Foucault: sa pensée, sa personne – VEYNE (HH)

VEYNE Paul Territórios de Filosofia WordPress com e1593718472777

VEYNE Foucault sa pensée sa personneVEYNE, Paul. Foucault: sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel, 2008, 214 pp. Resenha de: JOANILHO, André Luiz.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.2, ago. 2008.

“Mamãe, o quê um peixe pensa?” (p. 209) –, Foucault estava ao mesmo tempo dentro e fora do aquário. Um ser duplo que observa os peixes, mas é também o próprio peixe que observa, sem nenhum temor, pois não tinha o medo da morte (p. 210) ou do seu próprio aniquilamento. Seus textos o construíam de modo sempre provisório: “o que escrevi não me interessa mais. O que me interessa é o que poderei escrever e o que poderei fazer” (196).

Digamos que dessa forma ele ocupa um não-lugar. Não está onde esperamos encontrá-lo, a sua identidade foi dissolvida nas formas discursivas que constituem as inumeráveis verdades sobre as coisas.

Talvez um dia tenhamos os foucaultianos de direta e de esquerda. Aqueles que buscam a negação do indivíduo e aqueles que querem a “desrepressão” da sociedade. Foucault nunca procurou tornar seus escritos em panfletos. Ele foi um observador apanhado pelas turbas intelectuais ávidas de teorias mais “verdadeiras” que as anteriores que haviam morrido por tédio. Desejam encontrar o verdadeiro caminho para o futuro, mas não há nada em Foucault sobre isso.

Ele observava e poderia dizer: “bom, nada do que acreditamos hoje restará no futuro”, pois “é preciso que nos habituemos à idéia de que nossas caras convicções do presente não serão aquelas do amanhã” (p. 64).

Em contrapartida deveríamos então a nos ater ao nada, pois “se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto na areia.” (Foucault. PC, 404)? Ele, enfim, seria o niilista que nada deseja a não ser o nada? Ao contrário. Para Paul Veyne, Foucault não destruiu a verdade sobre o ser, sobre o mundo, ele simplesmente esgrimava palavras como um samurai/ peixe num cemitério de verdades eternas que morreram por abandono. Às vezes se permitia fazer exumações, mas, ao contrário do que se desejava, não para trazer de volta algo que tinha partido, e sim para descrever melhor a verdade morta. Um arqueólogo à moda antiga. Verdades efêmeras que duraram menos de duzentos anos com relação aos loucos. Outras também efêmeras sobre a punição. Outras que evanesceram rapidamente sobre as sexualidades.

E conseqüentemente as nossas próprias não são tão permanentes. “O passado antigo ou recente da humanidade é apenas um vasto cemitério de grandes verdades mortas” (Paul Veyne, 2008, p. 24) A arte da exumação não fazia dele um pós-moderno, pois lhe escapava o sentido dado aos textos pela livre interpretação, mas também não era um “pré-moderno” (Ibid., p. 53), desejando o retorno de uma totalidade perdida.

Vários foucaultianos (este termo que faria rir Foucault) encontram nele os discursos da pós-modernidade: dissolução dos sujeitos, não há verdade, só há discursos e, portanto, só interpretações. Outros, ao contrário, viram nele o arguto crítico da última ratio do poder, a singularidade do indivíduo. Nem um, nem outro. “Não, não, não estou onde achas, mas aqui, onde, rindo, posso te olhar.” (Certeau, 1987, p. 51) Nossa insistência em decretar que o que temos hoje é eterno e se fez sobre os erros do passado impediu muitas vezes de perceber as questões que emergiam nos textos de Michel Foucault. Por exemplo, “não se acha em lugar algum a sexualidade ‘em estado selvagem’” (Veyne, 2008, p.75) que o tempo e a história tratariam de depurar, civilizar, até os dias atuais. As verdades emergem das práticas e também através delas esvaecem. Logo, toda verdade é provisória. Não, ela não é relativa, é provisória, verdadeira, mas local. Não se estende ao longo do tempo, não é um pedaço da Verdade, não é uma má compreensão, nem engano, é só uma verdade provisória e local.

Aprendemos, com Paul Veyne, que a genealogia é a arte do detalhe, por isso não permite totalizações (Ibid., p. 127) e, portanto, teorizações. Antes de tudo, Foucault é um detalhista, um curioso de laboratório que devota tudo o que aprendeu numa pesquisa singular e, por isso, não desejoso de universalização. O projeto genealógico não pretende explicações universais.

Mais além, sua explicação é falha, porque não propõe uma teoria sobre o todo, a respeito do ser, mas sobre o singular, sobre as práticas que estabeleceram a loucura no século XVI, ou sobre a punição no século XIX. Não almeja a verdade de uma época, mas modos de funcionamento de determinadas práticas nos seus detalhes.

Ele não tratou do Zeitgeist em diferentes sociedades e períodos, mas de como se conjugaram práticas em torno do sexo ou do preso. E estes termos não se referem a entidades que atravessam o tempo, são práticas que constituíram localmente o que as pessoas entendiam por estas coisas.

Foucault “não era nenhum pouco relativista, historicista, ele não via ideologia por toda parte” (Ibid, p. 9), “…ele pretendia somente uma cientificidade e verdades empíricas e perpetuamente provisórias.” (Ibid., p.130). Daí o equívoco em desejar dele uma história totalizante ou julgá-lo a partir desta perspectiva, como muitos historiadores o fizeram, pois não: estavam nada dispostos a se abrirem a outro questionamento, aquele que seria de um filósofo em obras que mal compreendiam e que eram, de fato, ainda mais difíceis para eles do que para outros leitores, porque eles não podiam as ler senão em relação à sua própria estrutura metodológica (Ibid., p. 37).

Daí a acusação fácil da imprecisão das datas na obra de Foucault ou de desconsideração de determinados documentos, relevando outros.

Evidentemente se aguardamos a precisão do historiador, ficaremos frustrados.

Ele não se prestava a este tipo, mesmo porque, não havia universais. São dois procedimentos, do inquiridor e do viajante. O inquiridor tem em mente a verdade, o viajante só tem a curiosidade de ver como funcionam as coisas. Afinal, “Foucault escreve que ele não faz nada além do que contar histórias.” (Certeau, 1987, p. 49).

Então, o método também é local. Uma espécie de positividade do tipo: o que isto quer dizer exatamente. Bem longe da virada lingüística dos anos sessenta, nada de pós-modernidade, “o método fundamental de Foucault é compreender exatamente o que o autor do texto quis dizer no seu tempo” (Veyne, 2008, p. 27). Este método escapa ao relativismo e à pura interpretação.

As objetivações de determinados objetos numa época não são interpretações e a verdade uma quimera. Acredita-se no que se faz como se tem a certeza de que o fogo queima. Porém, como foi dito, o que se faz é sempre uma singularidade e não está em relação à outra como se fosse possível afinar a pontaria para atingir finalmente o alvo.

O poder, para ele, por exemplo, não é algo que se possui, não é algo que está num lugar específico, apesar das arquiteturas que o acomodam. Ele é relacional e capilar. Não está num centro e emana suas teias até as periferias.

