autor através do mapeamento das trajetórias das figuras de diferentes tamanhos e formatos em que essa imagem foi materializada. Ao analisar os significados históricos das imagens em trânsito por diferentes suportes, Lopes, defende a ideia de que o movimento positivista buscou configurar, no final do século XIX, um observadorcidadão, que acreditava no poder das imagens seculares e heroicas. Ponderar sobre o poder de mobilização das imagens em situação de crise política é o desafio que o artigo nos coloca ao final.

Das imagens dotadas de corpo para as imagensmeio, os artigos que se somam ao dossiê abordam um conjunto de questões que envolvem: os objetos-meios em que as fotografias circulam; o papel da imprensa na consolidação dos espaços públicos visuais; da fotografia como mensagem de amplo alcance; os circuitos sociais das fotografias e seus usos públicos. Em “Cornucópia visual mexicana: as fotografias do livro México seus recursos naturais, sua situação atual, 1922”, Carlos Alberto Sampaio Barbosa, analisa o discurso visual criado pelo corpo diplomático mexicano como forma de propaganda da cultura e da política do México no Brasil. A publicação em formato de livro, amplamente ilustrado com fotografias, foi elaborada como parte dos preparativos da comitiva mexicana na Exposição do Centenário da Independência do Brasil em 1922, constituindo-se uma narrativa visual sobre o México que se complementava com outros aspectos da participação mexicana no evento.

Em “Imagens da desigualdade em fotolivros do Rio de Janeiro: a visualidade na história de um conceito”, Maria Inez Turazzi reune a abordagem da história dos conceitos à da história visual para problematizar a natureza complexa das narrativas visuais e textuais que compõem os fotolivros. No caso em estudo, a cidade do Rio de Janeiro torna-se palco em que se encenam representações de desigualdade, o meio de circulação da mise-en-scène são livros-objetos, fotolivros, sobretudo um especialmente produzido sobre o Rio de Janeiro (Zauberhaftes Rio / Strolling through Rio, 1958) pelo fotógrafo alemão Hans Mann, como parte de seu trabalho sobre a América do Sul realizado entre as décadas de 1940 e 1950. Em sua análise, Turazzi busca problematizar a visualidade da pobreza na representação da “paisagem carioca”, compreendida nas dimensões de construção simbólica e patrimonial.

As revistas ilustradas merecem destaque no artigo de Cora Gamarnik, “La fotografía en la revista Caras y Caretas en Argentina (1898-1939): innovaciones técnicas, profesionalización e imágenes de actualidad”. A revista Caras y Caretas, publicação argentina, atua como plataforma para Gamarnik avaliar as profundas transformações que a imprensa passou com a introdução massiva de fotografias como forma de registrar as notícias, eventos sociais, políticos e acontecimentos em geral, atraindo novos leitores e ampliando seus públicos por meio da imagem. Paralelamente, a autora avalia as mudanças operadas na dinâmica da imprensa com a valorização da fotografia tanto como atrativo e estratégia de venda, como meio de figurar a modernização nacional e os conflitos políticos que esse processo envolveu. Apoiada em minuciosa análise das fontes, o estudo revela aspectos importantes sobre a consolidação sul-americana de um espaço público visual nos primeiros trinta anos do século XX.

O potencial indiciário da fotografia é explorado no artigo de Marco Antonio León León, “Pesquisas visuales – Representación e identificación criminal a través de revistas policiales chilenas (1934-1961)”, que tem como objeto três revistas publicadas pela Polícia de Investigação chilena entre 1934 e 1961. Em sua análise, León centra-se na seção “galeria de delicuentes” para descortinar os sentidos atribuídos visualmente aos criminosos e delinquentes para que o público pudesse identificar, em registro lombrosiano, os inimigos sociais. Em diálogo com as tradições francesas de identificação criminal, o autor avalia o papel da fotografia de registro criminal para a conformação de um discurso de controle social no Chile.

