Identidades e conflitos no mundo antigo e mundo antigo e cultura moderna / História – Questões & Debates / 2008

É a própria alma que há que construir naquilo que se escreve;

todavia, tal como um homem traz no rosto a semelhança

natural com seus antepassados, assim é bom que se possa

aperceber naquilo que escreve a filiação dos pensamentos que ficam gravados na sua alma.

Foucault, “A escrita de si”, in: O que é um autor?,

Passagens, Lisboa, 1992, p. 144.

As últimas décadas do século XX foram marcadas por uma profunda revisão epistemológica nas Ciências Humanas, levando os estudiosos a reavaliarem seus valores e suas certezas. Considerando que a moderna ciência nasceu em meio à formação dos Estados nacionais e do colonialismo europeu, esses estudiosos chamaram a atenção para um aspecto pouco considerado até então: o modus operandi da construção de modelos interpretativos. Os estudos que se desenvolveram destacaram como os modelos interpretativos das Ciências Humanas estavam carregados de uma visão de mundo eurocêntrica, fundamentados na busca incessante pela verdade e pela legitimação de políticas de domínios territoriais.

As críticas que surgiram em meados da década de 1970, especialmente após os desconcertos causados pelas reflexões de Foucault [1], foram imprescindíveis para abrir caminhos para uma reflexão mais aprofundada ao fazer dos pesquisadores, bem como à formação de uma perspectiva analítica na qual a História passou a ser entendida como discursos específicos, embebidos das percepções de seu produtor. Ao retirar a História do campo da neutralidade e da objetividade, a base epistemológica dessa disciplina passou a ser repensada, proporcionando uma explosão de reflexões acerca da teoria para a produção de modelos interpretativos menos normativos acerca das relações humanas no passado.

A partir das discussões acirradas nesse novo contexto teóricometodológico, interpretações foram revistas e novas perspectivas de pesquisa foram criadas e, sem dúvida, provocaram profundas alterações sobre os estudos acerca do mundo antigo. As críticas de Said [2], já nos anos de 1970, por exemplo, fizeram com que repensássemos como o Oriente tem sido analisado pelo Ocidente. Martin Bernal [3], por sua vez, ao escrever Black Athena questionou a noção de que mundo antigo ficava congelado em um passado distante e imóvel, mas desenvolveu a idéia de que o passado Grecoromano ajudou a alicerçar pontes fundamentais para a construção das identidades dos Estados Nacionais modernos. Já Martin Millett [4], estudioso britânico, foi um dos primeiros a propor mudanças na maneira de entender o Império Romano e suas relações de domínio aos povos nativos, ao desconstruir o conceito de Romanização pela primeira vez.

Esses estudiosos, entre vários outros, fizeram com que as percepções acerca do passado antigo se tornassem mais dinâmicas e menos elitistas, abrindo espaço para novas maneiras de perceber os povos que viveram em períodos mais afastados historicamente, bem como despertaram o interesse para o fato de que, muitas vezes, nosso cotidiano está eivado de valores desses povos, reinterpretados a partir de nossas experiências modernas.

Foi pensando nesses dois vieses que organizei esse número duplo da Revista História: Questões & Debates e dividi os textos em dois grandes grupos. O número 48 traz contribuições para pensarmos temas que se desenvolveram a partir das revisões epistemológicas e da interdisciplinaridade que mencionei, indicando como Identidade e Conflitos são temas instigantes para pensarmos o passado Greco-romano. Por outro lado, o número 49 nos insere nas relações e constantes resignificações dos Antigos pelos Modernos, ou seja, como o mundo moderno se apropria do passado em múltiplos aspectos, transformando e recriando visões de mundo.

O leitor irá perceber que os textos selecionados mesclam especialistas e iniciantes, pesquisadores brasileiros e estrangeiros, indicando os frutos de experiências de orientação e diálogo que estudiosos brasileiros têm desenvolvido nos últimos anos. Para contemplar essas especificidades, procurei ordenar as reflexões de maneira que a multiplicidade de olhares sobre o mundo antigo possa ser explorada, estimulando uma reflexão sobre a importância de se pensar o mundo antigo oriental e ocidental nas suas diversas facetas.