Para Foucault ele não é radial. Ele se dá nas relações mais comezinhas: professor/ aluno, carcereiro/presidiário, pais/filhos. Porém, um equívoco comum é transplantar para a capilaridade o antigo modelo do poder: a relação simples de mando e obediência. Não, não é este o sentido. Foucault não descobriu que o poder central contaminou todo o tecido social, colocando sempre alguém numa posição de força sobre outra pessoa. Ele é relacional, portanto, forças são exercidas em vários sentidos. Se um professor “pode”, os alunos também. Pois o que regula essas relações não é a dessimetria, mas a capacidade de normatizar o outro. O professor normatiza os alunos que normatizam o professor. Um comportamento é requerido dos alunos pelo comportamento do professor que, por sua vez, não é simplesmente opressivo ou repressivo, mas algo que faz funcionar. Poderíamos então dizer que a sedução é uma forma de poder, e quem já se recusou a este tipo de relação? Como xamãs, exorcizamos os nossos maus espíritos naquilo que entendemos por poder. Ele é ruim, mau por si próprio, ou ainda, é nele que encontramos todos os males do mundo. Livremonos do poder e teremos o paraíso.

No entanto, Veyne nos mostra um autor que não quer salvar o mundo, resolver os problemas humanos, mesmo porque ele é o observador que está fora/dentro do aquário: “o papel de um intelectual é arruinar as evidências, dissipar as familiaridades adquiridas; não é modelar a vontade política dos outros, de lhes dizer o que têm a fazer. Qual é o seu direito de fazê-lo?” (Veyne, 2008, p. 178). Antes de ser um historiador do corpo, do discurso, do poder, da sexualidade, da disciplina, ele é um filósofo da liberdade, mas não daquela que seria a da sociedade e do indivíduo face às formas de opressão, mas de uma que seria a da ontologia e do ser.

Mais uma vez, Paul Veyne nos lega uma obra valiosa para compreender este pensador que no fim queria falar apenas da estética da vida (Ibid, p. 156).

Parece que não podia simplesmente falar das formas de subjetivação do indivíduo sem ter de sempre desenhar um rosto de areia na linha de arrebentação. Foucault, sa pensée, sa personne é um livro indispensável para quem quiser compreender este pensador e sua obra.

Referências

CERTEAU, Michel. Histoire et psychanalyse entre science ET fiction. Paris : Gallimard, 1987.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

VEYNE, Paul. Foucault, sa pensée, sa persone. Paris: Albin Michel, 2008.

[1] Professor Adjunto Universidade Estadual de Londrina (UEL) [email protected] Rua Espírito Santo, 1833/73 Londrina – PR 86020420.

Páginas de prazer – DeNIPOTTI (HE)

DeNIPOTTI, Cláudio. Páginas de prazer. Campinas: UNICAMP, 1999. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. Sobre o prazer. História & Ensino, Londrina, v. 6, p. 203-205, out. 2000.

Podemos imaginar um distinto senhor caminhando pelas ruas empoeiradas de Curitiba, numa tarde quente de verão, nos anos dez. O fraque, a cartola e a bengala não traem a distinção de um jovem advogado.

A cidade pretende cosmopolitismo e, às vezes, os sons urbanos até enganam; engraxates, vendedores de jornais, ambulantes, conversas pessoais trazem consigo as vozes dissonantes, por um momento, da imigração em massa.

Flanando calmamente, o nosso distinto senhor aproveita os lentos minutos que seguem o almoço, que seus amigos chamam de déjeuner, numa inútil tentativa de se sentirem mais próximos da sonhada Europa.

Ele caminha em direção à Biblioteca Pública e, evidentemente, deseja que conhecidos notem a sua entrada no prédio, assim, manteria a imagem de letrado. Poucos passos faltam para o prédio, quando uma bela senhora, acompanhada pela ama, de traços joviais e muito bem vestida cruza-lhe o caminho. Rapidamente, retira o chapéu e cumprimenta a jovem senhora, que lhe retribui com um sorriso e um longo olhar de soslaio, pelo menos foi o que imaginou.

Isto foi preocupante. A esposa de seu melhor amigo. Alguns pensamentos impuros lhe assaltam a mente. Um conflito interno toma proporções épicas: ao mesmo tempo que se deleita com os devaneios carnais, sente-se extremamente culpado. Sonha com o colo da bela dama, mas, vê-se execrado pela sociedade.

