Fronteiras, trabalho e etnicidade / Canoa do Tempo / 2019

A revista Canoa do Tempo traz a público o dossiê Fronteiras, Trabalho e Etnicidade, com artigos que denotam a complexidade da discussão sobre a ideia de fronteira. Para além do entendimento sumário da categoria, usualmente articulada como linha divisória, há o indicativo do peso dos mundos do trabalho no estabelecimento de suas problemáticas. A Amazônia aparece como espacialidade privilegiada para a articulação de estudos desta natureza, ambientados entre o imaginário da opulência e as agruras de formas coercitivas da lida cotidiana. Ao longo do tempo, a floresta foi atravessada por diversos tipos de deslocamentos de fronteiras, cujos desdobramentos socioeconômicos e demográficos deixaram marcas indeléveis no tecido social de suas cidades, aldeias e rios.

Não por acaso, a floresta por tempos pensada no terreno do fantástico perdeu força discursiva sob a sombra do colonialismo interno, quase sempre jungido a interesses capitalistas internacionais. O ethos das mulheres guerreiras que (re)batizou o vale ao gosto do imaginário europeu, teve seus sentidos transformados com as sucessivas devassas e esquadrinhamentos do espaço em busca de riquezas. As fronteiras do paraíso terreal tiveram de ser redimensionadas, restando apenas o invólucro da mensagem edênica, que traduziu a Amazônia como terreno inabitado, disponível e à margem da História.

O artigo que abre a dossiê, assinado por Maria Clara Carneiro Sampaio, aponta referências sobre interesses estrangeiros na reciclagem das referidas imagens paradisíacas voltadas ao território amazônico nos oitocentos. A autora analisa os escritos do militar norteamericano Matthew Fontaine Maury, que redigiu um folheto largamente publicado em periódicos, pregando a viabilidade do deslocamento dos empreendimentos escravistas do Sul dos Estados Unidos em direção ao Brasil. Nesse contexto, a floresta era enxergada como fronteira para o avanço e sobrevivência da escravidão nas Américas, área que supostamente possuía clima e natureza “adequadas” para a população negra oriunda das grandes lavouras algodoeiras que marcavam as paisagens sulistas de Maury nos idos dos anos 1850. O projeto reabilitava a visão paradisíaca colonial, classificando a Amazônia como área prenhe de possibilidades, rica, mas mal aproveitada economicamente. O éden intocado ganhava novas camadas de sentido, visto como paraíso do trabalho compulsório e da escravidão.

O cerne da relação entre ideários edênicos, deslocamento de fronteiras e escravidão, continua no texto de Jéssyka Samya Ladislau Pereira Costa, que apresenta notas de pesquisa sobre a presença negra e indígena nos mundos do trabalho dos rios Purus e Madeira entre 1850 e 1889. O artigo aponta reflexões sobre a historicidade dos Altos Rios à época da sedimentação da Província do Amazonas, marcada por suas paisagens ameríndias, natureza opulenta e diversas zonas de contato. O cruzamento entre populações indígenas e negras é problematizado pela autora, que discute o alcance da sociedade escravocrata e as agencias das populações que enfrentavam interesses senhoriais na floresta. Os rios Purus e Madeira aparecem como recortes espaciais principais, destacados como importantes cursos fluviais na interiorização dos interesses econômicos da província, à época capitaneados pelo extrativismo da borracha.

O tema da escravidão também aparece no artigo de Paulo Roberto Staudt Moreira, que articula reflexões sobre os significados da liberdade e da escravidão na fronteira meridional do Império brasileiro no século XIX. Através de fontes judiciárias, o autor põe em causa a polissemia do conceito de fronteira, incluindo os limites e aproximações entre experiências da liberdade e do cativeiro. O recorte espacial do texto de Moreira enfatiza a Vila de Canguçu, localizada na província de São Pedro do Rio Grande do Sul nas proximidades de nações platinas circunvizinhas. O autor conduz os leitores em terreno atravessado por conflitos que marcaram a época Imperial no Sul do Brasil, área estratégica e de significativa importância econômica conectada aos fluxos da pecuária e agricultura.

Dando continuidade ao debate sobre as polissemias da categoria fronteira, apresentar-se-á o artigo de Fernando Roque Fernandes, que discute territorialidades coloniais do “delta amazônico” no século XVII. O autor problematiza a circulação de agentes coloniais na região da foz do Amazonas, evidenciando o papel desses personagens na conformação de fronteiras e disputas que caracterizaram territorialidades seiscentistas. Conectado ao contexto em tela, Fernandes dispõe aos leitores e leitoras um interessante panorama conceitual sobre as ideias de lugar, espaço e território, considerando suas complexas implicações étnicas e identitárias. O artigo destaca ainda a densidade geopolítica da época, ligada ao estabelecimento do Estado do Maranhão e as movimentações do aparato colonial para o controle do território amazônico.

A tônica dos deslocamentos associada com questões transfronteiriças aparece também no artigo assinado por Eduardo Gomes da Silva Filho e Júlia Maria Corrêa, que destacam outras facetas do debate, explorando a densidade de fluxos migratórios contemporâneos. Os autores colocam em causa a mobilidade humana e os mundos do trabalho entremeados entre as cidades de Bonfim, no estado de Roraima, e Lethem, na República Cooperativista da Guiana. Com base em dados e outras fontes obtidas em trabalho de campo, Silva Filho e Corrêa discorrem sobre questões relacionadas as atividades laborais, redes de comércio e serviços que vem conectando as duas cidades. A discussão sobre o panorama relacional entre Lethem e Bonfim pode servir de janela comparativa para outras realidades urbanas e transfronteiriças na Amazônia.

Após as reflexões sobre Brasil e Guiana, o dossiê encaminhará a debate para outras rugosidades da ideia de fronteira. Será apresentado um interessante artigo sobre um relato de viagem de autoria de George Kennan, que publicou em 1870 a obra Tent life in Siberia. Fechando a presente edição da Canoa do Tempo, convidamos à leitura do texto de Nykollas Gabryel Oroczko Nunes, que aborda a expedição telegráfica narrada por Kennan, ocorrida no nordeste da Rússia e carregada com os usuais recursos narrativos ligados à valorização de ideários da masculinidade, aventura e do enfrentamento da natureza selvagem. O artigo destaca as tensões discursivas da obra, estabelecidas entre desafios de alteridade, visualizados nos intercursos das ideias de civilização e barbárie numa área considerada distante e inóspita.

A diversidade de abordagens e aparatos teóricos aqui propostos demonstram a as possibilidades dos temas que abalizam o dossiê. Em tempos monocromáticos, refletir sobre a complexidade do conceito de fronteira vai na contramão de pensamentos que simplificam a realidade. Com isso, objetivamos fomentar ainda mais discussões que levem em conta o caráter movediço e múltiplo das experiências humanas no espaço e no tempo.

Boa leitura!

Antônio Alexandre Isidio Cardoso – Professor Doutor (UFMA).

Eurípedes Antônio Funes – Professor Doutor (UFC).

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