Erário Mineral – FERREIRA (VH)

FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral.  Organização de Júnia Ferreira Furtado. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002, 2 Vol. ilustr. (Coleção Mineiriana, Série Clássica). Resenha de: MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. Óleo de ouro: as Minas e seus tesouros médicos e minerais. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.26, p. 156-163, jan., 2002.

Em 1735, Luís Gomes Ferreira, natural de São Pedro de Rates, na Província do Minho, fez estampar em Lisboa um grosso volume com o relato de mais de vinte anos de experiência a combater as doenças dos novos sertões da América Portuguesa. Denominou-o Erario Mineral dividido em doze Tratados, dedicado e offerecido á Purissima, e Serenissima Virgem Nossa Senhora da Conceyçaõ: título digno, alto e elegante embora engenhoso, logo à partida, e equivocamente alusivo às virtudes do ouro. Dele houve notícia Diogo Barbosa Machado, que o registou de forma sucinta no tomo terceiro da Bibliotheca, enobrecendo as circunstâncias do seu autor (“cirurgiaõ approvado”), em “professor de Chirurgia”.

Outros letrados da altura parecem haver acolhido com mostras de estima o lançamento desse trabalho de vulto. A começar pelos censores, que lhe gabaram a utilidade, e pelos poetas que compuseram versos encomiásticos, também publicados antes do texto de Gomes Ferreira. Estudos recentes de história do livro indicam que ele figurou com alguma freqüência em coleções coloniais, sobretudo na zona das Minas (José Maurício de Carvalho, “O que se lia no Brasil Colonial”, Cultura, Vol. XIV, 2002, p. 44). Chegou-se a notar, inclusive, ser o Erario o único título constante em várias listagens de impressos setecentistas da região de Sabará (cf. texto introdutório de Júnia Ferreira Furtado, p. 26). Estranhamente, porém, ao fim de umas décadas, tornar-se-ia muito difícil conseguir encontrá-lo.

Inocêncio Francisco da Silva, no início dos anos de 1860, dizia ter visto somente um exemplar, em poder de João José Barbosa Marreca, conservador da Biblioteca Nacional de Lisboa. Nada, de resto, aduzia de novo sobre o formato da obra, nem a respeito da origem de quem a escrevera. Num curto verbete do Diccionario, o que se acha é um juízo bastante severo sobre o valor das doutrinas de Gomes Ferreira, que sofreriam de uma aflitiva falta de “precisão, methodo, ordem, e conhecimento dos termos facultativos”, como se via de suas receitas para tratar a gafeira das bestas (sarna ou morrinha) ou os “sonhos medonhos e tristes”. A esse respeito, merecedora de referência seria também uma breve passagem em que o autor aludia à maneira como utilizava “os seus segredos nos enfermos encarregados a seus collegas, mas occultamente, porque elles lhos costumavão impugnar, de certo com boa razão”. Aos olhos severos de Inocêncio, os preciosos saberes de Gomes Ferreira, por não guardarem qualquer paralelo com “formulas e dimensões pharmaceuticas”, só soavam apenas “disparatados”.

O vagaroso processo subseqüente de reabilitação processou-se sobretudo no campo da história da medicina, e no Brasil. Ainda em meados da década de 1880, pôde o Erario assegurar a sua presença numa importante iniciativa universitária para valorizar o patrimônio bibliográfico nacional (v. Carlos António de Paula Costa, Catálogo da exposição medica brasileira…, Rio de Janeiro, Typografia Nacional, 1884). Anos depois, seria citado num estudo de Álvaro A. de Sousa Reis (“História da literatura médica brasileira”, Revista do Instituto Histórico e Geografico Brasileiro, Vol. 9, 1922, pp. 501-549), basicamente com o mesmo propósito de enumeração que ainda se havia de observar num pequeno apanhado sobre práticas médicas coloniais que em 1960 Lycurgo Santos Filho redigiu para o volume segundo da História Geral da Civilização Brasileira (p. 157), dirigida por Sérgio Buarque de Holanda. Este foi, aliás, um dos raros autores que, até ao final da década de 1950, parece ter lido Gomes Ferreira em busca de dados originais: com a espantosa familiaridade de quem freqüentava os títulos mais obscuros, no seu ensaio “Metais e pedras preciosas” Sérgio Buarque de Holanda recorreu ao Erario para aduzir um efêmero exemplo individual em favor da idéia da probabilidade de um ingresso significativo de estrangeiros na região das Gerais, no início do século XVIII (Ibidem, p. 289).