Ao adentrar a biblioteca, desiste do compêndio de direito que iria consultar e, envergonhado, sem o demonstrar, solicita a obra de Mantegazza, Higiene do amor. Preocupa-se, agora, com a normalidade dos seus pensamentos. Até onde, para ele, aqueles pensamentos impuros são desvios patológicos?

Enquanto toma o livro na mão, tenta se consolar afirmando a si mesmo que, pelo menos, não era pederasta, provado pelo desejo que o assolou a poucos instantes.

A consulta ao livro poderia lhe ajudar a resolver o conflito entre o desejo e a situação social. De suas páginas, reafirmase a superioridade do casamento monogâmico e, esperança longínqua, o médico aceita o divórcio como solução para casamentos infelizes (claro que sob certas circunstâncias). Convencido, de certa maneira, pelas orientações do médico que, para ele, tinha atingido um grau superior do conhecimento, como quase todos os médicos, encerra a consulta e retorna ao seu escritório de advocacia.

Talvez, esse personagem imaginário, que parece saído de uma obra literária considerada “água-com-açúcar”, não fosse tão incomum naqueles dias. O saber médico atingia o seu ponto culminante, entre os letrados, como ciência que explicava a vida e determinava a melhor maneira de vivê-Ia, superando, para muitas pessoas o papel, da Igreja. Sendo assim, as orientações que partiam desse saber tinham quase força de lei.

É justamente neste universo mental, que Cláudio DeNipotti aventurou-se com o seu livro Páginas de Prazer (Editora da UNICAMP, 1999). Inspirado pelas proposições de Robert Darton sobre leitura, o autor busca, numa pesquisa minuciosa, compreender o universo dos leitores da Biblioteca Pública do Paraná, durante a década de dez, no início do século.

Não vamos estranhar se pudermos imaginar um leitor como o jovem advogado acima, ou centenas de outros personagens, após a leitura do livro. Fugindo do padrão de trabalhos acadêmicos, o texto nos remete para o mundo dos leitores que buscam orientações, explicações, respostas ou, até mesmo, o simples prazer, para as suas sexualidades. E este é um trabalho difícil, pois o autor, aqui no caso, o historiador, deve seguir indícios muito tênues, quase imperceptíveis. Os livros de consultas da biblioteca, redescobertos ao acaso, puderam indicar alguns caminhos, mas não se tornariam algo, sem o trabalho indiciário executado pelo autor.

Para conduzir o leitor nesse seu trabalho, o autor, utilizando um recurso original, cria um personagem, um bibliotecário bem plausível, que irá nos ciceronear pelas ruas de Curitiba e pelas leituras de alguns freqüentadores da Biblioteca Pública.

O texto é construído numa relação constante entre o particular e o geral, isto é, a partir das leituras individuais de obras que tratam direta ou indiretamente sobre a sexualidade, podemos perceber como era pensada esta questão por uma camada da população que se quer letrada e culta.

Assim, acredito que o livro em questão conseguiu atingir o que François Furet chamou de primum movens do historiador, a curiosidade intelectual e a atividade gratuita de conhecimento do passado (Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989). O que DeNipotti nos traz é a redescoberta de personagens há muito esquecidos, de preocupações cotidianas mas que pouco aparecem nos nossos livros de História. Pode caber ao título do livro, resumi-lo. Efetivamente, são páginas de prazer.

André Luiz Joanilho – Professor Adjunto da UEL e do Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL

Acessar publicação original

[IF]

 

Uma História do Brasil – SKIDMORE (HE)

SKIDMORE, Thomas. Uma História do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. Para inglês (e brasileiro) ver. História & Ensino, Londrina, v. 5, p. 165-168, out., 1999.

Inicialmente escrito para um público norte-americano, Uma História do Brasil, Paz e Terra, 1998, deve ser lido pelos brasileiros. Sem a necessidade de filiação com determinadas linhas de interpretação da nossa História, Skidmore pôde apresentar uma narrativa geral sobre a nossa formação e, mais ainda, traçar uma rota para compreendê-la.

