Cómo hacer cosas con Foucault. Instrucciones de uso | Canguilhem. Vitalismo y Ciencias Humanas | Francisco Vázquez García

Francisco Vazquez Foucault
Francisco Vázquez García | Foto: Universidad de Cádiz

Após a publicação, em 1987, do livro Estudios de historia de las ideasVol. 1, Locke, Hume e Canguilhem, escrito em coautoria com Ángel Manuel Lorenzo e José, L. Tasset, Georges Canguilhem (1904 – 1995) enviou a seguinte mensagem ao historiador espanhol Francisco Vázquez García: “Sua análise dos meus estudos de epistemologia me diz que você me leu com atenção e simpatia (…). Eu constatei com satisfação que você percebeu bem aquilo que meus trabalhos devem aos trabalhos, bem mais prestigiosos, de Bachelard e de Koyré. Não posso abandonar as lições que tirei dessas leituras.” (García, 2015). A seção do livro dedicada ao historiador francês recuperava o texto da monografia de licenciatura de Francisco, defendida três anos antes, na Universidad de Sevilla, sob o título La teoria de la historia de las ciencias de G. Canguilhem. Mais de trinta anos depois, García segue capaz de dizer coisas originais sobre a obra de Canguilhem – Georges Canguilhem: Vitalismo y Ciencias Humanas (2019) – e didatizar os usos da arqueo-genealogia de Foucault – Cómo hacer cosas con Foucault. Instrucciones de uso (2018), textos sobre os quais nos debruçamos a partir de agora.

Leia Mais

A Emergência da Escola | José Gonçalves Gondra

Na apresentação escrita por Diana Gonçalves Vidal, a autora descreve de uma maneira muito bonita qual o objetivo do livro, em suas palavras: “(…) Os temas se interpenetram e a leitura do conjunto se beneficia da mútua inteligibilidade que os estudos produzem, ao lançarem uns sobre os outros, centelhas de entendimento, circunscritas sempre ao período gerado pela intervenção de Couto Ferraz no Município da Corte” (VIDAL, 2018, p. 9). A obra sobre a qual a autora se refere intitula-se “A Emergência da Escola”, escrita e organizada por José G. Gondra, professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e, atualmente, bolsista 1B de produtividade em pesquisa CNPq. Além desta obra, José Gondra escreveu pela mesma editora produções como: Educação, Poder e Sociedade no Império Brasileiro, em parceria com Alessandra Schueler e, pela editora EDUERJ, publicou Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial.

Gondra organizou este livro em cinco capítulos, os quais foram escritos em parceria com seus orientandos. As análises desenvolvidas para a escrita do livro foram praticamente todas baseadas na noção de governo de Michel Foucault, como é possível perceber no título de cada capítulo da obra. Leia Mais

Canguilhem e a gênese do possível. Estudo sobre a historização das ciências | Tiago Santos Almeida

ALMEIDA Tiago S Foucault
ALMEIDA T Canguilhem 2 FoucaultMarlon Salomão e Tiago Santos Almeida. “VI Colóquio de História e Filosofia da Ciência: As ciências humanas”. Goiânia, 2019 | Foto: PPGH/UFG

Este libro es la reelaboración de la tesis doctoral defendida en la Universidad de Sao Paulo por Tiago Santos Almeida, profesor en la Facultad de Historia de la Universidad Federal de Goiâs, y sin duda una de los mejores conocedores actuales de la obra del filósofo, médico e historiador de las ciencias Georges Canguilhem. La monografía ha sido prologada Carvalho Mesquita Ayres, profesor de Medicina Preventiva en la Universidad de Sao Paulo, y esto no es una casualidad. A diferencia de lo acontecido en España, los estudios sobre Salud Colectiva y Medicina Preventiva fueron marcados decisivamente en Brasil, desde su despegue en la década de 1970, por algunos de los trabajos más representativos de la tradición francesa en historia de las ciencias, en particular textos como Lo normal y lo patológico de Canguilhem y El nacimiento de la clínica, de Michel Foucault.

El desafío del libro consiste en dilucidar, a través de distintas calas en la obra de Canguilhem, hasta qué punto existe un “estilo francés” a la hora de pensar la historicidad de las disciplinas científicas. En su indagación, el autor no recurre sólo a los volúmenes publicados por Canguilhem. Avalado por una prolongada estancia de investigación en el CAPHÈS (Centre d’Archives de Philosophie, Histoire et Èdition des Siences), donde frecuentó a algunos de los principales especialistas y discípulos del pesador francés (Limoges, Debru, Braunstein), utiliza entrevistas y artículos poco conocidos del filósofo de Castelnadaury, y lo más importante, un importante acopio de los manuscritos inéditos procedentes del Fond Canguilhem, sito en el mencionado centro. Leia Mais

Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares | Tamsin Spargo

[…] tanto investimento na crença de que a sexualidade é natural não significa que ela seja.

Spargo, 2017, p. 15.

Nos últimos anos, os estudos queer no Brasil ganharam destaque para além do que se costumava ver diante dos estudos da área de Educação, Psicologia e das Ciências Sociais. Ganhou força na História, desenvolvendo-se em seus processos autocríticos, de forma a jogar luz em recortes que atravessam gênero, raça, sexualidade e classe social. A construção do campo dos estudos das relações de gênero tomou novas cores e sabores com as percepções das teorias de gênero, as quais se convencionaram chamar de queer, adentrando áreas do conhecimento ainda conservadoras. Leia Mais

Foucault: saber, verdade e política | Thiago Fortes Ribas

Professor do departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Thiago Fortes Ribas apresenta em seu livro uma reflexão derivada de sua tese doutoral, intitulada Saber, verdade e política no pensamento de Michel Foucault, concluída no ano de 2016 junto à Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. André de Macedo Duarte. O problema abordado por Thiago Ribas em seu trabalho toca no cerne de um lugar comum que se constituiu a respeito dos textos de Foucault: trata-se da perspectiva que somente reconhece a emergência de uma concepção política específica em seus trabalhos desenvolvidos a partir de 1970, quando a ênfase à questão das relações de poder, e o exercício microfísico deste em determinadas instituições, vêm à tona em investigações elaboradas a partir do método genealógico – de alegada inspiração nietzscheana. Desse modo, nos trabalhos desenvolvidos por Foucault na década de 1960 – cuja tônica perfaz uma investigação dedicada à dimensão histórica que envolve a constituição dos saberes –, a política seria um tema pouco ou nada desenvolvido, relegada a ângulo obtuso no conjunto de suas preocupações ou, ainda, subjugada pela preferência a uma reflexão supostamente restrita a um âmbito epistemológico. Leia Mais

Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias – RODRIGUES (RTA)

RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias.Rio de Janeiro: Lamparina, 2016. Resenha de: BIAVA, Fernanda. Michel Foucault e os diferentes impactos nas vindas para o Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, p.488‐493, maio/ago., 2017.

Passados 32 anos da morte de Michel Foucault, podemos perceber como sua vida e obra ainda têm uma grande relevância em diversas áreas de pesquisa. Foucault foi um intelectual que realizou trabalhos em diferentes espaços, como o da história da loucura, envolvendo saberes psiquiátricos e dialogando com profissionais destas instituições; estudou e se envolveu com estudos sobre prisões, como sua participação no GIP (Groupe d’information sur les prisons) e como resultado deste trabalho publicou o livro “Vigiar e Punir” no ano de 1975, sem contar com seus estudos sobre discurso, arqueologia, genealogia, biopolítica, que reverberam até os dias atuais. As diferentes direções que Foucault tomou durante sua vida, seus estudos, acabaram chamando atenção não só da comunidade acadêmica, mas envolvendo outros setores sociais, o que resultou em uma vigilância constante nas suas viagens para o Brasil por parte dos militares, já que o país, durante o período das cinco vindas de Foucault ao país, estava sob um período de regime militar. A obra Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias, da autora Heliana de Barros Conde Rodrigues acaba por tratar sobre esses casos, sendo publicada em 2016, pela editora Lamparina.

Heliana de Barros Conde Rodrigues é doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Sua experiência principal é na área de Psicologia Social, com ênfase em História da Psicologia. Dedica‐se especialmente aos seguintes temas: práticas grupais, análise institucional, desinstitucionalização psiquiátrica, história oral, genealogia foucaultiana e estudos sobre produção de subjetividade. Atualmente é professora do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vinculada ao Programa de Políticas Públicas e Formação Humana na UFRJ.

O título do livro refere‐se, de forma simples e direta, ao que pode se esperar da obra. Este trabalho é a reunião de nove ensaios, anteriormente já publicados, mas que foram ligeiramente modificados, para evitar repetições excessivas. De forma simples, o livro aborda as cinco vindas de Michel Foucault ao Brasil (1965, 1973, 1974, 1975 e 1976), e o impacto, efeito e ressonâncias da sua presença no país. É prefaciado por Enrnani Chavis e traz a assinatura de Edson Passetti no posfácio.

A organização do texto segue uma ordem cronológica, mas que em alguns momentos acabam por dar um panorama geral de todas as estadas de Foucault no Brasil para facilitar a compreensão de alguns comentários feitos em colóquios recentemente.

Uma metodologia interessante utilizada por Rodrigues foi utilizar palavras‐chave nos títulos dos capítulos, estabelecendo uma relação entre o título e o conteúdo.

No primeiro capítulo “Michel Foucault no Brasil: esboços de história do presente”, a autora inicia o texto traçando um panorama geral sobre as viagens de Foucault pelo Brasil, desta forma nos auxiliando para as leituras conseguintes.

“Um (bom?) departamento francês de ultramar: Michel Foucault na USP, 1965” é o título do segundo capítulo, no qual a autora vai destrinchando, com mais detalhes e informações, essas viagens. No ano de 1965, Foucault era convidado para vir ao Brasil pela Universidade de São Paulo (USP), onderealizaria suas conferências na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), que durante um longo período,iniciado na década de 1930 (com a abertura da universidade) até as vindas de Foucault, foi responsável por um “intercâmbio cultural com a França” (2016, p. 30). Michel Foucault se deparou com um cenário político conturbado, e com a recente mudança na política brasileira. Suas palestras seriam realizadas na FFCL‐USP “onde o movimento estudantil era forte e contava com o apoio de inúmeros professores” (2016, p. 37).

No terceiro ensaio, “Da importância de não ser filósofo: um certo Clima e a docência de Jean Maugüé”, Rodrigues foca principalmente no Grupo Clima (1930‐1940), que era formado por jovens, muitos da FFLCH‐USP, que, reunidos, começaram a publicar a revista Clima, que tratava sobre temas do “cotidiano, livros, filmes, peças de teatrais, inovações científicas” (RODRIGUES, 2016, p. 50). Esse grupo teve grande influência dentro da USP, como a expansão do curso de Letras, implementação de pós‐graduação nessas áreas, entre outros pontos positivos. Um ponto interessante a citar é que não existe registro de conversas e/ou convívio entre Foucault e os participantes do grupo.

Esse ensaio foca também na figura de Jean Maugué, que teve grande influência na expansão da FFCL‐USP, assim como o Clima. Quando Michel Foucault chegou no Brasil, o grupo não existia mais, mas as consequências positivas na USP permaneciam.

Provavelmente Foucault e Maugué nunca tenham se visto, mas a hipótese da autora é de que teriam muito em comum. “Cromos, Kairós, aión: temporalidade de uma visita de Michel Foucault a Belo Horizonte” trata sobre a segunda vinda de Foucault, que ficou em Belo Horizonte, no ano de 1973. Rodrigues disserta sobre a postura do intelectual nas suas palestras, que surpreendia a todos que iam vê‐lo falar, pois, “ao invés de proferir uma conferência, convida a todos a formular perguntas ou a comunicar suas experiências” (RODRIGUES, 2016, p. 61). Durante sua visita, ocorreram problemas com uma imprensa, a qual a autora nomeia de “imprensa complicada”, e que seria formada por jornalistas invasivos, que incomodavam Foucault com flashes e comentários sobre o intelectual ser grosseiro.

O quinto capítulo, “Uma medicina sempre social? Efeitos foucaultianos no Rio de Janeiro, 1974” marca a sua terceira visita ao Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, onde ocorreram seis conferências no Instituto de Medicina Social (IMS). Foucault esteve ligado a grupos de saúde no Brasil e “tudo isso nos leva a pensar que os temas discutidos com os profissionais da medicina social constituíam, à época, problematizações cruciais” (2016, p. 79), e convida a pensar na medicina como um corpo social, “o corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 2014), dialogando com o conceitos que o autor utiliza.

O sexto ensaio, “Michel Foucault na imprensa brasileira: ‘cães de guarda’, ‘nanicos’ e o jornalismo radical”, é marcado pela discussão sobre a imprensa brasileira, momento em que a autora se apropria de expressões de Foucault como “práticas divisórias” para tratar a respeito de uma cisão na imprensa brasileira, que estava dividida entre os “cães de guarda” que apoiavam a ditadura, e os “nanicos” que seriam a imprensa alternativa, e que eram oposição ao governo militar. Neste texto, ela fala da quarta vinda de Foucault, que “na segunda‐feira, 27 de outubro, após o funeral de Vlado, irrompe uma greve na USP. Foucault suspende seus cursos” (2016, p. 93), lançando mais atenção sobre o posicionamento político de Foucault, estando a polícia a vigiá‐lo, e mesmo ele tendo essa suspeita permaneceu no país, participou da manifestação na Praça da Sé (São Paulo) e se uniu a milhares de pessoas pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog.

O sétimo texto, “Um Foucault desconhecido? Viagem no Norte‐Nordeste em tempos (ainda) sombrios”, falará da última visita de Foucault, que foi ao norte e ao nordeste do Brasil. Nesta vinda, sua “última estada em nosso país, entretanto, prossegue praticamente ignorada” (2016, p. 106), a autora apresenta o receio que o pesquisador tinha de voltar ao Brasil, por se sentir vigiado pelas autoridades e pelo país ainda viver em um regime militar. Nessa visita, Foucault acabou não gerando muito impacto ou comentário pela imprensa, levando então o título de “Foucault desconhecido” .

No oitavo ensaio, “Para além das categorias sociológicas: ressonâncias do pensamento foucaultiano no Brasil”, Rodrigues vai finalizando seu pensamento e falando sobre as ressonâncias do pensamento de Foucault no Brasil.

Por último, “Anarqueologizando Foucault”, encerra o livro com a relação entre Foucault e o anarquismo.

Minhas críticas ao livro são exíguas, mas necessárias de serem pontuadas. Primeiramente, a obra é de uma leitura acessível e tranquila, com um conteúdo único, mostrando Michel Foucault além de suas obras, como uma pessoa sensível a diversas causas. Entretanto, compreendo que Rodrigues acabou sendo muito repetitiva nas informações; muitos fatos são contados repetidas vezes, mesmo que na primeira parte do texto a autora tenha colocado que evitaria isso, entendo que ainda houve um excesso, como o fato de citar diversas vezes a impressão que Foucault tinha de estar se sentindo vigiado ou sobre o filósofo não se relacionar bem com a imprensa. De toda forma, o livro surpreende pelo seu conteúdo factual e pelo uso de diferentes fontes sobre as visitas de Michel Foucault ao Brasil, como revistas, jornais, fontes orais.