Muito menos contido se veio a mostrar, logo em seguida, o erudito e historiador anglo-saxônico Charles Ralph Boxer. Vários parágrafos de um dos capítulos centrais de A Idade do Ouro do Brasil (1962) assentam sobre passagens de Gomes Ferreira. Dele são, entre outros, alguns testemunhos das condições inumanas a que se viam submetidos os negros faiscadores, das diferentes categorias em que na altura os próprios colonos os classificavam, e das doenças ou ferimentos que afligiam tanto os escravos, como os senhores da zona das Minas. Na pena de Boxer, as qualidades profissionais de Gomes Ferreira merecem leitura compreensiva: pelo cuidado em prescrever o banho diário e pelo empenho com que evitava o recurso à sangria e ao purgante, “nosso cirurgião estava muitos anos à frente de sua época” e sua obra constituiria “fascinante prólogo para um moderno Manual de Medicina Tropical”.

Tamanho encanto foi o de Boxer, que, após alguns anos, foi ele outra vez quem teve o cuidado de assinalar a obtenção para o acervo da Lilly Library de um espantoso novo espécime bibliográfico: Erario mineral, utilissimo, não só para os professores de cirurgia que residem na America Portugueza, a cujo beneficio particularmente se escreveo, mas universalmente para todos, os que professão a mesma faculdade… Agora novamente impresso, e augmentado com hum copioso numero de exquisitas, e admiraveis receitas… Lisboa, 1755. Dois volumes in-quarto (“A Rare Luso-Brazilian Medical Treatise and its Author: Luís Gomes Ferreira and his Erario Mineral of 1735 and 1755”, Indiana University Bookmark, Vol. 10 [Nov., 1969], pp. 48-70, in Opera Minora, Edição de Diogo Ramada Curto, Vol. II [Orientalismo], Lisboa, Fundação Oriente, 2002, pp. 221-234). Até ao momento, essa segunda edição nunca fora devidamente descrita. Voltando portanto a insistir no interesse da obra, Charles Boxer soube agarrar a ocasião para alargar os seus comentários na Idade do Ouro, debater um recente trabalho de Ivolino de Vasconcelos sobre o trajeto de vida de Gomes Ferreira (“Notícia histórica sobre Luís Gomes Ferreira e sua obra, o Erario Mineral”, Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da transferência da sêde do governo do Brasil da cidade do Salvador para o Rio de Janeiro, 1763-1963, Vol. III, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1967, pp. 375412) e sugerir a existência de algumas passagens revistas e ampliadas no Tratado Terceiro do exemplar recém-descoberto. A apurada comparação das duas versões demoraria mais de três anos a efetuar-se, por causa da dificuldade de acesso ao texto de ‘35. Quando por sorte, em Indiana, se adquiriu um exemplar da primeira impressão, Charles Boxer pôde afinal confirmar a validade de suas hipóteses (“A Footnote to Luís Gomes Ferreira, Erario Mineral, 1735 and 1755”, Indiana Universty Bookmark, Vol. 11 [Nov., 1973], pp. 89-92 in Opera Minora [Supra cit.], pp. 235-237).

Atualmente, parece não haver notícia de outro qualquer conjunto completo de 1755. Ao que se sabe, apenas existe o registro de uma cópia do segundo volume na Biblioteca da Faculdade de Medicina de Lisboa (Catálogo das obras da Colecção Portugueza anteriores à fundação das Régias Escolas de Cirurgia em 1825, Lisboa, 1942, p. 138). Rubens Borba de Moraes limita-se a informar que se trata de edição ainda mais rara que a primeira (Bibliographia Brasiliana, Rio de Janeiro, Livraria Kôsmos Editora, [1983], Vol. I, p. 307).

Quanto ao tomo de ’35, Charles Ralph Boxer referiu a existência de oito exemplares; quatro, no Brasil. Infelizmente, pouco mais disse a esse respeito, além de que um deles estava na posse de familiares de Gomes Ferreira, no Rio de Janeiro. Sabe-se agora que, ainda no Rio, se acha também um exemplar na Fundação da Biblioteca Nacional, e um segundo, na FIOCRUZ. Em Belo Horizonte, o Centro de Memória da Medicina da UFMG possui uma cópia em que falta uma folha. Por fim, em Sabará, encontra-se outra a necessitar de restauro na coleção da Biblioteca Borba Gato.

As indicações bibliográficas das “Bases de dados sobre história da ciência, da medicina e da técnica em Portugal e Brasil, do Renascimento até 1900” (Lusodat), do Grupo de História e Teoria da Ciência da Universidade de Campinas (http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/lusodat.htm), permitem a localização de um bom exemplar na Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Os Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa têm uma cópia em estado satisfatório, originária da livraria de D. Francisco de Melo Manuel da Câmara (Cabrinha); possivelmente, a que leu Inocêncio. É, no entanto, na Biblioteca de Mafra que parecem estar dois dos mais soberbos espécimes da rara edição de 1735: encadernados em inteiras de pele e com lombadas marcadas a ferros de ouro, praticamente não apresentam indícios de uso. Foram descritos em 1963 no catálogo datilografado de Guilherme José Ferreira de Assunção, “O Brasil nas obras da Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”, que nos últimos anos de vai ampliando (muito agradeço as informações facultadas a este respeito pela bibliotecária, Dr.ª Teresa Amaral).