A questão fundamental para o autor é perceber como foi possível constituir uma identidade nacional num país que apresenta características de formação tão disparatadas e aí está o seu grande mérito.

Se uma das nossas maiores preocupações em relação ao estrangeiro é passar uma imagem de civilidade, este livro, justamente, nos mostra como podemos ser percebidos e compreendidos por alguém de fora, que busca ir além dos estereótipos, explicando-os. Assim, podemos perceber a extensão do que somos, ou melhor, de como somos explicados a um público de cultura média e, no caso, norte-americano.

É evidente que, se procuramos análises complexas por parte do autor, não as teremos, e aí está outro dos grandes valores do livros. Sem a necessidade de linguagem rebuscada, Skidmore apresenta um quadro claro e bastante elucidativo da nossa formação. Isto é possível justamente por estar livre de filiações acadêmicas ou linhas interpretativas da nossa História. Percebese que o texto não rende homenagens a este ou àquele pensador nacional, pois a preocupação de Skidmore é a possibilidade de síntese para um público que desconhece querelas acadêmicas, o que dá fluidez ao texto, sem cair em simplificações.

Skidmore identifica bem a nossa situação racial ao centrála na figura do mulato. Este, expoente de uma sociedade multirracial que se constituiu durante o período colonial, teve ascensão social limitada, mas significativa, praticamente inviabilizando a separação legal entre as raças. O racismo da elite branca se revela mais “sutil” do que o da elite norteamericana. A idéia de “branquear” a população através da imigração européia é parte constitutiva da ideologia da sociedade multirracial.

O autor percebe em parte esta trajetória, mas acredito que faltou compreender um pouco melhor o espírito da “Casa Grande” na qual a aparência é fundamental-um grande fazendeiro nunca aceitou rótulos negativos sobre a sua conduta ou condição social, logo faz de tudo para se promover e aparentar.

Desse modo, o mito multirracial não é só fruto de cruzamentos, é também formas da elite aparentar cordialidade, bondade, preocupação com os pobres e também poder, pois os mulatos, muitos filhos bastardos de grandes proprietários, não podiam ser deixados à míngua, logo lhes eram arranjadas colocações junto à administração pública, uma maneira de estender o poder da Casa Grande em direção à esfera do espaço público.

Essa expressão da nossa elite e, porque não, da nossa sociedade, é difícil de ser notada por alguém que não vivencia tal experiência. A explicação de Skidmore é bem americana: “ocorreu que uma constante carência de mão-de-obra européia nos escalões mais altos da força de trabalho brasileira deixou abertas algumas oportunidades de trabalho para negros livres, que eram bem mais numerosos no Brasil colonial do que na América do Norte colonial” e corretamente acrescenta: “não se deve concluir daí que o Brasil estava livre de preconceito” (pág. 42).

Ora, essa certa ascensão do mestiço, para Skidmore, aliviou as tensões raciais até os nossos dias, o que não é de modo algum satisfatório. É necessário um sistema ideológico e de constituição do social que assegure, além das condições econômicas, a situação racial e, no nosso caso, a situação das classes. Não que exista engano na observação do autor, mas ela não é suficiente. Um sistema que apresenta como representação social a possibilidade das diferentes culturas se manifestarem, a ideologia da democracia racial, são elementos constitutivos das relações interaciais.

A parte esta questão, a narrativa de Skidmore, longe de ser inédita, privilegia junto com as questões de formação, a trajetória política do nosso país e é justamente aqui que o livro se mostra muito interessante. A necessidade de síntese leva o autor a nos fornecer quadros amplos e bastante compreensivos acerca dos acontecimentos de nossa História. A análise do período militar é particularmente profícua nesse sentido. Os mais críticos verão um quadro simplificado, mas tendo em vista os objetivos da obra, o que o autor nos apresenta é uma descrição sintética sem perder o gosto explicativo.

