Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas | Jörn Rüsen

A obra de Jörn Rüsen (1938 –) tem sido bem divulgada entre as ciências humanas no Brasil, sobretudo em função dos esforços concentrados de alguns grupos de pesquisa, em teoria da história e historiografia ou na área de educação histórica, por meio de seus periódicos; entre eles, esta Revista de Teoria da História (UFG). A maneira como o autor tem sido recepcionado entre nós pelo público universitário, isto é outra questão. É fora de dúvida, todavia, que encontram-se entre nós pesquisadores muito bem equipados e habilitados para uma avaliação apurada das contribuições de Rüsen e da aplicabilidade de suas teorias à historiografia ou à didática da história. Para uma análise detida de sua Historik, aprendemos com eles que há que se considerar as discussões da historiografia alemã pós-guerra e, igualmente, os debates teóricos e epistemológicos nas ciências humanas desde o XIX – ou antes, desde a filosofia das luzes – até a atualidade. Além disso, o contexto de europeização e história global, assim como algumas questões políticas, tais quais a alteridade, os direitos do homem e o meio ambiente, próprias do humanismo contemporâneo. Notem-se bem, por fim, a amplitude e a impressionante coerência interna de seu projeto e a filosofia da história subjacente, mantenedora de uma compreensão otimista do mundo. Leia Mais

Historicités | Christian Delacroix, François Dosse e Patrick Garcia

Il faut attendre que le sucre fonde” H. Bergson

Na década de 1980, as ciências humanas na França passaram por movimento de renovações epistemológicas e metodológicas. A substituição do paradigma estruturalista, dominante nos anos 1960 e 1970, cedeu lugar a novas abordagens. O “giro reflexivo” da disciplina histórica, em especial, tendo em vista recuperar sua identidade específica, reabilitou noções fundamentais antes obliteradas, como o “acontecimento” e a “temporalidade”. Tal redimensionamento funcionaria como alternativa diante do enfraquecimento da corrente dos Annales. Desde então, a preocupação com a epistemologia faz a história atualmente se reaproximar da filosofia e de autores como Paul Ricoeur (1913-2005), responsável por uma reflexão filosófica sobre a história – seu estatuto de verdade, caráter narrativo e dimensões temporais, entre outros (SILVA, 2002: 39-45).

Essa virada é análoga a uma tentativa de compreensão da temporalidade em sua diversidade nesses tempos de história global. Notável exemplo disso – e da atualidade da categoria da historicidade em diversas áreas do conhecimento – pode ser encontrado em Historicités, obra coletiva publicada na França em 2009, organizada por Christian Delacroix, François Dosse e Patrick Garcia. O trabalho resulta das discussões que tiveram lugar no seminário “Regimes de historicidade e modelos temporais em história”, organizado entre 2000-2002, sob a égide do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP–CNRS) e do Centro de História Cultural das Sociedades Contemporâneas (CHCSC).

O livro trata a noção de historicidade (ou as historicidades, conforme o título) de forma plural e interdisciplinar. Colocando em teste “a hipótese da virada histórica, que está na origem da obra” (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2009: 7), a perspectiva pluridisciplinar convoca contribuições da filosofia, da antropologia, da psicanálise, da linguística e da geografia, que seriam capazes de mensurar a complexidade da noção de historicidade – “uma maneira, para nós, de não colocar somente a história no centro da circularidade da compreensão entre nossa condição histórica e nossa necessidade de historicizá-la” (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2009: 9). Na expressão dos organizadores, há uma “revolta das temporalidades”, que consiste, basicamente, em considerar a diversidade temporal de que é feita a espessura da história. Mais precisamente, o objeto de investigação do livro é a historicização dos fenômenos em diversas áreas (filosofia, antropologia, psicanálise, linguística e geografia, além da história), diante da “maré memorial” que se impôs desde os anos 1980, em consequência da crise das expectativas de futuro mais correntes.