Cabe agora ao Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro a importante iniciativa de facilitar o acesso ao texto do Erario, lançando-o na Série de Clássicos da sua já longa “Mineiriana”. Trata-se de edição acadêmica em dois volumes fartamente ilustrados. Logo a abrir, vê-se a imagem do frontispício do exemplar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, singularizado por marcas de traça marginais. Não aparece aí o carimbo de posse “Da Real Bibliotheca”, porque o puseram na folha de rosto da dedicatória “Á Puríssima Virgem Maria Nossa Senhora da Conceyção”. Quem o quiser conferir, encontrará igualmente na folha de guarda um pequeno lembrete em caligrafia cursiva setecentista: “Este Livro entregou/ o Pe Fr Antº de S Martinho/ da Provª da Solede pª q lho goar/dassem”.

Do dossiê iconográfico, também fazem parte algumas dezenas de reproduções de ex-votos do século XVIII, cenas de práticas médicas, interiores de hospitais, instrumentos de cirurgiões, utensílios de farmácia e plantas curativas. O quotidiano das Minas do Ouro surge em imagens de catas e negros. Algumas delas, oitocentistas. De interesse especial é um retrato de um homem maduro, de condição mediana, que, segundo se crê, representa Gomes Ferreira.

Esta nova publicação atualiza a ortografia do texto de ’35, mesmo nos versos encomiásticos introdutórios. Preserva, porém, as regências verbais, as contrações de preposição e artigo, e a maior parte das letras maiúsculas. Realça, além disso, em tipos de itálico, os nomes das obras e dos autores citados e as palavras e construções em latim. Graficamente, conservam-se ainda os pequenos resumos de colocação lateral e a disposição do índice de “coisas notáveis”, no fim do volume. Capitulares da “Officina do Impressor do Senhor Patriarca”, Miguel Rodrigues, rematam, por vezes, o termo das páginas.

Mais de uma dúzia de profissionais colaboraram neste projeto. Só para os glossários, contam-se sete. Escrevem ensaios temáticos cinco outros estudiosos: Eliane Scotti Muzzi, Ronaldo Simões Coelho, Maria Cristina Cortez Wissenbach, Maria Odila Leite da Silva Dias e a organizadora, Júnia Ferreira Furtado. É esta que abre o primeiro volume, com um trabalho em que procura reconstituir o percurso do autor, valorizando uma série de dados que ele próprio fornece, pelo cotejo com informações de caráter geral. Merece destaque a bem-sucedida reconstrução dos laços sangue e afinidade dos Gomes Ferreiras em diferentes paragens da arquidiocese de Mariana. Mesmo o leitor menos atento à história das Minas há de encontrar interesse nos vários indícios de proximidade do cirurgião e seu sobrinho José ao negociante João Fernandes de Oliveira, titular do primeiro contrato de diamantes na região do Tejuco e pai do senhor de Chica da Silva (pp. 20-23).

Maria Odila Leite da Silva Dias parte também do pormenor biográfico, para propor uma nova visita a todo o “Sertão do Rio das Velhas e das Gerais”, como “frente de povoamento”. As desventuras de Gomes Ferreira e os relatos de suas curas permitem rever a constituição dos grupos humanos que se encontraram no território, e observar as modalidades de interação que entre eles se foram tecendo, muitas vezes à margem da lei. Em Sabará, por exemplo, a autoridade dos governadores apenas chegou anos depois do surgimento de várias fazendas e arraiais. Ainda assim, por muito tempo, a maioria das “vilas” da zona das Minas conservaria feições bastante precárias, com suas casas de pau e taquara cobertas de barro, que a força da chuva trazia para as ruas, em forma de lama. A capacidade de reunir testemunhos escritos que hoje permitem rememorar vizinhanças inteiras de núcleos urbanos tão frágeis (pp. 91-95) não deixa de ser espantosa.

Os quinze poemas que antecedem o “Índex dos Tratados e Capítulos” existentes no Erario têm direito a um ensaio em separado. Ciente da relativa estranheza que o leitor atual deve sentir diante dos “protocolos que codificavam os gêneros do discurso nos século XVII e XVIII”, Eliane Scotti Muzzi dedica-se a apresentar em linhas gerais a estrutura do sistema de ensino neoescolástico e a esclarecer a importância que, na altura, se atribuía ao retórico. Especificamente sobre a origem das obras poéticas da edição de ‘35, que se supõem compostas por indivíduos “participantes da realidade das Minas”, parece assumir-se uma certa dificuldade em descobrir elementos de comparação inteiramente operativos no patrimônio setecentista da literatura colonial (p. 34). A referência (quase canônica) à atividade das academias provinciais, como a do Aureo Throno Episcopal (1748), sugere a hipótese de que um tão grande conjunto de versos talvez também se pudesse haver concebido, “precocemente”, para ofertar ao autor do Erario, em ato público. Nele teriam, portanto, participado Tomás Barroso Tinoco, Tomás Pinto Brandão, João Bernardes e dois ou três outros “poetas de circunstância” (ibidem), amigos de Gomes Ferreira – que, por suposta modéstia, se não assinaram.