Enfim, é uma obra que deve ser lida, pois ao evitar filiações, pode nos apresentar um painel instrutivo e de fácil leitura da nossa História.

André Luiz Joanilho – Professor Adjunto da UEL e do Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL.

Acessar publicação original

[IF]

 

 

O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal – VIGARELLO (HE)

VIGARELLO, Georges O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal. São Paulo: Martíns Fontes, 1996. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. O limpo e o sujo: anotações sobre um livro. História & Ensino, Londrina, v.4, p. 173-176, out. 1998.

Um texto límpido. Não é bom começar uma resenha sobre um livro fazendo trocadilho com o título e objeto, porém é irresistível. A objetividade traçada desde o princípio, a clareza da linguagem, cria uma imagem muito precisa sobre o que Georges Vigarello propõe no seu livro O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal, da Martins Fontes, 1996. Dividido em quatro partes que ganharam títulos apropriados: “Da água festiva à água inquietante”, “A roupa branca que lava”, “Da água que penetra o corpo àquela que o reforça” e “A água que protege”. A propriedade dos títulos está no texto que segue cada um, pois apresenta justamente o que foi anunciado.

Viajando no tempo desde o século XIV, chega até meados do nosso século, tratando de um único assunto, a higiene corporal. Mas, surpresa, não se trata de como os homens evoluíram no trato com o seu próprio corpo, e sim de uma linha sinuosa ao longo dos séculos que parte do banho medieval e chega no banho moderno.

Insuspeitamente acreditamos que os banhos medievais tinham o mesmo caráter dos banhos contemporâneos: limpar. Ledo engano, eles não visam a higiene, e sim a lubricidade (desculpem a palavra). A umidade dos banhos é prenúncio dos prazeres da cama. Os banhos são tomados em estabelecimentos específicos, porém, como contíguos à bordéis, tavernas, e eles visam a excitação e não ahigiene.

Tudo muda. Estamos em plena Renascença. O temor das epidemias se associa ao temor das águas. Água que enlanguesce os músculos, os orgãos, abre os poros aos miasmas com as suas doenças. O conselho é evitar de toda forma os banhos e muito mais a imersão completa. O ideal é manter o corpo limpo através de uma segunda pele: a roupa branca justa, limpa e, de preferência feita de finos tecidos -é claro que isto se aplica à nobreza. Ela absorveria as impurezas naturais expelidas pelo próprio corpo e manteria uma certa proteção dos ares malsãos. No entanto, por mais contraditório que seja, a fuga dos banhos não significa que o período barroco foi mais descuidado da higiene corporal, muito pelo contrário, é nesse momento que surge a idéia de limpeza mais íntima, pois o que está além do olhar é que deve ser cuidado, ou melhor “o íntimo é gradualmente incluído no visível” (p. 251).

É o espetáculo do que é visível dentro do processo civilizatório, isto é, o processo de recalcamento das pulsões na sociedade (podemos lembrar do consagrado estudo de Norbert Elias, O processo civilizatório, da Jorge Zahar, sobre a etiqueta no Antigo Regime, associando-a ao desejo de distinção de classe por parte da nobreza). Aquilo que é vergonhoso e não deve ser visto, e ao contrário, o que é valorizado e todos devem ver.

De novo tudo muda. Insinua-se novas idéias sobre o corpo e as correspondentes práticas de limpeza. O vigor do organismo deve ser estimulado agora pela água. Assim passamos da água lúbrica, para aquela que é veículo de doenças e no século XVIII, para água que revigora. Representações de classe no trato do corpo e a limpeza. Para uma burguesia que quer conquistar é preciso corpos rígidos, fortalecidos, longe do enlanguecimento corporal provocado pelas representações que a nobreza “ociosa e devassa” tem de si mesma. A ciência do final do século XVIII corrobora a imagem que a burguesia tem de si ao legitimar que a limpeza protege e reforça o corpo. O banho frio enrijece, revigora o organismo, enquanto que o banho quente enlanguesce.

