Historicités | Christian Delacroix, François Dosse e Patrick Garcia

Il faut attendre que le sucre fonde” H. Bergson

Na década de 1980, as ciências humanas na França passaram por movimento de renovações epistemológicas e metodológicas. A substituição do paradigma estruturalista, dominante nos anos 1960 e 1970, cedeu lugar a novas abordagens. O “giro reflexivo” da disciplina histórica, em especial, tendo em vista recuperar sua identidade específica, reabilitou noções fundamentais antes obliteradas, como o “acontecimento” e a “temporalidade”. Tal redimensionamento funcionaria como alternativa diante do enfraquecimento da corrente dos Annales. Desde então, a preocupação com a epistemologia faz a história atualmente se reaproximar da filosofia e de autores como Paul Ricoeur (1913-2005), responsável por uma reflexão filosófica sobre a história – seu estatuto de verdade, caráter narrativo e dimensões temporais, entre outros (SILVA, 2002: 39-45).

Essa virada é análoga a uma tentativa de compreensão da temporalidade em sua diversidade nesses tempos de história global. Notável exemplo disso – e da atualidade da categoria da historicidade em diversas áreas do conhecimento – pode ser encontrado em Historicités, obra coletiva publicada na França em 2009, organizada por Christian Delacroix, François Dosse e Patrick Garcia. O trabalho resulta das discussões que tiveram lugar no seminário “Regimes de historicidade e modelos temporais em história”, organizado entre 2000-2002, sob a égide do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP–CNRS) e do Centro de História Cultural das Sociedades Contemporâneas (CHCSC).

O livro trata a noção de historicidade (ou as historicidades, conforme o título) de forma plural e interdisciplinar. Colocando em teste “a hipótese da virada histórica, que está na origem da obra” (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2009: 7), a perspectiva pluridisciplinar convoca contribuições da filosofia, da antropologia, da psicanálise, da linguística e da geografia, que seriam capazes de mensurar a complexidade da noção de historicidade – “uma maneira, para nós, de não colocar somente a história no centro da circularidade da compreensão entre nossa condição histórica e nossa necessidade de historicizá-la” (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2009: 9). Na expressão dos organizadores, há uma “revolta das temporalidades”, que consiste, basicamente, em considerar a diversidade temporal de que é feita a espessura da história. Mais precisamente, o objeto de investigação do livro é a historicização dos fenômenos em diversas áreas (filosofia, antropologia, psicanálise, linguística e geografia, além da história), diante da “maré memorial” que se impôs desde os anos 1980, em consequência da crise das expectativas de futuro mais correntes.

A coletânea é dividida em quatro partes, que somam um total de dezessete textos: (1) Genealogias; (2) O momento Koselleck; (3) Um novo regime de historicidade?; (4) Transversalidades disciplinares. As duas primeiras partes trazem textos até então inéditos em língua francesa. De Paul Ricoeur, pode-se ler “A distância temporal e a morte na história”, comunicação apresentada pelo autor em Heidelberg, no evento de comemoração dos cem anos de Hans-Georg Gadamer, no ano 2000. Ricoeur procura expandir a discussão do conceito gadameriano da “distância temporal” interagindo, para isso, com os historiadores, que em seu discurso recobrem os “ausentes da história”, segundo a expressão de Michel de Certeau (RICOEUR, 2009: 14). De Koselleck, encontra-se “A desagregação da “casa” como entidade de dominação: algumas observações sobre a evolução das normas de direito de família, casa e servos na Prússia entre a Revolução Francesa e 1848”. Jochen Hoock escreve pequena “nota preliminar” ao texto de Koselleck, esclarecendo que se trata de um trabalho de história social, que escapa do simples desenvolvimento da história familiar, tão ao gosto do novecentos, tanto quanto representa um trabalho que coloca à prova, de forma bem sucedida, o modelo teórico do autor (HOOCK, 2009: 84). Na terceira parte, encontra-se publicada uma entrevista com François Hartog.

É em torno destes três autores, Ricoeur, Koselleck e Hartog, e de suas contribuições para a compreensão das relações sociais com o tempo, portanto, que giram as reflexões do livro. Principalmente, a aplicabilidade heurística da noção de historicidade é avaliada e defendida a partir de suas respectivas reflexões. Tal aplicabilidade aparece, sobretudo, na quarta parte da obra, que faz uma travessia pelas disciplinas que se utilizam das noções temporais como parte de sua epistemologia. Assim, a leitura parte de um pressuposto claro, o da centralidade para as ciências humanas da “virada histórica”; depois, define um núcleo mais ou menos original em torno dos autores que se concentraram no estudo do “tempo histórico”; recua no tempo, em busca da genealogia da historicidade: da antiguidade, passando pelo novecentos, até percorrer boa parte do pensamento histórico do século XX; por fim, abre o leque para as demais ciências, tornando explícita a consciência da transversalidade do tema, além de preconizar que há muito a ser desenvolvido em torno da “historicidade”, em áreas diversas.

Na primeira parte, além do texto de Ricoeur, destaque-se o trabalho de Christian Delacroix, “Genealogia de uma noção” – um texto crítico sobre as possibilidades e limites dos “regimes de historicidade” de Hartog. A principal objeção parece recair sobre seu uso heurístico: tal noção, dadas as dificuldades no cruzamento entre ontologia e metodologia, poderia ser assimilada a um instrumento universal de conhecimento, o que escaparia às determinações eminentemente históricas (DELACROIX, 2009: 32-3). Cumpre somente lembrar que Hartog prosseguiu em suas reflexões, respondendo a esta e outras dificuldades (HARTOG, 2010: 768-769). Outro trabalho muito significativo é o de Daniel Creutz, sobre o historiador e teórico alemão Johan Gustav Droysen (1808-1884) e a historicidade no século XIX, quando foi concebida. Autor do primeiro tratado de teoria da história, a Historik (1882), Droysen colocava em posição de centralidade a historicidade do historiador, ou seja, a premissa da interpretação do passado a partir das condições do tempo presente. Ele fora buscar na hermenêutica os critérios para a crítica e interpretação das fontes, segundo o lema da “compreensão mediante pesquisa” (CREUTZ, 2009: 56).

O segundo segmento concentra a atenção na obra de Koselleck (falecido em 2006, o livro também cuida de homenageá-lo). Além do texto do próprio Koselleck, há os estudos de Jochen Hook, “A contribuição de Reinhart Koselleck à teoria da história”, e de François Dosse, “Reinhart Koselleck entre semântica histórica e hermenêutica crítica”. Dosse pondera sobre a impossibilidade de se pensar a dinâmica histórica, depois de Koselleck, sem levar em consideração as categorias meta-históricas “experiência” e “expectativa”. Isso conduz, por exemplo, a um “elogio controlado do anacronismo”, na expressão do autor, devido ao cruzamento ou sobreposição de múltiplas temporalidades, que formam camadas, se cruzam, se chocam ou se sobrepõem. (DOSSE, 2009: 121).

O movimento seguinte, a terceira parte, concentra o foco sobre as reflexões de Hartog. Além da entrevista com este autor, há os textos de Yanick Bosc, “Thomas Paine, nosso contemporâneo?”, e de Stéphane Van Dammme, “Uma historicidade tênue à distância”, sobre historicidade da história da filosofia. De Patrick Garcia, “Era uma vez a França: O presidente e a história da França (1958-2007)” trata dos usos políticos da historicidade pelo poder público, notadamente nos discursos presidenciais. Henri Rousso, em “Os dilemas de uma memória europeia”, indaga as dificuldades de equilíbrio, em tempos de “europeização”, entre uma memória artificial, tábula rasa do passado comum europeu, e o ranço de um passado traumático de paixões nacionalistas (ROUSSO, 2009: 220). Por fim, na entrevista com Hartog, os organizadores Delacroix, Dosse e Garcia o instigam com diversos questionamentos. Hartog defende que, hoje, como elaboração de experiências individuais e coletivas do tempo, se historicizaria a historicidade ela mesma. Para ele, “logo haverá uma história possível da historicidade” (HARTOG, 2009: 142).

A seção final abre a discussão para o enfoque da temporalidade em outras áreas de investigação (psicanálise, linguística, antropologia, geografia). Marie-Odile Godard, no texto “Acontecimento e psicanálise”, estuda os impactos do acontecimento sobre a vida psíquica do inconsciente, sobretudo os sintomas de repetição nos casos de traumas de guerra. Ela aponta que historiadores e psicanalistas trabalham com o mesmo pressuposto de reconstrução do passado, individual ou coletivo, embora para o historiador a prova documental seja mais valiosa que o testemunho oral e os lapsos de linguagem (GODARD, 2009: 236). Enquanto isso, Philippe Simay, em “O tempo das tradições: antropologia e historicidade”, reflete sobre as transformações da antropologia social, que nos últimos anos vem questionando internamente a noção corriqueira de tradição e movimentando as suas próprias fronteiras, não só entre sociedades ditas tradicionais ou modernas, mas também entre os saberes etnológico e histórico (SIMAY, 2009: 273).

Sem perder de vista a dimensão memorial, à base mesmo de toda relação social com o (s) tempo(s), o livro conta com contribuição relevante (e polêmica, fora de dúvida) de Enzo Traverso sobre trauma e historicização do nazismo. Ele a analisa a partir da troca epistolar entre Martin Broszat e Saul Friedländer nos anos 1980. Estes dois historiadores, da mesma geração, tinham posições opostas no tocante às discussões da historiografia relativa ao período do nacional-socialismo. Muito simplificadamente, os contornos gerais do debate são: Broszat, em 1985, publicou artigo sobre a historicização do nazismo, em favor de uma normalização da consciência histórica alemã (TRAVERSO, 2009: 261). Friedländer, em resposta, adverte que suas consequências, ao contrário das intenções do autor, se traduziam em “procedimento empático de identificação com os atores do passado” (TRAVERSO, 2009: 266), podendo beneficiar os algozes, ao humanizá-los. Ao mesmo tempo, implodia – só então – na sociedade alemã a controvérsia em torno do holocausto. Para E. Traverso, mesmo hoje, como diria Friedländer a Broszat em 1987, “uma fusão de horizontes [integradora dos pontos de vista opostos] ainda não está em vista” (TRAVERSO, 2009: 270).

“Comentários sobre a geograficidade”, por Jean-Marc Besse, é um texto que desperta muito interesse, em função das transferências explícitas de saberes entre disciplinas. Com base em Hartog e os régimes d’historicité, Besse propõe conceito similar para a geografia, de um ponto de vista meta-geográfico. Ele procura “universais” equivalentes, no caso dos regimes de historicidade, à tríade passado-presente-futuro. Sugere, como tais, para a consciência geográfica, a “separação” (a experiência da diferença dos lugares), a “orientação” (espacial), a “inclusão” (ser ou estar em) e a “dimensão” (do espaço). Estes seriam dados meta-geográficos a serem verificados nos diferentes regimes histórico-culturais de “geograficidade” (BESSE, 2009: 296). Este conceito não estaria confinado somente às especialidades dos geógrafos, senão implicado – sobretudo hoje na unidade global – em um certo “sentido do mundo e de sua dimensão”. Pressuposto vizinho à historicidade, o regime de geograficidade encontra na dimensão do mundo terrestre análogo à finitude da existência humana (BESSE, 2009: 299).

O grande mérito da obra coletiva é a multiplicidade de abordagens e busca por aplicação da noção de historicidade a pesquisas empíricas de áreas diversas, como a geografia e a psicanálise. O livro conduz – porque propositivo, e não sintético – um estimulante balanço da atualidade da temporalidade nas ciências humanas e sociais. Dado seu caráter compreensivo, a obra suscita inúmeras reflexões. É chegada então a hora, como sugere Hartog, de uma história da historicidade? Ou ela representa, ao final, um indício de nossa atual incapacidade de romper com o eterno retorno do mesmo e projetar novamente um futuro razoável? É este o momento de fremir o domínio obsedante do presente e investir em cenários menos pessimistas? Certamente, não há resposta em via exclusiva. Segue que se deva acompanhar os debates e torcer pelo aparecimento de novas propostas que avancem sobre ulteriores questões.

Daniel Creutz, em insight brilhante, chama a atenção para a importância de uma “categoria de humanidade” presente em Droysen, que pode ainda servir de referência ao pensamento histórico contemporâneo e à história global (CREUTZ, 2009: 59). A noção de historicidade, depreende-se, poderia ser mobilizada a fundamentar um futuro mais aberto e plural, de defesa incondicionada dos direitos humanos e do meio ambiente. Nos dizeres da filósofa da ciência Isabelle Stengers e do físico-químico Ilya Prigogine, afinal, é tempo de “pensar a solidariedade entre os tempos múltiplos que compõem o nosso universo, entre os processos que partilham o mesmo futuro, e talvez mesmo entre esses próprios universos […]” (PRIGOGINE; STENGERS, 1990: 228).

Referências

HARTOG, François. Historicité/Régimes d’historicité. In: DELACROIX, C.: GARCIA, P.; OFFENSTADT, N. (Dir.) Historiographies, II: concepts et débats. Paris: Éditions Gallimard, 2010, pp. 776-771.

SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da história intelectual: entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.

PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eternidade. Lisboa: Gradiva, 1990.

Raphael Guilherme de Carvalho – Mestre em História (UFPR). Doutorando em História (UFPR).


DELACROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick (Orgs.) Historicités. Paris: La Découverte, 2009. Resenha de: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.15, p.181-186, jul./dez., 2014. Acessar publicação original [DR]