Les invasions barbares: une généalogie de l’histoire de l’art – MICHAUD (Topoi)

MICHAUD, Éric. Les invasions barbares: une généalogie de l’histoire de l’art. Paris: Gallimard, 2015. 320p.p. Resenha de: DOSSIN, Francielly Rocha. O imaginário europeu sob o fantasma da filiação: sobre a racialização da arte e sua história. Topoi v.18 n.36 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2017.

Nos pères les Germains, Montesquieu.

Éric Michaud é historiador da arte e diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris (École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS). Suas pesquisas giram em torno dos projetos artísticos que visaram a construção do novo homem, especialmente nos séculos XIX e XX. Há alguns anos tem se dedicado a compreender a distinção que a história da arte europeia, a partir do século XIX, fez entre norte e sul. Michaud pesquisa a criação dessa divisão, fundamentada por concepções nacionalistas e racializadas, a partir da leitura de autores como Wölfflin, Schlegel, Riegl, Courajod e Viollet-le-Duc.

Pouco conhecido no Brasil, Michaud ainda não obteve uma tradução de fôlego no país. A publicação mais próxima que dispomos é a argentina La estetica nazi – un art de la eternidade (Buenos Aires: Adriana Hidago, 2009, 397p.),1 seu livro anterior.2 Nessa obra o historiador francês empenhou-se no estudo do projeto estético nacional-socialista alemão, sendo exemplo cabal do uso da arte como prova da autoproclamada superioridade ariana. Michaud mostra como os usos da arte podem estar em posição contrária à “reconciliação” entre povos e como se dá o vínculo inseparável entre projetos políticos e estéticos. Como revela o subtítulo original, “Uma arte da eternidade”, a arte nazista propunha uma negação do tempo e da história. A inspiração para essa negação vem do cânone atemporal atrelado à noção de raça na história da arte. Essa problemática, que também circunda o último livro lançado, é tratada com a mesma erudição de seus textos anteriores. As invasões bárbaras: uma genealogia da história da arte3 é uma publicação da coleção Nrf Essais da editora francesa Gallimard. Resultado de uma pesquisa conduzida em 2010 no Institute for Advanced Study (Universidade de Princeton) e financiada pela fundação franco-estadunidense Florence Gould Foundation Fund. Na obra, Éric Michaud demonstra como concepções raciais foram fundantes da história da arte como disciplina.

Para o autor, “a história da arte começou com as invasões bárbaras”4 (p. 11), uma afirmação forte, mas que não significa que a história da arte tenha começado nos séculos IV e V com as invasões ao Império Romano, tampouco que a arte não possuísse história antes delas, mas sim que a disciplina só se fez possível quando, entre os séculos XVIII e XIX, as invasões começaram a ser entendidas e narradas como o “(…) evento decisivo pelo qual o Ocidente se engajou na modernidade, ou seja, tomou consciência de sua própria historicidade” (p. 11). A noção de que os bárbaros foram aqueles que destruíram a Europa clássica se inverte a partir do romantismo, momento em que passam a ser entendidos como aqueles que construíram o continente. Há nesse momento uma grande mudança na representação sobre o passado, criando-se uma grande oposição entre nórdicos (enérgicos e masculinos) e latinos (decadentes e femininos).

“Sobre um fantasma da filiação é o título da introdução na qual o autor nos apresenta as linhas gerais de sua obra, mostrando como a partir de 1800 os “bárbaros” começam a ser entendidos como “um povo” vigoroso, forte e criativo, que trouxe renovação e rejuvenescimento de todas as ordens através da “injeção” do novo sangue, das raças nórdicas, no “corpo” dos povos do Império decadente. O “gênio5 nórdico” passa então a ser valorizado em detrimento da “latinidade”.

A história da arte, que surge com um viés antirromano e anticlassicismo, é uma criação romântica, contemporânea à criação dos Estados-Nações e ao desenvolvimento do nacionalimo na Europa. Sua genealogia nos remete a uma determinada organização histórica e política inerente ao regime de visualidade racializado. As relações entre história da arte e o modelo arqueológico e antropológico também ajudam a compreender como se deram as preocupações com as origens étnicas e raciais, pois tinham objetivos semelhantes: determinar o pertencimento de origem de um objeto. A maior parte dos departamentos de história da arte nas universidades europeias é de “história da arte e arqueologia”, um exemplo dessa relação estreita entre ambas as disciplinas. Tanto a arqueologia quanto a história da arte tinham por tarefa associar “(…) seus objetos a grupos raciais se baseando em alguns signos visíveis” (p. 23). Essa procura por uma filiação, muitas vezes fantástica, levou a compreensão da estética como algo ligado ao sangue e à raça e serviu para que a “Europa projetasse no passado, seu projeto político nacional e racial” (p. 16). Assim, entendemos como “(…) a história da arte se inscreveu na grande narrativa da guerra das raças” (p. 16).