A fotografia humanista no pós-Segunda Guerra é o tema do artigo “As famílias dos homens. Os trânsitos do humanismo na fotografia internacional e brasileira”, de Erika Zerwes. Parte-se de uma das primeiras séries fotográficas realizada por Claudia Andujar, sobre famílias brasileiras (1960-62), para em registro comparativo com a série de fotorreportagens intitulada People are people the world over (1948-49) e a exposição Family of Man (1955), avaliar os percursos da fotografia humanista. As imagens em trânsito, movidas por impulsos diferentes, mas com o mesmo propósito: documentar a experiência humana fotograficamente. Da busca de compreender o outro por meio da linguagem universal da fotografia, no caso de Claudia Andujar, passando pelo registro de como viviam as pessoas mundo a fora, no caso da fotorreportagem publicada no Ladies’ Home Journal, e chegando ao apelo universalista da exposição do MOMA, afirma-se uma prática fotográfica de viés humanista, que nos leva a indagar sobre o destino das imagens em um mundo de contrastes e desigualdades em dimensões globais.

Nosso dossiê completa-se com uma entrevista com a historiadora da arte e professora Annateresa Fabris, enfatizando as relações entre fotografia, artes e estudos da imagem como parte da trajetória de uma das mais importantes autoras sobre o tema em âmbito nacional e, não seria exagero dizer, internacional. Concluindo-se com duas resenhas de livros voltados para a problemática da fotografia na pesquisa histórica e em arquivos – “Más allá de la simple imagen: fotografía e investigación” – e para a os itinerários históricos da fotografia na América Latina – “Notas sobre uma história da fotografia na América Latina”, escritos respectivamente por duas especialistas em estudos sobre a fotografia, Núria Rius e Carolina Etcheverry.

Boa leitura!

Ana Maria Mauad – Professora titular do Departamento de História e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF. E-mail: [email protected]

Charles Monteiro – Professor adjunto do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: [email protected]


MAUAD, Ana Maria; MONTEIRO, Charles. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 1, jan. / abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Laços Sociais, Laços Transnacionais – da construção de vínculos na história / Estudos Ibero-Americanos / 2015

Laços sociais, familiares, geracionais, de amizade; laços de grupo, laços políticos, ideológicos, laços legais e laços diplomáticos. A história se movimenta com base em conjuntos e interações, onde mesmo o herói hegeliano, ainda que guiado pelo Espírito do Mundo, encontrará sua sustentação e palco de ação no coletivo – para o próprio Hegel, no Estado (HEGEL, 2001). Nas bases de todo poder está uma coletividade, pois, como nos ensina Hannah Arendt (1970, p. 44), ninguém, nem mesmo o tirano mais absoluto, governa realmente sozinho. Da mesma forma, ideias são formadas e aperfeiçoadas em conversas, sentimentos são desenvolvidos a partir do convívio, para cada aprendizado um professor ou um modelo é necessário. O ser humano não prescinde de seu semelhante, e o estabelecimento de laços surge como um desenvolvimento natural, uma condição inerente a esse animal social.

A escrita da História, os estudos e análises de períodos, fatos e conjunturas as mais distintas apontam para o protagonismo dos laços sociais, ainda que eles sejam por vezes tomados como autoevidentes. Tomemos o caso dos laços entre jovens europeus no século XVI, quando se observa a formação daquilo que se convencionou chamar de adolescência. Essa fase da vida dos jovens adultos passa a ganhar uma nova dimensão diante da reforma dos costumes, do aumento da idade para se contrair matrimônio e da diminuição das liberações. Criam-se assim elos entre os membros dessa faixa etária, acuados que são pela nova realidade. Tais laços resultarão em uma identidade de grupo / geração com consequências sociais de longa duração, dentre as quais a identificação desses jovens com um comportamento errático, rebelde, por vezes violento, “tipicamente adolescente”, em especial entre os jovens “machos” (MUCHEMBLED, 2012). As estruturas de dominação, por sinal, costumam ser gatilhos e reforços privilegiados para a criação e manutenção de laços. É nesse sentido que, no mesmo século XVI, o “ímpeto civilizador” age pela coibição do infanticídio na difusão de um discurso e de um imaginário moralizadores, reforçando a importância dos laços maternos. Isso se mostrou uma estratégia voltada não apenas para a contenção do assassínio das proles, mas também para inculcar uma responsabilidade materna nas mulheres e perpetuar estruturas de dominação masculinas naquela sociedade (LIEBEL, 2013).

A natureza dos laços sociais, assim se verifica, está estreitamente vinculada ao desenvolvimento de sentimentos e de emoções. Não por acaso, é em torno do sentimento de empatia que Lynn Hunt (2009) vai encontrar o sentido propulsor para a redação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, talvez a tentativa mais sólida da história de pensar o laço mais primordial que nos une a todos: a natureza humana. Não se trata, é claro, de localizar no século XVIII as origens da empatia. Como Ute Frevert (2013) argumenta, a própria bíblia, na parábola do bom samaritano, já mostra não ser esse sentimento uma novidade setecentista. Entretanto, é no século XVIII que se humaniza e se discute a positividade da empatia. Não é por acaso que filósofos como Schopenhauer, já na virada do século XIX, podem pensar o humanismo em sentido amplo, com reflexos, por exemplo, nas relações entre humanos e animais1. Tais laços são fundamentados em termos éticos, e Schopenhauer (2006, p. 128 et seq.) acaba por declarar: quem faz mal a um animal não pode ser boa pessoa (könne kein guter Mensch sein).

Não por acaso, tais reflexões fornecerão aos séculos XIX e XX boa parte do combustível para novas teorias, ideologias e revoluções. Ao mesmo tempo em que se “descobrem” novos laços, os mesmos laços são responsáveis pela formatação de identidades cada vez mais fragmentadas. Com exceção dos laços generalizantes (universalismo, cosmopolitismo, humanismo), cada novo elemento que se agrega à identidade (coletiva ou individual) deixa de formar pontes para começar a criar muros cada vez maiores2. Dessa forma, laços nacionais, transnacionais, religiosos, raciais, ideológicos ou de classe assumem lugar central e cada vez maior como motores da história, levando o século XX a ser descrito, como tantas vezes o foi, o século da violência.

O dossiê que o leitor tem em mãos tenta lidar com essa estranha dicotomia existente quando pensamos os laços sociais: suas forças centrífuga e centrípeta, seus princípios agregadores e delimitadores. O mesmo laço que une pode também servir para separar, e a formação de grupos, identidades e imaginários acaba sendo seu produto mais evidente – e fonte de estudo e interpretação dos historiadores. Na composição do presente dossiê, os textos foram separados em duas seções: Laços Políticos e Laços Sociais. Ainda que elementos sociais e políticos tenham a tendência a se mesclar e se confundir, optou-se por essa distinção que privilegia o campo do político, do pensamento e da ação conjunta e institucional, das paixões e ideologias políticas, frente a temas diversos, como os laços familiares, os laços culturais e os laços corporativistas.

Abrindo o primeiro grupo de artigos, a professora Claudia Viscardi traça um importante panorama conceitual envolto às ideias de república e de democracia na primeira década do período republicano brasileiro. Período ainda conturbado, marcado pela insegurança dos próprios republicanos quanto ao sucesso do novo regime, os anos que se seguem a 1889 assistem a uma constante busca por uma nova identidade e formatação da estrutura política. Nesse contexto, a definição conceitual se torna um imperativo, e a construção e remodelação do discurso andam de mãos dadas com a própria construção das novas instituições. É nesse sentido que Viscardi toma a Constituição de 1891 como base de estudo, analisando as estruturas discursivas envoltas em sua promulgação e as subsequentes modificações e (re)interpretações conceituais que vão possibilitar a manutenção do poder das elites – em uma demonstração sutil dos muros que alguns laços podem construir – e resguardá-las de sua “demofobia”. É também a formatação – filosófica, conceitual e ideológica – do movimento fascista espanhol e do Primeiro Franquismo que é objeto de análise de Xosé Manoel Núñez Seixas. Sua abordagem, entretanto, é marcada fortemente por uma perspectiva transnacionalista, buscando vislumbrar os reflexos germânicos que despontam, entre 1930 e 1940, em terras espanholas. Os laços intelectuais, ideológicos e diplomáticos ganham espaço no texto de Seixas. É a influência da Academia alemã, da ideologia nacional-socialista e da estrutura – e propaganda – do Terceiro Reich sobre jornalistas e intelectuais conservadores espanhóis que se converte no tema central do artigo do professor galego da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique.

