“As gentes no Atlântico”: biografias e histórias conectadas (séculos XVII a XIX) / Revista de História da UEG / 2018

Lançada em 2013, a coletêna The Sea: Thalassography and Historiography (2013), organizada por Peter Miller, numa perspectiva ampla e metodológica, tenta compreender exatamente o desafio que lançamos aqui para os autores deste dossiê da Revista de História da UEG, a qual agradecemos a equipe de editores: em que medida os mares e oceanos podem ser tomados como espaço de questionamento historiográfico e mesmo da definição de novos conceitos. Com um posfácio de Sanjay Subrahmanyan, autor de Explorations in Connected History (2011), a coletânea não somente apresenta um conjunto de artigos com estudos de caso sobre o tema como sugere o conceito de thalassography, como um campo de estudos dentro da área.

Subrahmanyan também é autor do ensaio Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia (1997), que lançou uma profunda discussão no sentido das limitações impostas por uma história nacional, encapsulada. Sugere em uma ampla e reconhecida obra, dentre outras coisas, uma maior atenção a esses fios que conectam o globo apresentando, também, ensaios de biografias de sujeitos envolvidos no processo de expansão e exploração do império português na Asia.

Essas pesquisas também podem ser inscritas no que se configurou chamar história do Atlântico. Indiscutivelmente, nas últimas três décadas, esse campo de reflexão vem desenhando um importante espaço de trabalho, não somente na História, mas nas demais ciências sociais e seus domínios; o crescente número de programas de pós-graduação, no Brasil e no exterior, que incorporam o termo às suas propostas de trabalho e pesquisa é destacável. Distante de leituras que privilegiavam centros e periferias como centros únicos de poder, leituras globais, conectadas, que tomam o Atlântico, o Índico ou o Báltico como centro de dinâmicas individuais e coletivas têm-se popularizado entre investigadores de todos os tempos históricos, tendo em vista relações transnacionais, transimperiais e multiculturais.

A perspectiva aqui lançada, no entanto, vale-se de experiências pessoais, coletivas e institucionais no sentido de compreender, no curto tempo de uma vida, como trajetórias de personagens pouco conhecidos podem e devem ser objetos de estudos dentro de um espaço geográfico e social tão amplo e múltiplo como o Atlântico. Essas “vidas atlânticas”, que Mark Meuwese (2014) descreve como profundamente envolvidas e marcadas pelo desenvolver de um capitalismo mercante a partir do Seiscentos, não podem ser restringidas a figuras da alta burocracia, exploradores ou mercadores. Um dos resultados desses de questionamentos de Meuwese pode ser consultado na coletânea Atlantic Biographies: Individuals and Peoples in the Atlantic World, editado por ele e por Jeffrey A. Fortin (2014) que nos serve aqui de inspiração e contraponto.

Os cinco artigos que aqui apresentamos à comunidade académica leitora da Revista de História da UEG, cujos autores agradecemos pelo desafio aceito, se aproximam não somente no vocabulário empregado – conexões atlânticas, atlântico sul, movimentações pelo atlântico, bordas e fios pelo espaço desuniforme de um oceano. Esta entidade, geográfica por natureza, mas social nas suas produções de sentido, não é compreendida nos estudos aqui publicados como espaço vazio ou apenas como um obstáculo aos objetivos dos sujeitos ou grupos estudados: o Atlântico é, antes de tudo, um passivo cercado, senão imerso, em dinâmicas; estas são resultado da confluência entre o que se pensou sobre ele e das experiências (literárias, políticas, religiosas) registradas nas tentativas de sua exploração e domínio. A este respeito, a título de exemplo, o trabalho biográfico sobre Matthew Fontaine Maury (1806-1873) assinado por Chester G. Hearn (2002), questiona não somente as movimentações e estudos do americano no Oitocentos no sentido de mapeamento das correntes marítimas e de ventos, mas dos usos desses conhecimentos para a constituição de circuitos de circulação mais rápidos e com menos perdas de embarcações e pessoas, aspecto constantemente ignorado em estudos sobre o Atlântico.

Essas e outras experiências são apresentadas aqui pelos autores por meio de estudos biográficos. Estes são, portanto, uma dimensão capaz de superar as ilusões e os problemas inerentes ao campo de trabalho, seja pela relação entre estruturas e agentes ou pelo cuidado em evitar a supervalorização de trajetórias e biografias, em amplas dimensões comparativas e que estabeleçam conexões.

Nesse sentido, os artigos presentes neste dossiê estão organizados com uma preocupação propriamente cronológica, não por uma sequência temporal, mas pelas próximidades dos contextos históricos dos seu objetos de análises. Helidacy M. M. Corrêa apresenta no estudo Gaspar de Sousa e o Maranhão “Ibérico”: Impactos da política filipina no norte do Brasil uma espécie de ponto de partida oportuno para este número especial. Ao se perguntar sobre os impactos das políticas filipinas no processo de conquista e ocupação no norte do Brasil, tema que há décadas vem produzindo importantes obras nas historiografias brasileira e portuguesa, onde o contexto do Maranhão “Ibérico”, conforme destaca a autora, tem pouca visibilidade.

Ainda dentro deste cenário do Maranhão colonial, o artigo intitulado Conexões Atlânticas: famílias de cristãos-novos no Maranhão colonial e suas redes de sociabilidades, escrito por Eloy Barbosa de Abreu, analisa, pelo viéis biográfico, a formação de redes sociais entre indivíduos comestigma de cristão-novo, a partir da imigração de casais oriundos de Portugal. A suposta condição de cristão-novo de Gregório de Andrade da Fonseca fez dele um indivíduo forjado pela sociedade que lhe foi contemporânea.

No estudo Ignacio António da Silva Lisboa: um português entre Lisboa e São Luís nas primeiras décadas do Oitocentos, desenvolvido por Marcelo Cheche Galves, o sujeito aqui é investigado pelos rastros que deixou pela documentação preservada e demonstra como o personagem se movimentava entre as tensões geradas por polos políticos divergentes em lados oposto do Atlântico.

Do mesmo modo, Luisa M. S. Cutrim em Negócios além-mar: a Casa comercial de António José Meirelles nas bordas do Atlântico (c. 1820 – c. 1840), vai de um personagem pouco conhecido apresentado no texto anterior, ignorado pela historiografia até o momento, para um negociante de grande trato. António José Meirelles, como o estudo apresenta, tinha sobre si um variado leque de fios que conectavam esse oceano e seus pontos de contato.

O dossiê é finalizado por Romário Sampaio Basílio com o artigo A Castro e a morte da memória: Joaquim José Sabino, poeta e burocrata em circulação pelo Atlântico (c. 1790 – c. 1840). Da burocracia cotidiana aos usos de versos e memórias, o sujeito biografado circulou pelo Atlântico em busca de reconhecimento e cargos, tendo chegado as mais altas instâncias administrativas.

Finalizamos esta apresentação ressaltando que todos os escritos expressos neste dossiê convergem para um ponto: a análise de trajetórias de sujeitos dentro de um cenário Atlântico, a partir de questões gerais sobre temáticas diversas. Portanto, para além do estilo biográfico indiciados nos textos apresentados, há a preocupação em contriubuir com o estado da arte dos estudos sobre o Mundo Atlântico.

Eloy Barbosa de Abreu – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); docente da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail: [email protected]

Romário Sampaio Basílio Doutorando em Estudos sobre a Globalização pela Universidade Nova de Lisboa (NOVA). E-mail: [email protected]


ABREU, Eloy Barbosa de; BASÍLIO, Romário Sampaio. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.7, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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