No primeiro capítulo, intitulado “Do ‘gosto das nações’ ao ‘estilo de raça’”, Michaud revela o caráter fantasmático, imaginário e confuso de noções basilares da disciplina, a exemplo das ideias de gosto e estilo que facilmente se confundiam com construções raciais. O “estilo” foi uma forma de visualizar, teorizar e hierarquizar diferenças. Daí teriam surgido divisões como “arte latino-mediterrânea” e “arte nórdico-germânica”.

Já no segundo capítulo, intitulado “Automiméses e autorretrato dos deuses”, Michaud mostra como se construiu determinada “leitura” da antiguidade (a mesma que posteriormente o projeto nazista portará, mas desta vez como uma caricatura). Um dos historiadores mais presente neste momento é Johann Joachim Winckelmann, considerado por muitos como o pai da história da arte (e da arqueologia científica). Winckelmann empreendeu uma busca pela pureza da arte antiga grega, ideal que para Michaud está intrinsecamente ligado à noção de pureza racial e à idealização da beleza humana, a exemplo da invenção do perfil grego. A análise dos textos de Winckelmann revela também o desenvolvimento de uma narrativa a-histórica e cristã. Nas palavras de Éric Michaud: “(…) foi, portanto, um modelo cristão que estruturou essa narrativa: o ideal era a encarnação do Espírito na história – mas na história da Grécia antiga” (p. 88), a arte grega espelhava, para Winckelmann, deuses autorretratados.

No terceiro capítulo, “As invasões bárbaras ou a racialização da história da arte”, o autor aprofunda sua tese central na qual identifica na reinterpretação das invasões bárbaras o ponto decisivo da racialização da história da arte. Aqui vemos como o processo de “desbarbarização” dos povos outrora bárbaros e considerados sem arte e sem cultura possibilitou a inversão romântica e produziu o modelo histórico e cultural que agenciou a narrativa da disciplina história da arte. Ao longo da leitura somos introduzidos a conceitos como o de “tempo de incubação” (temps d’incubation), essenciais para compreender a visão evolucionista da arte. Segundo Michaud:

Ela [a noção de tempo de incubação] se comunicava com os conceitos de despertar,6 de reminiscência, e especialmente de sobrevivência que ele [Louis Courajod] lidava com talento para lançar constantemente pontes entre os planos biológico e cultural a fim de estabelecer uma natureza hereditária da transmissão das formas no espaço e no tempo. (p. 133)

Com a reabilitação dos povos bárbaros, surge outro grande inimigo das artes: o judeu. Se uma das tarefas da história da arte era mostrar como a arte representava um povo em suas qualidades e tradições, o judeu, sem um território constante, ficava fora dessa narrativa. A visão comum era de que os judeus, egoístas, eram incapazes artisticamente de se verem como um povo, uma nação. Eram iconoclastas e, portanto, insensíveis à beleza plástica. O judeu passa aos poucos a ser não só aquele que não tem arte, mas também o destruidor da cultura. Isso se dá principalmente depois da emancipação judaica.7 Esta tese está presente no quarto capítulo, “Um novo bárbaro: o judeu sem arte”.

No último capítulo, “O sangue dos bárbaros: estilo e hereditariedade”, encontramos outros conceitos e problemas que dão suporte à tese do autor. A história da arte como evolução é observada na oposição da tatilidade antiga do sul à opticalidade moderna do norte e também nas disputas acerca das origens do gótico. São vários os diálogos entre a visão evolucionista e racializada da história da arte e o pensamento de autores como Conde de Gobineau,8 por exemplo.

Outro conceito que nos é apresentado é o de Kunstwollen (vontade da arte), desenvolvido por Aloïs Riegl. Para Michaud, o conceito de vontade da arte está imbuído de um essencialismo psicológico nacional e racial. Caso semelhante é o conceito de Rassencharakter (Caráter racial), que Wölfflin creditava ser o responsável pelo estilo de um povo. No entanto, Michaud não foi o primeiro a observar as estreitas relações entre história da arte e teorias raciais. Meyer Shapiro já havia afirmado em 1936:

As teorias raciais do fascismo apelam constantemente às tradições artísticas (…). Onde, senão nos restos artísticos do passado, um nacionalista encontra as provas tangíveis de seu caráter racial imutável? Sua própria experiência se limita a uma ou duas gerações; somente os monumentos artísticos de seu país lhe asseguram que seus ancestrais eram como ele, e que seu próprio caráter é um legado permanente enraizado no seu sangue e no seu solo. Já faz um bom século que o estudo da história da arte tem sido usado para essas conclusões. (Apud Michaud, 2015, p. 211)

É verdade que os historiadores da arte mais lidos, como Aby Warbug, não são diretamente citados, entretanto, Michaud problematiza a metodologia de Giovanni Morelli (sob o pseudônimo de Ivan Lermolieff), revisitado por Carlo Ginzburg, para desenvolver seu “paradigma indiciário”, bastante utilizado por historiadores que tratam de arte, imagens, iconografia. Para Michaud, o método morelliano é outro exemplo de procura por indícios raciais e que faz parte de uma relação estabelecida anteriormente entre a “morfologia dos povos e as formas artísticas que produzem” (p. 64).

Nessa obra o conceito de raça tem uma conotação diversa da que ganha dianteira com o racismo científico. Por isso, sentimos falta de maiores contornos para o termo. No entanto, o autor está ciente dessas nuances e nos mostra que os termos raça, povo, nação, etnia foram utilizados de forma totalmente intercambiável por muitos dos autores que cita.

Para finalizar, cabe uma crítica relativa ao epílogo, intitulado “A etnização da arte contemporânea”. Nessas quatorze páginas, o autor defende que a crença de que uma arte representa um povo ou uma raça perdura não só nas classificações e divisões museológicas por nações e origens, mas também no que ele chama de “etnicização da arte”, que seria um fenômeno presente desde os anos 1950. Para ele, a universalidade abstrata, um dos princípios do mundo romano, continua a ser acusada de oprimir as singularidades dos diferentes povos; universalidade esta atualizada por meio da globalização. Tal queixa, para o autor, vem de uma visão romântica contra o que seria o poder normativo do classicismo. Michaud observa que o mercado de arte contemporânea tem sobrevalorizado as origens étnicas das obras de arte e dos artistas. Um dos casos lembrados pelo autor é a arte dos inuítes e como ela teria sido organizada pelo mercado de forma a valorizá-la, encerrando-a na constituição de um ideal de “pureza” de suas origens étnicas.

É possível observar um paralelo com a tese apresentada anteriormente, afinal, com a valorização de artistas fora do eixo Europa-Estados Unidos, não estaríamos assistindo a uma nova “reabilitação dos povos bárbaros”? Pode-se observar, por exemplo, como artistas africanos e afrodescendentes nas Américas e na Europa têm emergido em importantes espaços expositivos. Não seria esse outro momento de “desbarbarização” dos povos outrora considerados sem arte e sem cultura? Lembramos especialmente o caso da África por ter sido o continente que por muito tempo foi considerado o exato oposto da Europa. E por isso, sem leis, sem cultura, sem história e sem arte.9

Se, por um lado, podemos afirmar com o autor que uma compreensão racial baliza a compreensão da arte na contemporaneidade, por outro, Michaud parece nivelar a produção contemporânea como sendo um produto do interesse “étnico”. Nos últimos anos vêm ocorrendo uma maior participação de artistas oriundos de países chamados “periféricos” ao mundo da arte. É verdade que parte desses artistas conquista espaço através de rótulos relativos à origem, como, por exemplo, “arte latino-americana”, “arte do mundo árabe” ou “arte africana”. Por outro lado, vários desses artistas procuram colocar essas noções em xeque. Os próprios artistas lutam para se livrar dessa etiqueta que acaba por enclausurá-los na função de porta-vozes de uma nação ou de um determinado povo. Muitos artistas questionam e criticam esse olhar balizado a partir do interesse pelo “exótico” ou por uma “diferença construída”. A poética desses artistas acaba centrando-se no intuito de desconstrução da visualidade racializada que embalou e embala o ocidente. Eles assim o fazem, tal como o faz Michaud, demonstrando como tais critérios fazem parte do atual momento histórico marcado pelas estruturas e práticas racializadas.

É significativo que a obra se encerre abordando a arte contemporânea, afinal, as perguntas que fazemos ao passado são fruto das preocupações que temos com o presente. Em suma e ao final da leitura, a obra provoca os historiadores da arte a se colocarem uma questão capital: como pensar a historicidade da arte e sua narrativa fora do âmbito genealógico das filiações?

As invasões bárbaras apresenta uma grande contribuição à historiografia da arte, não apenas porque traz, com erudição, uma pesquisa excelentemente realizada, mas porque dialoga com as mais agudas preocupações da contemporaneidade. Se hoje sobra à História o exercício da autocrítica e da reflexão sobre sua própria escrita, faltava à História da Arte a coragem de se colocar algumas questões difíceis e incontornáveis impostas por nosso presente. Neste livro, Michaud realiza uma reflexão preciosa sobre a história, a ética e a estética da história da arte e as representações e sentimentos fundantes desta disciplina. Para quem se interessa por temas ligados não só à História da Arte, mas às questões ligadas à visualidade, em especial ao regime de visualidade racializado, esta obra é leitura imprescindível, e por isso espero que não tardemos a ver uma tradução em português.

1Un art de l’éternité. L’image et le temps du national-socialisme. Paris: Gallimard, 1996, 392p. (A obra contou também como uma tradução em língua inglesa: The Cult of Art in Nazy Germany. Trad. Janet Lloyd. Stanford: Stanford University Press, 2004, 276p.).

2Michaud é autor de outros livros que ainda não foram traduzidos para a língua estrangeira. Cf. <http://cehta.ehess.fr/index.php?/membres/membres-associes/163-eric-michaud>.

3Algumas questões centrais das quais o autor se ocupou no livro já tinham sido apresentadas em um artigo que publicou previamente na revista estadunidense October (n. 139, p. 59-76, inverno de 2012) sob o título “Barbarian Invasions and the Racialization of the Art History”.

4Todas as citações dos originais em língua estrangeira foram traduzidas por mim.

5A palavra gênio é utilizada aqui não no sentido de extraordinário talento, potência intelectual e/ou conhecimento, mas no sentido, mais comum em francês (génie), de características e qualidades próprias e distintivas de algo e/ou alguém.

6Réveil pode ser traduzida como “despertar”, referindo-se a um processo de renascimento.

7Refiro-me aqui ao processo, que se deu entre o século XVIII até o século XX, de libertação dos judeus na Europa, expresso principalmente pela abolição de leis discriminatórias e pela conquista de direitos civis.

8Bastante conhecido no Brasil e pelos estudiosos das relações raciais, pois, como diplomata, serviu no Brasil e seus escritos representam um resumo claro do racismo do século XIX.

9Lembro aqui o já bastante citado excerto da introdução de Fundamento geográfico da história Universal de Hegel: “A principal característica dos negros é que sua consciência não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com sua própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência. (…) O negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos de sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia de caráter humano. (…) Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos — ou, para ser mais exato, inexistente. (…) Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar. (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. Brasília: Ed. UnB, 1995, p. 84-88).

10Como citar – MICHAUD. Éric. Les invasions barbares: Une généalogie de l’histoire de l’art. Paris: Gallimard, 2015. p. 320. Resenha de DOSSIN, Francielly Rocha. O imaginário europeu sob o fantasma da filiação: Sobre a racialização da arte e sua história. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 18, n. 36, p. 690-695, set./dez. 2017. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

Francielly Rocha Dossin – Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Cardenio entre Cervantès et Shakespeare: Histoire d’une pièce perdue – CHARTIER (Topoi)

CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantès et Shakespeare. Histoire d’une pièce perdue. Paris: Gallimard, 2011. Resenha de: SOBRAL, Luís Felipe. “Ler um texto que não existe”. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.

O problema parece extraído de um conto de Borges. Em duas ocasiões, datadas de 20 de maio e 9 de julho de 1613, o registro de contas do Tesoureiro da Câmara de James I, rei da Inglaterra, assinalou pagamentos a John Heminges, um dos atores e proprietários dos King’s Men, chamados oficialmente de Grooms of the Chamber, pelas representações recentes de uma peça teatral intitulada Cardenno ou Cardenna. Sabe-se que o foco de tal peça é Cardenio, personagem cujo drama amoroso é narrado intermitentemente no primeiro livro do Quixote; mas o seu conteúdo exato é desconhecido, uma vez que ela nunca foi impressa, o que era então comum, e nenhum manuscrito seu jamais sobreviveu. Ao contrário dos contos de Borges, repletos de títulos e autores apócrifos, o problema tratado aqui não se circunscreve à proliferação de obras, mas a sua própria carência; no entanto, o desafio enfrentado pelo historiador Roger Chartier se aparenta, pelo seu caráter insólito, aquele que se propunha frequentemente o escritor argentino, pois seu objetivo não é outro senão, de acordo com o título de sua introdução, ler esse texto que não existe ou, mais precisamente, que pereceu no escoamento do tempo. A rigor, o conteúdo estrito da peça encenada pelos King’s Men é inapreensível, e assim permanecerá, a menos que surja algum manuscrito inédito capaz de reverter a situação. Mas o problema proposto pelo autor não se refere a uma leitura literal; na verdade, como ele já havia anunciado pelo menos desde sua aula inaugural no Collège de France, onde dedicou, na cadeira nomeada “Escrita e culturas na Europa moderna”, seus dois primeiros cursos a Cardenio, seu interesse maior reside no próprio fundamento da leitura e da autoria, interpelado através das noções de circulação, de apropriação e de prática cultural.1

Ainda que o texto da peça seja hoje efetivamente desconhecido, pode-se recorrer, no intuito de realizar uma leitura indireta, a uma série diversificada de fontes, a começar pelo próprio romance de Cervantes, no qual Cardenio aparece a partir do capítulo XXIII do primeiro livro.2 Dom Quixote e Sancho Pança encontram Cardenio na Sierra Morena, região inóspita na qual se escondem logo após terem libertado, com consequências desastrosas, um grupo de prisioneiros condenados às galés. Tal encontro é precedido pelo rápido vislumbre de um homem de aspecto roto saltando “de pedra em pedra e de moita em moita com estranha ligeireza”.3 Um velho cabreiro que aí vive alega desconhecer os motivos que o levaram a essa situação, mas ele conta que o roto encontra-se em um estado de penúria tanto física, apresentando-se faminto e esfarrapado, como mental, oscilando entre uma lucidez melancólica e rompantes violentos de delírio. Em um desses momentos lúcidos, o próprio roto, que não é outro senão Cardenio, surge e relata sua história desgraçada. Ele amava Luscinda e pretendia se casar com ela, mas foi vítima do golpe traiçoeiro de D. Fernando, seu próprio amigo. Enquanto Cardenio encontrava-se ausente a serviço de Fernando, este aproveitou para pedir a mão de Luscinda a seu pai, que aceitou com ganância o pedido vindo do filho de um duque. Ao tomar conhecimento disso através de uma carta de Luscinda, Cardenio dirigiu-se imediatamente à casa da amada, conseguindo se infiltrar secretamente aí quando o casamento estava prestes a começar; do vão de uma janela, ele assistiu impotente à cerimônia, que se encerrou com o desmaio de Luscinda e a descoberta em seu peito de um papel fechado, que Fernando tomou para ler. Amargurado por seu infortúnio, Cardenio vagou sem rumo, alcançando enfim a Sierra Morena, onde perdeu o juízo e conheceu a miséria. Este não é contudo o fim dessa história, cujos demais personagens surgem para contá-la de sua própria perspectiva e acabam se misturando às aventuras do protagonista do romance: por exemplo, Dorotea, amada de Fernando, participa do estratagema, arquitetado pelo padre e pelo barbeiro, amigos do cavaleiro errante, para levar este de volta a sua aldeia, resgatando-o assim de seu desatino; ela torna-se então a princesa Micomicona, cujo reino D. Quixote promete livrar de um gigante usurpador.4

Qualquer que tenha sido o conteúdo da peça encenada pelos King’s Men, ele se alimentou, ao menos em sua orientação dramática inicial, da história narrada por Cervantes, o que pressupõe necessariamente a precedência do Quixote na Inglaterra. A primeira tradução do primeiro livro do romance de Cervantes foi justamente a inglesa, realizada por Thomas Shelton e publicada em 1612 por Edward Blount, um dos livreiros londrinos que seriam mais tarde responsáveis pela impressão do primeiro fólio de Shakespeare, a primeira coletânea de peças do bardo. No entanto, várias referências ao Quixote precederam na Inglaterra essa tradução, pois tal romance conhecera até então nada menos que nove edições e treze mil e quinhentos exemplares, alcançando uma ampla circulação que ultrapassava a península ibérica e a América espanhola; os ingleses contavam com dicionários, manuais e gramáticas dedicados à língua castelhana, publicados em Londres desde 1590, e a tradução de Shelton circulou em manuscrito antes de ser impressa. Ainda que houvesse uma forte tendência no teatro inglês a retratar comicamente os espanhóis, um efeito persistente das tentativas da coroa espanhola em derrubar a rainha Elizabeth nas décadas anteriores, a língua e a literatura castelhanas gozavam então de um imenso prestígio, que sem dúvida não se limitava à Inglaterra. No entanto, observa Chartier, a peça em questão não se foca em D. Quixote, protagonista do romance, mas em Cardenio.

O problema é formulado então da seguinte maneira:

Não saberemos sem dúvida jamais como o que Cervantes designa no inglês de Shelton como “so thwart, intricate, and desperate affaires” (“tan trabados y desesperados negocios” [“essas aventuras tão emaranhadas e tão desesperadas”]) foi levado à cena pelos atores do rei quando em 1612 ou 1613, por duas vezes, eles representaram Cardenio. Se a tradução de Shelton, fiel ao texto de Cervantes, propunha materiais imediatamente utilizáveis para uma peça de teatro, com momentos espetaculares (o casamento, a sedução, os reconhecimentos, as despedidas), diálogos dramáticos e monólogos interiores, o mesmo não ocorria com a própria construção da intriga. Como transformar de fato em uma narrativa linear o que estava dado em Dom Quixote como uma série de recapitulações na qual cada narração acrescentava episódios conhecidos somente por aquele ou aquela que convocava o passado em sua memória? E, mais difícil ainda, como tratar no teatro o enredamento das duas histórias que advém desde que Dorotea entra no papel da princesa Micomicona? O desafio não era pequeno, pois ele podia conduzir seja a representar os amores de Cardenio e Fernando sem ligá-los de nenhuma maneira às aventuras de Dom Quixote, seja a inventar uma fórmula que permitisse associar em cena o desatino cômico do cavaleiro errante e a novela sentimental dos amantes separados depois reunidos. Uma peça fundada sobre Dom Quixote podia ignorar seu herói principal? Ou bem devia ela, como a história publicada em 1605, jogar múltiplos efeitos que produz o encontro entre as loucuras de Dom Quixote e as de Cardenio?5

“Na ausência do Cardenio de 1613”, afirma Chartier, “apenas uma série de hipóteses pode dar conta da decisão que transforma em uma peça teatral essa história de amores contada por vários de seus protagonistas ao longo dos capítulos de Dom Quixote”.6 Mas essa série de hipóteses não é dirigida somente às fontes contemporâneas das encenações realizadas pelos King’s Men; ela estende-se no tempo e no espaço, rastreando as diversas apropriações e, portanto, também as transformações, sofridas pela história de Cardenio.

Logo após o romance de Cervantes ter vindo a público em 1605, o valenciano Guillén de Castro publicou uma peça em três atos intitulada Don Quijote de la Mancha que tratava na verdade da história de Cardenio, desta vez um camponês que se descobre filho de um duque. Os personagens do Quixote não saíam contudo das páginas do livro para entrar somente nas peças teatrais; na Espanha, eles disseminaram-se rapidamente também nas festas, fossem elas nobres ou populares, persistindo como figuras familiares entre um público numeroso e diversificado. Havia, porém, um contraste marcante entre as adaptações teatrais e festivas: se as primeiras interessavam-se sobretudo por Cardenio, este ausentava-se quase completamente das segundas em benefício de D. Quixote e dos demais personagens da trama principal. “A história escrita por Cervantes”, explica o autor, “permitia as duas apropriações porque ela propunha, em um mesmo livro, figuras cômicas que podiam ser destacadas da trama de suas aventuras, começando com o próprio D. Quixote; e uma intriga dramática, inicialmente trágica e afortunadamente desatada, que fornecia peripécias, surpresas e disfarces bons para a cena”,7 ou seja, o drama de Cardenio. Desde a publicação de seu primeiro livro, o Quixote não era visto somente como uma paródia dos romances de cavalaria; ele apresentava-se também como uma antologia de novelas, de histórias dentro da história, entre elas a de Cardenio, particularmente propícias, devido as suas reviravoltas inesperadas, à encenação teatral.8 É assim que, ainda no continente, encontram-se em Paris, na primeira metade do século XVII, momento em que a língua e a literatura castelhana eram muito populares entre a elite, estimulando, portanto, a circulação do Quixote, outras adaptações teatrais do infortúnio de Cardenio, uma delas mais libertina que a de Guillén de Castro e atribuída a Pichou, um autor do qual não se sabe quase nada.

Chartier reencontra novamente Cardenio em Londres, em 9 de setembro de 1653. Nessa data, consta na Stationers’ Company, comunidade londrina dos comerciantes e impressores de livros, o registro do livreiro Humphrey Moseley reivindicando o direito exclusivo de reprodução (“right in copy”) de quarenta e uma peças teatrais, entre as quais “The History of Cardenio, by M. Fletcher. & Shakespeare”.9 Quarenta anos após sua encenação pelos King’s Men, a peça perdida e anônima sobre Cardenio foi atribuída a John Fletcher e William Shakespeare. Ainda que essa atribuição seja verossímil, uma vez que os dois dramaturgos haviam colaborado antes, há incerteza, pois Moseley também vinculou ao bardo obras que não lhe são reconhecidas; além disso, a peça nunca entrou nas edições das obras de nenhum desses autores. Se John Heminges e Henry Condell, editores em 1623 do primeiro fólio, possuíam um manuscrito de The History of Cardenio, eles não a incluíram aí provavelmente porque a julgaram escrita a quatro mãos; a peça tampouco encontra-se nas edições seguintes do fólio. Segundo o autor, “A razão é simples: a peça não foi jamais impressa, enquanto aquelas que entram pela primeira vez no corpus shakespeareano […] foram todas publicadas em edições in-quarto no começo do século XVIII”.10 Tal afirmação revela um aspecto decisivo do problema, assinalando uma transformação histórica profunda: se a produção teatral na Inglaterra quinhentista e seiscentista pautava-se na colaboração entre os dramaturgos, a publicação do fólio assinalou, por meio da “monumentalização de Shakespeare”,11 a nova tendência da singularidade autoral, que se consolidaria nos séculos subsequentes.

O livro avança dessa maneira, rastreando a circulação e as diversas apropriações da história de Cardenio no intuito de discutir, através dessas fontes indiretas, as hipóteses sobre o conteúdo da peça desaparecida. Assim fazendo, Chartier chega até a Inglaterra e os Estados Unidos atuais, onde o interesse pela peça ultrapassou o circuito erudito, tornando-se, segundo suas próprias palavras, “uma febre”12 que resultou em novas encenações teatrais e tornou-se o tema dos registros mais variados, incluindo por exemplo o romance policial, sem dúvida um efeito duradouro do imenso renome de Shakespeare. Seria é claro despropositado reconstruir aqui todo esse percurso; convém, todavia, apresentar um último exemplo, particularmente propício para mostrar, primeiro, como mais uma vez o autor elabora suas hipóteses, segundo, como o problema exige não apenas a leitura de textos, mas também de imagens.

No sexto capítulo, Chartier examina as ilustrações que acompanhavam o texto espanhol do Quixote e, em seguida, aquelas presentes nas edições inglesas, uma provável fonte de inspiração para a redação da peça. Entre as últimas, encontra-se uma das seis estampas que William Hogarth preparou, sendo afinal recusadas ou retiradas por ele mesmo, para a luxuosa edição do romance de Cervantes financiada por lorde Carteret e publicada em 1738 pelos Tonson, uma importante família de editores; ela retrata o primeiro encontro entre Cardenio e D. Quixote, com o cabreiro e Sancho Pança à direita (fig. 1). Diante dessa estampa, o autor escreve:

Distanciando-se da descrição de Cervantes que retrata Cardenio com “uma barba negra e espessa, cabelos frondosos e amarrados”, mas respeitando as indicações quanto aos pés nus do jovem homem e as suas culotes rasgadas, Hogarth torna visível o parentesco dos dois habitantes da Sierra Morena, que faz que o fidalgo abrace Cardenio desde seu primeiro encontro como se ele o conhecesse de longa data. Cardenio é como um duplo de Dom Quixote e ambos oscilam entre entendimento e desvario, entre urbanidade e violência. Ambos tomam a realidade por seus desejos, ou suas obsessões, pois as loucuras de Cardenio fazem-no assaltar os cabreiros identificados ao pérfido Fernando; ambos compartilham leituras e loucuras. Dom Quixote reconhece-o de imediato, assim como Hogarth e, antes dele, Guillén de Castro. Fletcher e Shakespeare em The History of Cardenio privaram-se de um recurso dramático tão poderoso?13

Essa questão não pode realmente ser respondida na ausência do texto da peça; mas ela não visa de fato uma resposta: sua finalidade consiste, na verdade, em elaborar uma hipótese, balizada pelas apropriações feitas por outrem a respeito da história de Cardenio, sobre o que poderá ter sido a peça perdida. O limite assim definido por uma lacuna nas fontes não se apresenta, portanto, como um beco sem saída, um empecilho incontornável diante da vontade de ler a peça, mas como um ponto de partida que se revela afinal bastante promissor para uma discussão sobre a circulação e as apropriações de textos, e consequentemente também sobre a autoria, na Europa do início da Idade Moderna. É a própria ausência da peça, de um texto original ao qual deveriam se remeter todas as suas variantes, que possibilita, e mesmo estimula, as inúmeras revisões, adaptações e reescritas rastreadas por Chartier ao longo de quatro séculos. Mas a multiplicação textual da história de Cardenio, um sinal inequívoco da mobilidade extrema e da instabilidade dos textos, é impensável apartada da estabilização da autoria; isso porque a peça não somente foi atribuída a Shakespeare, um autor de imenso prestígio, como suas apropriações subsequentes remetiam sempre ao bardo, obliterando assim o nome de Fletcher. O autor reconhece nesse caso o problema do anacronismo, designado por ele como “discordância de tempo”, que fornece, entre a encenação da peça pelos King’s Men e hoje, uma continuidade à noção de literatura quando na verdade lida-se com uma dupla descontinuidade: de um lado, uma vez que a literatura não coincidia ainda com as belas-letras, ela não nomeava as obras que hoje reconhecemos como literárias, mas os trabalhos dos eruditos; de outro, a ideia vigente de autoria, pautada na unidade e na coerência de uma obra dependente da singularidade de um autor com direito de propriedade e de responsabilidade sobre seus escritos, surgiu apenas na Inglaterra setecentista. Conforme a história de Cardenio circula e se transforma, as categorias de entendimento aí em jogo também mudam; para apreendê-las em suas respectivas espessuras históricas, é necessário considerar “as relações estabelecidas entre os dispositivos do teatro, a composição do público e as categorias mentais que organizam a possível apropriação do texto”.14 A despeito das diferenças entre todas as suas variantes, a história de Cardenio é sempre reconhecível, apontando um paradoxo que Chartier descreve como “a permanência das obras e a pluralidade dos textos”:15 ainda que se desconheça o texto da peça perdida, sabe-se, ou melhor, supõe-se quem é seu autor, o que lhe confere uma estabilidade capaz de estimular inúmeras apropriações.

Banco de imágenes del Quijote 1605 1915 Cardenio

Fonte: Banco de imágenes del Quijote, 1605-1915 (www.qbi2005.com), acessado em 26 de novembro de 2015

1. WilliamHogarth, D. Quixote e Sancho Pança encontram Cardenio, 1726-1738, estampa, 228 × 174 mm, Londres

Trata-se enfim de um problema historiográfico formidável, cujo interesse não cabe, contudo, apenas aos historiadores nem tampouco aqueles que lidam, em maior ou menor medida, com fenômenos do passado. Uma das questões fundamentais que todo pesquisador das ciências humanas enfrenta circunscreve-se à tensão entre o que ele se propõe discutir e o que o material empírico permite de fato ser discutido; uma concordância exata entre esses dois extremos é muito improvável e, francamente, desestimulante da perspectiva intelectual; na prática, inúmeros ajustes são necessários, transformando aos poucos a proposta de pesquisa original em outra coisa. Nesse percurso, as lacunas são particularmente desafiadoras, impondo uma reformulação do problema inicial e colocando a pesquisa em movimento. Ao rastrear as transformações da história de Cardenio, Chartier mostra o quanto uma lacuna pode ser estimulante e produtiva, desde que a pergunta certa lhe seja dirigida.

1Cf. CHARTIER, Roger. Écouter les morts avec les yeux. Paris: Collège de France / Fayard, 2008, p. 62-71 especialmente. Ambos os cursos, oferecidos respectivamente em 2007-2008 e 2008-2009, podem ser ouvidos no site do Collège de France (www.college-de-france.fr).

2Essa numeração refere-se à edição definitiva: ver Miguel de Cervantes Saavedra, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Primeiro Livro, tr. de Sérgio Molina. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 305-320. Na edição original de 1605, impressa em Madri por Juan de la Cuesta e dividida em quatro partes, trata-se do capítulo IX do Terceiro Livro; o segundo livro foi publicado apenas em 1615.

3Ibidem, p. 312.

4O leitor interessado na história completa de Cardenio segundo a versão de Cervantes pode consultar, sobretudo, ibidem, p. 324-329, 374-388, 394-408. Vale observar que tal história conclui-se no capítulo XXXVI, mas seus personagens só saem efetivamente de cena no capítulo XLVII.

5CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantès et Shakespeare, op. cit., p. 53-54. Salvo indicação contrária, todas as traduções são minhas.

6Ibidem, p. 37.

7Ibidem, p. 68-69.

8No primeiro livro, encontram-se, por exemplo, também a história do curioso impertinente, entre os capítulos XXXIII e XXXV, e a história do cativo, entre os capítulos XXXIX e XLI (cf. M. de Cervantes, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, op. cit., p. 461-521 e 557-611 respectivamente).

9CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantès et Shakespeare, op. cit., p. 117.

10Ibidem, p. 141.

11Ibidem, p. 120.

12Ibidem, p. 265-284.

13Ibidem, p. 200.

14Ibidem, p. 288.

15Ibidem, p. 285-289.

Luís Felipe Sobral – Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-Doutorando em Antropologia Social na Universidade de São Paulo, São paulo, SP, Brasil e bolsista da Fapesp. E-mail: [email protected].