Seguindo o mote da temática das ditaduras, Augusto Nascimento toma São Tomé e Príncipe, um dos PALOP que sofreram a dominação colonial salazarista, e o jornal “A Voz de S. Tomé” como objetos de seu estudo. Mais especificamente, o autor analisa a configuração do espaço e a dinâmica da opinião pública em um país que, apesar de colonizado, encontrava-se longe, em variados sentidos, da realidade da metrópole. Longe e perto são adjetivos importantes também na leitura do texto de Maria Letícia Mazzuchi Ferreira e Francisca Ferreira Michelon, que escrevem sobre a exposição de fotografias de vítimas de ditaduras sul-americanas em acervos de museus. A distância temporal para os regimes opressivos é encurtada pela imagem, trazendo para o observador o que as autoras bem descrevem no título de sua contribuição como “cicatriz da memória”. A sensibilidade, a empatia e os laços humanos da memória se mostram elementos fundamentais na reflexão que as autoras instigam sobre as relações entre retrato e presentificação, ou, em um sentido warburguiano, sobre as relações fantasmáticas da imagem. Finalizando a primeira seção da revista, o texto de Fábio Chang de Almeida reflete sobre a nova direita política de Portugal, enfatizando seu caráter grupuscular (GRIFFIN). Tal aspecto tem uma dupla consequência em termos de laços políticos: a primeira é o caráter diminuto desses novos agrupamentos políticos extremistas, que não ganham representatividade por seu caráter massivo; a segunda é a sua capacidade extrema de comunicação (com as novas mídias sociais) e de coligação, proporcionando oportunidades para que sua influência e relevância aumentem.

A segunda seção, Laços Sociais, conta ainda com quatro artigos que focam suas análises em questões diversas dos relacionamentos interpessoais e grupais, bem como nas tramas tecidas na organização e ordenamento de diferentes campos e aspectos do tecido social. Rodrigo Ceballos, em sua contribuição, apresenta uma análise dos laços (familiares e comerciais) e das heranças deixadas pelos portugueses na região do Rio da Prata, de onde foram expulsos no século XVII. Dois séculos adiante é situada a baliza temporal fixada por Mateus Fernandes de Oliveira Almeida para analisar os laços corporativistas i.e. associativistas durante o Segundo Reinado brasileiro. O texto de Almeida, situado no grande campo da História do Trabalho, abrange o tema fundamental da identidade dos trabalhadores, a concepção de unidade e reconhecimento dentro de um métier, além da subjetividade inerente a esses laços, como a noção da moralidade e da solidariedade para com seus pares. A identidade e a solidariedade são também temas centrais do texto de Érica Sarmiento e Lená Medeiros de Menezes, que tomam o caso dos imigrantes ibéricos no Brasil da Primeira República para analisar aspectos variados da vivência na capital nacional do período. A complexidade da identidade servia, a um só tempo, para aproximar e afastar lusitanos e galegos, formando redes intrincadas de relações de apoio e de hostilidade. A condição de imigrante favorecia também, em alguns casos, a entrada no mundo dos pequenos delitos, dentre os quais as autoras destacam os jogos de azar (especialmente o jogo do bicho). Tais atividades colocam os imigrantes ibéricos na mira da polícia brasileira, revelando alguns de seus mecanismos e táticas de repressão. Finaliza a seção de artigos o texto de Daniel Melo, que também trata de aspectos identitários ao destacar, enquanto peças basilares das identidades culturais brasileira e portuguesa, as marchas populares de Lisboa e o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Em um exercício de História Comparada, aspectos transnacionais de mútua influência são destacados pelo autor, que faz ainda inferências acerca do papel dos regimes ditatoriais na configuração dessas festas.