Nesse sentido, o dossiê Identidades e Conflitos no Mundo Antigo conta com a participação de estudiosos do mundo grego e romano. Ana Teresa Marques Gonçalves e Marcelo Miguel de Souza interpretam Homero a partir de um diálogo entre Literatura, História e Música para analisar a relação entre os gregos e a musicalidade; José Geraldo Grillo recorre ao diálogo entre Arqueologia e História, enfocando a Ilíada e os vasos áticos, para estudar as múltiplas imagens de Aquiles e a relação dos gregos com a guerra; e Maria Aparecida de Oliveira Silva reinterpreta passagens de Plutarco para discorrer sobre a percepção de identidade helênica que esse escritor antigo constrói em seus textos. No que diz respeito ao mundo romano, Norma Musco Mendes e Airan dos Santos Borges nos apresentam uma instigante análise sobre o período republicano discutindo os calendários romanos, as percepções de tempo e etnicidade neles implícitos, enquanto Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni avançam para o período imperial analisando as relações de gênero e os conflitos inerentes à sociedade romana a partir de um episódio do Satyricon de Petrônio, conhecido como “Dama de Éfeso” e Lourdes Conde Feitosa recorre aos grafites de parede da cidade de Pompéia para estudar as percepções de sexualidade e afeto daqueles que viveram no início do Principado. No que tange a chamada Antiguidade Tardia, o exército romano é estudado a partir de diferentes prismas: Cláudio Carlan apresenta uma análise sobre as relações entre romanos e bárbaros a partir de moedas, enquanto Margarida Maria de Carvalho e suas orientandas Ana Carolina de Carvalho Viotti e Bruna Campos Gonçalves retomam Amiano Marcelino para discutir as múltiplas identidades presentes no exército romano. Por fim, Júlio César Magalhães nos leva ao Norte da África para discutir os conflitos religiosos, políticos e sociais na pequena cidade de Calama.

No que diz respeito ao Dossiê Mundo Antigo e Cultura Moderna, Adilton Luis Martins inaugura as reflexões com um texto sobre a importância de textos Greco-romanos para se delinear a epistemologia da História durante o século XVIII. Em seguida, busquei reunir os textos que discutiam as relações entre Oriente e Ocidente: Andréa Doré nos apresenta uma reflexão sobre como os povos antigos e, em especial os do oriente, aparecem n’A Divina Comédia de Dante; Nathalia Monseff Junqueira analisa a presença do Egito na obra Voyage en Égypte de Gustave Flaubert; Margaret Bakos e suas orientandas Ana Paula A. L. de Jesus e Karine Lima da Costa nos introduzem a uma reflexão sobre as apropriações de traços da cultura do Egito antigo, localizadas no mobiliário urbano, de países de fala espanhola e portuguesa na América do Sul e nas antigas metrópoles, compreendendo achados que englobam desde monumentos até textos de humor. Por fim, temos os trabalhos que apresentam a relação entre o mundo Greco-romano e o século XX: Rafael Faraco Benthien analisa essa relação a partir das obras de Marcel Proust; e Airton Pollini retoma o Satyricon de Petrônio a partir do filme realizado por Fellini no final dos anos 1960, analisando a relação que o diretor estabelece com as descobertas arqueológicas do período.

Para finalizar, o número duplo da Revista História: Questões & Debates conta com a seção Artigos, na qual temas diversificados sobre História do Brasil, ensino de História e Arqueologia são discutidos. Assim, Giselda Brito da Silva apresenta uma reflexão metodológica para o estudo da repressão política, analisando a documentação referente ao Integralismo em Pernambuco; Tiago de Melo Gomes propõe uma análise sobre a relação entre historiografia e prática de ensino no Brasil; Ariel Feldman trata da elaboração do discurso político no Brasil do oitocentos, analisando os escritos de Miguel do Sacramento Lopes Gama, publicados no jornal pernambucano O Carapuceiro, entre 1832 e 1833; e Mirian Liza Alves Forancelli Pacheco fecha a seção com uma discussão teórica sobre estilo em função na Arqueologia, concretizando a perspectiva dialógica e interdisciplinar inerente a esse número da Revista. Encerrando o trabalho, três resenhas são apresentadas comentando livros recentes sobre o mundo antigo, proporcionando uma breve discussão acerca da importância do constante diálogo com o passado clássico. Boa leitura a todos!

Notas

1. Cf., em especial, FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996; FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

2. SAID, E. O orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

3. BERNAL, M. Black Athena. The afroasiatic roots of Classical Civilization. New Brusnwick: Rutgers, 1987.

4. MILLETT, M. The Romanisation of Britain. An essay in archaeological interpretation, Cambridge, 1990.

Renata Senna Garraffoni – Organizadora.


GARRAFFONI, Renata Senna. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.48-49, n.1-2, 2008. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê