Histórias conectadas da Idade Média / Esboços / 2020

Histórias conectadas da idade média: abordagens globais antes de 1600

As últimas décadas do século XX foram marcadas por mudanças estruturais rápidas no cenário mundial. Seja pelas transformações geopolíticas provocadas com a descolonização da África e da Ásia (1960-1970) ou pelo fim da Guerra fria (1990), seja pelo avanço da globalização e da expansão do desenvolvimento tecnológico, uma demanda por histórias transnacionais emergiu enquanto fruto de um mundo cada vez mais interdependente. A partir da consolidação de associações econômicas, políticas e culturais, os limites impostos por visões de mundo nacionalistas e abordagens acadêmicas eurocêntricas trouxeram à tona provocações importantes sobre a necessidade de novas maneiras de interpretar e explicar as experiências históricas a partir do viés global.

Novas abordagens historiográficas surgiram dessa seara, que apesar de ter na década de 1990 o momento de constituição formal do campo, com institucionalização efetiva de associações (World History Association) e periódicos, encontrou o germe de sua essência na ousadia de enfoques historiográficos anteriores (BLOCH, 1930; BRAUDEL, 1949; MCNEILL, 1963). A chamada Global History aparece em diversas ramificações, as quais, ao se construírem enquanto abordagem historiográfica, colocam à prova os melhores meios para sua realização. Como afirmou Diego Olstein (2015), apesar das sobreposições historiográficas, essas múltiplas tendências à história global compartilham características comuns e estão todas dedicadas a pensar a história por meio do que se identifica como os 4 “Ces”: a conexão, a comparação, a conceituação e a contextualização.

Da história global à transnacional, as histórias conectadas estão dispostas a estabelecer abordagens sobre os cruzamentos históricos a partir da longa duração, da longa distância, da análise em múltipla escala e da transdisciplinaridade. É, justamente, nessa perspectiva que os debates em torno das conexões históricas pré-modernas se tornam necessários. Como já demonstrou Sanjay Subrahmanyam (2017), há tradições antigas e medievais de escrita da história que analisaram outras sociedades, privilegiando o estudo das interações em múltiplos espaços e tempos, bem como em diversas escalas. Temos muito a aprender com essas narrativas, sobretudo, o modo de olhar o outro abstraído do horizonte de expectativas de conceituações modernas, como aquelas sentenciadas pelos ideais oitocentistas de “povo” e “nação”.

Além disso, diante de um momento histórico que encara com pessimismo o legado eurocêntrico do Ocidente, estudos que abordam a perspectiva das Histórias conectadas da Idade Média encontram espaço auspicioso para seu desenvolvimento por algumas razões. A primeira delas está em qualificar essa temporalidade, tradicionalmente atribuída à Europa ocidental, a partir do estudo de comunidades conectadas em escala suprarregional e supracontinental, incluindo abordagens em perspectiva eurasiana e africana. Essas novas abordagens buscam demonstrar a prosperidade de análises sobre a movimentação de pessoas, a circulação de ideias e materiais, bem como as intersecções de procedimentos de governança e regulação no enfrentamento de conflitos sociais e intempéries naturais comuns às diversas comunidades anteriores às grandes navegações atlânticas.

A periodização da Idade Média surge como uma categoria temporal exclusivamente europeia, de origem seiscentista, cimentada em referenciais de linearidade e progressão evolutiva da história que explicavam a consolidação atlântica das monarquias cristãs europeias (BOVO, 2017). Como afirmaram Katheleen Davis e Michael Puett (2015, p. 1), trata-se de “um processo que, em grande medida, possibilitou a ideia da Europa como uma entidade unificada e, ao mesmo tempo, teve o efeito de excluir a Europa Oriental e áreas não europeias da progressão antiguidade-modernidade”. Nesse sentido, as abordagens globais da Idade Média poderiam recair inconvenientemente na “narrativa egocêntrica do tempo histórico europeu”, reafirmando-o.

Davis e Puett ainda alertam para um risco maior de tornar a periodização tripartite e/ou quadripartite da história europeia hegemônica, ignorando sua origem e os usos interpostos a ela. Na historiografia ocidental contemporânea, a ideia de uma Idade Média dominada pela superstição, pela irracionalidade e por uma estrutura social estática tornou-se base para interpretação de sujeitos e espaços colonizados pelos territórios europeus. As colônias atlânticas e as africanas ganharam adjetivos “medievais” que justificaram a atuação dos europeus em seus territórios chamados “bárbaros e selvagens”. Dessa maneira, essas características temporalizadas atribuídas à Idade Média tornaram-se mecanismos de identificação e colonização de espaços e sujeitos na chamada modernidade, ajudando até hoje a Europa e outras potências políticas à subscrever as histórias dos seus nacionalismos e do seu pretendido domínio global.

Com o fortalecimento dos discursos ultranacionalistas atuais, o “ser” medieval ainda é um recurso de identificação usado para dar apoio aos processos de extração de riquezas e destruição de ecossistemas socioambientais (GEARY, 2005). Portanto, um aspecto negativo de buscar uma Idade Média global seria o de corroborar com essa lógica narrativa. Justamente, no anseio de se distanciar dessa narrativa imperial europeia, os medievalistas, que há muito reconhecem o problema da petrificação das periodizações, vêm propondo análises que não só redefiniram o esquema de organização da história medieval, como apresentaram, pela abordagem das conexões de povos, o complexo dinamismo das sociedades anteriores aos anos 1600 (LIEBERMAN, 2003; BOUCHERON; DELALANDE, 2015).

Os críticos da história global não estão errados ao sugerir que ela corre o risco de se tornar uma nova máscara para a história imperial, visto a tradição epistemológica ocidental apoiar-se em chaves de leitura binárias e dicotômicas, tais como: racional- -supersticioso, centro-periferia, progresso-atraso, entre outras. De acordo com Richard Drayton e David Motadel (2018, p. 14), “o legado da maneira como o mundo foi integrado depois de 1600, por e em resposta ao poder imperial e cultural europeu, é um eurocentrismo cognitivo incorporado em nossos métodos”.

Nesse sentido, gostaríamos de enfatizar que três elementos devem ser destacados na busca por se fazer histórias conectadas da Idade Média: primeiramente, quaisquer novos empreendimentos compartilhados exigirão um esforço contínuo para superar a barreira das tradições epistemológicas cartesianas. O desafio para os historiadores é encontrar novos tipos de padrões, métodos, julgamentos de valor e, mais importante, conceitos na experiência histórica e na autoconsciência histórica desses continentes integrados. Em vez de confiar exclusivamente em estruturas interpretativas emprestadas de estudiosos de outros períodos históricos, sentimos que a tarefa premente é analisar como as conexões eurasianas e africanas foram experimentadas na Idade Média, buscando histórias medievais conectadas que façam sentido em seus próprios termos.

Atentos a isso, o presente dossiê reúne um conjunto de artigos que possuem como objeto de reflexão a abordagem das histórias conectadas. Nessa direção, o artigo “Perspectivas da história econômica global da Baixa Idade Média”, de Felipe Mendes Erra (2020) tem por objetivo apresentar um modelo teórico capaz de fornecer uma abordagem global da Baixa Idade Média. Através da análise de caso das companhias florentinas de 1310-1340, ele busca respostas ao emaranhado de conexões econômicas de longo alcance geográfico presente num mundo essencialmente fragmentado como o da Baixa Idade Média mediterrânica.

O autor apresenta ainda uma análise historiográfica muito pertinente sobre limites e desafios de modelos teóricos presentes na história econômica, sobretudo por se preocupar em manter distante a perspectiva da história global que procura identificar, em um único elemento da vida socioeconômica, o fio condutor da investigação. Ele avança significativamente no desenvolvimento de uma abordagem própria, inspirada pela historiografia de Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein. Ao questionar a maneira adequada de fazer história global da Idade Média, Felipe Mendes Erra busca fugir das armadilhas representadas tanto pelas teorias do sistema-mundo de Frank e Gills (1996) como pela corrente teórica da globalização. Sua reflexão conduz o medievalista para dentro da história global, destacando a necessidade de produzir uma teoria econômica capaz de explicar a formação de conexões comerciais e a interação de mercados em um universo economicamente fragmentado, como era o das urbes italianas.

Valorizar a abordagem em múltiplas escalas é outro elemento a ser destacado por aqueles que buscam fazer história conectada de temporalidades recuadas (BOVO; DEGAN, 2017). Trabalhos recentes sobre a metodologia de histórias comparativas e conectadas apontam para uma abordagem na qual é preciso prestar muita atenção às peculiaridades e conexões analisadas, sejam religiosas, políticas, econômicas, intelectuais (SANTOS JÚNIOR; SOCHACZEWSKI, 2017) e também intertextuais dos testemunhos materiais e documentais. Uma vez que as conexões e as diferenças existentes pareçam suficientemente claras, as comparações transculturais em pequena escala de fenômenos relacionados ou similares oferecem o caminho mais promissor, antes que qualquer visão abrangente possa ser explorada.

O caminho das comparações e conexões transculturais entre diferentes testemunhos textuais e seus usos é demonstrado em outros dois artigos do dossiê. Vicente Dobroruka, no artigo “Ibn Fadlan and a by-passed remark on an imaginary geographical topos: some observations on the decreasing factual credibility regarding the Caucasus area of the silk road”, ao estabelecer conexões entre o imaginário e a tradição textual de viajantes árabes e persas na “Rota da Seda”, evidencia como o viajante Ibn Fadlan e outros partilharam uma herança comum de referenciais geográficos, míticos e, sobretudo, religiosos (DOBRORUKA, 2020). Essa comparação transcultural pode ser mais bem assinalada na investigação da herança comum compartilhada por esses testemunhos, que parece interconectada inclusive na caracterização dos seus inimigos, como os chamados bárbaros Gogue/Magogue.

A presença desses sincretismos religiosos mítico-apocalípticos descreve um processo de duração muito longa, que envolveu toda a Eurásia entre os séculos X-XIII. Nesse sentido, o relato que Ibn Fadlan deixou é bem diferente do que foi chamado de “história universal” entre os autores da Antiguidade ou bizantinos – ele pode ser visto como parte de uma extensa tradição narrativa, concebendo um contexto global de regiões, climas e povos bastante variados.

O artigo “A coleção de Tours de Atas do Concílio de Éfeso (431): um testemunho carolíngio de ressignificação doutrinária e circulação de textos no Mediterrâneo Tardo Antigo”, de Robson Murilo Grando Della Torre, também se apresenta como um exemplo bem-sucedido da abordagem conectada da Idade Média. A longa e difusa circulação do manuscrito de Tours da coleção de Atas do Concílio de Éfeso (431) é uma síntese de experiências históricas distintas, que numa longa duração (séculos V ao VIII), marcados pela multiplicidade de leituras sobre esse passado da polêmica cristológica, restaura a conectividade entre diferentes espaços do Mediterrâneo Tardo Antigo e Alto Medieval (DELLA TORRE, 2020).

A transmissão mediterrânica dessa coleção de atas demonstra a materialidade da produção de memórias e de concepções da ortodoxia cristã que diferentes grupos projetaram sobre o passado polêmico de Cirilo de Alexandria e Nestório de Constantinopla (412-431), com vistas a defender posicionamentos doutrinários de seu presente. Assim, é preciso recuar até o século V e se deslocar até a Ásia Menor e o Egito para compreender os eventos e posições doutrinárias evocados pelo conteúdo textual da coleção de Tours. Ao mesmo tempo, não se deve esquecer a realidade histórica da Gália carolíngia, onde foram mobilizadas as apropriações e ressignificações desse material.

Para finalizar, como último elemento dessa busca por histórias conectadas da Idade Média, é preciso ainda considerar que a construção de tais abordagens não envolve apenas questões de apuro metodológico. Aqui aparece um ponto importante, talvez o que exija mais cautela, visto que, ao se trabalhar com histórias conectadas da Idade Média, demandas de identidade ainda estão ativas política e ideologicamente. É importante deixar claro que o próprio conceito de “Ocidente”, usado aqui na abertura do texto, descreve não apenas uma área geográfica que corresponde vagamente à Europa (ocidental) e ao mundo atlântico, mas uma comunidade de sentidos que subscreve certos valores, uma tradição ideologicamente comprometida com ideais civilizatórios, que quer abranger o tempo histórico de Platão à OTAN.

A narrativa-mestra de uma “ascensão do Ocidente”, seja ela política, intelectual, religiosa ou econômica, tem seu berço na modernidade. Ela considera os meios de se fazer história e as produções derivadas desse ofício com fins ideologicamente comprometidos. Estarmos cientes desses usos, e torná-los visíveis para o público é a tarefa primordial para quem busca produzir histórias conectadas de temporalidades recuadas.

Referências

BLOCH, Marc. Comparaison. Bulletin du Centre Internacional de Synthèse, Paris, n. 9, p. 17-35, 1930.

BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas. Por uma história-mundo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

BOVO, Cláudia Regina. El tempo em cuestión: ubicar la Edad Media em la actualidad. Revista Chilena de Estudios Medievales, Santiago, n. 11, p. 134-155, enero/junio 2017. Disponível em: http://revistas.ugm.cl/index.php/rcem/article/ view/120. Acesso em: 15 nov. 2019.

BOVO, Cláudia Regina; DEGAN, Alex. As temporalidades recuadas e sua contribuição para a aprendizagem histórica: o espaço como fonte para a história antiga e medieval. Revista História Hoje, São Paulo, v. 6, n. 12, p. 55-76, 2017.

BRAUDEL, Fernand. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: A. Colin, 1949.

DAVIS, Kathleen; PUETT, Michael. Periodization and “The Medieval Globe”: A Conversation. The Medieval Globe, v. 2, n. 1, p. 1-14, 2015. Disponível em: https:// scholarworks.wmich.edu/tmg/vol2/iss1/3. Acesso em: 21 nov. 2019.

DELLA TORRE, Robson Murilo Grando. A coleção de Tours de Atas do Concílio de Éfeso (431): um testemunho carolíngio de ressignificação doutrinária e circulação de textos no mediterrâneo Tardo Antigo. Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 59-77, jan./abr. 2020.

DOBRORUKA, Vicente. Ibn Fadlan and a by-passed remark on an imaginary geographical topos: some observations on the decreasing factual credibility regarding the Caucasus area of the silk road. Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 38-58, jan./abr. 2020.

[DR]AYTON, Richard; MOTADEL, David. Discussion: the futures of global history. Journal of global History, v. 13, p. 1-21, 2018. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/ view/36C53116D551E0B47E42865EC8DE0C41/S1740022817000262a.pdf/ discussion_the_futures_of_global_history.pdf. Acesso em: 30 nov. 2019.

ERRA, Felipe Mendes. Perspectivas da história econômica global da baixa Idade Média. Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 17-37, jan./abr. 2020.

FRANK, Andre Gunder; GILLS, Barry K. (ed.). The World System. London: Routledge, 1996.

GEARY, Patrick. O mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad livros, 2005.

LIEBERMAN, Victor. Strange Parallels: Southeast Asia in Global Context, c. 800- 1830. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. 2 v.

MCNEILL, William Hardy. The Rise of the West: a History of the Human Community, with a Retrospective Essay. Chicago: University of Chicago Press, 1963.

OLSTEIN, Diego. Thinking History Globally. Londres: Palgrave Macmillan, 2015.

SANTOS JÚNIOR, João Júlio Gomes dos; SOCHACZEWSKI, Monique. História global: um empreendimento intelectual em curso. Tempo, Niterói, v. 23, n. 3, p. 483- 502, dez. 2017.

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Em busca das origens da história global: aula inaugural proferida no Collège de France em 28 de novembro de 2013. Estudos históricos, Rio Janeiro, v. 30, n. 60, p. 219-240, 2017.

Cláudia Regina Bovo – Organizadora do dossiê “Histórias conectadas da Idade Média”. Doutora. Professora Adjunta, Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História, Uberaba, MG, Brasil  https://orcid.org/0000-0002-4201-713X  E-mail: [email protected]

Adrien Bayard – Doutor. Maître de Conférence, Université d’Artois, Centre de Recherche et d’Études – Histoire et Sociétés, Arras, France https://orcid.org/0000-0002-0886-0799  E-mail: [email protected]

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Moçambique em perspectiva. Histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos | Revista de História | 2019

Uma possível perspectiva analítica para o devir dos estudos africanos no Brasil é pensá-los a partir de suas inflexões, uma vez que o desenvolvimento do campo parece ter dado saltos qualitativos nos últimos anos. Nessa direção, a configuração e a própria concepção do dossiê Moçambique em perspectiva: histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos, desde o diálogo estabelecido entre as organizadoras até a publicação dos artigos, estão relacionadas à trajetória de implantação e consolidação da área cujos marcos políticos, legais e institucionais são retomados no escopo desta apresentação.

Um marco relevante para os estudos africanos no Brasil foi a aprovação da Lei 10.639/2003 que reformou a Lei de Diretrizes e Bases, introduzindo a obrigatoriedade do ensino da história e cultura da África e afro-brasileira nos currículos escolares.1 Fruto da intensa luta dos movimentos negros de nosso país, e contando com a liderança de figuras expressivas do meio intelectual negro brasileiro, a começar por sua relatora,2 a lei significou um momento de inflexão na maneira pela qual se contava nas instituições de ensino brasileiras a história social, política e econômica do Brasil. Leia Mais

“As gentes no Atlântico”: biografias e histórias conectadas (séculos XVII a XIX) / Revista de História da UEG / 2018

Lançada em 2013, a coletêna The Sea: Thalassography and Historiography (2013), organizada por Peter Miller, numa perspectiva ampla e metodológica, tenta compreender exatamente o desafio que lançamos aqui para os autores deste dossiê da Revista de História da UEG, a qual agradecemos a equipe de editores: em que medida os mares e oceanos podem ser tomados como espaço de questionamento historiográfico e mesmo da definição de novos conceitos. Com um posfácio de Sanjay Subrahmanyan, autor de Explorations in Connected History (2011), a coletânea não somente apresenta um conjunto de artigos com estudos de caso sobre o tema como sugere o conceito de thalassography, como um campo de estudos dentro da área.

Subrahmanyan também é autor do ensaio Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia (1997), que lançou uma profunda discussão no sentido das limitações impostas por uma história nacional, encapsulada. Sugere em uma ampla e reconhecida obra, dentre outras coisas, uma maior atenção a esses fios que conectam o globo apresentando, também, ensaios de biografias de sujeitos envolvidos no processo de expansão e exploração do império português na Asia.

Essas pesquisas também podem ser inscritas no que se configurou chamar história do Atlântico. Indiscutivelmente, nas últimas três décadas, esse campo de reflexão vem desenhando um importante espaço de trabalho, não somente na História, mas nas demais ciências sociais e seus domínios; o crescente número de programas de pós-graduação, no Brasil e no exterior, que incorporam o termo às suas propostas de trabalho e pesquisa é destacável. Distante de leituras que privilegiavam centros e periferias como centros únicos de poder, leituras globais, conectadas, que tomam o Atlântico, o Índico ou o Báltico como centro de dinâmicas individuais e coletivas têm-se popularizado entre investigadores de todos os tempos históricos, tendo em vista relações transnacionais, transimperiais e multiculturais.

A perspectiva aqui lançada, no entanto, vale-se de experiências pessoais, coletivas e institucionais no sentido de compreender, no curto tempo de uma vida, como trajetórias de personagens pouco conhecidos podem e devem ser objetos de estudos dentro de um espaço geográfico e social tão amplo e múltiplo como o Atlântico. Essas “vidas atlânticas”, que Mark Meuwese (2014) descreve como profundamente envolvidas e marcadas pelo desenvolver de um capitalismo mercante a partir do Seiscentos, não podem ser restringidas a figuras da alta burocracia, exploradores ou mercadores. Um dos resultados desses de questionamentos de Meuwese pode ser consultado na coletânea Atlantic Biographies: Individuals and Peoples in the Atlantic World, editado por ele e por Jeffrey A. Fortin (2014) que nos serve aqui de inspiração e contraponto.

Os cinco artigos que aqui apresentamos à comunidade académica leitora da Revista de História da UEG, cujos autores agradecemos pelo desafio aceito, se aproximam não somente no vocabulário empregado – conexões atlânticas, atlântico sul, movimentações pelo atlântico, bordas e fios pelo espaço desuniforme de um oceano. Esta entidade, geográfica por natureza, mas social nas suas produções de sentido, não é compreendida nos estudos aqui publicados como espaço vazio ou apenas como um obstáculo aos objetivos dos sujeitos ou grupos estudados: o Atlântico é, antes de tudo, um passivo cercado, senão imerso, em dinâmicas; estas são resultado da confluência entre o que se pensou sobre ele e das experiências (literárias, políticas, religiosas) registradas nas tentativas de sua exploração e domínio. A este respeito, a título de exemplo, o trabalho biográfico sobre Matthew Fontaine Maury (1806-1873) assinado por Chester G. Hearn (2002), questiona não somente as movimentações e estudos do americano no Oitocentos no sentido de mapeamento das correntes marítimas e de ventos, mas dos usos desses conhecimentos para a constituição de circuitos de circulação mais rápidos e com menos perdas de embarcações e pessoas, aspecto constantemente ignorado em estudos sobre o Atlântico.

Essas e outras experiências são apresentadas aqui pelos autores por meio de estudos biográficos. Estes são, portanto, uma dimensão capaz de superar as ilusões e os problemas inerentes ao campo de trabalho, seja pela relação entre estruturas e agentes ou pelo cuidado em evitar a supervalorização de trajetórias e biografias, em amplas dimensões comparativas e que estabeleçam conexões.

Nesse sentido, os artigos presentes neste dossiê estão organizados com uma preocupação propriamente cronológica, não por uma sequência temporal, mas pelas próximidades dos contextos históricos dos seu objetos de análises. Helidacy M. M. Corrêa apresenta no estudo Gaspar de Sousa e o Maranhão “Ibérico”: Impactos da política filipina no norte do Brasil uma espécie de ponto de partida oportuno para este número especial. Ao se perguntar sobre os impactos das políticas filipinas no processo de conquista e ocupação no norte do Brasil, tema que há décadas vem produzindo importantes obras nas historiografias brasileira e portuguesa, onde o contexto do Maranhão “Ibérico”, conforme destaca a autora, tem pouca visibilidade.

Ainda dentro deste cenário do Maranhão colonial, o artigo intitulado Conexões Atlânticas: famílias de cristãos-novos no Maranhão colonial e suas redes de sociabilidades, escrito por Eloy Barbosa de Abreu, analisa, pelo viéis biográfico, a formação de redes sociais entre indivíduos comestigma de cristão-novo, a partir da imigração de casais oriundos de Portugal. A suposta condição de cristão-novo de Gregório de Andrade da Fonseca fez dele um indivíduo forjado pela sociedade que lhe foi contemporânea.

No estudo Ignacio António da Silva Lisboa: um português entre Lisboa e São Luís nas primeiras décadas do Oitocentos, desenvolvido por Marcelo Cheche Galves, o sujeito aqui é investigado pelos rastros que deixou pela documentação preservada e demonstra como o personagem se movimentava entre as tensões geradas por polos políticos divergentes em lados oposto do Atlântico.

Do mesmo modo, Luisa M. S. Cutrim em Negócios além-mar: a Casa comercial de António José Meirelles nas bordas do Atlântico (c. 1820 – c. 1840), vai de um personagem pouco conhecido apresentado no texto anterior, ignorado pela historiografia até o momento, para um negociante de grande trato. António José Meirelles, como o estudo apresenta, tinha sobre si um variado leque de fios que conectavam esse oceano e seus pontos de contato.

O dossiê é finalizado por Romário Sampaio Basílio com o artigo A Castro e a morte da memória: Joaquim José Sabino, poeta e burocrata em circulação pelo Atlântico (c. 1790 – c. 1840). Da burocracia cotidiana aos usos de versos e memórias, o sujeito biografado circulou pelo Atlântico em busca de reconhecimento e cargos, tendo chegado as mais altas instâncias administrativas.

Finalizamos esta apresentação ressaltando que todos os escritos expressos neste dossiê convergem para um ponto: a análise de trajetórias de sujeitos dentro de um cenário Atlântico, a partir de questões gerais sobre temáticas diversas. Portanto, para além do estilo biográfico indiciados nos textos apresentados, há a preocupação em contriubuir com o estado da arte dos estudos sobre o Mundo Atlântico.

Eloy Barbosa de Abreu – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); docente da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail: [email protected]

Romário Sampaio Basílio Doutorando em Estudos sobre a Globalização pela Universidade Nova de Lisboa (NOVA). E-mail: [email protected]


ABREU, Eloy Barbosa de; BASÍLIO, Romário Sampaio. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.7, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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América Latina ‐ estudos comparados, histórias conectadas / História Revista / 2017

O dossiê que vem a lume reúne artigos que enfatizam a dimensão sociocultural de eventos e processos históricos ocorridos da América Latina. Idealizado a partir dos debates que surgiram quando da realização do III Colóquio Internacional Diversidade das Culturas, em 2016 – atividade do Projeto de Cooperação Internacional CAFP‐BA –, o dossiê privilegiou o comparativismo como estratégia analítica capaz de superar a perspectiva etnocêntrica, apresentando a experiência local como um modo de acessar a especificidade de uma cultural.

Ao observar, localizar e compreender as diferenças locais, o olhar comparativo permite expandir o horizonte analítico e o posicionamento compreensivo, próprio das ciências da Cultura. O leitor poderá exercitar esse tipo de posicionamento com o artigo Ciudades mineras en la Puna Colonial de Carlos Alberto Garcés. Nele, o autor percorre o processo de formação e desenvolvimento dos núcleos urbanos localizados na região da Puna argentina no período colonial, até meados do século XIX. Partindo do viés comparativo, o trabalho de Jorge Kulemeyer, intitulado Etnicidad sudamericana según la época del cristal con que se mire y mida, propõe se debruçar sobre as ações governamentais e os projetos políticos desenvolvidos em distintos países da América Latina no âmbito da discussão sobre identidade das populações aborígenes. Também, em Expresiones narrativas de subjetividades sociales diversas en el Noroeste andino argentino, de Maria Luisa Rubinelli, esse posicionamento da diferença pode ser vislumbrado. Seu interesse volta‐se para a forma como a mulher “transgressora” foi caracterizada pelos distintos setores da sociedade Jujenha, em especial as elites econômicas locais. Exercício similar deve ser observado no artigo Los hilos largos de la trama: Apuntes etnográficos y análisis de redes familiares en los valles orientales de Jujuy (Argentina) entre 1852 y 1910 de Frederico Fernández, em que o autor analisa o fenómeno do apadrinhamento batismal como dispositivo socio‐parental que estabelece intercambios simbólicos e hierarquias entre grupos familiares. Em cada um desses artigos observa‐se o interesse comparativo, capaz de auxiliar na investigação das regularidades, dos deslocamentos e das transformações de unidades culturais, em especial aquelas associadas ao Estado‐Nação.

Perceber as conexões entre eventos e processos para além dos paralelismos entre variáveis é uma característica da historiografia contemporânea. Essa percepção é explorada no artigo O contrabando na fronteira oeste da América portuguesa no século XVIII, de Nauk Maria de Jesus, que analisa o contrabando de ouro e prata na região com o intuito de evidenciar como esse tipo de comércio foi incorporado na sociedade e na economia do Antigo Regime. Percurso semelhante pode ser observado no artigo de Deusa Maria Boaventura, Do mito ao experimento: a cartografia e a urbanização de Goiás no século XVIII, que sustenta a existência de uma relação clara entre a estratégia de posse e controle do território colonial com o processo de formação de militares em Portugal, capacitados para realizar tarefas que iam desde os levantamentos cartográficos até a fundação de cidades e contribuíram decisivamente para a definição dos limites territoriais da capitania. A história da historiografía também se fortalece com a abordagem que privilegia as interconexões, como propõe Tomás Sansón Corbo em seu artigo Tránsitos atlánticos e interconexiones regionales en la estructuración de los campos historiográficos de la Cuenca del Plata (primera mitad del siglo XX). O forte intercâmbio de bens, pessoas e ideias, ocorrido nas primeiras décadas do século XX indica a importância de superação das barreiras nacionais para a construção de novos objetos de pesquisa. É também o que demonstra Leonardo Seabra Coelho em Coleções, traduções e intelectuais: Oliveira Vianna e o intercâmbio cultural entre escritores brasileiros e argentinos nas décadas de 1930 e 1940. Também, Experimentos do Êxodo: Julio Le Parc e o GRAV, de autoria de Leandro Candido de Souza, reconstrói a trajetória de Julio Le Parc e sua produção artística e seu processo de engajamento nas lutas políticas da América Latina, na segunda metade do século XX.

Esperamos que a leitura desse volume seja um convite à intensificação das trocas de experiências entre os pesquisadores interessados em refletir sobre a diversidade das culturas.

Boa leitura.

Cristiano Arrais (UFG)

Jorge Kulemeyer (UNJ)

Organizadores


ARRAIS, Cristiano; KULEMEYER, Jorge. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 22, n. 3, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Para além das fronteiras: histórias transnacionais, conectadas, cruzadas e comparadas | Temporalidades | 2016

O presente dossiê de Temporalidades, revista discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, confirma a qualidade desta que já se firmou como uma das mais importantes revistas discentes na área de História publicadas no Brasil, cujo número inaugural foi lançado no primeiro semestre de 2009, estando em seu oitavo ano de existência. Inicialmente semestral, a revista passou a ser, a partir de 2013, quadrimestral. O Conselho Editorial é constituído integralmente por doutorandos e mestrandos do PPGH-UFMG, que têm demonstrado uma dedicação e empenho indiscutíveis e louváveis para manter a periodicidade e a qualidade da revista, que publica artigos recebidos de pesquisadores de instituições de todo o Brasil e, inclusive, de outros países.

O processo de globalização do capitalismo, acentuado após a Segunda Guerra Mundial, praticamente impôs à produção historiográfica, em todos os continentes, ir além da perspectiva nacional, dominante desde o século XIX, e intensificar as perspectivas transnacionais. Leia Mais