Por fim, o livro parece importante e bastante relevante para os trabalhos contemporâneos. Percebi nesta obra as posições políticas do intelectual Michel Foucault, com o aprofundamento das suas pesquisas e expansão de campos de estudo, como também as suas publicações e as atuações nas visitas ao país. Concluo meu texto com uma fala muito pertinente de Foucault sobre o poder das ideias que “são mais ativas, mais fortes, mais resistentes e mais apaixonadas do que pensam os políticos. É preciso assistir ao nascimento das ideias e à explosão de sua força” (1994, p. 707). Michel Foucault fez diversos questionamentos na sua época, mas cabe a nós, críticos do nosso presente, intensificar esses estudos frente aos novos problemas.

Referências

FOUCAULT, Michel. Les reportages d´idées, Dits et écrits III, Paris: Gillimard, 1994.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias. I edição ‐ Rio de Janeiro: Lamparina, 2016.

Fernanda Biava – Mestranda no Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Brasil [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

 

Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia – RIBAS (ARF)

RIBAS, Thiago Fortes. Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia. Curitiba: Editora da UFPR, 2014. Resenha de: BALTAZAR, Tiago Hercílio. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.12, jul./dez. 2014.

Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia se desenrola na antecâmara daquilo que conhecemos como o projeto arqueológico de Foucault. Thiago Fortes Ribas investiga o início do percurso teórico do filósofo francês, no momento em que suas estratégias se realinham em torno de um alvo (não mais uma forma determinada do conhecimento científico, mas a própria positividade de uma ciência) e também o momento da formulação de uma crítica extra-científica. Enquanto este objeto e o tipo de crítica histórico-arqueológica que Foucault elabora através dele, já são velhos conhecidos na literatura sobre o assunto, a empresa de Ribas recua um passo para tratar da própria constituição deste objeto e deste tipo de crítica na démarche do futuro arqueólogo. Se os textos pré-arqueológicos nos pareciam dispersos sob uma frágil unidade temática, saberemos agora que eles guardam uma decisiva transformação na relação do próprio Foucault com a verdade. “Numa palavra, pretendemos mostrar que a constituição do projeto de uma arqueologia do saber dependeu de uma mutação decisiva no modo como Foucault pensou a questão da verdade em sua relação com a psicologia, a psiquiatria e a loucura” (RIBAS, 2014, p. 16).

O primeiro capítulo, buscando contextualizar a primeira obra arqueológica de Foucault e discutir a supressão de seu prefácio original, parece apenas situar a questão da relação de Foucault com os saberes da radical “psi” em História da loucura. Mas na realidade ele já desloca o lugar da “reviravolta” no pensamento de Foucault. De fato, a literatura estabeleceu, entre o prefácio original suprimido de História da loucura (1961) e sua segunda versão (1972), uma importante modificação no pensamento de Foucault, muito discutida quanto a um possível prejuízo ontológico que se poderia apontar na crítica arqueológica da loucura. Mas é verdade que tal injunção é feita à luz dos próprios desenvolvimentos arqueológicos posteriores, que “evitariam” tal prejuízo e, por outro lado, trata somente daquilo que já é a arqueologia desde a primeira edição de História da loucura. É desse emaranhado que Ribas consegue escapar, trabalhando uma diferença mais decisiva para o projeto arqueológico de Foucault, situada entre o polêmico prefácio de 1961 e textos que datam dos anos 1950.

A referida mutação será então diretamente analisada no segundo capítulo, e com um nível de detalhamento que certamente satisfaz aos leitores em seus anseios por minúcias. Nesse momento, o foco do estudo recai sobre as diferenças teóricas entre dois textos que o autor seleciona para comparação: Doença mental e personalidade e Doença mental e psicologia. Escrito em 1954, e reescrito em 1962 com o segundo título, os dois textos permitem a engenhosa estratégia de Ribas para flagrar as modificações na relação de Foucault com a psicologia. Na realidade, poderíamos tomar a liberdade de dizer que se trata de apenas um texto em duas cenas, e entre elas uma transmutação de significados que iluminaria assim o nascimento de um grande problema filosófico.

Em sua primeira versão, lê-se na introdução que a raiz da patologia mental deve estar numa reflexão sobre o próprio homem. Eis a pista que nosso autor persegue, como uma “adulteração” em sua versão de1962, onde se diz que a raiz da patologia mental pode ser procurada numa certa relação, historicamente situada, entre o homem e o homem louco e o homem verdadeiro. Estes são vestígios que entregariam os motivos do filósofo francês:

aqui, somente essa mudança já nos mostra que a preocupação do autor é radicalmente outra. Não mais fundacionista, no sentido de fundar a investigação numa antropologia, agora a investigação quer procurar a raiz histórica da patologia mental. Ao invés de propor uma verdadeira psicologia, quer compreender como se construiu historicamente um discurso verdadeiro chamado psicologia. (RIBAS, 2014, p. 57).

Ao cabo de uma análise comparativa que se estende por todo o segundo capítulo, torna-se claro que o “projeto de fundação da psicologia” que Foucault lançava em 1954, equivaleria a um pensamento que acreditava na objetividade da ciência psicológica uma vezliberta de certos postulados equivocados (Cf. RIBAS, 2014, p. 57). Na sua reescritura, este rigor será substituído por um novo sentido: não mais a conquista de sua cientificidade, mas a posição de que sua própria positividade enquanto ‘ciência’ depende de condições históricas de existência. Trata-se aí de um rigor que, quando levado ao limite, compromete o estatuto de cientificidade e objetividade da própria verdade da medicina mental. (RIBAS, 2014, p. 58).

Tratar esta modificação como mera reformulação teórica seria perder de vista o essencial, isto é, o início de uma crítica de inspiração nietzschiana que faz aparecer o funcionamento de uma ciência no interior de um sistema de condições históricas. Contra a leitura de Pierre Macherey, para quem, até 1962, Foucault não colocaria em questão o pressuposto de uma natureza humana – incluindo História da loucura – Ribas nos faz vislumbrar o que seria uma aquisição básica no percurso teórico de Foucault, e com a qual este “se servirá até o fim dos seus escritos, e que alimentará a constante revisão de seus métodos” (RIBAS, 2014, p. 86).

Acercando-se mais das grandes teses de História da loucura, A pesquisa científica e a psicologia (1957) permite precisar um pouco mais a relação entre verdade e psicologia fora do seu aspecto científico-epistemológico. Despontam neste texto formas de interrogação – que reconhecemos prontamente como um traço foucaultiano – na direção das práticas que revelem o modo de funcionamento da ciência psicológica, através de suas instituições e de tudo aquilo que colabora para a produção do seu reconhecimento em nossa sociedade.

Vê-se que no artigo A pesquisa científica e a psicologia a verdade sobre a psicologia é de outra espécie. Ela já não diz mais respeito aos verdadeiros pilares de uma ciência, mas ao seu estatuto, ao seu funcionamento. A verdade que se busca sobre a psicologia também não virá mais de uma construção metodológica melhor apurada, mas há de vir, entretanto, da análise dos métodos utilizados para engendrar sua ‘cientificidade’. Nesse momento da reflexão foucaultiana, o estatuto da psicologia nada tem a ver com sua natureza estritamente epistemológica, mas, diversamente, aquilo que poderá revelar seu modo de funcionamento são as suas práticas. Desse modo, aquilo de que se tratará na interrogação da pesquisa psicológica são as suas instituições, suas formas cotidianas e as dispersões de seus trabalhos. Em poucas palavras, a verdade que se quer definir agora só será revelada através de uma análise histórica desses três pontos levantados, uma análise que se concentre no problema de como a psicologia chega à condição de ‘ciência’ ao lado de outras ciências, de como ela chega a tal reconhecimento atual em nossa sociedade. (RIBAS, 2014, p. 95-6).

Além deste passo decisivo na formulação de uma crítica extra científica, A pesquisa científica e a psicologia e outro texto do mesmo ano, A psicologia de 1850 a 1950, registram o aparecimento de mais uma hipótese fecunda na construção do projeto arqueológico: a hipótese segundo a qual a positividade da psicologia tem como condição de possibilidade uma experiência do negativo. Enquanto outras ciências mantêm uma relação provisória com o negativo, digamos, como limites ou dificuldades a serem superadas, “aquilo que distingue a psicologia é a relação vital que ela tem com o negativo, a ponto de não poder ser compreendida senão através dele.” (RIBAS, 2014, p. 108). Vemos que nestes dois artigos dos anos 1957, segundo a interpretação de Ribas, a psicanálise não gozaria de nenhum poder transgressor, pois, indiferentemente de qualquer outra pesquisa em psicologia, a psicanálise daria continuidade à escolha de toda psicologia.

“Se na análise da pesquisa freudiana fica evidente o papel do negativo na construção da verdade do homem, fica manifesta também a sua opção por continuar tal construção, ou seja, sua escolha em perpetuar o ‘mito da positividade’ em que a psicologia hoje ‘vive’ e ‘morre’. Desse modo, Freud afastou ainda mais a psicologia da compreensão de seu próprio sentido enquanto saber, pesquisa e prática” (RIBAS, 2014, p. 110).

Esta perspectiva foucaultiana sobre a psicanálise, como sabemos, se modificará na arqueologia da loucura, sob a consideração de uma nova abordagem interpretativa (e uma nova concepção de signo) que ela inaugura, e que desloca a linguagem da loucura para um tipo de interdição em que a linguagem não refere mais a um significado oculto, mas fica condenada a dizer apenas a si mesma e o código que permite decifrá-la1. Ainda que a tarefa da psicanálise seja malograda pelo fato de que a articulação transferencial repouse numa estrutura em torno da qual se constituem relações de dependência médico-paciente – em que um médico não busca fundamentalmente conhecer, mas dominar a loucura e alienar o paciente, apoiado em seus poderes e prestígios – a psicanálise ainda assim representará, em 1961, uma determinada ruptura em relação à psiquiatria e à psicologia, na medida em que sua abordagem abriria uma possibilidade de diálogo com a desrazão clássica.

Esse realinhamento na órbita em torno da qual gravitam os saberes da radical psi, ligado ao nascimento da arqueologia e implicando uma modificação importante na perspectiva de Foucault em relação à psicanálise, não é abordada no livro de Ribas.2 Sua argumentação, todavia, neste ponto consiste em apresentar a tese foucaultiana da profunda relação da psicologia com a negatividade, tese esta que, perpassando esses escritos de 1957 até a História da loucura, consistirá num elemento determinante para nos dar a ver uma perspectiva propriamente arqueológica sobre esses saberes.

Vê-se, portanto, que não se trata simplesmente de uma modificação na relação de Foucault com a psicologia, mas na sua relação com a verdade, o que implica um deslocamento no lugar que a psicologia ocupa no interior da investigação de Foucault. De objeto de uma “ambição teórica reformuladora”, a psicologia torna-se objeto de uma problematização que a ultrapassa em direção a um problema filosófico muito mais amplo. (Cf. RIBAS, 2014, p. 113). Qual é este problema filosófico, que não cabe mais ser colocado em termos epistemológicos, intimamente ligado a uma transformação na relação de Foucault com a verdade e que “constitui a condição de possibilidade do próprio projeto arqueológico.” (RIBAS, 2014, p. 18)?

Ele pode ser dito de muitos modos. Porém, creio que um dos pontos fortes do livro de Ribas – ainda que sejam apenas apontamentos para um “estudo futuro” – consiste em aborda-lo a partir das implicações políticas do pensamento arqueológico de Foucault. Estamos já na conclusão do livro, na qual se problematiza a interpretação tradicional da arqueologia como uma descrição despolitizada dos “frios blocos de saber”. O argumento consiste em mostrar como insustentáveis as afirmações de que a passagem para a política, na obra de Foucault, se daria apenas com a genealogia, isto é, a partir de uma volta para as instituições e práticas sociais no intuito de transformá-las.

É possível encontrar em Foucault elementos para formular outra concepção a respeito da ação política ou da dimensão política do pensamento.

Tal ação ou dimensão não precisa estar voltada para a transformação de algo fora do pensamento, como as instituições sociais, porque é o próprio pensamento que é o campo de batalha. Como ele mesmo afirma, ‘a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática’. Na medida em que para Foucault a política é entendida como luta de forças que não tem na verdade seu regimento, então tampouco se compreende porque seria necessário restringir a tarefa política do intelectual ao âmbito de transformação das instituições sociais. (RIBAS, 2014, p. 132).

As arqueologias de Foucault forneceriam um “operador intelectual”, ligado a concepção de verdade que, de matriz nietzschiana, combate pretensões universalistas a partir de sua inserção numa trama de relações históricas.

As verdades das arqueologias jamais se colocam no lugar daquelas que são criticadas, e sim reconduzem a uma apropriação do jogo de produção dessas verdades, produzindo por esta via um efeito transformador:

a via interpretativa que se propõe para um trabalho futuro nesta conclusão aposta na concepção desses livros arqueológicos como portadores de um pensamento político enquanto produtor de efeitos que podem ser avaliados pela transformação filosófico-discursiva que provoca. Seguindo essa hipótese os diagnósticos do presente oferecidos por tais estudos são vistos como armas imprescindíveis de uma luta política capaz de se apropriar das regras discursivas para impô-las outra direção. (RIBAS, 2014, p. 137).

Todas essas indicações de pesquisa foram desenvolvidas a partir dos estudos do autor na antessala da arqueologia foucaultiana. Isso foi elogiosamente caracterizado pelo professor Cesar Candiotto, na primeira linha do prefácio, onde atribui ao estudo levado a cabo neste livro o caráter de uma “arqueologia” da própria arqueologia de Foucault. Para os estudiosos de Foucault, não há forma mais direta para descrever o que aqui se vai encontrar.

Quanto aos leitores que, trilhando outros caminhos, cruzam com o pensamento de Foucault, estes encontrarão a oportunidade de acompanhar um dos maiores pensadores da atualidade no extraordinário momento de formulação de seu principal problema filosófico.

Notas

1 Cf. CHAVES, E. Foucault e a psicanálise. Apresentação de Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

2 É certo que sua menção à Freud consiste apenas num “exemplo privilegiado” para demonstrar a tese foucaultiana sobre a regra geral da pesquisa em psicologia como perpétuo arranchamento do solo consolidado (Cf. RIBAS, 2014, pp. 97 e segs.). Por outro lado, julgamos que esta modificação é um aspecto inalienável da crítica arqueológica nascente, ou seja, de seu poder para captar e diferenciar o espaço epistemológico que se instaura com a ruptura freudiana no discurso psicológico.

Tiago Hercílio Baltazar – Pós-graduando em Filosofia na UFPR. Email: [email protected]

Acesso à publicação original

 

La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960 – BADIOU (RFMC)

BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Trad. Irene Agof. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013.1. Resenha de: ALBA, Fernando Roberto. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.2, p.107-101, n.2, 2014.

El momento analizado en la obra es comparado con el de la Grecia clásica o el del idealismo alemán respecto a su amplitud, singularidad y novedad. La plétora de autores y la diversidad de movimientos (existencialismo, estructuralismo, deconstrucción, posmodernismo, realismo especulativo…) es tal que ridiculiza la actual escena filosófica francesa, la cual para el filósofo está “generosamente poblada de impostores”. Entre la publicación de El ser y la nada (1943) de Jean Paul Sartre y el último libro de Gilles Deleuze ¿Qué es la filosofía? (1991), instante breve, intenso y creador, acontece lo que Alain Badiou no vacila en llamar “filosofía francesa contemporánea”.