A coletânea é dividida em quatro partes, que somam um total de dezessete textos: (1) Genealogias; (2) O momento Koselleck; (3) Um novo regime de historicidade?; (4) Transversalidades disciplinares. As duas primeiras partes trazem textos até então inéditos em língua francesa. De Paul Ricoeur, pode-se ler “A distância temporal e a morte na história”, comunicação apresentada pelo autor em Heidelberg, no evento de comemoração dos cem anos de Hans-Georg Gadamer, no ano 2000. Ricoeur procura expandir a discussão do conceito gadameriano da “distância temporal” interagindo, para isso, com os historiadores, que em seu discurso recobrem os “ausentes da história”, segundo a expressão de Michel de Certeau (RICOEUR, 2009: 14). De Koselleck, encontra-se “A desagregação da “casa” como entidade de dominação: algumas observações sobre a evolução das normas de direito de família, casa e servos na Prússia entre a Revolução Francesa e 1848”. Jochen Hoock escreve pequena “nota preliminar” ao texto de Koselleck, esclarecendo que se trata de um trabalho de história social, que escapa do simples desenvolvimento da história familiar, tão ao gosto do novecentos, tanto quanto representa um trabalho que coloca à prova, de forma bem sucedida, o modelo teórico do autor (HOOCK, 2009: 84). Na terceira parte, encontra-se publicada uma entrevista com François Hartog.

É em torno destes três autores, Ricoeur, Koselleck e Hartog, e de suas contribuições para a compreensão das relações sociais com o tempo, portanto, que giram as reflexões do livro. Principalmente, a aplicabilidade heurística da noção de historicidade é avaliada e defendida a partir de suas respectivas reflexões. Tal aplicabilidade aparece, sobretudo, na quarta parte da obra, que faz uma travessia pelas disciplinas que se utilizam das noções temporais como parte de sua epistemologia. Assim, a leitura parte de um pressuposto claro, o da centralidade para as ciências humanas da “virada histórica”; depois, define um núcleo mais ou menos original em torno dos autores que se concentraram no estudo do “tempo histórico”; recua no tempo, em busca da genealogia da historicidade: da antiguidade, passando pelo novecentos, até percorrer boa parte do pensamento histórico do século XX; por fim, abre o leque para as demais ciências, tornando explícita a consciência da transversalidade do tema, além de preconizar que há muito a ser desenvolvido em torno da “historicidade”, em áreas diversas.

Na primeira parte, além do texto de Ricoeur, destaque-se o trabalho de Christian Delacroix, “Genealogia de uma noção” – um texto crítico sobre as possibilidades e limites dos “regimes de historicidade” de Hartog. A principal objeção parece recair sobre seu uso heurístico: tal noção, dadas as dificuldades no cruzamento entre ontologia e metodologia, poderia ser assimilada a um instrumento universal de conhecimento, o que escaparia às determinações eminentemente históricas (DELACROIX, 2009: 32-3). Cumpre somente lembrar que Hartog prosseguiu em suas reflexões, respondendo a esta e outras dificuldades (HARTOG, 2010: 768-769). Outro trabalho muito significativo é o de Daniel Creutz, sobre o historiador e teórico alemão Johan Gustav Droysen (1808-1884) e a historicidade no século XIX, quando foi concebida. Autor do primeiro tratado de teoria da história, a Historik (1882), Droysen colocava em posição de centralidade a historicidade do historiador, ou seja, a premissa da interpretação do passado a partir das condições do tempo presente. Ele fora buscar na hermenêutica os critérios para a crítica e interpretação das fontes, segundo o lema da “compreensão mediante pesquisa” (CREUTZ, 2009: 56).

O segundo segmento concentra a atenção na obra de Koselleck (falecido em 2006, o livro também cuida de homenageá-lo). Além do texto do próprio Koselleck, há os estudos de Jochen Hook, “A contribuição de Reinhart Koselleck à teoria da história”, e de François Dosse, “Reinhart Koselleck entre semântica histórica e hermenêutica crítica”. Dosse pondera sobre a impossibilidade de se pensar a dinâmica histórica, depois de Koselleck, sem levar em consideração as categorias meta-históricas “experiência” e “expectativa”. Isso conduz, por exemplo, a um “elogio controlado do anacronismo”, na expressão do autor, devido ao cruzamento ou sobreposição de múltiplas temporalidades, que formam camadas, se cruzam, se chocam ou se sobrepõem. (DOSSE, 2009: 121).

