Foucault: sa pensée, sa personne – VEYNE (HH)

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VEYNE Foucault sa pensée sa personneVEYNE, Paul. Foucault: sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel, 2008, 214 pp. Resenha de: JOANILHO, André Luiz.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.2, ago. 2008.

“Mamãe, o quê um peixe pensa?” (p. 209) –, Foucault estava ao mesmo tempo dentro e fora do aquário. Um ser duplo que observa os peixes, mas é também o próprio peixe que observa, sem nenhum temor, pois não tinha o medo da morte (p. 210) ou do seu próprio aniquilamento. Seus textos o construíam de modo sempre provisório: “o que escrevi não me interessa mais. O que me interessa é o que poderei escrever e o que poderei fazer” (196).

Digamos que dessa forma ele ocupa um não-lugar. Não está onde esperamos encontrá-lo, a sua identidade foi dissolvida nas formas discursivas que constituem as inumeráveis verdades sobre as coisas.

Talvez um dia tenhamos os foucaultianos de direta e de esquerda. Aqueles que buscam a negação do indivíduo e aqueles que querem a “desrepressão” da sociedade. Foucault nunca procurou tornar seus escritos em panfletos. Ele foi um observador apanhado pelas turbas intelectuais ávidas de teorias mais “verdadeiras” que as anteriores que haviam morrido por tédio. Desejam encontrar o verdadeiro caminho para o futuro, mas não há nada em Foucault sobre isso.

Ele observava e poderia dizer: “bom, nada do que acreditamos hoje restará no futuro”, pois “é preciso que nos habituemos à idéia de que nossas caras convicções do presente não serão aquelas do amanhã” (p. 64).

Em contrapartida deveríamos então a nos ater ao nada, pois “se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto na areia.” (Foucault. PC, 404)? Ele, enfim, seria o niilista que nada deseja a não ser o nada? Ao contrário. Para Paul Veyne, Foucault não destruiu a verdade sobre o ser, sobre o mundo, ele simplesmente esgrimava palavras como um samurai/ peixe num cemitério de verdades eternas que morreram por abandono. Às vezes se permitia fazer exumações, mas, ao contrário do que se desejava, não para trazer de volta algo que tinha partido, e sim para descrever melhor a verdade morta. Um arqueólogo à moda antiga. Verdades efêmeras que duraram menos de duzentos anos com relação aos loucos. Outras também efêmeras sobre a punição. Outras que evanesceram rapidamente sobre as sexualidades.

E conseqüentemente as nossas próprias não são tão permanentes. “O passado antigo ou recente da humanidade é apenas um vasto cemitério de grandes verdades mortas” (Paul Veyne, 2008, p. 24) A arte da exumação não fazia dele um pós-moderno, pois lhe escapava o sentido dado aos textos pela livre interpretação, mas também não era um “pré-moderno” (Ibid., p. 53), desejando o retorno de uma totalidade perdida.

Vários foucaultianos (este termo que faria rir Foucault) encontram nele os discursos da pós-modernidade: dissolução dos sujeitos, não há verdade, só há discursos e, portanto, só interpretações. Outros, ao contrário, viram nele o arguto crítico da última ratio do poder, a singularidade do indivíduo. Nem um, nem outro. “Não, não, não estou onde achas, mas aqui, onde, rindo, posso te olhar.” (Certeau, 1987, p. 51) Nossa insistência em decretar que o que temos hoje é eterno e se fez sobre os erros do passado impediu muitas vezes de perceber as questões que emergiam nos textos de Michel Foucault. Por exemplo, “não se acha em lugar algum a sexualidade ‘em estado selvagem’” (Veyne, 2008, p.75) que o tempo e a história tratariam de depurar, civilizar, até os dias atuais. As verdades emergem das práticas e também através delas esvaecem. Logo, toda verdade é provisória. Não, ela não é relativa, é provisória, verdadeira, mas local. Não se estende ao longo do tempo, não é um pedaço da Verdade, não é uma má compreensão, nem engano, é só uma verdade provisória e local.

Aprendemos, com Paul Veyne, que a genealogia é a arte do detalhe, por isso não permite totalizações (Ibid., p. 127) e, portanto, teorizações. Antes de tudo, Foucault é um detalhista, um curioso de laboratório que devota tudo o que aprendeu numa pesquisa singular e, por isso, não desejoso de universalização. O projeto genealógico não pretende explicações universais.

Mais além, sua explicação é falha, porque não propõe uma teoria sobre o todo, a respeito do ser, mas sobre o singular, sobre as práticas que estabeleceram a loucura no século XVI, ou sobre a punição no século XIX. Não almeja a verdade de uma época, mas modos de funcionamento de determinadas práticas nos seus detalhes.

Ele não tratou do Zeitgeist em diferentes sociedades e períodos, mas de como se conjugaram práticas em torno do sexo ou do preso. E estes termos não se referem a entidades que atravessam o tempo, são práticas que constituíram localmente o que as pessoas entendiam por estas coisas.

