Borboletas e Lobisomens: Vidas, sonhos e Mortes dos guerrilheiros do Araguaia / Hugo Studart

STUDART Hugo guerrilheiros do araguaia
Hugo Studart / Imagem: Globoplay /

STUDART H Borboletas e lobisomens guerrilheiros do araguaiaUma das maiores tragédias da história política brasileira recente, ao lado de episódios de guerrilha urbana do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 – embora rapidamente desbaratados pela repressão impiedosa do regime militar –, foi constituída pela incursão do PCdoB, segundo uma estratégia maoísta de “guerra popular” nas selvas do Araguaia, objeto de um minucioso e relevante relato histórico pelo jornalista Hugo Studart, resultado de tese de doutoramento no Departamento de História da UnB. Além de ter honesta e objetivamente reconstituído essa loucura militar do PCdoB, seu relato precisa servir de denúncia dessa iniciativa insana dos dirigentes maoístas brasileiros, uma vez que ela levou jovens idealistas das cidades a uma morte estúpida nas matas da Amazônia.

Antes dela, na impossibilidade de reprodução de uma insurreição ao estilo castrista da Sierra Maestra, dirigentes comunistas de outras tendências, seguidos por jovens revolucionários das grandes metrópoles, já se tinham lançado na aventura da guerrilha urbana, sem muita estratégia e quase nenhuma tática, a não ser os canhestros assaltos a bancos, ataques a quartéis, alguns sequestros de diplomatas e de aviões, e uns poucos deploráveis assassinatos de pessoas, rapidamente aproveitados pelo regime militar para apegar-lhes o rótulo de “terrorismo”. Tudo isso ajudou ao endurecimento do regime, pela via do AI-5. A guerrilha urbana e alguns poucos focos esparsos foram expedita e duramente reprimidos pelas forças da repressão, tomadas de surpresa no início do processo, mas rapidamente organizadas sob comando militar e muitos apoios em setores das elites econômicas.

O episódio amazônico constituiu a segunda vez na história das Forças Armadas, depois de Canudos, em que elas tiveram de organizar expedições sucessivas de suas tropas para debelar focos reduzidos de “combatentes inimigos”, fracamente armados, mas que aparentavam representar um grande perigo para o regime. Ambos os episódios foram tragédias sociais, mas pode-se considerar aquele primeiro apenas o fruto de equívocos de interpretação de uma república “jacobina”, enfrentando o que seria a sua “Vendeia”, segundo as leituras francesas de um Euclides da Cunha. O segundo não: foi uma tragédia evitável, e cabe aqui responsabilizar direta e totalmente a direção irresponsável do PCdoB pelo imenso crime perpetrado contra um punhado de militantes idealistas, imaginando participar de um grande empreendimento de resgate social, e justiceiro, do pobre povo do interior, numa reprodução quixotesca do que teria sido a “guerra camponesa” de Mao Tsé-tung, então no auge do um prestígio inteiramente indevido, pela “revolução cultural” que ele tinha deslanchado para livrar-se de adversários no Partido Comunista Chinês.

Como se depreende do detalhado relato histórico feito por Studart, o PCdoB não foi devidamente responsabilizado pelo crime cometido não apenas contra os pobres camponeses da região, mas sobretudo contra os seus próprios militantes enganados por uma direção dogmática, míope, absolutamente delirante em seus projetos de reproduzir a marcha de uma já mistificada “revolução camponesa” ao estilo chinês. Acresce que os dirigentes do PCdoB jamais fizeram um estudo aprofundado sobre uma região desprovida de condições mínimas de sobrevivência para os simples rurícolas, no estado normal de penúria que sempre foi a norma naquelas paragens, ainda mais para jovens urbanos de classe média, completamente desacostumados às durezas da agricultura de subsistência, extremamente primitiva, que caracterizava o imenso hinterland do Brasil. Não contente em enganar aqueles jovens, a direção do PCdoB ainda deixou-os entregues à própria sorte, totalmente desprovidos de meios para enfrentar as forças organizadas do Exército brasileiro, que ainda tatearam duas vezes, antes de se lançarem no trágico desfecho final, feito de violência excessiva e muitas ilegalidades, e mesmo de crimes contra a humanidades (eliminação de combatentes rendidos, por exemplo), perpetrados em nome do Estado ou sob a responsabilidade deste.