Dessa seqüência de nomes, ressalta o de Pinto Brandão. Embora ainda não se conheçam em pormenor as circunstâncias da sua vida, sabe-se há muito que escreveu em Lisboa poemas satíricos e joco-sérios durante a maior parte do longo reinado de D. João V (Diogo Barbosa Macado, Opus cit., Vol. III, pp. 747-748). Tem-se tido por certo que visitou o Brasil por mais de uma vez, chegando a travar amizade com Gregório de Matos. No Rio de Janeiro, parece haver conseguido ajustar matrimônio com uma certa Josefa de Melo, antes de retornar ao mundo da corte, no início da Guerra da Sucessão Espanhola (v. Tomás Pinto Brandão, Antologia. Este é o Bom Governo de Portugal, Prefácio, leitura de texto e notas de João Palma-Ferreira, [Mem Martins], Publicações Europa América, 1976, pp. 5-7, Alberto Dines, Vínculos do Fogo, 2ª edição, [São Paulo], Companhia das Letras, [1992], pp. 508-509, Jair Rattner, Verdades pobres de Tomás Pinto Brandão. Edição crítica e estudo, Lisboa, Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1993, pp. 21-29, e Adriano Espínola, As Artes de Enganar. Um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Matos, [Rio de Janeiro], Topbooks, [2000], pp. 203 e ss.). Ao publicar a mais volumosa das suas obras (Pinto renascido empenado, e desempenado. Primeiro Voo, Lisboa, Officina da Musica, 1732), morava na rua do Picadeiro, ao Bairro Alto (cf. Júlio de Castilho, Lisboa Antiga. O Bairro Alto, 3ª ed., Vol. II, Lisboa, Oficinas Gráficas da Câmara Municipal de Lisboa, p. 209). Não é improvável que conhecesse e cultivasse o convívio com indivíduos que, tal como ele, tinham passado uma parte importante das suas vidas em territórios coloniais; mais de uma vez, já se mostrou uma efetiva tendência para a conservação desse tipo de laços (v., por exemplo, Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, T. I, Vol. I, Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores, [1952], pp. 107-119, e Alberto Dines, Opus cit., passim), praticamente inevitável em alguns grupos, como o dos grandes comerciantes (v. Jorge Pedreira, “Brasil, fronteira de Portugal. Negócio, emigração e mobilidade social”, in Mafalda Soares da Cunha [coord.], Do Brasil à Metrópole. Efeitos Sociais, séculos XVII-XVIII, [Évora], Universidade de Évora, 2001, pp. 63-69). De qualquer modo, nada comprova que Tomás Pinto tenha, de fato, “participado da realidade das Minas” em condições equiparáveis às do autor do Erario.

Os dois derradeiros ensaios da série de cinco tratam do tema da inserção social dos cirurgiões da colônia e do saber e experiência acumulados por Gomes Ferreira. Maria Cristina Cortez Wissenbach reúne com desenvoltura as trajetórias de mais de uma dezena de profissionais, mostrando a disparidade de suas origens e estatutos. Ao discorrer sobre o Erario, mostra também a existência de um intrincado convívio entre a “ciência” colhida nos livros e as tradições forjadas na prática: na expressão de Pedro Nava, “amálgama inseparável na obra dos mestres portugueses” até ao final do XVIII (p. 132). Se algo se encontra, a este propósito, que singularize Gomes Ferreira é o cuidado com que descreve as condições específicas do interior do Brasil e as receitas aí adoptadas, com largo recurso às riquezas nativas. Botânicas e minerais.

Mesmo no centro do livro, há um tratado “da rara virtude” de um dos mais nobres medicamentos que na altura se utilizava: o “óleo de ouro”. Diz o autor que “assim como o ouro é o soberano de todos os metais, assim também o seu óleo é o mais soberano remédio que até o dia de hoje se tem descoberto […]” (p. 489). Formulação grandiloquente, mas acadêmica e assisada; pois, nesses tempos, não falta quem creia que o ouro “[…] conforta o coração, & as faculdades vitaes […]”, podendo inclusive ser consumido como “ouro potável”, na esperança de reduzir os achaques e prolongar os anos de vida (Raphael de Bluteau, Vocabulario Portuguez e Latino, Vol. VI, pp.148-152 e 651-652). Gomes Ferreira resiste a deixar que o brilho das Minas o leve tão longe: sempre que trata do uso do ouro, mantém-se restrito à consagrada receita do “óleo”. A abundância com que depara permite, porém, empregá-lo nas mais variadas patologias, que ele enumera pelo relato de casos concretos, com um orgulho de pioneiro: gangrenas, furúnculos, carbúnculos, fleumões, antrazes, panarícios, apóstemas, cirros, cancros, feridas de peito e carnes supérfluas. Todo o senhor que possa pagá-lo, deve deter uma pequena porção de óleo de ouro em sua casa. Não só para si, ou para a sua família, mas, igualmente, em benefício dos pobres (p. 513). Como resume Ronaldo Coelho, o alegado sucesso de Gomes Ferreira se assenta de fato num amplo conjunto de qualidades (pp. 151-154 e 167-168).