Foucault “não era nenhum pouco relativista, historicista, ele não via ideologia por toda parte” (Ibid, p. 9), “…ele pretendia somente uma cientificidade e verdades empíricas e perpetuamente provisórias.” (Ibid., p.130). Daí o equívoco em desejar dele uma história totalizante ou julgá-lo a partir desta perspectiva, como muitos historiadores o fizeram, pois não: estavam nada dispostos a se abrirem a outro questionamento, aquele que seria de um filósofo em obras que mal compreendiam e que eram, de fato, ainda mais difíceis para eles do que para outros leitores, porque eles não podiam as ler senão em relação à sua própria estrutura metodológica (Ibid., p. 37).

Daí a acusação fácil da imprecisão das datas na obra de Foucault ou de desconsideração de determinados documentos, relevando outros.

Evidentemente se aguardamos a precisão do historiador, ficaremos frustrados.

Ele não se prestava a este tipo, mesmo porque, não havia universais. São dois procedimentos, do inquiridor e do viajante. O inquiridor tem em mente a verdade, o viajante só tem a curiosidade de ver como funcionam as coisas. Afinal, “Foucault escreve que ele não faz nada além do que contar histórias.” (Certeau, 1987, p. 49).

Então, o método também é local. Uma espécie de positividade do tipo: o que isto quer dizer exatamente. Bem longe da virada lingüística dos anos sessenta, nada de pós-modernidade, “o método fundamental de Foucault é compreender exatamente o que o autor do texto quis dizer no seu tempo” (Veyne, 2008, p. 27). Este método escapa ao relativismo e à pura interpretação.

As objetivações de determinados objetos numa época não são interpretações e a verdade uma quimera. Acredita-se no que se faz como se tem a certeza de que o fogo queima. Porém, como foi dito, o que se faz é sempre uma singularidade e não está em relação à outra como se fosse possível afinar a pontaria para atingir finalmente o alvo.

O poder, para ele, por exemplo, não é algo que se possui, não é algo que está num lugar específico, apesar das arquiteturas que o acomodam. Ele é relacional e capilar. Não está num centro e emana suas teias até as periferias.

Para Foucault ele não é radial. Ele se dá nas relações mais comezinhas: professor/ aluno, carcereiro/presidiário, pais/filhos. Porém, um equívoco comum é transplantar para a capilaridade o antigo modelo do poder: a relação simples de mando e obediência. Não, não é este o sentido. Foucault não descobriu que o poder central contaminou todo o tecido social, colocando sempre alguém numa posição de força sobre outra pessoa. Ele é relacional, portanto, forças são exercidas em vários sentidos. Se um professor “pode”, os alunos também. Pois o que regula essas relações não é a dessimetria, mas a capacidade de normatizar o outro. O professor normatiza os alunos que normatizam o professor. Um comportamento é requerido dos alunos pelo comportamento do professor que, por sua vez, não é simplesmente opressivo ou repressivo, mas algo que faz funcionar. Poderíamos então dizer que a sedução é uma forma de poder, e quem já se recusou a este tipo de relação? Como xamãs, exorcizamos os nossos maus espíritos naquilo que entendemos por poder. Ele é ruim, mau por si próprio, ou ainda, é nele que encontramos todos os males do mundo. Livremonos do poder e teremos o paraíso.

No entanto, Veyne nos mostra um autor que não quer salvar o mundo, resolver os problemas humanos, mesmo porque ele é o observador que está fora/dentro do aquário: “o papel de um intelectual é arruinar as evidências, dissipar as familiaridades adquiridas; não é modelar a vontade política dos outros, de lhes dizer o que têm a fazer. Qual é o seu direito de fazê-lo?” (Veyne, 2008, p. 178). Antes de ser um historiador do corpo, do discurso, do poder, da sexualidade, da disciplina, ele é um filósofo da liberdade, mas não daquela que seria a da sociedade e do indivíduo face às formas de opressão, mas de uma que seria a da ontologia e do ser.

Mais uma vez, Paul Veyne nos lega uma obra valiosa para compreender este pensador que no fim queria falar apenas da estética da vida (Ibid, p. 156).

Parece que não podia simplesmente falar das formas de subjetivação do indivíduo sem ter de sempre desenhar um rosto de areia na linha de arrebentação. Foucault, sa pensée, sa personne é um livro indispensável para quem quiser compreender este pensador e sua obra.

Referências

CERTEAU, Michel. Histoire et psychanalyse entre science ET fiction. Paris : Gallimard, 1987.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

VEYNE, Paul. Foucault, sa pensée, sa persone. Paris: Albin Michel, 2008.

[1] Professor Adjunto Universidade Estadual de Londrina (UEL) [email protected] Rua Espírito Santo, 1833/73 Londrina – PR 86020420.