El tema se constituye en un presupuesto fundamental y transversal a la obra que el también dramaturgo y novelista francés reconstruye como cartografía de momentos y localizaciones particulares de una filosofía singular. En este sentido, la empresa de Badiou es indagar por la existencia o no de una “unidad histórica e intelectual” que bien podría cobijar la contingencia de un work in progress en el pensamiento francés desde la segundad mitad del siglo XX.

Ahora bien, Badiou advierte claramente cómo el sintagma “filosofía francesa” se desentiende de cualquier sentido etnocéntrico, incluso en lo referido al antiamericano french touch. Bien es cierto, existen unos momentos filosóficos excepcionales y singulares como el señalado en la obra, dicha singularidad es capaz de generar repercusiones universales y es precisamente en esa universalidad que Badiou inscribe el prolífico panorama de la filosofía francesa contemporánea.

En efecto, el horizonte descrito por el filósofo es presentado en términos de una “aventura del pensamiento”, toma cuerpo como compilación y se constituye por autores tan diversos como Gilles Deleuze, Alexandre Kojève, Georges Canguilhem, Paul Ricoeur, Jean Paul Sartre, Louis Althusser, Jean François Lyotard, Françoise Proust, Jean Luc Nancy, Barbara Cassin, Christian Jambet, Guy Lardreau y Jacques Rancière. No obstante, a esta misma se suma la ya descrita y caracterizada en Petit panthéon portatif (2008): Jacques Lacan, Jean Cavaillès, Jean Hyppolite, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Borreil, Philippe Lacoue-Labarthe y Gilles Châtelet.

En dicho texto Badiou daba inicio a un tríptico que establecía claramente la empresa retomada por la presente obra y que el autor, en el prefacio, promete completar con una tercera entrega que bien haría justicia a aquellos autores pasados por alto, ya sea porque su obra se estabilizó o por su prematura muerte (Monique DavidMénard, Stéphane Douailler, Jean Claude Milner, François Regnault, François Wahl), ya sea por su temprana juventud filosófica, pues para Badiou “en filosofía, la madurez es tardía” (BADIOU, 2012: 8).

En esta perspectiva, la búsqueda de una unidad histórica e intelectual que cobije a estos autores hace que Badiou enuncie una caracterización arriesgada y ciertamente discutible en las páginas que componen el prefacio, cuyos temas se encuentran en buena parte desarrollados en el texto “Panorama de la filosofía francesa contemporánea” (2005). De manera que Badiou emprende inicialmente una “genealogía del momento filosófico”, el cual emerge a principios del siglo XX con el establecimiento de dos corrientes bien diferentes: una filosofía de la interioridad vital -son un referente las conferencias impartidas por Henri Bergson en Oxford en 1911, publicadas como La pensée et le mouvant (1969)- y una filosofía del concepto apoyada en las matemáticas -la publicación de Les Étapes de la philosophie mathématique de Brunschvicg en 1912 es vista como la obra icónica de esta tradición-. Total que estas dos corrientes de pensamiento terminan por postular un problema transversal a la filosofía gala, a saber, el sujeto.

La cuestión del sujeto organiza el periodo en mención al ser la parte común de las dos orientaciones de la filosofía. El sujeto, en últimas, está llamado a interrogarse sobre su vida subjetiva y orgánica, así como sobre su pensamiento y su capacidad creadora en una batalla conceptual que a menudo tomó la forma de una controversia respecto a la herencia cartesiana en la filosofía de la posguerra. El filósofo francés señala una estrecha relación entre el problema en cuestión y algunas “operaciones intelectuales” o “metódicas” que buscan identificar el momento filosófico. Tal es el caso de la llamada “operación alemana” en torno al problema de la herencia del pensamiento germano, cuyos ecos Badiou ubica en el seminario que impartió Kojève sobre Hegel y que influyó de forma determinante tanto Lacan como a Lévi-Strauss; a su vez en el descubrimiento de la fenomenología por filósofos del treinta y del cuarenta (Sartre, Merleau Ponty); en la interpretación “absolutamente original” que hizo Derrida del pensamiento alemán, así como en la influencia de Nietzsche en Foucault y en Deleuze, y, finalmente, en los ensayos de Lyotard, Lardreau, Deleuze y Lacan sobre Kant.

De suerte que a dicha operación subyace el objetivo de encontrar en la filosofía alemana nuevos medios para tratar la “relación entre concepto y existencia”. Para la cual, sin importar su denominación: “deconstrucción”, “existencialismo”, “hermenéutica”, se busca modificar y desplazar la mentada relación en una suerte de “transformación existencial del pensamiento”. En ultimas, la filosofía alemana, en su traducción gala, devino en algo totalmente novedoso para el “campo de batalla” de la filosofía francesa.

La “visión creadora de la ciencia” (Bachelard, Cavaillès), el “radicalismo político” en tanto compromiso de la filosofía con la actividad política (Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Althusser, Deleuze, Jambet, Lardreau, Rancière, Proust, Badiou) y una “búsqueda constante de nuevas formas del arte y de la vida” (Deleuze) son otras operaciones descritas por el autor y que tuvieron como objeto proponer una nueva disposición del concepto, una creación de nuevos conceptos en sus estrechas relaciones con la cuestión de la forma, con la creación y disposición de las formas: bien como relación singular de la filosofía con la literatura (Lacan y Lévi-Strauss y el movimiento surrealista), bien como cambio espectacular de la escritura filosófica (Deleuze, Foucault, Lacan, Derrida, Sartre, Althusser) que busca dar una vida literaria al concepto mediante la creación, en la lengua, de una nueva forma de sujeto.

Ciertamente, la creación de una nueva forma de sujeto lleva a la filosofía francesa de mediados del siglo XX a entablar una relación estrecha, de complicidad y de rivalidad, de amor y odio con el psicoanálisis pues éste ocupa un lugar esencial entre las dos grandes corrientes que están implicadas en el tema del sujeto: el vitalismo existencial y el formalismo conceptual. Toda vez que la idea de inconsciente promulgada por el psicoanálisis se inscribe en la relación como algo vital y simultáneamente simbólico que cobra forma en el concepto. A este respecto, el autor llama la atención sobre las tensiones entre filósofos de la escena intelectual como Bachelard, Sartre, Deleuze, Foucault, Derrida y el psicoanálisis freudiano. Algunas obras de los tres primeros se inscriben como fundamentales para comprender dicha tensión: La Psychanalise du feu (1938) donde Bachelard formula un nuevo psicoanálisis sustentado en la poesía y en la ensoñación que denomina “psicoanálisis de los elementos”; el final de El Ser y la nada (1943), obra en la que Sartre opone al psicoanálisis de Freud un psicoanálisis en el que es necesario remplazar la estructura del inconsciente por un “proyecto de existencia”; el cuarto capítulo del Anti-Œdipe (1972) de Deleuze y Guattari formula la necesidad de oponer al psicoanálisis otro método de análisis que Deleuze llama “esquizoanálisis”.

En este panorama esbozado, tras el establecimiento de una genealogía del momento filosófico y la caracterización de varias operaciones metódicas que subyacen al mismo, cada texto emerge como una huella inasible que potencia lo señalado por Badiou y lo evidencia en la lucidez de sus análisis. De manera que Badiou no duda en radicalizar sus apuestas al señalar la existencia de un “elemento común” que se refracta entre los autores en cuestión a pesar de sus diferencias y contradicciones y que no refiere a las obras, a los sistemas o a los conceptos, sino al programa pues: “cuando la cuestión programática es fuerte y compartida hay un momento filosófico con una gran diversidad de medios, de obras, de conceptos y de filósofos” (BADIOU, 2012: 22).

En esta medida, los últimos cincuenta años del siglo XX son caracterizados en el estudio con un programa definido en seis puntos: disolución de la oposición sujeto y existencia: “el concepto está vivo, es una creación, un proceso y un acontecimiento, él no está separado de la existencia” (BADIOU, 2012: 22).); sacar la filosofía de la academia y hacerla circular en la vida; abandono de la oposición entre filosofía del conocimiento y filosofía de la acción; inscripción frontal de la filosofía en la escena política; retoma de la cuestión del sujeto; creación de un nuevo estilo de exposición filosófica, reinvención del “escritor-filósofo”.

Todos estos aspectos del programa se ven acompañados por el deseo de hacer del filósofo algo más que un sabio, de acabar con la figura mediadora, profesoral y reflexiva del filósofo, pues éste es más bien visto como un “escritor combatiente, un artista del sujeto, un amante de la creación” (BADIOU, 2012: 24). En suma, para Badiou la filosofía francesa contemporánea, más que el conocimiento de un objetivo, buscó trazar un camino muy singular por sus apuestas metodológicas, conceptuales y existenciales. Camino que está siempre más cerca de la acción y de la intervención filosófica que de la mediación y la sabiduría, pues la filosofía francesa “ha sido una filosofía sin sabiduría” (BADIOU, 2012: 24).

Testigo directo de la escena filosófica descrita, es preciso decir que Badiou conoció a todos los autores de quienes escribe: maestros (Althusser, Canguilhem), mayores (Foucault, Deleuze), contemporáneos (Rancière, Lyotard, Nancy) y otros tantos compañeros de lucha e interlocutores en el debate de las ideas. Este aspecto, ciertamente subjetivo, es potenciado por el mismo origen de los textos: desde breves notas y alocuciones publicadas en Critique (Althusser), Elucidation (Ricoeur), Po&sie (Cassin) y Les temps modernes (Sartre, Françoise Proust), hasta capítulos de libro completos (Deleuze, Canguilhem, Nancy, Rancière).

La noción de rizoma desarrollada por Gilles Deleuze y Félix Guattari en Mil mesetas (1988) deviene ciertamente una potente imagen conceptual para hacer una economía del desarrollo teórico del texto de Badiou, pero a su vez, se constituye en un dispositivo de crítica del mismo. El libro es en sí un rizoma que comporta tanto lineas de articulación y de segmentaridad como movimientos de des-territorialización y de des-estratificación que no dejan de metamorfosear constantemente su naturaleza y que terminar por cuestionar radicalmente el estatuto del autor.

Así, cuando Badiou arriesga semejante esquematización del panorama de la filosofía francesa contemporánea, en sus análisis convergen lineas de fuga y movimientos de des-territorialización que dan vida a nuevas articulaciones rizomáticas, à devenires otros del pensamiento en acto. De esta manera es posible hablar de toda una cartografía en la que se encuentran autores y posturas completamente heterogéneas como lo pueden ser las de Sartre, Foucault y Rancière a propósito del radicalismo político, o a su vez en cuanto al diálogo ininterrumpido de diversos autores como Bachelard, Derrida y Deleuze con el psicoanálisis. En este sentido el titulo hace total justicia pues de lo que se trata es de toda una “aventura del pensamiento”.

Ahora bien, estas mismas lineas de fuga son susceptibles de reterritorializarse y de generar nuevamente estructuras arborescentes que tienden a homogeneizar y, en últimas, a anular la multiplicidad, es decir, los devenires impersonales de cada filosofía. De tal suerte, el panorama trazado corre el riego de sedimentarse en una suerte de lectura políticamente correcta, ciertamente normalizada y reconocida por el establishement intelectual francés. Badiou y el cargo que desempeña en la Ecole Normale Supérieure son un buen ejemplo para ilustrar este caso.

Es cierto, el filósofo no se desentiende en lo absoluto de su contexto histórico y político, más aún cuando su reflexión siempre fue cercana al militantismo político. Sin embargo, la cartografía establecida por Badiou y en la que él, además, se ubica modestamente, parece perder totalmente de vista el enorme trabajo que Levinas realizó para la misma época, para no hablar del trabajo arduo y silencioso de toda una pluralidad de autores no-cartografiables. Tal vez sea un caso irrelevante e incluso hasta accidental sin embargo no deja de ser un signo que aterriza la “lectura” de Badiou y que evidencia su carácter subjetivo a propósito de un monstruo que él mismo osa llama “filosofía francesa contemporánea”.

Notas

1 Existe otra edición: BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Santiago de Chile: LOM, 2014. Sin embargo, todas las citaciones del presente texto son tomadas de la edición francesa L’aventure de la philosophie française depuis des années 1960. París: Éditions La fabrique, 2012.

Referências

BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Trad. Irene Agof. Buenos Aires, Eterna Cadencia, 2013. L’aventure de la philosophie française depuis des années 1960. París: Éditions La fabrique, 2012.

___________. Petit panthéon portatif. París: La fabrique, 2008. Pequeño panteón portátil. México: Fondo de Cultura Económica, 2009.

___________. “Panorama de la filosofía francesa contemporánea”. En: ABENSOUR. M. Voces de la filosofía francesa contemporánea. Buenos Aires: COLIHUE, 2005, pp. 73-83.

BACHELARD, G. La Psychanalyse du feu. París : Gallimard, 1938. Psicoanálisis del fuego. Madrid: Alianza, 1966.

BERGSON, H. La pensé et le mouvant. París : Presses Universitaires de France, 1969. El pensamiento y lo moviente. Buenos Aires: Cactus, 2013.

BRUNSCHVIG, L. Les Étapes de la philosophie mathématique. París: Alcan, 1912. Las etapas de la filosofía matemática. Buenos Aires : Lautaro, 1945.

CUSSET ,F. French theory : Foucault, Derrida, Deleuze & Cia y las mutaciones de la vida intelectual en Estados Unidos. Mónica Silvia Nasi. Barcelona: Melusina, 2005.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. L’Anti Œdipe : Capitalisme et Schizophrénie. Paris, Editions de Minuit, 1972. El Anti Edipo: Capitalismo y esquizofrenia. Barcelona: Paidos, 1995.

___________________________. Mil mesetas: capitalismo y esquizofrenia. Valencia: Pretextos, 1988.

___________________________.Qu’estce que la philosophie ? París: Editions de Minuit, 1991. ¿Qué es la filosofía? Barcelona: Anagrama, 1994.

SARTRE, J.P. L’être et le néant. París: Gallimard, 1943. El ser y la nada. Buenos Aires: Lozada, 1979.

Fernando Roberto Alba – Estudiante de Master en Filosofía Contemporánea. Universidad de Paris VIII. Vincennes Saint-Denis.

Acessar publicação original

 

Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? – CANGUILHEM (AN)

CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável). Thiago Fernando Sant’Anna. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, p. 443-448, dez. 2013.

Precisas as palavras de Georges Canguilhem sobre Michel Foucault no texto “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, publicado no número 242 da Revista Critique, em julho de 1967, as quais argumentaram que “[…] o êxito de Foucault pode ser justamente entendido como recompensa pela lucidez que permitiu a ele enxergar este ponto para o qual, diferentemente dele, outros foram cegos” (CANGUILHEM, 2012, p.9). Canguilhem tece, no texto, com palavras afiadas, uma defesa do pensamento edificado por Foucault em seu projeto arqueológico de explorar a rede epistêmica a partir da qual emergiram “certas formas de organização do discurso” (CANGUILHEM, 2012, p.22-23), subvertendo a devoção ao curso progressista da história e interditando “toda ambição de reconsti tuição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15). Irônicas, suas palavras desafiavam aos detratores de Foucault: “Humanistas de todos os partidos, uni-vos” (CANGUILHEM, 2012, p. 09)? Profundas teriam sido as relações entre Canguilhem e Foucault.