O movimento seguinte, a terceira parte, concentra o foco sobre as reflexões de Hartog. Além da entrevista com este autor, há os textos de Yanick Bosc, “Thomas Paine, nosso contemporâneo?”, e de Stéphane Van Dammme, “Uma historicidade tênue à distância”, sobre historicidade da história da filosofia. De Patrick Garcia, “Era uma vez a França: O presidente e a história da França (1958-2007)” trata dos usos políticos da historicidade pelo poder público, notadamente nos discursos presidenciais. Henri Rousso, em “Os dilemas de uma memória europeia”, indaga as dificuldades de equilíbrio, em tempos de “europeização”, entre uma memória artificial, tábula rasa do passado comum europeu, e o ranço de um passado traumático de paixões nacionalistas (ROUSSO, 2009: 220). Por fim, na entrevista com Hartog, os organizadores Delacroix, Dosse e Garcia o instigam com diversos questionamentos. Hartog defende que, hoje, como elaboração de experiências individuais e coletivas do tempo, se historicizaria a historicidade ela mesma. Para ele, “logo haverá uma história possível da historicidade” (HARTOG, 2009: 142).

A seção final abre a discussão para o enfoque da temporalidade em outras áreas de investigação (psicanálise, linguística, antropologia, geografia). Marie-Odile Godard, no texto “Acontecimento e psicanálise”, estuda os impactos do acontecimento sobre a vida psíquica do inconsciente, sobretudo os sintomas de repetição nos casos de traumas de guerra. Ela aponta que historiadores e psicanalistas trabalham com o mesmo pressuposto de reconstrução do passado, individual ou coletivo, embora para o historiador a prova documental seja mais valiosa que o testemunho oral e os lapsos de linguagem (GODARD, 2009: 236). Enquanto isso, Philippe Simay, em “O tempo das tradições: antropologia e historicidade”, reflete sobre as transformações da antropologia social, que nos últimos anos vem questionando internamente a noção corriqueira de tradição e movimentando as suas próprias fronteiras, não só entre sociedades ditas tradicionais ou modernas, mas também entre os saberes etnológico e histórico (SIMAY, 2009: 273).

Sem perder de vista a dimensão memorial, à base mesmo de toda relação social com o (s) tempo(s), o livro conta com contribuição relevante (e polêmica, fora de dúvida) de Enzo Traverso sobre trauma e historicização do nazismo. Ele a analisa a partir da troca epistolar entre Martin Broszat e Saul Friedländer nos anos 1980. Estes dois historiadores, da mesma geração, tinham posições opostas no tocante às discussões da historiografia relativa ao período do nacional-socialismo. Muito simplificadamente, os contornos gerais do debate são: Broszat, em 1985, publicou artigo sobre a historicização do nazismo, em favor de uma normalização da consciência histórica alemã (TRAVERSO, 2009: 261). Friedländer, em resposta, adverte que suas consequências, ao contrário das intenções do autor, se traduziam em “procedimento empático de identificação com os atores do passado” (TRAVERSO, 2009: 266), podendo beneficiar os algozes, ao humanizá-los. Ao mesmo tempo, implodia – só então – na sociedade alemã a controvérsia em torno do holocausto. Para E. Traverso, mesmo hoje, como diria Friedländer a Broszat em 1987, “uma fusão de horizontes [integradora dos pontos de vista opostos] ainda não está em vista” (TRAVERSO, 2009: 270).

“Comentários sobre a geograficidade”, por Jean-Marc Besse, é um texto que desperta muito interesse, em função das transferências explícitas de saberes entre disciplinas. Com base em Hartog e os régimes d’historicité, Besse propõe conceito similar para a geografia, de um ponto de vista meta-geográfico. Ele procura “universais” equivalentes, no caso dos regimes de historicidade, à tríade passado-presente-futuro. Sugere, como tais, para a consciência geográfica, a “separação” (a experiência da diferença dos lugares), a “orientação” (espacial), a “inclusão” (ser ou estar em) e a “dimensão” (do espaço). Estes seriam dados meta-geográficos a serem verificados nos diferentes regimes histórico-culturais de “geograficidade” (BESSE, 2009: 296). Este conceito não estaria confinado somente às especialidades dos geógrafos, senão implicado – sobretudo hoje na unidade global – em um certo “sentido do mundo e de sua dimensão”. Pressuposto vizinho à historicidade, o regime de geograficidade encontra na dimensão do mundo terrestre análogo à finitude da existência humana (BESSE, 2009: 299).

O grande mérito da obra coletiva é a multiplicidade de abordagens e busca por aplicação da noção de historicidade a pesquisas empíricas de áreas diversas, como a geografia e a psicanálise. O livro conduz – porque propositivo, e não sintético – um estimulante balanço da atualidade da temporalidade nas ciências humanas e sociais. Dado seu caráter compreensivo, a obra suscita inúmeras reflexões. É chegada então a hora, como sugere Hartog, de uma história da historicidade? Ou ela representa, ao final, um indício de nossa atual incapacidade de romper com o eterno retorno do mesmo e projetar novamente um futuro razoável? É este o momento de fremir o domínio obsedante do presente e investir em cenários menos pessimistas? Certamente, não há resposta em via exclusiva. Segue que se deva acompanhar os debates e torcer pelo aparecimento de novas propostas que avancem sobre ulteriores questões.

Daniel Creutz, em insight brilhante, chama a atenção para a importância de uma “categoria de humanidade” presente em Droysen, que pode ainda servir de referência ao pensamento histórico contemporâneo e à história global (CREUTZ, 2009: 59). A noção de historicidade, depreende-se, poderia ser mobilizada a fundamentar um futuro mais aberto e plural, de defesa incondicionada dos direitos humanos e do meio ambiente. Nos dizeres da filósofa da ciência Isabelle Stengers e do físico-químico Ilya Prigogine, afinal, é tempo de “pensar a solidariedade entre os tempos múltiplos que compõem o nosso universo, entre os processos que partilham o mesmo futuro, e talvez mesmo entre esses próprios universos […]” (PRIGOGINE; STENGERS, 1990: 228).

Referências

HARTOG, François. Historicité/Régimes d’historicité. In: DELACROIX, C.: GARCIA, P.; OFFENSTADT, N. (Dir.) Historiographies, II: concepts et débats. Paris: Éditions Gallimard, 2010, pp. 776-771.

SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da história intelectual: entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.

PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eternidade. Lisboa: Gradiva, 1990.

Raphael Guilherme de Carvalho – Mestre em História (UFPR). Doutorando em História (UFPR).


DELACROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick (Orgs.) Historicités. Paris: La Découverte, 2009. Resenha de: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.15, p.181-186, jul./dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

O desafio biográfico: escrever uma vida | François Dosse

François Dosse (1950- ) a partir de 1989 questiona radicalmente suas próprias concepções de história. Após a queda do muro de Berlim (e, com ele, o “socialismo real” e parte dos horizontes de expectativa do Ocidente), mais a descoberta da obra de Ricoeur, passa a perceber, nas ciências humanas, o social e o político segundo uma perspectiva hermenêutica e pragmática. Elemento mais ou menos ativo da geração de 1968, afirma que esta parece ter encontrado as ferramentas para exprimir aquilo que considera o ponto comum entre os que trabalham pela renovação nas ciências humanas: a vontade de fazer “sentido” (sem teleologia), o resgate da historicidade (sem historicismo) e o gosto pelo agir (sem ativismo). O novo paradigma próprio das ciências humanas permite, assim, repensar um novo horizonte de expectativas (DOSSE, 2004: 11-61).

Atualmente, portanto, a disciplina histórica parece se ressentir da necessidade da recomposição do sentido. François Dosse, após o estudo do vazio deixado pela crise dos grandes paradigmas (marxismo e estruturalismo) e a crítica dos Annales em A História em Migalhas (1987), fala em uma “virada historiográfica”: refere-se a um voltar-se dos historiadores a pensar, em diálogo com a filosofia, os conceitos de que se utiliza em sua operação profissional. A guinada hermenêutica e pragmática defende “a emergência de um espaço teórico próprio aos historiadores, reconciliados com seu nome próprio e a definição da operação histórica pela centralidade do humano, do ator, da ação” (DOSSE, 2004: 48).

Entre 1994 e 1997, Dosse trabalhou na elaboração da biografia intelectual de Paul Ricoeur. Paul Ricoeur: les sens d’une vie (ainda não traduzida para o português) é uma biografia intelectual situada na contramão das biografias tradicionais. Não busca uma história total, nem pretende solucionar mistérios psicológicos que ajudariam a compreender melhor a obra do filósofo. Dosse procede, ao contrário, a uma pesquisa plural dos diversos modos de apropriação do sujeito biografado. Deixa de lado a tradicional oposição entre verdadeiro e falso por uma busca constante de contextualização e recuperação das redes de sociabilidade intelectual. Abstém-se de qualquer pretensão de esgotar o significado de seu relato de vida para narrá-lo no plural, atento à recepção do biografado e de sua obra, sempre diversa, de acordo com o momento considerado. A biografia de Ricoeur está afeita, portanto, à maneira pela qual o próprio filósofo entende a construção de uma identidade pessoal, que se deixa observar através da pluralidade (DOSSE, 2009).

Em 2009, surge no cenário acadêmico brasileiro a tradução de Le Pari biographique: Écrire une vie, lançado na França em 2005. Publicado no Brasil pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), com apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores, por ocasião do ano da França no Brasil, O desafio biográfico é uma história do gênero biográfico, desde Plutarco até a inflexão do gênero a partir dos anos 1980, de acordo com a guinada hermenêutica e pragmática referida anteriormente.

Neste estudo da evolução das biografia, Dosse diferencia três modalidades de abordagem biográfica: a idade heroica, a idade modal e, por fim, a idade hermenêutica: “se conseguirmos detectar uma evolução cronológica entre essas três idades, veremos claramente que os três tipos de tratamento da biografia podem combinar-se e aparecer no curso de um mesmo período” (DOSSE, 2009: 13).

De início, destaca o caráter híbrido do gênero biográfico, tensionado entre o viés científico e a aspiração à verdade e o elemento ficcional e uso da imaginação histórica no suprimento de carências documentais:

A dificuldade de classificá-lo numa disciplina organizada, a pulverização entre tentações contraditórias – como a vocação romanesca, a ânsia de erudição, a insistência num discurso moral exemplar – fizeram dele um subgênero há muito sujeito ao opróbrio e a um déficit de reflexão (DOSSE, 2009: 13).

Outro problema recorrente envolvendo a biografia é que “a ânsia de dar sentido, de refletir a heterogeneidade e a contingência de uma vida para criar uma unidade significativa e coerente traz em si boa dose de engodo e ilusão” (DOSSE, 2009: 14). Trata-se da “ilusão biográfica”, sobre a qual alertava o sociólogo Pierre Bourdieu, para quem a narrativa biográfica pressupõe que a vida constitui um conjunto coerente e orientado que pode e deve ser apreendido como expressão unitária (BOURDIEU, 1996). A crítica radical de Bourdieu à ilusão biográfica, através da qual inclusive afiança o sujeito como entidade não-pertinente, certamente despertou inúmeras interrogações. Dosse, em resposta, vai além ao asseverar, com Roger Dadoun, a necessidade dessa ilusão e a questão da opacidade entre biógrafo e biografado (DOSSE, 2009). Em consequência da empatia com o tema, o biógrafo acaba possuído e modificado pela relação que estabelece com seu biografado. Ancorado em Ricoeur, Dosse afirma que “a escrita biográfica está bem próxima do movimento em direção ao outro e da alteração do eu rumo à construção de um Si transformado em outro” (DOSSE, 2009: 14). Para se evitar os riscos do descrédito, o biografado deve expor com frequência os elementos componentes do “contrato de leitura” com seus leitores. O pacto biográfico distingue o trabalho de pesquisa da ficção pela verificação dos métodos e critérios de cientificidade. De todo modo, enfatiza a tensão do gênero como desafio ao defini-lo como “gênero impuro”: “O domínio da escrita biográfica tornou-se hoje um terreno propício à experimentação para o historiador apto a avaliar o caráter ambivalente da epistemologia de sua disciplina, apanhada na tensão entre seu polo científico e seu polo ficcional” (DOSSE, 2009: 18).

Na Idade heroica da biografia (da Antiguidade à época moderna, de acordo com as divisões perpetradas por Dosse), ela prestou-se ao discurso das virtudes e, como tal, erigiu modelos moralizantes: “inscreve-se, nesse longo período, no respeito absoluto a uma tradição” (DOSSE, 2009: 123). Na Antiguidade, a tradição dos valores heroicos; após a cristianização, os valores religiosos. Ambos têm por modelo as vidas exemplares.

Plutarco foi um dos maiores nomes do gênero biográfico da antiguidade clássica. Pelo modelo de seu trabalho foi que o gênero biográfico iniciou a sedimentação de sua especificidade. “O objetivo capital do projeto de Plutarco é revelar os traços de destaque de um caráter psicológico em sua ambivalência e complexidade, inaugurando assim o gênero da vida exemplar com tons moralizantes” (DOSSE, 2009: 127). No medievo, a hagiografia – gênero literário que privilegia as encarnações humanas do sagrado e ambiciona torná-las exemplares para o resto da humanidade – toma o lugar na direção das “vidas exemplares”. “A reforma gregoriana acompanhou uma mudança radical na natureza dessas hagiografias, que se transformaram para os clérigos em exemplos de vida, em modelos a imitar” (DOSSE, 2009: 144).

No século XIX, a biografia é vista como subgênero, um modo de escrita da história relegado ao plano auxiliar: “Se o século XIX aparece às vezes como a idade de ouro da biografia, isso acontece porque nos esquecemos de que ele é, acima de tudo, o século da história” (DOSSE, 2009: 171-2). Entre os séculos XIX e XX, a biografia sofre então um “demorado eclipse, porque o mergulho da história nas águas das ciências sociais, graças à escola dos Annales, […] contribuiu para a radicalização de seu desaparecimento em proveito das lógicas massificantes e quantificáveis” (DOSSE, 2009: 181).

Esse longo eclipse Dosse define como o tempo da Biografia modal. Neste segundo tempo da escrita biográfica (a que corresponde um momento histórico e uma forma de abordagem), pretende-se deslocar o foco de interesse da singularidade do indivíduo biografado para enxergá-lo como ilustração da coletividade. O contexto prevalece e o indivíduo é seu mero reflexo. Ou seja, “a biografia modal visa, por meio de uma figura específica, ao tipo idealizado que ela encarna” (DOSSE, 2009: 195). Um bom exemplo são as obras de Lucien Febvre sobre Rabelais e Lutero. “Quando Lucien Febvre escreve sobre Rabelais, não é tanto a singularidade deste último que o interessa, mas, sim, o aparelhamento mental de sua época” (DOSSE, 2009: 215).

Na Idade hermenêutica, dos tempos mais recentes e terceiro tempo da história do gênero biográfico, François Dosse ainda opera uma divisão: a unidade dominada pelo singular e a pluralidade das identidades. Na idade hermenêutica, de reflexividade, há uma verdadeira retomada do gênero biográfico e até mesmo uma febre editorial no mercado de biografias. Diversos estudiosos, de historiadores a antropólogos, após a queda dos paradigmas estruturantes, rompem com os interditos que cercavam a biografia, ao se lançarem às questões do sujeito e da subjetividade. Nas palavras de Dosse, “A intrusão do biográfico nas ciências sociais sacode alguns postulados “científicos” […], pois os relatos se situam num espaço entre a escrita e a leitura literárias ou entre escrita e leituras científicas” (DOSSE, 2009: 242). Insatisfeitos diante das realizações biográficas próximas dos tipos ideais ou animadas pela vontade de demonstrar alguma coisa a priori, os historiadores e demais cientistas sociais sentiramse atraídos, nos anos 1970/80, pelas teses da microstoria, que preconizou uma abordagem bem diversa. É o que Dosse chama de ideia do “excepcional normal”: “Em vez de partir do indivíduo médio ou típico de uma categoria socioprofissional, a microstoria […] ocupa-se de estudos de caso, de microcosmos, valorizando as situações-limite de crise” (DOSSE, 2009: 254).