O dossiê conta ainda com uma resenha, escrita por Rodrigo Santos de Oliveira, da obra La trama autoritária. Derechas y violência en Uruguay (1958-1966). O livro de Magdalena Broquetas é, ele também, um estudo sobre as construções de laços políticos e a atuação das alas conservadoras uruguaias até o momento anterior à implantação da ditadura militar no país. Por fim, o presente dossiê traz o lançamento de uma nova seção na EIA com a publicação de entrevista, conduzida e traduzida por Vinícius Liebel, com o professor Wolfgang Heuer, da Freie Universität Berlin (FU-Berlin). Nela o pesquisador alemão responde a perguntas pertinentes ao dossiê e a discussões historiográficas atuais, falando sobre a ascensão das direitas no mundo, movimentos contestatórios e ações coletivas e individuais no cultivo e preservação de nossa dignidade humana.

Notas

1 Sobre o processo de constituição desses laços entre homens e animais, ver: Thomas, 2010.

2 Lembremos do estudo de Norbert Elias e John Scotson (2000) que analisa, no microcosmo da cidade de Winston Parva, o lugar dos laços sociais na constituição de uma dinâmica opressora e delimitadora. Com bases na tradição e no carisma, configuram-se dois grupos essenciais de cidadãos que os autores denominam estabelecidos e outsiders. É com base nessa caracterização que toda a carga envolvida nos valores de pertencimento e de exclusão servirá ao domínio e à conservação do status quo na comunidade.

Referências

ARENDT, Hannah. On Violence. New York: Harvest, 1970.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

FREVERT, Ute. Vergängliche Gefühle. Göttingen: Wallstein, 2013.

GRIFFIN, Roger. From slime mould to rhizome: introduction to the groupuscular right. Patterns of Prejudice, Londres, Routledge, v. 37, n. 1, 2003.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na História: uma introdução geral à filosofia da História. São Paulo: Centauro, 2001.

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.

LIEBEL, Silvia. Les Médées Modernes: la cruauté féminine d’après les canards imprimés (1574-1651). Rennes: P.U. Rennes, 2013.

MUCHEMBLED, Robert. Uma História da Violência – do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

SCHOPENHAUER, Arthur. Preisschrift über die Grundlage der Moral. Hamburg: Felix Meiner, 2006.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural – mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

WARBURG, Aby. Histórias de Fantasmas para Gente Grande. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.

Equipe Editorial – Formada por: Leandro Pereira Gonçalves (editor); Charles Monteiro (editor executivo); Vinícius Liebel e Luciana da Costa de Oliveira (gestão editorial); Daniela Garces de Oliveira, Geandra Denardi Munareto e Waldemar Dalenogare Neto (assistentes editoriais).


GONÇALVES, Leandro Pereira; MONTEIRO, Charles; LIEBEL, Vinícius; OLIVEIRA, Luciana da Costa de; OLIVEIRA, Daniela Garces de; MUNARETO, Geandra Denardi; DALENOGARE NETO, Waldemar. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 41, n. 1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História & Fotografia | ArtCultura | 2008

A partir dos anos 1990 e, sobretudo, dos EUA, se desenvolveu um campo de pesquisa chamado de Estudos Visuais, articulando Artes, Comunicação, Antropologia, História e Sociologia. As pesquisas que daí emergiram problematizaram numa perspectiva multidisciplinar, a centralidade das imagens e a importância do olhar na sociedade ocidental contemporânea, a forma como os diversos tipos de imagens perpassam a vida social cotidiana (a visualidade de uma época), relacionam as técnicas de produção e circulação das imagens ao modo como são dados a ver os diferentes grupos e espaços sociais (os padrões de visualidade), propondo um olhar sobre o mundo (a visão), mediando a nossa compreensão da realidade e inspirando modelos de ação social (os regimes de visualidade).

No Brasil, a pesquisa acadêmica sobre o fotográfico se desenvolveu muito a partir das décadas de 1970 e 1980, seja por meio de traduções de textos fundamentais, seja pela pesquisa pioneira de certos autores como Boris Kossoy, seja por parte de uma nova agenda de trabalho na pósgraduação. Além disso, o tema do fotográfico alcança hoje áreas diferenciadas do conhecimento, que vão das artes às ciências humanas, dos programas de pós-graduação às novas graduações ou ainda aparece no lugar central que ocupa nos museus, nas bienais, nas exposições de arte e tecnologia. Leia Mais