Fica o desejo de que esta última iniciativa do Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro possa ser divulgada como merece e, se possível, que incentive outros trabalhos de reedição de textos setecentistas pouco comuns.

Tiago C. P. dos Reis Miranda– Centro de História da Cultura/ Universidade Nova de Lisboa.

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[DR]

 

“Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão” – SALGUEIRO (VH)

SALGUEIRO, Angotti Heliana. “Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão”. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos Culturais, 1997. Resenha de: DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 500-507, nov., 1997.

No momento em que a cidade de Belo Horizonte comemora o seu primeiro centenário, reveste-se de significativa relevância a iniciativa da Fundação João Pinheiro, com o concurso da historiadora Heliana Angotti Salgueiro, de preparar uma biografia de Aarão Reis, engenheiro chefe dos trabalhos da Comissão Construtora da da capital.

A tarefa de construção de uma biografia, ainda hoje, é um impreendimento delicado, que afugenta muitos historiadores temerosos de serem identificados à antiga história tradicional, em parte herdeira do paradigma do indivíduo iluminista, com o seu clássico acento sobre as ações dos atores, preferencialmente aqueles que se fazem visíveis no mundo das grandes decisões políticas.. Pruridos à parte, é certo, porém, que a biografia enquanto gênero historiográfico tem retornado aos poucos a ocupar um discreto, mas significativo, lugar dentre os recentes escritos históricos Tal fato tem sido, em parte, atribuido aos desdobramentos, no campo do conhecimento histórico, do advento da pós-modernidade com a prerrogativa da passagem do “sujeito” ao “indivíduo”. Na linha do estabelecimento de uma relação entre pós-modernidade e biografia tem sido alinhados, como pontos para a reflexão dos historiadores, questões tais como a perda do sentido da história e o enfraquecimento ou mesmo o fim dos grandes discursos legitimadores do sujeito ,conquanto inerentes à chamada crise da modernidade.

Por seu turno, os sociólogos, como é o caso de, Bourdieu, manifestam seus cuidados teóricos preocupados em bem distinguir o indivíduo concreto — a personalidade individual e biológica capaz de atuar em diferentes campos, — do indivíduo construido, ou agente eficiente em um dado campo do social, precavidos em não se deixarem capturar pela “ilusão biográfica”. A recomendação nesse caso é de que a compreensão de uma “trajetória” — de eventos biográficos — seja condicionada à construção preliminar dos estados sucessivos do “campo” onde ela se desenrolou, portanto o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado ao conjunto de outros agentes implicados no mesmo campo e afrontados ao mesmo espaço de possíveis. Só assim se evitaria conceber que uma vida individual é uma “História” e a narrativa desta História, no que também concordam os historiadores.

Noutra ponta do debate historiográfico, e sem negligenciar a refelexão teórico-metodológico em torno da biografia, Heliana Angotti Salgueiro se impõem a tarefa de biografar Aarão Reis optando por fazer uma “biografia intelectual”, dentro de um novo campo da história social, qual seja, o da “micro-história”. Por esse caminho ela reconcilia a ação social com as escolhas e o poder de decisão do indivíduo, cruzando num jogo de escalas, o espaço das ações individuais com o espaço dos sistemas coletivos, portanto a micro com a macro-história. Deste cruzamento, a noção histórica de indivíduo aparece resignificada, pois não mais fragmentada e desterritoralizada, ou mesmo não mais anulada, por uma inexorável determinação, uma vez que o “individual” é complementar ao “social”.

Baseada em um cuidadoso, e minucioso, trabalho de pesquisa de fontes, sobretudo primárias, no qual se destacam um precioso levantamento iconográfico; a seleção de vários, e diversificados, escritos de Aarão Reis; bem como das obra dos autores que deixaram sobre ele uma marca intelectual mais decisiva; e utilizando-se de fartas referências bibliográficas, calcadas em historiadores franceses, Heliana Angotti Salgueiro realiza um trabalho sério e competente.

Pela trajetória intelectual e política de Aarão Reis , seu ponto de partida, somos levados de encontro a uma trilha do pensamento social brasileiro da segunda metade do século XIX e da primeira metade deste, e à fronteira da formação técnica, das referências culturais e dos campo de atuação, e efetiva intervenção, dos engenheiros na sociedade e na administração pública no Brasil dos oitocentos. Também, seguindo as pegadas de Aarão Reis, é possível vislubrar os projetos de reforma social postulados ou em curso, naqueles anos, seja no campo da instrução pública, do planejamento urbano ou mesmo da difusão do progresso científico e tecnológico, bem como às suas respectivas filiações ideológicas, e representações utópicas e imaginárias.

A autora definiu um plano para a obra pelo qual essa se divide em duas partes. Na Parte I , designada “Traços”: Formação e trajetória de Aarão Reis — Pensamento e ação de um engenheiro da Politécnica no Brasil do século XIX”, ela desenha o perfil do homem , do intelectual, do engenheiro. A formação politécnica; a militância republicana, na juventude; sua participação na diretoria do Club de Engenharia; sua atividade no jornalismo, inclusive na imprensa abolicionista; seu trabalho como professor — inicialmente no ensino secundário e posteriormente na Escola politécnica do Rio de Janeiro — e como tradutor de autores franceses do porte de Littré, Condorcet, Laboulaye, entre outros, que estarão nas bases do ideário que marcará seu engajamento em grandes obras públicas; a publicação de tratados científicos, panfletos, opúsculos, através dos quais ele opta por difundir , no dizer da autora,” os princípios de economia social que dominavam sua geração”.

Há que se destacar nesse ponto da obra, alguns momentos importantes na análise empreendida. Por um lado a estratégia metodológica adotada onde a idéia de “esboço” surge em complementaridade à de “traços” impedindo que o leitor apreenda uma imagem estática e linear da vida e obra do biografado. O pensamento e a ação de Aarão Reis, não obstante sua coerência — garantida pela adesão ao “cientismo”, onde a razão e a ciência devem orientar a tomada de decisões políticas e o engajamento na construção de um “Brasil moderno” — aparecem em movimento, abertos à mudanças de influências e sujeitos à deslocamentos. Assim é que podemos acompanhar a multiplicidade de suas idéias, o ecletismo de sua biblioteca e sua relação, em diferentes níveis de temporalidades, com os autores que lê: “parte de Condocert, passa por Saint- Simon e pelo positivismo heterodoxo da ala littreísta, para finalmente abraçar os estereótipos comtianos mais conservadores na sua obra de maturidade”.

Por outro, ao se deter em alguns dos principais escritos de Aarão Reis — entre eles “A Instrução Superior no Império” e “Economia Política e Finanças” — com vistas a estabelecer as relações entre eles e sua ação, suas possíveis contradições, a repercusão dos pensadores que ele leu e “convocou”, sua relação com a memória cultural do século XIX, sua afinidade com o pensamento dos engenheiros reformistas de sua geração, sua articulação com os problemas vividos pelo Brasil, e, sobretudo com a futura concepção de Belo Horizonte, a autora traz à luz um panorama rico sobre o itenerário intelectual de Aarão Reis. O que vemos é um homem culto, com uma erudição marcada, embora não limitada, aos filósofos e engenheiros franceses, com os quais se sintoniza e compartilha a crença em uma filosofia e ciência positivas e com seus valores, e instrumentos , voltados para a instrução pública, o progresso e a modernização do país, guardando sempre, em nome de uma ciência social tecnocrática, uma proposital distância dos partidos políticos, porém, cultivando a crença na autoridade do Estado .

É de se lamentar, no entanto que a atuação do Club de Engenharia, o papel da Escola Politénica do Rio de Janeiro e mesmo a história da constituição da engenharia enquanto um campo de saber técnico e especializado no Brasil não tenham merecido por parte da autora a atenção devida .Aliás surpreende a sua afirmação de que “No processo de modernização urbana, os engenheiros, dentre os quais Aarão Reis, cuja polivalência de pensamento e de ação no desenvolvimento do país não foi ainda levada em conta de forma aprofundada”. Uma simples consulta à obras, entre várias outras, como as Maria Alice Rezende de Carvalho, ”Quatro vezes Cidade”; Jaime Larry Benchimol, “Pereira Passos — Um Haussmman Tropical; Mário Barata, “Escola Politécnica do Largo São Francisco — Berço da Engenharia Brasileira”; Maria Inês Turazzi, “A Euforia do Progresso e a Imposição da Ordem: a engenharia, a industria e a organização do trabalho na virada do século XIX”; Oswaldo Porto Rocha, “A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro — 18701920; José Murilo de Carvalho, A Escola de Minas de Ouro Preto: O peso da glória; bastariam para descaracterizar a afirmação acima e reafirmar a existência, de longa data no país, de um conhecimento já estabelecido sobre o tema. Um diálogo com essa literatura certamente teria fornecido novos e ricos elementos para a biografia intelectual de Aarão Reis e para a sua trajetória dentro do campo de atuação possível dos engenheiros do seu tempo e no espaço das iniciativas de modernização e progresso.