Nos anos 1960, Canguilhem, no relatório escrito para a avaliação da tese “Loucura e Insânia”, durante o doutoramento de Foucault, declarou ter sentido “um verdadeiro choque” (ERIBON, 1990, p. 130) diante de suas ideias que se inscreviam, indubitavelmente, no espaço da vanguarda acadêmica. Difícil também seria dimensionar a amplitude da inspiração que foi Canguilhem para Foucault quando nos deparamos com as palavras usadas por Eribon (1990, p. 131) para se referir ao reconhecimento do primeiro pelo segundo em seus trabalhos arqueológicos, como lugar onde estaria “gravada a sua marca”.

Conhecido por não publicar “grandes volumes, mas contribuições delimitadas” (ERIBON, 1990, p. 130), Georges Canguilhem, nascido em 1904, no sudoeste da França, e sucessor de Bachelard, na Sorbonne, em 1955, publicou, em 1967, o que Eribon (1990, p. 131) considerou como um “artigo muito vigoroso e muito notado”: um comentário sobre As palavras e as coisas. Canguilhem estaria “irritado com as críticas dos sartrianos contra Foucault” (ERIBON, 1990, p. 131), já que As palavras e as coisas “[…] foi recebida com hostilidade nos meios de esquerda”, acusada pelos comunistas como “um manifesto reacionário” que negava a história, a historicidade e servia aos “interesses da burguesia” (ERIBON, 1996, p. 101).

Esse referido texto, responsável por “[…] tirar Georges Canguilhem da sua tradicional reserva” (ERIBON, 1996, p. 104), é “[…] quase inteiramente consagrado a rebater as críticas que foram feitas a Foucault a propósito da história”, já que o arqueólogo propõe uma analítica que se diferencia das análises dos historiadores da biologia, principalmente no que diz respeito às “relações de continuidade e descontinuidade entre Buffon, Cuvier e Darwin.” (ERIBON, 1996, p. 105). Ao longo do breve e denso texto, objeto desta resenha, dividido em cinco partes, Canguilhem destacou a importância e o alcance da abordagem de Foucault, ao operar ferramentas, ancoradas numa incontornável experiência histórica, que possibilitaram à sua arqueologia perceber “indícios de uma rede epistêmica”, em resumo, descrever uma “episteme” (CANGUILHEM, 2012, p. 19).

Daí, ser inegável, aqui, reconhecer a importância das refl exões realizadas em As palavras e as coisas, onde Foucault entrecruza filosofia e historicidade. Machado (2005, p. 100) destacou bem as palavras de Canguilhem, para quem esse texto, aqui resenhado, significava a “[…] impugnação do fundamento que certos filósofos creem encontrar na essência ou na existência do homem”. Impugnação essa denunciadora da falência da filosofia moderna em “[…] manter a distinção entre o empírico e o transcendental, ao tomar o homem das ciências empíricas, o homem que nasceu com a vida, o trabalho e a linguagem, como o modo de ser do homem da modernidade” (MACHADO, 2005, p. 100). O próprio Canguilhem já havia reconhecido quando de sua relatoria sobre a tese de Foucault, que este “[…] leu e explorou pela primeira vez uma quantidade considerável de arquivos”; que “[…] um historiador profissional não deixaria de ser simpático ao esforço feito pelo jovem filósofo” ao analisar docu mentos em primeira mão; e que “[…] nenhum filósofo poderá censurar a M. Foucault ter alienado a autonomia do juízo filosófico pela submissão às fontes da informação histórica” (ERIBON, 1990, p. 133). Como poderíamos compreender esse fenômeno – Foucault – à luz de suas críticas às perspectivas tradicionais a partir das quais se escreve história e na direção de sinalizar para inversões outrora tão distantes de serem compreendidas por aqueles que o atacavam? Tais afirmações conduzem-nos a reconhecer que emoldurar em um quadro o contexto dos anos 1960/1970, e ali inscrever o pensamento de Michel Foucault, sinalizar-nos-ia equívocos. Impreciso também seria se, nesse enquadramento, optássemos por anunciar a fixação de alguma teoria foucaultiana à propalada crise dos paradigmas, quando, no plano geral, os modelos explicativos, orientados por conceitos de “ordem”, “evolução”, “linearidade”, “racionalidade”, “progresso” e “verdade inquestionável” não respondiam satisfatoriamente às questões colocadas às Ciências Humanas; a mesma coisa se deu em um plano específico, quando se emergiu uma revisão e desestabilização das certezas no interior da disciplina da História, confrontada com a suspeita quanto ao seu estatuto de inteligibilidade diante da ampliação de seu campo temático, de suas abordagens e de seus objetos, enfim, de ruptura com as metanarrativas.

Não seria menos insuficiente dizer que aqueles anos fundaram o pensamento de Foucault em um contexto de dissolução da sociedade burguesa, de crescente uniformização da cultura de massas e de questionamento da posição de “centro” por parte daqueles movimentos sociais como os movimentos feministas, negro, gay etc.

Inegável, por outro lado, seria reconhecer que a transgressão do paradigma iluminista, moderno, racionalista, cartesiano foi possível com as histórias das pessoas inomináveis de Michel Foucault e a contestação da construção discursiva da História na qual os acontecimentos ganhavam sentidos, desconstruindo a ideia de “verdade” impressa nos documentos. Atualmente, o pensamento de Foucault imprimiu, no campo de estudos da História, uma subversão incontornável, o que tornaria qualquer desprezo a essa incursão uma ingenuidade, na mesma direção que seria percebida se tentássemos rotular suas problematizações em qualquer outro tipo de enquadramento. O pensamento de Michel Foucault, ou melhor, o seu estilo de pensamento não é um bloco monolítico a ser apreendido, domesticado dentro dos limites de uma teoria, ou sequer enquadrado em qualquer contexto social, econômico ou cultural a priori.

A esquiva destes aprisionamentos discursivos que contextualizam e tipologizam masmorras do pensamento pode ser percebida na leitura do texto de Georges Canguilhem sobre o livro As palavras e as coisas.

O que Michel Foucault quis dizer com o conceito de episteme quando o escreveu, ao longo do livro, As palavras e as coisas? Trata- -se de problemática que permeia as refl exões de Georges Canguilhem em “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, traduzido agora para a língua portuguesa pelas Edições Ricochete, inaugurando a Coleção Inominável, coordenada por Marlon Salomon.

Canguilhem assinalou o texto de Foucault com pistas que fizessem surgir “um ponto” de abertura de uma “avenida” (CANGUILHEM, 2012, p. 09), que indicasse uma analítica sobre a constituição do “homem” como objeto de investigação das ciências humanas, distante de uma história social de uma ciência, e próxima, por outro lado, de uma rede de enunciados. O texto decifra os contornos de uma chave, usada e elaborada simultaneamente pelo filósofo francês para abrir sentidos em textos, diga-se de passagem, originais, empoeirados e desprezados por estudiosos. Chave essa da qual o leitor de Foucault pode lançar mão para encontrar não o seu proprietário ou inventor, não para revelar algo ou fenômeno escondido, à espera da iluminação. Mas uma chave a ser forjada no movimento de seu uso, a ser decriptada na direção de sinalizar para “a sucessão descontínua e autônoma das redes de enunciados fundamentais”, sucessão essa que “[…] interdita toda ambição de reconstituição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15).

A essa altura, podemos afirmar, conforme o texto de Canguilhem, que já não é mais possível recusar a incontornável presença da historicidade na constituição da cultura, em recusa a qualquer isolamento de Foucault a um tipo de pensamento que sonhasse naturalizar a cultura ou que aspirasse a superar, progressivamente, uma contradição (CANGUILHEM, 2012, p. 11). A analítica deste arqueólogo exuma descontinuidades radicais – fronteiras entre pensamentos possíveis de serem pensados e pensamentos que não podem mais ser pensados – sem receios em retomar pontos já abordados ou suspender o tráfego por questões não apropriadas naquele momento em que tecia As palavras e as coisas. Como a lâmina de uma katana de samurai, Foucault, que “[…] não tinha medo da morte […]” (VEYNE, 2009, p. 149), exercita a perigosa prática de pensar, “[…] correndo o risco de espantar-se e até de aterrorizar- -se consigo mesmo […]” (CANGUILHEM, 2012, p. 29), corta as palavras, decepa evidências, desentranha “condições práticas de possibilidades” (CANGUILHEM, 2012, p. 30) que constituíram o homem como objeto do saber e denuncia, com isso, o “sono antropológico” daqueles que tomavam o homem como um objeto dado para, daí em diante, fazer progredir, uma ciência.

Canguilhem, por sua vez, afia ainda mais a lâmina de Foucault em sua obra traduzida por Fábio Almeida. José Ternes e Marlon Salomon afinam-se, respectivamente, no prefácio e na gestão da coleção inaugurada pela Edições Ricochete. Os cinco estudiosos aqui citados nos permitem abdicar do recurso do contexto como explicador de um fenômeno. Longe disso, possibilitam uma transgressão do pensamento ao percorrer a rede de enunciados proposta pela episteme de Foucault, de forma a recusar as raízes, a origem ou a iden tidade fixa do objeto. Os referidos estudiosos elucidam a percepção de um “ponto”, um caminho, uma “avenida”, para além das estruturas engessadas, para além dos personalismos, mas na direção das descontinuidades, das rupturas, dos entrecruzamentos nos processos que o constituem. Foucault não se inscreve, portanto, em um quadro, mas o analisa no mesmo movimento em que o constitui, através 447 Thiago Fernando Sant’Anna. da sua “técnica de incursão reversível” (CANGUILHEM, 2012, p.19). Ele não lê um mundo previamente dado como um texto, mas o observa como quem observa o quadro inscrito, simultaneamente, em seu processo de pintar. Canguilhem afia o estilo de pensamento de Foucault, enfatizando, como um argumento em contra-ataque, o “sono antropológico” – termo de Michel Foucault – que definia “[…] a segurança tranqüila com a qual os promotores atuais das ciências humanas tomam como objeto dado aí antecipadamente para seus estudos progressivos o que, de início, era apenas seu projeto de constituição” (CANGUILHEM, 2012, p. 29). Em seu artigo, Canguilhem destaca a importância do conceito de episteme no livro As palavras e as coisas, em que o filósofo analisa, constitui, elabora uma “técnica laboriosa e lenta” (CANGUILHEM, 2012, p. 16), que percorre por Borges, Velásquez, passando por Cervantes, na reconstituição de uma rede de saberes que faz emergir as Ciências Humanas e o homem como sujeito e objeto deste saber, anunciando a morte do homem e o esgotamento do Cogito, em um mesmo ataque.

Referências

CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável)

ERIBON, Didier. Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

______. Michel Foucault (1926-1984). Lisboa: Livros do Brasil, 1990. (Coleção Vida e Cultura) MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. 3 ed. Rio de Janerio: Zahar, 2005.

VEYNE, Paul. Foucault. O pensamento, a pessoa. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.

Thiago Fernando Sant’Anna –  Doutor em História pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado em Arte e Cultura Visual, pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, Universidade Federal de Goiás/ Faculdade de Artes Visuais. Docente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Goiás/ Campus Cidade de Goiás. E-mail: [email protected].

 O que é um autor? Revisão de uma genealogia – CHARTIER (RBH)

CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos (SP): Ed. UFScar, 2012. 90p. Resenha de: MORAES, Kleiton de Sousa. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013.

Retornar aos clássicos é sempre um risco, ainda mais quando se pretende fazer uma revisão crítica do clássico. Lançar-se a essa árdua tarefa é colocar-se diante de um desafio que pode resultar, não raras vezes, frustrante. Assumindo esse risco o historiador francês Roger Chartier, professor da cátedra Écrit et cultures dans l’Europe Moderne no Collège de France desde 2007, retorna à clássica conferência do filósofo Michel Foucault, pronunciada em fevereiro de 1969 sob o título “O que é um autor?”. Na esteira dela, Roger Chartier propõe-se em O que é um autor? Revisão de uma genealogia a revisitar as reflexões do filósofo na sua análise do funcionamento do que ele chamara de ‘função autor’ no mundo da escrita ocidental.

Fruto de uma conferência realizada na Sorbonne no ano 2000, e apresentada para a mesma Société Française de Philosophie que promoveu a conferência homônima de Foucault, O que é um autor? é o desdobramento de um diálogo profícuo do historiador com o filósofo esboçado já há alguns anos. Historiador especialista na cultura escrita, Chartier, em A Ordem dos livros (publicado em 1994), já havia visitado a famosa conferência de Foucault para analisar as representações dadas à figura do autor e fazer uma primeira correção nas reflexões do filósofo francês. Já naquela ocasião, Chartier buscava dialogar com Foucault, fundamentalmente no que tange à periodicidade do aparecimento do autor em textos ‘científicos’ e ‘literários’, tema que retomará neste novo livro.

Aqui, Chartier reitera a originalidade do filósofo ao chamar atenção para a pertinência de seu questionamento sobre o funcionamento do mecanismo segundo o qual um texto ou uma obra são identificados a um nome próprio. Reafirmando a tese central da conferência de Foucault, Chartier desenvolve uma análise histórica das distintas maneiras pelas quais foi acionada a ‘função autor’ no tempo. Para tanto, inicia com uma revisão da cronologia esboçada pelo filósofo francês a fim de corrigir algumas imprecisões em suas assertivas, renovando, assim, sua força interpretativa.

Nesse empreendimento, Chartier evoca outro frequente interlocutor em seus livros, o escritor argentino Jorge Luís Borges. No conto Borges e eu, que faz parte do volume O Fazedor, Borges conta, mediante um humor profundo, da não identidade entre o indivíduo que escreve e o autor, embora reitere a complementaridade fenomenológica inescapável entre ambos: “Seria exagerado afirmar que nossas relações são hostis. Eu vivo e deixo-me viver, para que Borges possa urdir sua literatura, e essa literatura justifica-me” (p.32-33).

A citação do conto borgiano não é gratuita. Trata-se de afirmar, com Foucault, que o funcionamento da ‘função autor’ não se inscreve no momento de uma prática de escrita, mas se insere dentro de uma ordem do discurso específica que a engloba. É essa adesão à tese foucaultiana o ponto de partida do qual Chartier empreende sua revisão crítica, evocando daí a vaga cronologia em três tempos esboçada por Michel Foucault na famosa conferência.

A primeira seria a do nascimento da concepção burguesa da propriedade literária, que Foucault localiza entre o final do século XVII e o início do século XVIII. Embora reafirme a importância desse momento como fundamental na construção de uma ‘função autor’, Chartier chama atenção para o fato de que a propriedade literária do autor nasce na Inglaterra não tanto no interesse do autor, mas do livreiro-editor londrino que, na iminência de perder seus direitos sobre determinada obra – direito exclusivo de reprodução adquirido pelos velhos estatutos e revogado por nova lei –, em inícios do século XVII e não no final, cria, ou faz criar, a propriedade do autor sobre seu texto. Chartier afirma que essa conquista do autor encobriria o verdadeiro objetivo que seria dar ao autor o direito de, ao repassar sua propriedade para determinado livreiro-editor, também transmitir os mesmos direitos de perpetuidade e imprescritibilidade da obra.