Como no caso do enfrentamento contra a guerrilha urbana, as forças de repressão cometeram crimes horríveis – torturas, assassinatos, eliminação de alvos escolhidos, desaparecimento de cadáveres –, o que se reproduziu em outra escala, e estilo, nas selvas do Araguaia. Um crime maior, porém, de natureza política, de âmbito militar, e de dimensões históricas, foi cometido por aqueles dirigentes comunistas, de quase todos os movimentos de resistência armada, que resolveram travar uma “guerra” contra um inimigo que eles julgavam frágil, podendo ser abatido por alguns golpes “certeiros”, que apressariam a revolta das “massas trabalhadoras” e a derrocada de uma ditadura supostamente acuada pela crise econômica e pelas “contradições” de um regime capitalista periférico, submetido às “pressões imperialistas”. Quando se lê, hoje, os poucos manifestos, documentos programáticos e outros boletins “táticos” produzidos pelos dirigentes desses movimentos armados, impossível não ficar estupefato ante o imenso festival de equívocos políticos, de monumentais erros estratégicos, de total inconsciência social e de inconsistência intrínseca nessas peças de puro delírio sectário, que ainda assim ganhavam adeptos entre jovens revoltados contra a ditadura militar.

Ao PCdoB, tanto quanto às Forças Armadas, e talvez até mais do que a essas, devem ser imputados a responsabilidade material e a condenação política da História, pela tragédia que foi a guerrilha do Araguaia, um delírio tão grande dos seus dirigentes, que nem mesmo os supostos aliados do PCC pretenderam sequer dar algum sinal de apoio concreto ao aventureirismo, a não ser algumas poucas emissões radiofônicas a partir da China e logo depois da Albânia. Esse julgamento ainda não foi feito, pelo menos não em toda a sua extensão, pois o PCdoB continua existindo como o legatário de uma aventura alucinante, pouco conhecida pela maioria da população, mas em relação à qual ele ainda pretende classificar como exemplo de “resistência popular” contra a “ditadura militar”, quando tudo não passou de uma tragédia dispensável.

Como se pode concluir da leitura da obra de Hugo Studart, apoiada em profunda pesquisa nos documentos e em depoimentos de sobreviventes e familiares das vítimas, um tribunal da História ainda aguarda o PCdoB.

O livro, magnificamente construído segundo as melhores técnicas da história oral, e que adota o rigor metodológico dos melhores manuais da historiografia, focaliza cada etapa dessa tragédia brasileira, segue o itinerário individual de cada um dos embrenhados na selva, conversa com seus familiares e amigos, e desvenda o comportamento indigno, a ação irresponsável e até hoje desprovido de uma avaliação independente, dos dirigentes do PCdoB que montaram o cenário de uma aventura de antemão condenada ao fracasso e depois se escafederam nos desvãos do drama.

Paulo Roberto de Almeida – Acadêmico, ocupante da Cadeira 4, patroneada por Tobias Barreto. Diplomata; professor no Centro Unversitário de Brasília–Uniceub. É profundo conhecedor da historiografia das relações internacionais do Brasil.


STUDART, Hugo. Borboletas e Lobisomens: Vidas, sonhos e Mortes dos guerrilheiros do Araguaia. Brasília: Francisco Alves, 2020. Resenha de: ALMEIDA, Paulo Roberto de. A Guerrilha do Araguaia por um experiente jornalista. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, Brasília, n.10, p.259-262, 2010. Acessar publicação original. [IF].

Ensaios históricos – MARIZ (RIHGB)

MARIZ, Vasco. Ensaios históricos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2005. Resenha de: PEREIRA, Paulo Roberto. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.166, n.429, p.229-231, out./dez., 2005.

Paulo Roberto Pereira – Doutor em Letras pela UFRJ. Professor de Literatura Brasileira na UFF. Ensaista e crítico literário.

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