Na Parte II, intitulada “Temáticas, Glosas, Referência , são selecionadas, nos escritos de Aarão Reis, temáticas expressivas e emblemáticas, tais como a instrução pública e a reforma do ensino, os ideais humanitários de liberdade e fraternidade, o desenvolvimento tecnológicco, o planejamneto do espaço e do território e a administração das cidades; capazes de inscrever o pensamento e a ação de Aarão Reis, bem como de engenheiros e administradores seus contemporâneos, como uma dimensão particular, e não externa, ou fora do lugar, do fluxo do pensamento ocidental sobre a modernidade. A opção pelo procedimento analítico que privilegia, na biografia intelectual, a noção de apropiação/circulação cultural permite a autora exorcizar a tese das “idéias fora do lugar”, revelando um fundo comum de questões e problemáticas que se cruzam. e circulam, num âmbito internacional de referências, numa corrente cultural geral, e que serão traduzidas em diferentes regimes de historicidade “em face de situações vividas ou condições de sua aplicação”.

No “primeiro segmento “Da instrução pública e do nacionalismo” somos levados de encontro à marcas do romantismo e do naturalismo , na obra de Aarão Reis, no âmbito do seu discurso pedagógico e patriótico que clama pela educação profissional, se desdobra no discurso de regeneração e transformação e intervenção no espaço urbano-arquitetural, e nas iniciativas de representar a pátria no espaço da cidade. A toponímia das ruas e praças de Belo Horizonte, seriam, nesse caso, manifestações exemplares da utilização do espaço, pelo poder, para educar. Ë pena que a autora não tenha se detido um pouco mais nesse ponto explorando a questão da educação popular/ educação e instrução ,e sua relação com o projeto e o ideário republicanos no Brasil, sinalizadas e esboçadas, na primeira parte, à luz do engajamento de Reis com a causa da educação e a transformação do país. A intencionalidade pedagógica presente em boa parte do material iconográfico distribuido ao logo da obra, se trabalhado nesta parte certamente teria permitido comparações e aprofundamentos.

Na sequência , “Do bem comum e social: a Liberdade e a Fraternidade”, encontramos Reis , em outra faceta, às voltas com a questão abolicionista , com iniciativas mutualistas, e com o desafio de conciliar sua condição de pensador, afinado com as idéias humanistas, com a de administrador público, o que lhe impôem, entre outras, a “melindrosa” tarefa de realizar as desapropiações no arraial e lidar com os habitantes desalojados.

Na seção “Da história da técnica: eletricidade e mobilidade” o panorama dos textos escritos por Reis é, como bem diz a autora , uma “crônica dos avanços do século e da sua repercusão no país”, tomadas como ícones do triunfo da civilização e da medida da solidariedade entre os homens. A eletricidade e as estradas de ferro enquanto expressão do progresso científico/tecnológico/material, legitimam a atuação pública de um engenheiro, como Aarão Reis, e conferem visibilidade — através dos seus artigos, relatórios, e outras publicações- à sua erudição técnica internacional, as quais ele não dissocia, dada sua perspectiva ideológica, do debate histórico e político do período Os textos aqui escolhidos nos introduzem a um só tempo à alguns ângulos da história da técnica no Brasil do século XIX, às opiniões de Reis sobre a implantação dessas tecnologias e o seu impacto social e cultural , bem como ao estágio das políticas públicas no país.

Ainda na parte II, no segmento “Do funcionário republicano em face das vicissitudes da política e da administração das obras públicas”, uma outra dimensão da biografia intectual de Reis, é explorada: aquela das delicadas relações emtre o intelectual, o agente responsável, e os tortuosos caminhos do poder e da administração pública. Um republicano convicto com Reis, “porta-voz de uma engenharia nascente”, como afirma a autora, imbuído da missão de levar o progresso ao país e de modernizar as cidades, vai vivenciar a dura realidade dos desencontros ente o que é ditado pela razão técnica e o que é imposto pelo poder político na gestão urbana.. Nos relatórios e nas correspondências se destacam as recomendações técnicas ignoradas pelos governantes e as queixas e desabafos do engenheiro. O descontentamento entre o ritmo demandado pelos funcionários científicos e e o que imposto pelo poder público, por um lado, levam Reis a propor uma alianças entre o Estado e a iniciativa privada para a realização de obras públicas, o que faz tendo como referência o debate entre individualismo e socialismo, ou seja, sem se afastar dos seus referentes de doutrina.

Reiteremos, nessa parte, as mesmas observações feitas anteriormente à I Parte, acerca do papel do engenheiro, uma vez que a autora reafirma que se “pesquisou pouco” sobre a história do funcionalismo científico e admnistrativo no Brasil .

Por fim o ultimo segmento “Da leitura do território ao planejamento urbano: o caso de Belo Horizonte” contempla as intervenções diretas sobre o território e a cidade, que vira a ser Belo Horizonte. A temática escolhida dá à obra um fechamento lógico e coerente: o pensamento e a ação de Aarão Reis, com seus matizes, seus pontos de apoio, suas configurações e sua expressão material, parecem convergir em uníssono para a construção da nova capital.