Avançando na reflexão, o historiador observa que a justificativa para a criação do copyright ainda nesse período fundou-se tanto no direito natural – segundo o qual o homem é proprietário de seu corpo e dos produtos do seu trabalho – quanto numa justificativa estética, fundada na originalidade daquele que produz, gerando, nessa esteira, a figura do indivíduo criador único e original. Isso significa, nos alerta Chartier, não só uma reivindicação econômica do direito do autor, mas a existência de uma antiga reivindicação que se baseava numa propriedade moral, segundo a qual o controle de uma obra poderia ser pedido em nome da honra de um autor.

A outra cronologia, aquela em que o historiador segue mais de perto Foucault, relaciona-se à distinção do processo de anonimato que caracterizaria os textos literários e científicos entre os séculos XVII e XVIII. Pensa Chartier que talvez a aporia existente nas reflexões de Foucault seria resultado de três problemas: o primeiro, uma inércia linguística, criada pela impossibilidade de definir-se prudentemente uma divisão entre ciência e literatura em períodos específicos; o segundo se referia à necessidade de se pensar a evocação de autoridades (Hipócrates, Plínio etc.), procedimentos comum antes dos séculos XVII ou XVIII, e essa relação com os autores de determinada época; e o terceiro, a ausência da ‘função autor’ em textos literários anteriores ao século XVII ou XVIII e a mesma ausência para enunciados científicos após essa mesma data, hipótese que Chartier rejeita.

Embora concorde em parte com Foucault, quando este salienta a necessidade da referência a um autor bem antes do século XVII para textos identificados como ‘científicos’, Roger Chartier não concorda quando nessa distinção acusa o anonimato em textos literários. Para Foucault, entre os séculos XVII ou XVIII, há uma mudança entre o aparecimento da figura do autor em textos literários e, inversamente, o seu desaparecimento em textos científicos. Para o historiador, mesmo depois do século XVII, uma descoberta ou um enunciado científico só tinham validação pela evocação de um nome próprio, não necessariamente o erudito, técnico ou profissional. Chartier identifica esse procedimento como um método de validação aristocrático, em que vale mais, para aceitação de um enunciado, aquele que tem o poder de dizer uma verdade – um poderoso, um príncipe ou um ministro. Em contrapartida, o desinteresse de um autor, representado pela não relação de propriedade por seus enunciados, é fundamental para que o erudito seja reconhecido como o autor ou autoridade nesse regime. Tal procedimento, ao contrário do que pensava Foucault, encontrava-se presente até mesmo nos textos literários posteriores a esse momento de ruptura que teria sido o século XVII, no qual, em prólogos, prefácios ou dedicatórias, o desinteresse do autor é evocado como fator de credibilidade para textos. Por fim, Chartier afirma, diferentemente do que Foucault pensava, que alguns textos com valor de verdade circulavam em anonimato desde a Idade Média, sem necessidade da referência a uma autoridade – os livros de segredos e os manuais técnicos, por exemplo.

Se o século XVIII revela a construção do autor-proprietário, a figura do autor é bem anterior a ela. A última cronologia esboçada por Foucault remete à ligação do autor a uma função ligada à identificação de um indivíduo com determinado texto para fins punitivos, notadamente os de censura. Chartier concorda com essa proposição citando fontes inquisitoriais do século XVII, onde o anonimato de um texto impresso já era motivo de sua censura, sendo os títulos de obras vinculadas a um nome próprio uma fórmula essencial de melhor vigilância para as autoridades.

Essa investigação levou alguns historiadores a concluir que a ‘função autor’ nasce com o livro impresso, a partir do aparecimento do nome de um indivíduo no impresso, com os processos acionados por escritores que tiveram seus textos publicados sem seu consentimento desde inícios do século XVI e com o aparecimento de um retrato do indivíduo autor. Mas Chartier julga errônea essa precipitação. Em primeiro lugar, seguindo a mudança lexical que se dá com os termos auctor e actor quando ainda o regime de circulação de textos era fundamentalmente manuscrito, no século XIV e no começo do século XV, com o primeiro designando uma autoridade e o segundo um compilador. Chartier aponta a conquista progressiva da autoridade dos auctores pelos actores e, já no final do século XIV e em inícios do XV, a existência da designação acteur valendo tanto para autoridades quanto para certos textos publicados em língua vulgar, nascendo daí a figura do escritor, não apenas como aquele que copia, mas aquele que compõe e inventa.

Essa forte presença da representação – palavra-chave em Chartier – do autor como criador em contraste com o decifrador, glosador ou compilador, impõe uma reflexão em torno da historicidade da identificação do nome à obra e à própria materialidade do objeto. Para Chartier, se desde a alta Idade Média a forma mais conhecida do livro era aquela da miscelânea, ou seja, de diferentes textos reunidos num objeto-livro, o que parece existir é uma suposta ‘função leitor’ – aquele que desejou que fossem reunidos textos distintos em um só objeto – e uma ‘função copista’ – o que copiou o texto num único livro. Mas, se a miscelânea é a característica desse tipo de livro, já no século XIV, quando a circulação de textos ainda se fazia em livros manuscritos, é possível identificar a ‘função autor’ a um indivíduo, ligando-o a uma obra ou livro. Aí reside para Roger Chartier a incontornável recomendação de que à genealogia da ‘função autor’ imersa na ordem do discurso deve-se acrescentar, concomitantemente, uma ordem dos livros. A consequência disso residiria na maneira de tratamento dada à investigação dos impressos, que não poderia prescindir também da investigação dos suportes que veiculam os textos como forma de identificar os seus sentidos.

Ao corrigir algumas imprecisões expostas na famosa conferência de Michel Foucault, Roger Chartier em O que é um autor? enfatiza a força interpretativa do filósofo francês incorporando alguns questionamentos advindos das pesquisas recentes sobre impressos, notadamente oriundos da História Cultural. Essa démarche não o conduz à negação da questão proposta por Foucault. O retorno visa reforçar o quanto sua reflexão crítica continua expressa em questionamentos atuais sobre o funcionamento de um determinado mecanismo de autoridade sobre os textos. Essa reflexão não finda na investigação da ordem do discurso, mas incorpora, de maneira fundamental, a dimensão da materialidade desse mesmo discurso. E isso porque, respondendo às questões ao final do livro, Chartier afirma que um leitor nunca encontra um texto a não ser por meio de uma forma específica, sendo a ordem do discurso sempre uma ordem de materialidade.

Por fim, cabe reiterar que tal visita a Michel Foucault como parte de um movimento que busca dialogar com um clássico se funda num espaço de tensão em que o interlocutor se apropria das ideias de outrem contribuindo de forma a torná-las vivas. Chartier não parece em seu O que é um autor querer cair nas armadilhas que pudessem confrontá-lo com o filósofo. Ele vai ao encontro do risco inevitável de, ao se apropriar das ideias de Foucault, tornar-se também ele um autor dessas ideias, aprofundado-as de forma crítica. Mas os sentidos que os leitores vão dar a essa apropriação respeitosa podem não ser tão compatíveis com os desejos do historiador. Esta última proposição Chartier assume como parte incontornável de uma prática de leitura que é também, sabe ele, espaço de imprevisíveis criações.

Kleiton de Sousa Moraes – Doutorando em História Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), IFCS – Programa de Pós-Graduação em História Social. Largo de São Francisco, 1, sala 205, Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault – DUARTE (ARF)

DUARTE, André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: FERNANDES, Antônio Batista. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.135-140, 2012.

Acesso permitido apenas pela publicação original

Foucault e a crítica da verdade – CANDIOTTO (RFA)

CANDIOTTO, Cesar. Foucault e a crítica da verdade. Belo Horizonte: Autêntica; Curitiba: Champagnat, 2010. Resenha de: STAPAZZOLI JUNIOR, Fred Mendes. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.23, n.33, p.567-570, jul./dez, 2011.

E tentou nos advertir o autor, Cesar Candiotto, nas páginas finais de seu Foucault e a crítica da verdade:

[…] o trabalho intelectual de Michel Foucault é indissociável de suas práticas, de seus engajamentos nas lutas locais, de sua crítica às tecnologias institucionais postas em funcionamento no mundo ocidental, de sua aversão às morais de estado-civil e assim por diante. A esse respeito, o presente trabalho prescindiu da biografia do filósofo, embora se saiba que suas práticas nutriam suas formulações teóricas e vice-versa. Seja ressaltado, contudo, que a única coerência que ele reivindica para si próprio é a coerência de sua vida. Jamais Foucault procurou se identificar com as lutas das quais participou, dos movimentos que apoiou, pois temia ser localizado pelas identificações do poder (CANDIOTTO, 2010, p.167, grifo nosso).

Há mais explícita grafia de um bíos nessas linhas que se leem? Tal qual o poder nesse autor – uma ficção, uma abstração entre no mínimo dois que resistem, passível de apreensão em seus efeitos germinais –, eis uma versão da biografia, e neste momento não nos preocupamos com o sentido que talvez o beletrista empreste a esse último termo. Do contrário, parece-nos que o trabalho de Candiotto não prescinde dessa relação inextricável entre vida e obra que aos leitores de Foucault tomam relevo em todo instante de retorno ao texto desse pensador – pelo menos aqueles que se suspendem do “lugar comum” (CANDIOTTO, 2010, p.15).

Na leitura de cada linha dessa versão da crítica da verdade, algo da ordem do inapreensível se extrai. É como um corpo que desaparece e na sua ausência resiste e permanece vivo; um traço presente, uma marca; um registro indelével. É como o fim do romance. Quem já o viveu algum dia conhece a espécie de vão combate que travamos naquele momento em que se tenta apagar tudo e de uma só vez. Que tentativa inócua! É como se aquilo que não é mais, entretanto sendo vivo, transbordasse. Há um resto que escorre de toda versão, de toda ficção, de toda fantasia que nos aproxima e nos declara, ao mesmo tempo, separados desde sempre – separados como o temor do filósofo francês em relação às localizações precisas e identificações.

No empreendimento teórico de Candiotto, Foucault e a crítica da verdade, da primeira letra ao seu ponto último, outra coisa não fazemos, nós leitores, senão juntar, como o próprio autor o fez, as sobras do que restou desse algo a que chamamos Foucault: traços, marcas, registros que se extravasam das linhas que se escreveram. Pelo menos a nós isto é o que fica. A nós esse é o “perigo principal” eleito, que, em cascata, ameaça e exige um posicionamento (CANDIOTTO, 2010, p.168). A nós isso se desenha nessas impressões de leitura.

Foucault, de suas perspectivas de análise – sempre nuançadas e revistas ao longo de sua trajetória intelectual –, posicionou-se em face dos perigos que, diga-se de passagem, tomam a forma do iminente xeque-mate. Fatal, por certo. Candiotto, de sua parte, também pinçou um perigo e não muito longe dos escritos sobre o qual se debruça, como em um “elogio à diferença”, também trafega sobre o fio da navalha. E não poderia ser diferente.

Como depreendemos já de saída, ao aparelhar-se do impensado, arrisca-se o autor da obra em um gesto e, a partir de uma torção do olhar, traça as linhas de sua aposta: “[…] analisar a possibilidade de uma história crítica da verdade articulada em torno da constituição do sujeito, como fio condutor da investigação de Michel Foucault” (CANDIOTTO, 2010, p.20, grifo do autor).

Atentemos ao destaque: uma história. Sim, uma história que corre quase que em suspenso nessa História legitimada por práticas discursivas e não discursivas. E por que não pensarmos em uma história que Candiotto, a partir de cortes, disjunções e aproximações daquilo que restou, entrevê algo que afirma ter prescindido, mas que brota sob o olhar do leitor? Isso foi por ele criado, por certo, muito embora na mesma medida em que nos aproximemos desse entre em igual proporção nos escape. Há uma diferença aí registrada, coisa que pode ser aproximada ao deslocamento e à torção do olhar. Daí o resultado: a ficção de Candiotto, que, atento, “ficcionou” o indiscernível entre verdade, ação e vida, bem ao gosto de Foucault, recriando-o – justamente aquilo que transborda, que sobra; a marca indelével de sua obra, uma história crítica da verdade.

Não sem desespero, diante de todo o horror de sentir o chão desabar sob os nossos pés, outras ficções imaginárias (e imaginárias porque seguras e totalizadoras) são excluídas dessa versão – uma, dentre tantas outras. Mas nem por isso e ao mesmo tempo podemos, maravilhados, deixar de assistir ao espetáculo trágico dessa leitura em que algo cai e dali mesmo emerge. Por um lado, essas grandes verdades forjadas na e pela História – isso que fantasticamente nos agarramos ou, dito noutros termos, fixam identidades, fixam modos de ser e de agir – caem; por outro, das ruínas, alguma possibilidade. Candiotto a entreviu e a registrou em sua obra. Dentre os excertos que cita, um possível e excelso fim da tragédia, dentre os quais talvez cheguemos, da lavra de Michel Foucault:

dou-me conta que não escrevi nada além de ficções. Não quero dizer, porém, que isso esteja fora da verdade. Parece-me que é possível fazer trabalhar a ficção na verdade, induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, e fazer de algum modo que o discurso de verdade suscite, fabrique algo que não existe ainda, portanto, que ele “ficcione”. “Ficcionamos” a história a partir de uma realidade política que a torna verdadeira, “ficcionamos” uma política que não existe ainda a partir de uma verdade histórica (FOUCAULT, 1994 apud CANDIOTTO, 2010, p.165, grifo nosso).

Se falamos em tragédia, já que muito além da obra é uma vida que se coloca em jogo, entre a miséria e o sublime, entre a vida e a morte, talvez um refúgio: a partir de Foucault podemos pensar que referidas ficções constituam um combate no qual entramos, sem retorno nem saída, restando-nos apenas a coragem de nos lançarmos sobre algo que ainda não existe, mas que possa ter efeito de verdade, caso tenhamos apreendido a confusão entre o escrito e o vivido.

Essa é a relação indissociável que não se cala, de ponta a ponta, na aposta efetuada por Candiotto. Essa impressão de leitura também obrigou-nos a eleger um perigo: não apagar as marcas que o próprio exercício filosófico inscreve nessas biografias e vice-versa.

Fred Mendes Stapazzoli Junior – Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Florianópolis, SC – Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]

 

As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault – PORTOCARRERO (TES)

PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, 260 p. Resenha de: LOPES, Fábio Henrique. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.1,  mar./jun. 2011.

Para além de ensaios: problematizações das ciências, da(s) vida(s) e das filosofias

Ensaios! Produção provisória e inacabada, exercícios de reflexão, conjunto heterogêneo. Em vários momentos, a filósofa Vera Portocarrero lembra a seus leitores que o livro que leem é constituído por ensaios em torno das ciências da vida. Mapeando, expondo e explorando as possibilidades históricas de investigação da vida, esses exercícios articulam, aproximam, distanciam e expõem, com precisão, as diferenças e as singularidades entre as proposições de Georges Canguilhem e de Michel Foucault, ou seria melhor dizer, entre a epistemologia do primeiro e a arque-ogenealogia proposta pelo segundo.