Atualmente, na era da reflexividade hermenêutica, o campo de estudos biográficos tornou-se privilegiado como campo de experimentação para o historiador: “Os estudos atuais se caracterizam pela variação do enfoque analítico […]. O quadro unitário da biografia foi desfeito, o espelho se quebrou para deixar aflorar mais facilmente […] a pluralidade das identidades, o plural dos sentidos da vida” (DOSSE, 2009: 344). A heterocronia complexa sugerida pelas relações entre história e psicanálise questiona a todo momento as noções lineares tradicionais de sucessividade e sequencialidade e, assim, ajuda a evitar as ilusões biográficas. A linearidade da biografia tradicional é questionada, portanto, e até mesmo suas balisas temporais clássicas, a vida biológica e o ciclo de nascimento e morte. Há condicionamentos que se impõem ao indivíduo antes de nascer, bem como há metamorfoses do sentido de sua vida após seu desaparecimento.

A “biografia intelectual” visa ao estudo dos escritores, filósofos e homens de letras em geral: “por definição, o homem de ideias se deixa ler por suas publicações, não por seu cotidiano” (DOSSE, 2009: 361). Dosse salienta a importância da vida e obra serem retomadas em conjunto, porém, em seus respectivos recortes. Uma via original de abordagem do sujeito biografado não se reduz à via clássica da contextualização, mas é a busca da coerência de seu gesto singular. Defende o que o vínculo entre o existir e o pensar deve ser retomado a esta nova luz. A biografia intelectual se caracteriza pelo aspecto de abertura a interpretações distintas e inesgotáveis: considerando que o significado de uma vida nunca é unívoco, ela aponta a importância da recepção do sujeito biografado no tempo e pelos seus pares e leitores. François Dosse assevera ser impossível saturar o sentido de uma vida, que pode – e mesmo deve – ser constantemente reescrita.

A história, como a biografia, é constantemente reescrita, reinterpretada; não admite um conhecimento imediato, total, definitivo sobre o passado. Isso pela especificidade própria de seu objeto de conhecimento: as sociedades humanas e os homens em um processo temporal. O próprio conhecimento histórico constantemente se transforma, acompanhando as mudanças da história e da disciplina histórica. Não há, portanto, um passado fixo a ser extenuado pela história. As experiências e expectativas futuras alteram a compreensão do passado. Para Reinhardt Koselleck, conhecer um determinado contexto histórico é saber como, nele, se relacionaram as dimensões temporais do passado e do futuro (KOSELLECK, 2006). Na expressão de Dosse, “um diálogo sobre o passado aberto para o futuro, a ponto de se falar cada vez mais de futuro do passado” (DOSSE, 2009: 410).

Aberto ao devir, o regime de historicidade não se pretende mais fechado sobre si mesmo. O caso das pesquisas biográficas e as questões levantadas por Dosse no seu Desafio biográfico colocam em xeque as pretensões totalizantes de escrita da história, mesmo sobre a escrita da vida de um único indivíduo. A abordagem hermenêutica, reflexiva/interpretativa, opõe obstáculos aos determinismos e causalidades rigorosas. Humanizando-se, as ciências humanas despem-se de resquícios do modelo das ciências naturais. Destarte, o trabalho de François Dosse sobre o gênero biográfico é, também, uma verdadeira exposição e problematização dos aspectos mais recentes e complexos em que se confrontam as ciências humanas e a teoria da história. Em diálogo aberto com a filosofia, a história volta-se para o humano, ao sujeito e à ação. No seu centro, a noção de sentido (existencial).

Referências

AVELAR, A. S. A biografia como escrita da história: possibilidades, limites e tensões. Dimensões, Vitória, v.24, p. 157-72, 2010.

BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. M. (Orgs.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 183-191.

DOSSE, F. Ensaio de Ego-História: percurso de uma pesquisa. In: DOSSE, F. História e Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p. 11-61.

KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC/Contraponto, 2006.

Raphael Guilherme de Carvalho – Mestrando em História Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]


DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. Resenha de: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Contraponto. Teresina, v.1, n.1, p.129-134, jan./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]