L’Europe des Vikings | Claudine Glot e Michel Le Bris

Para o imaginário ocidental, os Vikings sempre foram vistos como bárbaros cruéis, assolando e destruindo as costas européias durante a Idade Média. Apesar de estudos acadêmicos escandinavos desde o século XIX demonstrarem outras facetas desta cultura, foi somente a partir dos anos 1960 que a historiografia contemporânea iniciou uma nova concepção sobre os nórdicos. O historiador britânico Peter Sawyer (The Age of the Vikings, 1962) e o francês Lucien Musset (Les invasiones: le second assault contre l’Europe chrétienne, 1965) reabilitaram os guerreiros Vikings, especialmente para o contexto social e político dos tempos medievais. Desde então, diversos estudos demonstraram a complexidade da arte, da estrutura social, as concepções mitológicas e religiosas dos antigos escandinavos, e como eles interferiram nos rumos políticos do Ocidente, deixando diversas marcas perceptíveis até hoje.

A recente publicação L’Europe des Vikings comprova esse interesse renovado pelos audaciosos aventureiros da Escandinávia. Lançado simultaneamente com uma megaexposição na Abadia de Daoulas (França) [1], o livro reuniu alguns dos maiores especialistas do mundo na área da Vikingologia, desde mitólogos, arqueólogos, historiadores, epigrafistas até museólogos. A direção da obra foi de Claudine Glot (Centro do Imaginário Arturiano) e Michel Le Bris (Centro Cultural Abbaye de Daoulas) [2].

O pesquisador com maior quantidade de trabalhos é Régis Boyer (professor emérito da Universidade de Paris-IV-Sorbonne). No artigo Les dieux, les hommes, le destin, faz uma sistematização sobre a religiosidade nórdica pré-cristã, cuja principal característica era a ausência de centralizações tanto a nível teológico quanto a nível organizacional. Não possuíam dogmas, sacerdotes no sentido moderno do termo (sem castas ou iniciações), sem “fé” e ritos [3]. Ao contrário de outros sistemas religiosos, os escandinavos não privilegiavam a força bruta ou os valores essencialmente marciais em seus cultos, mas sim, as noções de fertilidade-fecundidade pelo viés da magia. A reverência às forças da natureza e os cultos aos ancestrais foram preponderantes, tanto na forma de padrões mitológicos quanto no cotidiano social. Se para os mitos enquanto narrativas simbólicas, Boyer ainda conserva uma influência direta de Georges Dumézil, ao continuar dividindo-os em três níveis (variantes líquidos, telúricos e solares-aéreos), percebemos que a importância concedida para as artes mágicas vem progressivamente tendo importância em seus estudos. Em seu clássico de 1981 (Yggdrasil: la religion des anciens scandinaves), Boyer já denotava a relevância dos rituais de magia na sociedade nórdica, neste artigo percebemos que esta perspectiva tornou-se mais acentuada, especialmente para os ritos de Nið (infames e dessacralizadores), Seiðr (divinatórios sagrados) e Blót (sacrifícios propiciatórios). Preocupados essencialmente com seu destino, os Vikings procuravam o conhecimento deste através de todos os meios possíveis. Segundo a perspectiva de Boyer, a religião para os Vikings era baseada profundamente na ação, em valores de reciprocidade, uma “prodigieuse leçon d’énergie et de confiance en la vie” (p. 29).

Em outro trabalho, De la hache à la croix, Boyer concede sua interpretação para o processo de cristianização da Escandinávia, um tema que vem ganhando cada vez mais importância no medievalismo. O historiador mantém duas posições básicas e interdependentes. A primeira enfatiza a transferência de um modelo religioso do continente para as terras do norte. Os pagões Vikings possuíam um contato prévio com o cristianismo, tanto pelas viagens exploratórias e comerciais, conhecendo seus ritos, crenças e hábitos (especialmente pelos intercâmbios com Constantinopla). Isto foi uma das razões que, ao contrário da lenda, não houveram conversões feitas de sangue e mártires. Já na literatura islandesa, sua redação utilizou os textos hagiográficos em latim, o modelo clássico de um rei convertido ou a vida de um santo local. É o que Boyer denomina de aggiornamento, muito mais que uma mudança de mentalidade, uma adaptação das novas tendências com o antigo. Isso pode ser exemplificado com o fato da Igreja tolerar e mesmo incentivar a utilização de inscrições rúnicas – consideradas mágicas pelo paganismo – ou pelo fato dos templos cristãos serem erigidos em áreas de antigos cultos pagãos [4]. O segundo aspecto enfatizado por Régis Boyer é o político. Durante a Era Viking, os reis possuíam um carisma sagrado, mas por outro lado não tinham autoridade suprema. O cristianismo trouxe novas possibilidades para o aumento da centralização do poder real, além de possuir um sistema hierárquico extremamente piramidal. A religião nórdica antiga não tinha dogmas, rituais precisos e definidos, templos, iniciação sacerdotal, enquanto o cristianismo fornecia além de tudo isso, também a possibilidade de contatos mais freqüentes com a Europa, como a própria manutenção simbólica dos reinos. Mas com isso, o Viking não pode ser mais livre e independente. Ele simplesmente desaparece: “le christianisme aura été l’un des grands facteurs d’extinction du Viking” (p. 147).

Mais um estudo integrante do livro é La longue histoire des runes, de Alain Marez (Universidade de Bordeaux-3). Uma das fontes mais prestigiadas nos atuais estudos de Escandinávia, a runologia ou epigrafia rúnica possui a vantagem de reconstituir a história através dos próprios povos nórdicos e não em documentos escritos posteriormente. Em 1999 foram calculados cerca de 3.200 inscrições rúnicas na Suécia, 900 na Noruega e 700 na Dinamarca. Um grande potencial para novas pesquisas e interpretações da sociedade escandinava. Marez é partidário da opinião de que as runas surgiram no século II d.C., influenciadas pelos alfabetos da região norte da Itália, o Piemonte subalpino, especialmente pela migração entre os povos do norte e sul da Europa. Durante o século III, a Dinamarca predominava na produção de inscrições, mas no período de migrações até a Era Viking, a Suécia tornou-se preponderante.

No primeiro período de produção rúnica, o principal suporte das inscrições foi o metal, mas com os escandinavos houve a posterior preponderância das gravações em rocha. A maioria do conteúdo é bem curto, sendo muitas sequências do futhark [5] de caráter mágico ou de nomes próprios, bens familiares, conjurações e malefícios. As vezes as inscrições funerárias traziam o nome do defunto ou do gravador. Em sua origem, a prática de gravar nomes era feita por uma elite social, membros da aristocracia. E a partir do século V, apareceram as estelas rúnicas sobre pedras para honrar o morto. As estelas com serpente rúnica (runslangen) apareceram na Suécia central do século XI. A fórmula dos textos é bem simples: “X elevou esta pedra (em memória de) Y (seu parente, amigo)”. Caso as circunstâncias da morte sejam excepcionais, o texto exaltava o bom caráter do defunto. O “centro de gravidade” da tradição rúnica situava-se na província de Uppland, norte do lago Mälar (Suécia). Concentrada na sede da monarquia dos Svear, uma rica aristocracia de famílias muito influentes favorecia o surgimento de uma literatura rúnica. Atualmente as estelas escandinavas, especialmente da Suécia, estão sendo tema de inúmeros estudos que procuram relacionar o texto com aspectos sociais, religiosos e econômicos, permitindo uma visão muito mais ampla das potencialidades desta fonte [6].

Segundo Marez, após a cristianização a Igreja não encarou as runas como vetores do paganismo e acabou adotando-as em suas cruzes e objetos de culto. Com o triunfo da escrita alfabética latina, o futhark escandinavo começou a decair, mas no século XIII ocorreu uma nova variação para tentar rivalizar com o latim – o futhark medieval do século XIV, utilizado nos funerais cristãos, epitáfios, marcas de propriedade, nas assinaturas de artistas, carpinteiros e escultores. Os bastões rúnicos (runakefli) foram calendários muito populares, uma das últimas formas do futhark, utilizados em 1300. Para o desfecho do artigo, Marez cita uma frase do epigrafista francês Lucien Musset: “l’emploi vivant des runes cesait, la runologie naissait…” (p. 39). Com o surgimento dos movimentos esotéricos a partir do Oitocentos, as runas tornaram-se muito populares, especialmente como oráculos divinatórios. Mais do que nunca, estudos acadêmicos sobre o alfabeto rúnico e seu verdadeiro significado na Antigüidade são necessários. Neste sentido, o artigo de Marez além de uma ótima introdução, esclarece vários procedimentos metodológicos sobre epigrafia, evitando que as runas continuem apenas a serem imaginadas como algo misterioso e transcendental.

Michel Le Bris (Centro Cultural Abbaye de Daoulas) assina o interessante artigo Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. Neste trabalho, o autor recupera alguns aspectos do imaginário moderno sobre os bárbaros. Não podemos pensar os Vikings, Saxões e outros grupos sem levar em consideração as representações literárias e artísticas realizadas pelos europeus a partir dos séculos XVIII e XIX [7]. Le Bris enfatiza principalmente como os artistas desta época utilizaram a imagem do bárbaro como um reflexo de suas próprias inquietudes, de seus medos e de suas aspirações políticas ou ideológicas. Poetas como Chateaubriand e Thierry enfatizaram a figura do bárbaro com um significado de liberdade, o selvagem liberto na natureza. Já para Burgh, Hulme e a escola escocesa, houve a pretensão em demonstrar a origem gótica da liberdade inglesa e as idéias democráticas de seus antecessores ingleses. O grande mito bárbaro da época foi reinventar a explosão, a liberdade e a terra, em uma figura que fascina ou é temida, o homem nãogrego, do tumulto, da tempestade, da desordem, da desgraça. Bárbaros podiam ser os homens da Convenção ou Napoleão, convertido em Átila: após Waterloo, os bárbaros do Norte salvam a democracia e livraram a Europa dos bárbaros do sul. Os jovens românticos franceses se proclamavam bárbaros para se opor à Academia. Ainda para Le Bris, os novos bárbaros nasceram no interior da própria sociedade européia depois de 1831, as hordas obscuras que se levantaram na sociedade, os proletários. Enfim, a representação barbárica foi extremamente polimórfica, variando conforme o contexto político e social, ou ainda, dependendo do referencial artístico.

Em Les mille trésors de l’île de Gotland, Malin Lindquist (Museu Regional de Visby, Gotland) perfaz um panorama dos atuais estudos sobre a ilha de Gotland, uma das mais importantes regiões da Era Viking. O local serviu para manter a independência política dos chefes em relação a Suécia: ainda no período Vendel, os Götar já possuíam um dialeto e uma cultura diferenciada do resto da Escandinávia. A ilha foi centro do comércio LesteOeste, concentrando as influências vindas do Oriente e por isso mesmo um grande alvo para piratarias desde tempos remotos. O grande diferencial cultural da região foram as maravilhosas estelas funerárias. Com uma elegância refinada, decoradas com símbolos de glória, de morte e ressurreição, cenas dramáticas e dragões entrelaçados. As mais antigas serviam como pedras de túmulo (séc. V) e as mais recentes (séc. XII) como memoriais de propriedade. A decoração das pedras consiste em motivos espiralais, representações estilizadas de animais e outras de simbologias religiosas dos Vikings. As imagens ilustram os acontecimentos que marcaram a vida de um defunto enquanto era vivo. Foram erigidas não muito longe das rotas, pontes e locais de passagem: constituíram essencialmente monumentos para serem vistos e recordados – um importante elemento legitimador da ordem política (a classe dos Jarl) e da ordem religiosa (os cultos odínicos) [8]. As pedras rúnicas do século XII testemunham a ruptura do paganismo e do cristianismo, um dos grandes temas de investigação nos atuais estudos de epigrafia nórdica.

A obra ainda contém outros estudos importantes, como La Finlande et les Vikings, de Leena Söyrinki-Harmo (Museu de Helsinki, Finlândia), concedendo algumas perspectivas entre o contato dos escandinavos com as populações finno-ungricas. James GrahamCampbell (Universidade de Londres), traça um panorama das invasões nórdicas no extremo da Grã-Bretanha (Jarls des îles d’Écosse), enquanto Neil Price (Universidade de Uppsala), reconstitui as invasões e a formação das colônias escandinavas na Inglaterra (Angleterre: de la violence à la royauté). A descoberta e colonização do Atlântico Norte foi enfatizada por Jean-Yves Marin (Museu da Normandia) em seu artigo Les Vikings ont-ils découvert l’Amérique?, enquanto os raids pelo Mediterrâneo foram contemplados por Claudine Glot (L’Espagne et la Méditerranée).

O livro conta com uma estrutura gráfica espetacular, reproduzindo além de fotografias de diversos artefatos arqueológicos, ilustrações e pinturas de museus europeus e coleções particulares. Algumas destas obras de arte são muito pouco reproduzidas em publicações, como Pirates normands au IX siécle, de Évariste Luminais (1894); Le reliquaire, de Henri-Georges Charrier (1881); Gissur défiant les Huns, de Peter Arbo (1886); Les Rois des mers, de Alfred Didier (século XIX). Enfim, um lançamento imprescindível para os vikingólogos e muito útil também para os medievalistas em geral, pesquisadores e amantes dos fascinantes escandinavos.

Notas

1. A exposição L’Europe des Vikings foi realizada na Abadia de Daoulas, França, de 14 de maio a 14 de novembro de 2004. Dirigida por Michel Le Bris, teve como principal consultor técnico/curador o historiador Régis Boyer. A exposição contou com mais de 600 peças provenientes de 40 museus da Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Inglaterra, Russia, França e coleções particulares.

2. O Centre Culturel Abbaye de Daoulas situa-se na Bretanha Francesa é um órgão dedicado exclusivamente aos estudos de imaginário e mitologia (http://www.abbaye-daoulas.com.fr). O Centre de l’Imaginaire Arthurien também sediado na Bretanha Francesa, sendo um importante centro de referência sobre mitologia arturiana. (http://perso.wanadoo.fr/merlin77/cia.htm).

3. Boyer chama a atenção para o fato da Edda Poética não ter uma única prece verdadeira: “Au demeurant, le corpus impressionnant des textes ‘religieux’ que nous propose l’Edda poétique ne nous offre pas une seule véritable prière!” (p. 146).

4. O reaproveitamento de áreas sagradas foi uma tendência em grande parte das áreas evangelizadas pelo cristianismo: ocorreu no Peru (Igrejas construídas acima das bases de templos incas), México, Irlanda e Escandinávia. Na Inglaterra, região de Glastonbury, foi construído um mosteiro – a primeira Igreja do país – em um tradicional local de cultos pagãos, local sagrado do druidismo (ENGER, Michael (dir.). Fata morgana. Michael Enger Film Production for ZDF/Arte, 2001. VHS, documentário, 45 min.). Na Escandinávia muitas paróquias foram erigidas em locais tradicionais do paganismo nórdico (as áreas das antigas reuniões – things – foram as escolhidas para a edificação de Igrejas, como em Uppsala, Suécia). A continuidade da ostentação de estelas rúnicas em locais públicos ainda demonstrava a riqueza familiar, mas passava agora a ser um ato encorajado pela Igreja. Muitos temas pagãos presentes nas estelas foram reinterpretados pela nova fé. Heróis como Sigurðr combatendo o dragão Fafnir transformaram-se no Cristo triunfante destruindo a besta; a representação do deus Þórr pescando a serpente do mundo foi reencenada como sendo Cristo capturando o leviatã. Apesar de não ser fácil traçar a mudança de mentalidade no período de conversão, as inscrições rúnicas são uma excelente fonte para a investigação dos historiadores. As possibilidades de novas análises ainda são muito grandes. Conf. SAWYER, Birgit. The Viking-Age Rune-Stones: custom and comemmoration in early Medieval Scandinavia. London: Oxford University Press, 2003.

5. O futhark é o nome que se emprega para o alfabeto rúnico, derivado dos seis primeiros nomes dos sinais em Old Norse, na escrita Rama Longa e Rama Curta (PAGE, Raymond Ian. Runes. London: British Museum Press, 2000, p. 9).

6. Muitos runologistas revelam o quanto é promissora a investigação sistemática da epigrafia rúnica e dos monumentos Vikings. Pesquisas sobre genealogias, aspectos administrativos e eclesiásticos, dados estruturais do paganismo, o período inicial de evangelização na Escandinávia, autorias e estilos de confecção rúnica, todos estes aspectos ainda dependem de maiores esclarecimentos. As pesquisas futuras devem estabelecer uma relação entre o conteúdo, design e a ornamentação das estelas rúnicas.

7. Também participamos no livro em questão com um artigo sobre a formação do imaginário a respeito dos escandinavos, Rêver son passé, p. 166-169. Outros estudos que tratam do imaginário contemporâneo sobre os Vikings: LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies. Visby (Sweden), n. 4, 2002; BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986; WAWN, Andrew. The Vikings and the victorians: inventing the Old North in 19Th -Century Britain. London: D.S. Brewer, 2002; LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999.

8. Sobre estes aspectos das estelas de Gotland, ver o estudo: LANGER, Johnni. Morte, sacrifício e renascimento: uma interpretação iconográfica da estela Viking de Hammar I. Revista Mirabilia n. 3, 2003. www.revistamirabilia.com

Johnni Langer – Universidade do Contestado, SC. E-mail: [email protected]


GLOT, Claudine; LE BRIS, Michel (Orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004. Resenha de: LANGER, Johnni. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.2, p. 159-163, 2004. Acessar publicação original [DR]