O Relátório da Comissão d’Estudo das Localidades Indicadas para a Nova Capital, a Planta Geral , os projetos dos prédios públicos, a Exposição de Aarão Reis, na Revista Geral dos Trabalhos, são alguns, entre vários outros, documentos bem retrabalhados pela autora rumo à compreensão do discurso urbanístico, do modelo de cidade e da utopia do espaço, que nortearam a planificação urbano-territorial de Belo Horizonte. Esses pontos têm sido objeto de análise exaustiva e minuciosa por parte de historiadores, sociólogos e urbanistas empenhados igualmente na sua decifração no caso belorizontino. Mantidas as diferenças de enfoques entre eles, é possível encontrar na análise de Heliana Angotti e em alguns desses trabalhos, várias preocupações analíticas comuns. Surpreende, no entanto que a autora não faça nenhuma menção à sua existência, o que pode significar um desconhecimento de farta bibliografia, ou pouca disposicão para a troca de idéias. Quanto aos possíveis antagonismos interpretativos e de método, que poderiam advir da utilização dessa numerosa literatura, ressente-se pela perda da riqueza do contraditório e do diálogo com a diferença.

Para exemplificar, no que diz respeito à analise interna da Comissão d’Estudos — que registre-se, não é desconhecida nos anais da história do urbanismo no Brasil — como forma de penetrar o discurso de Reis, o texto perde em não contrastar e até mesmo aprofundar algumas convergências com o texto de Maria Esther Saturnino Reis, “A cidade paradigma e a república: O nascimento do espaço Belo Horizonte em fins do século XIX”, que adota um procedimento arqueológico na análise do texto da commissão de d’Estudos. Sobretudo quando ambas percebem a importância do recurso aos saberes físicos e biológicos, a fundação de um conhecimento ecológico, a preocupação com a salubridade e a higiene, a centralidade e a inscrição dessas condições na Economia Política da época.

Também quando a autora se detém no exame da Planta da cidade e nas leituras e modelos de Aarão Reis na montagem da sua cidade ideal, é impossivel não se ressentir da referência, e da convocação, dos trabalhos de Paulo Henrique Ozório Coelho, “La Creation de Belo Horizonte: Jeu et enjeu politiques”, Letícia Julião, “Belo Horizonte: Itinerários da Cidade Moderna”, de Luiz Mauro Dos Passos, “A Metrópole Cinquentenária. Fundamentos do saber arquitetônico e imaginário social da cidade de Belo Horizonte —1897-1947, para ficar apenas em alguns poucos, que se debruçam em minúcias sobre a mesma Planta Geral. A concepção de Aarão Reis sobre a cidade e o território; a presença do Estado na regulação da ocupação e do crescimento; a pluralidade das referências e das disposições, modernas e arcaicas, na elaboração do plano urbano da nova Capital; a relação entre o desenho da planta e a topografia local; o suposto caráter rígido do projeto de Reis, são pontos que mais afastam do que aproximam os autores da interpretação de Heliana Angotti, comportando leituras em sua maioria divergentes, incorporando elementos não menos importantes para o entendimento das estratégias e objetivos de Reis, capazes de propiciar rica interlocução e ampliar o escopo da análise histórica.

A autora conclui a biografia intelectual de Aarão Reis reafirmando o conteúdo ideológico progressista de Aarão Reis, centrando na idéia de metamorfose a expressão da sua utopia. A fé littreana de Reis, a qual segundo ela ligava “o progresso da ciência à evolução dos costumes, daí o combate à miséria, vista como obstáculo aos progressos morais e ao bem-estar social da humanidade”, é o pressuposto que sustenta a sua tese de que a concepção de Belo Horizonte, do Reis engenheiro, não é um projeto político ou social, mas parte de uma “missão”, que ele considera sua. Quer concordemos ou não com essa conclusão, chegamos ao final dessa biografia com uma compreensão mais alargada do cenário intelectual e político do final do século XIX no qual transitavam e atuavam homens da estatura de um Aarão Reis, cujo perfil de homem público é esboçado com responsabilidade na presente obra.

Para terminarmos esta resenha um comentário final sobre a edição da Fundação João Pinheiro a qual, muito embora primorosa, como de hábito — quanto ao acabamento da obra, a qualidade do papel , da impressão e das reproduções fotográficas — pecou pelo excesso , ou seja , pelo rebuscamento visual e pela saturação gráfica, as quais dispersam a atenção do leitor, pertubando a leitura das notas e desvalorizando a significativa linguagem das “imagens” tão bem utilizada pela autora.. Uma maior sobriedade estaria em melhor acordo com a natureza do texto e, por que não dizer, com o perfil do biografado.

Eliana Regina de Freitas Dutra – Professora do Departamento de História da UFMG.

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