Durante o século XIX vamos assistir o reforço dessa idéia de vigor proporcionado pela limpeza, e mais ainda, a limpeza íntima é fundamental nesse novo processo. O asseio corporal passa a ser a salvaguarda contra as doenças, mas ao mesmo tempo há um avanço inexorável do pudor. Nos séculos XVII e XVIII a roupa branca íntima representava o ideal de limpeza e delicadamente deveria ser notada pelos outrosrendas saindo nos punhos, ou visíveis através de decotes ousados, sendo comum os camareiros pessoais participarem da higiene do patrão. Já no século XIX se torna impensável a presença de alguém estranho nos momentos de higiene pessoal, muitas vezes se estendendo aos familiares.

Esse novo pudor, inventado pela burguesia, mostra as práticas que envolvem o corpo nas sociedades capitalistas, e com o avanço da ciência, essa higiene se personaliza cada vez mais. Mas, de novo a surpresa. A paranóia em relação aos micróbios, desvelados como agentes patológicos, leva a idéia de higiene ao paroxismo. Médicos, higienistas propõem, na passagem do século, a lavagem das paredes, a desinfecção das casas, rígidas quarentenas, uma perseguição sem tréguas à sujidade e à falta de asseio. E com isso triunfa a idéia do banho diário e a higiene íntima. Porém, é demonstrável que a essa nova concepção de higiene é muito mais uma representação que a sociedade ocidental criou sobre o corpo.

As cidades, a arquitetura, os fluxos de água, ar, esgotos, fazem parte desse imaginário sobre o corpo e sobre o indivíduo. É antes uma psicologia, sensações que se traduzem em práticas cotidianas. O bem-estar, o consumo, o temor do que não é visível. Assim, a higiene não é simples imperativo com bases científicas, é antes de mais nada, uma imagem que a sociedade produz sobre si mesma, sobre os indivíduos, sobre os cuidados de si.

Pode-se afirmar que na realidade o trabalho de Geoges Vigarello trata de parte da história da idéia de intimidade. Entretanto, além dessa viagem surpreendente, uma outra questão chama a atenção do leitor mais atento, e que é uma vantagem para os desatentos: não há enunciações teóricas, ou melhor, o autor prescinde da citação de autoridade, o que lhe dá um ganho, pois não precisa enunciar métodos e nem complicadas fórmulas para compreender o objeto, e não que o autor não tenha reflexão. Atentamente transparece vários conceitos teóricos, mas que, pelo menos é o que transparece, não são citados pela segurança que o autor demonstra nas suas discussões, dispensando o recurso à autoridade. É desnecessário citar este ou aquele teórico para corroborar com as conclusões da pesquisa. Dispensável porque antes de serem aqueles que conformaram o objeto sem o saber, eles aparecem como inspiradores da análise e conclusão.

Ele bebe em vários filósofos e historiadores. Alguns aparecem claramente, outros nem tanto. Foucault, para começar, mas também Norbert Elias -já destacado acima. Além destes cabe lembrar Jacques Le Goff, Georges Duby e Roger Chartier, não por estarem citados, mas por trabalharem com o que se convencionou chamar de mentalidades. Há também que lembrar de Pierre Bordieu, este sociológo, e que trabalhou com a noção de hábito. Isso para não apontar outros mais clássicos, como Freud, para questões da psicologia, e Marx para as questões de classe. Porém, apesar de toda essa inspiração, o autor não faz referências diretas a elas, e por isso que os leitores mais desatentos, ou melhor, o leitor não especialista em história pode ter o prazer de ler um grande livro, e ainda por cima refletir um pouco sobre si mesmo.

André Luiz Joanilho – Professor do Departamento de História -Universidade Estadual de Londrina -PR.

Acessar publicação original

[IF]