Ensaios, como a autora diz, pensados numa perspectiva quase fragmentária, aparentemente eclética, mas agenciados e problematizados a ponto de permitir a reflexão crítica em torno de determinadas formas filosóficas e históricas de problematizar a vida. Originais contribuições para várias áreas do saber e da filosofia: história das ciências, histórias das ciências biomédicas, história moderna e contemporânea, por exemplo.

Com a mesma clareza característica de sua narrativa, a autora também evidencia as ressonâncias e apropriações que mais marcaram suas investigações, indicando suas condições de possibilidade, os diálogos possíveis, e transpondo os limites de superficiais mapeamentos bibliográficos, historicizando e buscando articular hipóteses, contribuições e limites das obras selecionadas, como de cada parte de seu próprio livro. Não posso deixar de mencionar a justa medida com a qual a autora revela as suas hipóteses de trabalho, abertas e expostas em cada ensaio, em cada parte desse todo: sua obra. Dessa maneira, esclarecem-se ao leitor, inclusive para melhor marcar e destacar as contribuições e possíveis limites dos ensaios, os objetivos de cada parte, de cada texto, de cada reflexão.

Três problematizações estruturam a obra. Em primeiro lugar, a da história das ciências da vida, ou, como a autora diz, as “questões que fundamentam as metodologias em filosofia e história das ciências biomédicas” (p. 25). Em seguida, focaliza o problema da concepção vitalista da vida e de seu valor como conceito operatório nas análises históricas. Por fim, aborda as formas de investigação da vida no pensamento de Michel Foucault.

Na primeira parte, “Filosofia, história e ciências da vida”, a autora problematiza aquilo que se compreende por ciências da vida, partindo de suas historicidades, das implicações e desdobramentos de uma racionalidade científica, suas especificidades de saber, de força e de poder. Inicialmente, o objetivo é traçar uma preocupação com o tema das ciências da vida, sugerindo relações estabelecidas entre a metodologia histórico-filosófica e as ciências, em termos de objeto, objetividade, interdisciplinaridade, verdade, prática e relações de forças.

Para estudo da história das ciências e do objeto da história das ciências da vida, Canguilhem, Latour e Foucault são lembrados, e suas proposições destacadas. Conceito e historicidade, internalismo versus externalismo, práticas do saber, mola propulsora da produção científica, denúncia do caráter arbitrário da Razão, relações (e batalhas) de forças, dicotomia entre natureza, ciência e sociedade, métodos científicos de trabalho e reflexão, mudanças na forma de olhar o vivo, legitimação científica, concepções datadas de verdade, constituem as condições de possibilidade do saber, de discursos e de batalhas travadas com as ciências da vida e por meio delas.

O eixo do segundo momento da obra, “Vitalismo, epistemologia e arqueologia”, é o conceito de vida. A autora destaca e explora a emergência da noção de vida e as possibilidades de problematizar o conceito de vida. De forma articulada e perspicaz, situa a emergência das problematizações e dos objetos às suas condições de possibilidade; os enunciados, às suas produções e objetos; a relação das ciências, dos saberes, com relações e exercícios de poder que “disciplinam e gerem a vida dos indivíduos e das populações, para problematizar o perigo desta forma de dominação da vida que as ciências representam” (p. 77).

Nesse segundo momento da obra, Foucault, Jacob, Canguilhem e Pasteur aparecem em destaque na tematização da vida. Além deles, Descartes e Kant também são evocados e articulados como possibilidade da própria reflexão.

Natureza e principais características da vida, a reprodução do organismo, hereditariedade, concepção vitalista da vida, transmissão, ser vivo como organismo, modalidades históricas de opor a vida à morte, microbiologia, vida microbiana, revolução pastoriana, positivismo, novos tipos de saber e de práticas médicas, formulações de conceitos, domínio das ciências biomédicas, condições de vida, ato vital, força vital, normalidade, normatividade, normalização, noções de ciência, episteme, passagem do estudo dos seres vivos para o estudo da vida, enfim, noção científica moderna de vida – lembrando que até o final do século XVIII, o conceito de vida não existe – formulam hipóteses, permitem os quatro ensaios dessa segunda parte. Indicam níveis diferentes de análise, como a epistemologia e a arqueologia, expõem para debate e reflexão uma histórica ordem discursiva, composta de interdições, controles, vontades e regimes de verdade, territórios de fala, produtos de saber, dispositivos e relações de poder, processos de normalização e normatividade.

Por fim, na terceira e última parte, “Vida, arqueologia e genealogia”, as proposições de Michel Foucault centralizam e permitem as hipóteses e os estudos. A noção de vida aparece como a) objeto de saber; b) objeto de saber-poder (incidindo sobre a vida dos indivíduos – anátomo-política do corpo -, e das populações – biopolítica); e c) como obra de arte. Em lugar de identificar e localizar a origem da noção de vida nas obras de Foucault, de revelar sua evolução e desnudar sua verdade oculta – operação e armadilha reflexivas negadas com muita clareza -, a autora constata que a noção é constituída por meio de um conjunto de problemas, os quais são apresentados, explorados e analisados. Para destacar a complexidade da noção e da pesquisa do conceito de vida na obra de Foucault, a autora ressalta as articulações com outros conceitos – tais como olhar, morte, homem, sexualidade, poder -, além dos diferentes níveis de análise – arqueologia, genealogia e estética da existência.

Níveis diferentes, descontinuidades temáticas, reformulações metodológicas, problematizações datadas, articulações, imbricações e rupturas que comprovam a possibilidade de pensar diferentemente o que e como se pensa, neste caso, a vida. Vida pensada na perspectiva de uma história do saber, de uma história da ciência, em nível das condições de possibilidade da existência dos saberes. Vida vinculada às formas, estratégias e dispositivos de poder imanentes aos saberes investidos em campos como o corpo, a população, a vida – uma análise do poder em sua forma de exercício específica a cada época. Vida concebida e pensada pelo estudo dos modos de subjetivação do indivíduo. Três problematizações, três movimentos, três domínios foucaultianos privilegiados na terceira parte do livro em que a filósofa Vera Portocarrero apresenta o tratamento da questão da vida nas análises de Michel Foucault.

Como nas duas partes iniciais do livro, a autora estabelece diálogo, fincando diferenças, aproximações e apropriações, entre a(s) filosofia(s) de Foucault, entre suas proposições e aquelas de Descartes, Kant, Jacob e Canguilhem. O homem, o sujeito, representações, organização epistemológica, possibilidades dos conhecimentos e das teorias, princípios de organização dos discursos sobre a vida, relações entre saberes e poderes em torno da vida, tecnologias modernas de poder, corpo, vida da população, dispositivos de regulação e de segurança, a vida como alvo, governamentalidade, governo, política, domínios de saber, poder disciplinar, disciplinas, esquadrinhamentos, exames, biopoder, racismo, guerra, nível de vida, ordenamento, duração da vida, longevidade, mortalidade, finitude, descontinuidades, intervenções, controles, positividade do poder, em suma, o estudo da vida na episteme moderna são temas que aparecem na própria trajetória das pesquisas de Foucault e que são explorados pela autora.

Totalmente articulados aos temas, abordagens e provocações dos ensaios, os apêndices “Vida, genealogia da ética e estética da existência” e “Governamentalidade e cuidado de si” funcionam muito bem em harmonia com o livro. Um momento em que a autora sintetiza e articula as pesquisas do filósofo francês em torno da estética da existência e da vida como obra de arte. Compreende e indica algumas rupturas e recuos na trajetória de Foucault, sua inquietação com o tempo presente, sua pretensão de pensar a ética como um modo de vida – mesmo sentido atribuído à filosofia -, as diferenciações possíveis entre ética e moral, a ousadia e a coragem do “dizer verdadeiro”, as modificações de si, o cuidar-se, uma arte de viver como governo da própria vida, cuidado de si, governo de si, conversão a si e posse de si, modalidades, inquietações e modos outros de problematizar a vida impossíveis de ser considerados em qualquer estudo, ensaístico ou não, sobre as ciências da vida.

Para concluir, lembro algumas inflamadas palavras de Deleuze, escolhidas livremente em dois textos. No primeiro, “Carta a um crítico severo”, ele nos remete à busca possível dos funcionamentos, das engrenagens de uma obra, de um discurso, e se pergunta “como ele [texto] serviu ou serve? Serviu para quê?” Assim, o que interessa é como alguma coisa anda, funciona, qual é a máquina! A interpretação de um texto remeteria à homogeneização do próprio acontecimento, do texto como acontecimento, do autor e do intérprete. Afetos, intensidades, experiências, experimentações são todos avaliados e os significados, atualizados por referências dadas e conhecidas anterior e antecipadamente. Na segunda obra, que escreveu com Claire Parnet, Deleuze diz que hoje devemos ler um livro como escutamos um disco: se gostamos, se a música nos toca de alguma maneira, se produz em nós efeitos, intensidades, afetos, seguimos ouvindo e ouvimos mais, mais e mais; mas se a música não nos toca, se ela não nos afeta, ou se nos afeta negativamente, abandonamos o disco, desligamos o rádio ou mudamos de estação. Com a obra de Portocarrero, é impossível não ser tocado. Fluxos novos, fruto de um laborioso trabalho de reflexão, mesmo sendo ensaística, como insiste a autora, são sedutoramente propostos por ela. Os textos funcionam como caleidoscópios, como experimentações, como fluxos, como provocações e desafios.

Ao contrário da escrita a ser interpretada, Deleuze sugere outra escrita, escrita-outra, escrita como fluxo, não como um código, a ser decifrado, a ter sua verdade e natureza encontradas, reveladas, resgatadas e, enfim, apresentadas e apreciadas. Com Deleuze, somos convidados a perceber as maneiras de ler um livro. Resumidamente, podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado. Por isso, o comentário, a interpretação, as explicações se fazem necessárias, exigidas e defendidas. Porém existiria outra possibilidade: a leitura por intensidade, mais condizente com o livro de Portocarrero – o livro considerado como uma pequena máquina a-significante. Nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. Leitura tipo ligação elétrica, fluxo entre outros, que entra em relação de corrente, contracorrente, de redemoinho com outros fluxos, não só os da fala.

É disso que se trata. Com Deleuze, reconheço agenciamentos, fluxos e intensidades entre proposições, temas, problematizações, objetos, métodos, saberes, subjetivações e poderes, todos alinhavados, em conexão, em tensão. Histórias, desafios, prazeres de uma leitura, de um texto preciso, ensaístico, mas intenso e maduro, fruto de uma trajetória filosoficamente vivida e instruída.

Fábio Henrique Lopes – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores – CASTRO (TES)

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, 477 p. Resenha de: NARDI, Henrique Caetano. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.3, Rio de Janeiro, nov. 2010.

A obra de Michel Foucault ganhou um renascimento bibliográfico impulsionado pelos eventos que marcaram os 20 anos de sua morte, em 2004, ano do lançamento do livro de Edgardo Castro na Argentina que aqui apresento. O autor é doutor em Filosofia pela Universidade de Fri-burgo (Suíça) e professor de História da Filosofia Contemporânea na Universidade de San Martín (Argentina). É também pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) da Argentina, agência de fomento equivalente ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

A obra recebeu uma tradução cuidadosa em 2009, o que já é um primeiro mérito a destacar no texto. O livro é apresentado pelos revisores técnicos (Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan), assim como pela tradutora (Ingrid Müller Xavier) como um ‘motor de busca’ que ajuda a percorrer a vasta obra de Foucault e sua preciosa e complexa caixa de ferramentas conceituais.

Não se trata de um motor de busca genérico e cabe aqui apresentar ao leitor as primeiras notas técnicas sobre o trabalho. O autor adverte que não se trata de uma obra exaustiva e que os crité-rios de inclusão dos verbetes (entradas) obedecem a uma leitura pessoal. Edgardo escolheu guiar o leitor nos aspectos menos conhecidos e menos explorados da obra de Foucault, apresentando, por exemplo, informações úteis para superar dificuldades linguísticas em relação aos termos em grego, assim como os autores menos conhecidos que Foucault cita. Obviamente ele não deixa de lado os conceitos e temas centrais e os pilares de sustentação da obra, os quais, por sua vez, ganharam espaço destacado no livro e, na minha leitura, compõem a parte do livro que é a mais rica em análise e a mais interessante para o leitor iniciante.

Como motor de busca, eu teria algumas críticas tanto em relação à edição original em espanhol, assim como à tradução para o português. A crítica se dá pela escolha do autor em referenciar os termos para edições em francês dos livros de Michel Foucault. Ou seja, se o leitor quiser buscar na fonte os termos ou conceitos apresentados terá de comprar edições em francês, algumas, inclusive, que não estão mais disponíveis, como, por exemplo, a edição em quatro volumes dos Ditos e escritos (1994) em francês que agora só é vendida na versão em dois volumes (2001). Em minha opinião, este objetivo da obra que se dedica a informar a localização de termos e autores não acrescenta muito ao que já está disponível nos Ditos e escritos publicados em francês, pois estes apresentam um índice remissivo e de autores exaustivo que orienta o leitor de forma mais eficaz que o proposto por Edgardo. A edição em português poderia ter corrigido este problema, mas não o fez. Outro alerta importante ao leitor é que o livro, como já assinalei acima, foi pu-blicado em 2004 e não incorpora os seminá- rios publicados na coleção Hautes Études, da Gallimard/Seuil, posteriores a 2003, fato este apontado pela tradutora. Não foram incluídos, portanto, os seminários: Sécurité, Territoire, Population (2004), Naissance de la Biopolitique (2004), Le Gouvernement de Soi et des Autres I (2008) e Le Gouvernement de Soi et des Autres II: le courage de la verité (2009).

Em comparação com outras obras de introdução e apresentação dos conceitos de Michel Foucault, o livro de Edgardo é o mais extenso dis-ponível em português. O livro de Judith Revel (2005), Michel Foucault: conceitos essenciais, editado pela Claraluz – tradução do livro Le vocabulaire de Foucault (2002), por exemplo, tem somente 33 entradas (verbetes); o livro de Edgardo tem 294 entradas (verbetes).

As grandes qualidades do livro estão na visão panorâmica da obra. Ele permite tanto ter uma compreensão extensa da caixa de ferramentais conceituais deixada por Foucault, assim como montagens preciosas de citações que marcam o percurso do autor. Edgardo adverte de que sua obra (p. 15) não deve ser vista a partir de um texto com ponto final, mas um ponto de partida para uma obra coletiva, um convite para explorar o trabalho de Foucault.

O estilo do texto do livro é relativamente uniforme, o autor propõe inicialmente uma breve introdução do conceito e na sequência encadeia uma série de citações relativas ao mesmo que aparecem em diferentes momentos da obra de Foucault, assim como os relaciona a outros conceitos/temas. Este formato torna a leitura um pouco truncada, mas, ao mesmo tempo, permite que acompanhemos as torções conceituais ao longo da obra, as quais tornam material a ideia de escrita como experiência, ou seja, como Foucault afirmava, a escrita tinha, para ele, a função de transformação, ele escrevia para não ser o mesmo.

Referências

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, v. I, II, III e IV. Paris: Gallimard, 1994. [ Links ]

______. Dits et écrits, v. I e II. Paris: Gallimard, 2001. [ Links ]

______. Sécurité, territoire, population. Paris: Ga-llimard, 2004. [ Links ]

______. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres I. Paris: Gallimard, 2008. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres II: Le courage de la vérité. Paris: Gallimard, 2009. [ Links ]

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. [ Links ]

______. Le vocabulaire de Foucault. Paris: Ellipses, 2002. [ Links ]

Henrique Caetano Nardi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault – PORTOCARRERO (RFA)

PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. Resenha de: TERNES, José. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n.28, p.259-262, jan./jun., 2009.

Os textos reunidos neste livro têm muito a ver com a própria biografia da autora. Não, claro, a da vida civil, mas outra, monástica, passada no interior da Academia. Uma trajetória intelectual.

Não é necessário, e seria cansativo, lembrar cada passo, cada texto, dessa démarche. Seu caráter ensaístico, sempre lembrado, tornaria quase impossível tal empreendimento. Insistiria em alguns tópicos, em algumas questões relevantes.

Em primeiro lugar, o texto tal qual foi organizado. Percebe-se logo que estamos diante de uma coletânea de textos menores, produzidos em épocas diferentes, com tematizações diferentes e com finalidades também diferentes. Mas que sofreram também uma reordenação, muitas vezes uma reelaboração. Se é possível detectar repetições, antes que de defeito, trata-se de uma virtude. Mais do que com uma obra acabada, contamos com um pensamento aberto. Um formalista veria aí um impasse. Vera Portocarrero pertence à outra dinastia, a de Foucault, de Canguilhem, de Bachelard, de Blanchot, de Deleuze. Para todos eles, o caminho da filosofia, hoje, pode, ou deve ser mesmo este: o dos ensaios. O ensaio, certamente, não condiz com a solenidade tradicional de uma obra. É nele, porém, que, nas palavras de Foucault, encontramos “o corpo vivo da filosofia”. E é o que importa. O que não quer dizer que não há nenhuma proposição, nenhuma ideia a defender. Ao contrário, e apesar de tudo, há uma proposta a ser defendida nestes corpos vivos da filosofia.

O começo com Nietzsche é significativo, especialmente neste terreno aparentemente tão distante dele, o da epistemologia ou história dos saberes. A citação no começo da Introdução aponta, já, o objeto destas reflexões, mas diz mais: um certo modo de se entender o trabalho intelectual. Temos, desde o começo, a insinuação de uma filosofia. Em última instância, todos os filósofos, de Bachelard a Foucault, merecem o adjetivo nietzschiano.

Ao par dessa perspectiva ampla, nietzschiana, a temática, ou, se quisermos, com algum esforço, o objeto, vem esboçado desde o começo: tratase, sempre, de interrogar este campo vasto e fascinante das ciências da vida. E isto sob vários ângulos. Ora se interroga a maneira de se fazer história das ciências, distinguindo, particularmente, as histórias de alguns autores franceses, em que o conceito recebe privilégio especial, contra as histórias lineares, muitas vezes factuais, de outras tradições, ora se investe na pesquisa empírica, como a da “revolução pastoriana” e sua recepção no Brasil, ora entram em pauta temas teóricos como os do vitalismo em Canguilhem e F. Jacob, ou a noção de forças em Bruno Latour, ora a pesquisa se desloca para campos mais vastos, como a obra de Foucault e suas descontinuidades/continuidades internas. Mas há, como expressa o título do texto final, um nível único, ou comum, de análise: “o das formas de problematização da vida e das ciências da vida”, a partir de pressupostos metodológicos comuns ou, pelos menos, complementares: historicidade da ciência, conceito, saber e poder.

Duas hipóteses merecem destaque especial nessas leituras/ensaios: a complementaridade entre epistemologia histórica e arqueologia e, ainda, a complementaridade entre arqueologia do saber e genealogia do poder.

As relações entre epistemologia histórica e as histórias arqueológicas de Foucault são bastante conhecidas no Brasil, já desde a publicação do livro Ciência e Saber, de R. Machado, em 1981. Aí vemos, com precisão, os diversos deslocamentos operados por Foucault, preocupado com áreas de saber, como as ciências humanas, que talvez não possam ser submetidas aos critérios de julgamento da tradição epistemológica bachelardiana, particularmente os de progresso (da razão) e de matematização. Os estudos da Vera reconhecem, certamente, tais “deslocamentos”, mas, por seu lado, enfatizam “semelhanças”, principalmente entre a Arqueologia de Foucault e as histórias de Canguilhem e de Jacob. Os mesmos recortes históricos (idade clássica/ modernidade), os mesmos autores (Buffon, Jussieu, Lamarck), temas comuns ainda que polêmicos (o vitalismo), o mesmo objeto (a possibilidade da Biologia no século XIX). Penso que este modo de trabalhar, buscando correlações com outras análises, e não se trata somente de Canguilhem e Jacob, outros autores, como Bruno Latour, Dagognet, Serres constituem contrapontos interessantíssimos, penso que este modo de trabalhar se mostrou muito fecundo. Corre-se o risco, é claro, de sobrepor coisas estranhas entre si. Mas, o que seria uma filosofia sem riscos?

A outra complementaridade me parece igualmente importante. O debate acerca da unidade, ou da dispersão, da obra de Foucault é bastante conhecido. Nossa autora o mostra bem em suas referências ao livro L’ontologie manquée de Michel Foucault, de Béatrice Han. O que aconteceria se nos ocupássemos do Foucault filósofo, e não simplesmente daquele das ciências sociais? Essa pergunta parece atravessar todo o discurso destas pesquisas. E o próprio Foucault jamais admitira pertencer a uma única perspectiva. Ao contrário, prefere assinalar os “descaminhos” em sua démarche intelectual. Não se trata, certamente, aqui, de traçar uma unidade, ou uma continuidade. Trata-se, antes, de mostrar que temas, tratados na Arqueologia, reaparecem, mais tarde, nas análises genealógicas. O que os separa? Em que medida se poderia reconhecer conexões? O tema vida me parece o mais apropriado para esta aventura. Sua possibilidade epistêmica, descrita, principalmente em re mots et re choses, não pode ser reduzida a um simples “acontecimento na ordem do saber”. Podemos fazê-lo, penso, por uma questão de método. Mas o leitor de Foucault percebe logo que o nascimento da vida, na virada de século, tem, também, um forte peso político. E as pesquisas posteriores do filósofo, particularmente a partir de A Vontade de Saber, parecem compensar aquele mal-estar. A episteme que torna possível a Biologia e o jogo de forças que cria um biopoder não são acontecimentos exteriores e estranhos um ao outro. Foucault, em mais de uma ocasião, o diz com todas as letras: saber-poder.

Trata-se de um conjunto de textos, cronologicamente separados, mas inseridos num único projeto epistemológico. Todos eles exploram um mesmo solo, o das ciências da vida. Todos eles se inscrevem numa maneira bastante homogênea de lidar com a história, aprendida com os próprios autores trabalhados, mas também numa tradição que fincou raízes no Brasil e, com muita força, no Rio de Janeiro. Textos maduros, resultado de anos de pesquisa e de vivência nas instituições biomédicas. Textos bem escritos, bonitos, muito próximos da tradição que os inspira.

Mas há mais. Um livro não se esgota, como a maioria dos artefatos, no ato de sua fabricação. Ecce Líber, vemos em Blanchot, é também r livre à venir. O que fazem dele os seus leitores. Os campos possíveis de discursividade. É nisto que se reconhece, segundo Foucault, a importância de autores como Nietzsche, Marx e Freud, bem como, mais recentemente, a de Canguilhem. As ciências da vida, de Canguilhem. Aquém dos espetáculos ruidosos, bastante reqüentes na modernidade francesa, o epistemólogo permanecia quase anônimo, franzino fisicamente, intelectualmente discreto. “Mas suprimam Canguilhem e vocês não compreenderão mais grande coisa.”1 Sua importância certamente não estava onde se supunha: na ação comunicativa. Mas ali onde, segundo uma tradição que vai de Bachelard a Deleuze, e que pode, talvez, ser recuada até Comte, se coloca a pergunta acerca da própria natureza do pensamento: “uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito” (ibid). Sem forçar aproximações, talvez se possa incluir na mesma vertente estes ensaios de Vera Portocarrero.

Nota

1 Foucault, M. “La vie: l’expérience et la science”. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, v.IV, p.763.

José Ternes – Professor aposentado da Universidade Federal de Goiás. Titular da Universidade Católica de Goiás. Doutor em Filosofia (USP). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

 

História: a arte de inventar o passado – Durval M. Albuquerque Jr

Os historiadores brasileiros não têm a tradição de publicar obras que versem sobre discussões teórico-metodológicas. Nas últimas décadas, o número de pesquisas históricas cresceu vertiginosamente, em todas as regiões do país, porém, esse crescimento não foi acompanhado na mesma proporção pelas pesquisas focadas em torno das questões atinentes ao processo de produção do conhecimento da disciplina. Isto é, no mínimo, preocupante, pois o ofício do historiador jamais pode prescindir da dimensão epistemológica. O fazer histórico engloba a etapa empírica (que consiste no trabalho de coleta e cotejamento das fontes) e a etapa epistemológica (que consiste na interpretação das fontes coligidas, a partir do diálogo com a historiografia especializada e à luz dos instrumentos conceituais e pressupostos teóricos). Não basta descrever e narrar os fatos; deve-se interpretá-los, explicá-los, a partir de problemas e hipóteses de pesquisa e tendo em vista categorias analíticas e correntes historiográficas. São justamente as questões epistemológicas da historiografia contemporânea o tema central do livro História: a arte de inventar o passado, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Leia Mais

Foucault: sa pensée, sa personne – VEYNE (HH)

VEYNE Paul Territórios de Filosofia WordPress com e1593718472777 Foucault

VEYNE Foucault sa pensée sa personne FoucaultVEYNE, Paul. Foucault: sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel, 2008, 214 pp. Resenha de: JOANILHO, André Luiz.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.2, ago. 2008.

“Mamãe, o quê um peixe pensa?” (p. 209) –, Foucault estava ao mesmo tempo dentro e fora do aquário. Um ser duplo que observa os peixes, mas é também o próprio peixe que observa, sem nenhum temor, pois não tinha o medo da morte (p. 210) ou do seu próprio aniquilamento. Seus textos o construíam de modo sempre provisório: “o que escrevi não me interessa mais. O que me interessa é o que poderei escrever e o que poderei fazer” (196).

Digamos que dessa forma ele ocupa um não-lugar. Não está onde esperamos encontrá-lo, a sua identidade foi dissolvida nas formas discursivas que constituem as inumeráveis verdades sobre as coisas.

Talvez um dia tenhamos os foucaultianos de direta e de esquerda. Aqueles que buscam a negação do indivíduo e aqueles que querem a “desrepressão” da sociedade. Foucault nunca procurou tornar seus escritos em panfletos. Ele foi um observador apanhado pelas turbas intelectuais ávidas de teorias mais “verdadeiras” que as anteriores que haviam morrido por tédio. Desejam encontrar o verdadeiro caminho para o futuro, mas não há nada em Foucault sobre isso.

Ele observava e poderia dizer: “bom, nada do que acreditamos hoje restará no futuro”, pois “é preciso que nos habituemos à idéia de que nossas caras convicções do presente não serão aquelas do amanhã” (p. 64).

Em contrapartida deveríamos então a nos ater ao nada, pois “se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto na areia.” (Foucault. PC, 404)? Ele, enfim, seria o niilista que nada deseja a não ser o nada? Ao contrário. Para Paul Veyne, Foucault não destruiu a verdade sobre o ser, sobre o mundo, ele simplesmente esgrimava palavras como um samurai/ peixe num cemitério de verdades eternas que morreram por abandono. Às vezes se permitia fazer exumações, mas, ao contrário do que se desejava, não para trazer de volta algo que tinha partido, e sim para descrever melhor a verdade morta. Um arqueólogo à moda antiga. Verdades efêmeras que duraram menos de duzentos anos com relação aos loucos. Outras também efêmeras sobre a punição. Outras que evanesceram rapidamente sobre as sexualidades.

E conseqüentemente as nossas próprias não são tão permanentes. “O passado antigo ou recente da humanidade é apenas um vasto cemitério de grandes verdades mortas” (Paul Veyne, 2008, p. 24) A arte da exumação não fazia dele um pós-moderno, pois lhe escapava o sentido dado aos textos pela livre interpretação, mas também não era um “pré-moderno” (Ibid., p. 53), desejando o retorno de uma totalidade perdida.

Vários foucaultianos (este termo que faria rir Foucault) encontram nele os discursos da pós-modernidade: dissolução dos sujeitos, não há verdade, só há discursos e, portanto, só interpretações. Outros, ao contrário, viram nele o arguto crítico da última ratio do poder, a singularidade do indivíduo. Nem um, nem outro. “Não, não, não estou onde achas, mas aqui, onde, rindo, posso te olhar.” (Certeau, 1987, p. 51) Nossa insistência em decretar que o que temos hoje é eterno e se fez sobre os erros do passado impediu muitas vezes de perceber as questões que emergiam nos textos de Michel Foucault. Por exemplo, “não se acha em lugar algum a sexualidade ‘em estado selvagem’” (Veyne, 2008, p.75) que o tempo e a história tratariam de depurar, civilizar, até os dias atuais. As verdades emergem das práticas e também através delas esvaecem. Logo, toda verdade é provisória. Não, ela não é relativa, é provisória, verdadeira, mas local. Não se estende ao longo do tempo, não é um pedaço da Verdade, não é uma má compreensão, nem engano, é só uma verdade provisória e local.

Aprendemos, com Paul Veyne, que a genealogia é a arte do detalhe, por isso não permite totalizações (Ibid., p. 127) e, portanto, teorizações. Antes de tudo, Foucault é um detalhista, um curioso de laboratório que devota tudo o que aprendeu numa pesquisa singular e, por isso, não desejoso de universalização. O projeto genealógico não pretende explicações universais.

Mais além, sua explicação é falha, porque não propõe uma teoria sobre o todo, a respeito do ser, mas sobre o singular, sobre as práticas que estabeleceram a loucura no século XVI, ou sobre a punição no século XIX. Não almeja a verdade de uma época, mas modos de funcionamento de determinadas práticas nos seus detalhes.

Ele não tratou do Zeitgeist em diferentes sociedades e períodos, mas de como se conjugaram práticas em torno do sexo ou do preso. E estes termos não se referem a entidades que atravessam o tempo, são práticas que constituíram localmente o que as pessoas entendiam por estas coisas.

Foucault “não era nenhum pouco relativista, historicista, ele não via ideologia por toda parte” (Ibid, p. 9), “…ele pretendia somente uma cientificidade e verdades empíricas e perpetuamente provisórias.” (Ibid., p.130). Daí o equívoco em desejar dele uma história totalizante ou julgá-lo a partir desta perspectiva, como muitos historiadores o fizeram, pois não: estavam nada dispostos a se abrirem a outro questionamento, aquele que seria de um filósofo em obras que mal compreendiam e que eram, de fato, ainda mais difíceis para eles do que para outros leitores, porque eles não podiam as ler senão em relação à sua própria estrutura metodológica (Ibid., p. 37).

Daí a acusação fácil da imprecisão das datas na obra de Foucault ou de desconsideração de determinados documentos, relevando outros.

Evidentemente se aguardamos a precisão do historiador, ficaremos frustrados.

Ele não se prestava a este tipo, mesmo porque, não havia universais. São dois procedimentos, do inquiridor e do viajante. O inquiridor tem em mente a verdade, o viajante só tem a curiosidade de ver como funcionam as coisas. Afinal, “Foucault escreve que ele não faz nada além do que contar histórias.” (Certeau, 1987, p. 49).

Então, o método também é local. Uma espécie de positividade do tipo: o que isto quer dizer exatamente. Bem longe da virada lingüística dos anos sessenta, nada de pós-modernidade, “o método fundamental de Foucault é compreender exatamente o que o autor do texto quis dizer no seu tempo” (Veyne, 2008, p. 27). Este método escapa ao relativismo e à pura interpretação.

As objetivações de determinados objetos numa época não são interpretações e a verdade uma quimera. Acredita-se no que se faz como se tem a certeza de que o fogo queima. Porém, como foi dito, o que se faz é sempre uma singularidade e não está em relação à outra como se fosse possível afinar a pontaria para atingir finalmente o alvo.

O poder, para ele, por exemplo, não é algo que se possui, não é algo que está num lugar específico, apesar das arquiteturas que o acomodam. Ele é relacional e capilar. Não está num centro e emana suas teias até as periferias.

Para Foucault ele não é radial. Ele se dá nas relações mais comezinhas: professor/ aluno, carcereiro/presidiário, pais/filhos. Porém, um equívoco comum é transplantar para a capilaridade o antigo modelo do poder: a relação simples de mando e obediência. Não, não é este o sentido. Foucault não descobriu que o poder central contaminou todo o tecido social, colocando sempre alguém numa posição de força sobre outra pessoa. Ele é relacional, portanto, forças são exercidas em vários sentidos. Se um professor “pode”, os alunos também. Pois o que regula essas relações não é a dessimetria, mas a capacidade de normatizar o outro. O professor normatiza os alunos que normatizam o professor. Um comportamento é requerido dos alunos pelo comportamento do professor que, por sua vez, não é simplesmente opressivo ou repressivo, mas algo que faz funcionar. Poderíamos então dizer que a sedução é uma forma de poder, e quem já se recusou a este tipo de relação? Como xamãs, exorcizamos os nossos maus espíritos naquilo que entendemos por poder. Ele é ruim, mau por si próprio, ou ainda, é nele que encontramos todos os males do mundo. Livremonos do poder e teremos o paraíso.

No entanto, Veyne nos mostra um autor que não quer salvar o mundo, resolver os problemas humanos, mesmo porque ele é o observador que está fora/dentro do aquário: “o papel de um intelectual é arruinar as evidências, dissipar as familiaridades adquiridas; não é modelar a vontade política dos outros, de lhes dizer o que têm a fazer. Qual é o seu direito de fazê-lo?” (Veyne, 2008, p. 178). Antes de ser um historiador do corpo, do discurso, do poder, da sexualidade, da disciplina, ele é um filósofo da liberdade, mas não daquela que seria a da sociedade e do indivíduo face às formas de opressão, mas de uma que seria a da ontologia e do ser.

Mais uma vez, Paul Veyne nos lega uma obra valiosa para compreender este pensador que no fim queria falar apenas da estética da vida (Ibid, p. 156).

Parece que não podia simplesmente falar das formas de subjetivação do indivíduo sem ter de sempre desenhar um rosto de areia na linha de arrebentação. Foucault, sa pensée, sa personne é um livro indispensável para quem quiser compreender este pensador e sua obra.

Referências

CERTEAU, Michel. Histoire et psychanalyse entre science ET fiction. Paris : Gallimard, 1987.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

VEYNE, Paul. Foucault, sa pensée, sa persone. Paris: Albin Michel, 2008.

[1] Professor Adjunto Universidade Estadual de Londrina (UEL) [email protected] Rua Espírito Santo, 1833/73 Londrina – PR 86020420.

Michel Foucault: uma história da governamentalidade | Kleber Prado Filho

Mesmo não sendo necessária – e nem sequer desejável – a classificação de Michel Foucault nos muitos compartimentos que compõe as ciências humanas, seu trabalho pode ser entendido como um “passador de fronteiras”, que acaba por apoiar inúmeras reflexões nas mais interessantes óticas e nas mais diferentes áreas de estudo e pesquisa.

É neste contexto que se encontra a obra de Kleber Prado Filho – resultado de atividade de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP. Trata-se de um estudo realizado em um contexto que pode ser classificado como “multidisciplinar”, pois, encontra-se imerso na própria história acadêmica de seu autor: graduado em psicologia, doutor em Sociologia, além de ter desenvolvido atividades junto ao programa de pós-graduação em História na UNICAMP. Leia Mais

História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história – Durval M. Albuquerque Jr.

Era de profissão encantador de palavras.

Manoel de Barros[1]

Durval Muniz de Albuquerque Júnior é de profissão historiador, o que não o impede de ser também um ‘encantador’ de palavras. História. A arte de inventar o passado, seu último livro, é uma coletânea de artigos sobre teoria da história articulados a partir de uma temática central: as diferentes formas de se pensar e de se escrever a história. Tarefa em geral árdua, ela é aqui tratada de modo rigoroso mas, ao mesmo tempo, sem a severidade de quem apenas quer dar lições. Como Michelet, Durval Muniz em vez de simplesmente redigir, escreve.[2] Escrita audaciosa, provocativa, criativa e elegante, não diria, contudo, que ele escreva com uma “linguagem de em dia-de-semana”, como suplica um ‘famigerado’ personagem de Guimarães Rosa.[3] Mas que ele nos conduz para o terreno ‘nebuloso’ e ‘temerário’ da arte literária, disso, não tenho dúvida. Cuidado, historiadores! Durval Muniz, tal como Foucault, é um desses ‘sujeitos’ perturbadores da boa ordem científica, desses que se colocam entre o sono dogmático e a vigília epistemológica ‘só’ para provocar a polêmica.

Prefaciada por um historiador da história, Manoel Salgado Guimarães, que ressalta o papel da obra no conjunto da produção historiográfica brasileira recente e o percurso intelectual do autor, o livro divide-se em três partes: na primeira é discutida a relação entre história e literatura; após, uma seção inteira dedicada à obra de Michel Foucault; e, por fim, uma reunião de artigos variados. Esses textos, quase todos curtos — o que não subtrai sua capacidade argumentativa —, são antecedidos por uma introdução na qual Durval Muniz procura problematizar e inserir no contexto contemporâneo a noção-chave do título — ‘invenção’: “A História possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar. Mas estes objetos e sujeitos também inventam a história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio, que o inventa”, explica-nos ele com auxílio de uma analogia baseada em conto das Primeiras estórias.[4]

Ainda nessa parte introdutória, o autor debruça-se sobre outros aspectos relacionados à questão, entre os quais a divisão artificial entre a perspectiva cultural e a social. Eu gostaria de chamar atenção, entretanto, para uma outra dimensão que pode passar desapercebida em uma primeira ou rápida leitura: a da ‘evidência’ da história; ‘evidência’, palavra mais próxima da retórica e da filosofia que da história. Para Durval Muniz a idéia de que “os fatos se impõem ao historiador como evidência” é uma falácia, na medida em que ele dissimula o trabalho de construção não apenas do documento histórico mas também da própria escrita da história (p.32, 35). O autor inscreve-se assim em um momento reflexivo que a própria disciplina vem atravessando na última década, como bem demonstra um livro recente de François Hartog, cujo objetivo também é o de questionar a suposta evidência da história.[5]

Os artigos que compõem a primeira parte podem ser lidos como uma tentativa de fraturar a clássica oposição entre literatura e história. O autor busca dissolver a certeza manifesta do ‘evidente’ desencontro entre literatos e historiadores: “meu objetivo não será separar a História da Literatura, não será encontrar seus limites e suas fronteiras, mas articulá-las, pensar uma com a outra” (p.44). De Clarice Lispector, passando pela hilária dupla Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, pelo sisudo Kafka, chegando ao desconcertante poeta Manoel de Barros, Durval Muniz atinge plenamente seu propósito: ele os articula e os pensa, e de forma extremamente inovadora. Não imaginemos, entretanto, que estejamos diante de um “culto ao texto”, isto é, que nada existiria fora dele, que a realidade textual seria a promotora incontestável de toda a revelação e verdade sobre as coisas pretéritas.[6] Um estudo sobre os diferentes modos de os historiadores servirem-se da linguagem não significa, necessariamente, a queda em perspectivas negadoras da possibilidade do conhecimento.[7]’Inventar’ e ‘imaginar’ são verbos que fazem parte das metodologias silenciosas, ou silenciadas, da historiografia: “a interpretação em História é a imaginação de uma intriga, de um enredo para os fragmentos de passado que se têm na mão”, todavia, ressalva importante, “isto não significa esquecermos nosso compromisso com a produção metódica de um saber, com o estabelecimento de uma pragmática institucional, que ofereça regras para a produção deste conhecimento, pois não devemos abrir mão também da dimensão científica que o nosso ofício possa ter” (p.63-64). O autor chega mesmo a falar nos limites impostos pelo “nosso arquivo” (o pronome possessivo preserva a primeira parte, enquanto o arquivo preserva a segunda; p.64). Trata-se de uma resposta prévia à provável objeção de um pós-modernismo-relativista do qual devemos manter as crianças afastadas? Talvez. O certo é que Durval Muniz sabe ser doutor quando quer. Mesmo optando em situar sua produção em um discurso sobre a pós-modernidade (sinceramente não sei qual razão o leva para esse debate, ainda um embate de grandes narrativas, que visam mais desqualificar o outro do que contribuir para um entendimento sociocultural do mundo em que vivemos), o autor deixa claro que não rompeu com os princípios da ‘operação historiográfica’ de um autor que lhe é caro, Michel de Certeau.[8]

Consagrada aos trabalhos de Foucault, a parte seguinte do livro é composta de seis capítulos. No primeiro desses estudos, o autor nos apresenta um estudo comparativo entre o Menocchio de Ginzburg e o Rivière de Foucault. Através de uma consistente crítica ao historiador italiano, Durval Muniz demonstra como seu personagem “termina se explicando pelo contexto mesmo em toda sua singularidade”, enquanto no dossiê organizado por Foucault acerca de Rivière a preocupação não é a de explicar suas palavras e os atos, “mas como estas palavras e estes atos foram silenciados” (p.105). O capítulo seguinte tem por objetivo analisar a obra de Foucault, de certa forma, à luz do próprio Foucault, quer dizer, como suas pesquisas relacionam-se com sua existência, com seus costumes, de onde o autor extrai a idéia nietzschiana de que o pensamento do francês deve ser mais do que discutido, usado. A reflexão seguinte relaciona-se à noção de experiência em Foucault confrontada àquela de Edward Thompson. Para Durval Muniz, enquanto o filósofo evita essencializar as experiências históricas ao negar-lhes um caráter tão-somente fundante, o historiador inglês as limita, em última instância, a serem efeitos fundacionais das classes sociais. Os dois estudos que se seguem procuram analisar, sempre a partir de Foucault, a questão do objeto em história, e a importância do ‘jogo’ na história (o exemplo explorado pelo autor não podia ser mais apropriado: o futebol) e sua correlata desconsideração pela historiografia como resultado de uma luta de poder.[9] Por fim, uma homenagem a Foucault, um homem que “morreu de rir”, dele (da doença que o vitimou, por exemplo) e dos outros, sobretudo dos poderes instituídos (p.193).

Destacaria, nos ensaios esparsos, a crítica de Durval Muniz à história oral. A conversão do oral em escrito, que anula significativamente a manifestação gestual e as emoções do ato de fala, a possível interferência do roteiro e, finalmente, a presença mesma do historiador-entrevistador como personagem da entrevista, são algumas da questões levantadas pelo autor, que não chega a investir em respostas mais aprofundadas. Sua relativa desconfiança (pois não há uma desconsideração pelos avanços realizados por inúmeros pesquisadores nesse campo) em relação às possibilidades da história oral, segundo ele “indefinida entre uma técnica, um método, uma postura teórica”, leva-o a se perguntar: “terá ela conseguido converter a derrota histórica das oralidades para a escritura?”. Não lhe parece: “até porque ela seria um agente infiltrado, que continua em busca dos segredos dos que falam para escrevê-los, tornando-os documentos, inscrevendo-os como monumentos” (p.234). Acredito que mais do que simplesmente provocar os historiadores da história oral, Durval Muniz busque no debate produtivo com esses profissionais respostas às suas inquietações, pois para ele, o que temos no final é “a reafirmação do poder dos que escrevem, dos que dominam a escrita sobre os que falam, os que apenas verbalizam seus conhecimentos, suas experiências. A história é mais um artefato que reafirma a dominação dos que escrevem sobre os que falam” (p.233). Convenhamos, não é todo sujeito com o dom da escrita que reconhece isso…

Finalmente, tentando não deixar passar em branco aquele que, em minha opinião, é o texto mais sensível e poético de Durval Muniz neste livro, sua homenagem a um grande amigo,[10] eu me permito uma ‘invenção’ (como os discursos de Tucídides!), ainda que parcial:

Paris, maio de 1961: “Para falar da loucura seria preciso ter o talento de um poeta”, conclui Michel Foucault depois de deslumbrar o júri e a platéia com a brilhante apresentação de seu trabalho. “Mas o senhor o tem”, responde Georges Canguilhem. Campinas, abril de 1994: “Para falar da invenção do Nordeste brasileiro seria preciso ter o talento de um poeta”, assim Durval Muniz de Albuquerque Júnior poderia ter concluído a exposição inicial de sua tese, e Alcir Lenharo, seu orientador, poderia ter respondido: “Mas o senhor o tem”. E quem poderia afirmar o contrário?[11]

Notas

1. BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 2007. p.17.         [ Links ]

2. BARTHES, Roland. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984. p.244-245.         [ Links ]

3. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: J. Oympio Ed., 1981. p.11.         [ Links ]

4. ALBUQUERQUE Jr., 2007, p.29; ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”, em ROSA, 1981, p.27-32.         [ Links ]

5. HARTOG, François. Évidence de l’histoire. Ce que voient les historiens. Paris: Éd. de l’EHESS, 2005.         [ Links ]

6. FAYE, Jean Pierre. Théorie du récit, 1972, p.130,         [ Links ]citado em HARTOG, François. Le miroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de l’autre. Paris: Gallimard, 1991. p.321.         [ Links ]

7 É o caso do trabalho de R. Koselleck, assim definido por Hayden White: a “história da historiografia, na visão de Koselleck, é a história da evolução da linguagem dos historiadores”. WHITE, H. Foreword. In: KOSELLECK, R. The practice of conceptual history. Stanford: Stanford University Press, 2002. p.XIII.         [ Links ]

8. CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.63-120.         [ Links ]

9. “Chega de ensaios racionalistas que, como diria Nietzsche, mal escondem o seu rancor e sua demagogia”. CERTEAU, 1975, p.178.

10. “Íntimas histórias: a amizade como método de trabalho historiográfico”, ibidem, p.211-217.

11. ERIBON, Didier. Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.117;         [ Links ]ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. p.9.         [ Links ]

Temístocles Cezar – Pesquisador do CNPq – Depto. de História — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Av. Bento Gonçalves, 9500 – CP 91501-970. 91509-900 Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: [email protected]


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007. 256p. Resenha de: CEZAR, Temístocles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55  jan./jun. 2008. Acessar publicação original [IF].