Les pierres gravées de Gotland: aux sources de la sacralité Viking | Erik Nylén, Jan Peder Lamm

Apesar da sua importância para o imaginário medieval, a mitologia ainda constitui um assunto pouco estudado pelos acadêmicos contemporâneos, especialmente os historiadores. De um lado, isso é explicado pela pouca experiência metodológica para o tratamento de fontes advindas, muitas vezes, dos tempos précristãos.2 De outro, os temas vinculados à teologia, filosofia e religiosidade clerical constituem assuntos mais aprazíveis, e num primeiro momento, mais institucionalizados nas pesquisas acadêmicas. Este panorama vem sendo modificado com novas abordagens, temas e olhares diferenciados para as fontes tradicionais. Sem dúvida, as investigações dos escandinavistas especializados na Era Viking constituem algumas das contribuições mais promissoras: o estudo de mitos nórdicos, seja com documentos literários ou com monumentos contendo imagens míticas, revela as imbricações entre imagem e escrita no período medieval. Neste sentido, a ilha báltica de Gotland é um local muito especial, pois preservou centenas de representações visuais esculpidas em rochas durante a Alta Idade Média.

Mesmo com toda a sua relevância, os monumentos desse local receberam apenas duas publicações especializadas. A primeira, o clássico Gotlands Bildsteine, publicado em alemão por Sune Lindqvist em 1941 – atualmente muito raro, mesmo em bibliotecas européias – e o manual de Erik Nylén e Jan Lamm, originalmente editado em sueco no ano de 1978, e que agora recebe uma tradução para o francês, Les pierres gravées de Gotland. Jan Lamm foi diretor do Museu de Antiguidades Nacionais da Suécia, em Estocolmo e Erik Nylén é arqueólogo na Universidade de Uppsala, Suécia. Leia Mais

La saga de Fridthjóf el valiente y otras sagas islandesas – ANÔNIMO (S-RH)

ANÔNIMO. La saga de Fridthjóf el valiente y otras sagas islandesas. Tradução de Santiago Ibáñez Lluch. Madrid: Miraguano, 2009, 365 p. Resenha de: LANGER, Johnni. História e memória dos vikings. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [23] jul./ dez. 2010.

Desde o momento em que foram amplamente divulgadas durante o século XIX, as sagas islandesas2 constituem um material imprescindível para o estudo da história dos povos escandinavos durante a Era Viking. Mas, por isso mesmo, são motivos de intenso debate pelos especialistas: até que ponto esse material literário, composto entre os séculos XIII e XIV, pode ser utilizado para a pesquisa de sociedades que viveram entre os séculos IX e XI? Tradicionalmente, as sagas islandesas eram vistas como o registro por escrito de tradições advindas de uma memória social, conservada fidedignamente pela tradição oral – mas para os historiadores, o subgrupo das sagas de família tinha maior interesse, devido às suas características de possuírem um estilo mais “realista”, em contraposição as chamadas sagas lendárias, de conotações mais fantásticas.

A polêmica intensificou-se, e hoje não se contrapõe mais o oral com o escrito (ambas existiram paralelamente e com mútua dependência) e qualquer tipo de saga possui reflexos sociais e interesse histórico, independente de seu estilo literário. Um dos tipos de sagas islandesas que vem sofrendo maior reavaliação por parte dos acadêmicos são as fornaldarsögur (sagas lendárias). Estas narrativas descrevem aventuras fantásticas ocorridas na época dos vikings (século IX ao XI), tendo como base material nativo e folclórico, mas também com muitas influências externas (romances de cavalaria, material céltico, árabe, persa, bizantino)3, com o objetivo básico de entreter a aristocracia islandesa do século XIII4. Mesmo não tendo um valor histórico como as sagas de famílias, as narrativas lendárias estão sendo utilizadas como fontes para o estudo da literatura, da ideologia, monarquia, valores éticos e morais, gênero, entre outros, tanto do período em que foram compostas quanto da época que retratam. Leia Mais

Vikings: a Era dos conquistadores | Philip Wilkinson

Dentre todas as culturas do passado ocidental, sem sombra de dúvida, os vikings ocupam um lugar especial no imaginário social do mundo contemporâneo. São temas de jogos, brinquedos, filmes, quadrinhos, festivais e letras de música pop e rock. [1] Em parte devido a esse sucesso, grande quantidade de livros de popularização são publicados com muita freqüência. Isso acarreta duas conseqüências básicas: uma positiva, onde temos o interesse inicial dos jovens leitores direcionados para o estudo da Idade Média, levandoos a terem cada vez mais contato com outras obras, essas sim, resultados diretos de estudos acadêmicos; e outra negativa, pois nem sempre os livros de divulgação são escritos por especialistas, ocasionando alguns equívocos e a persistência de erros interpretativos.[2]

Dentro deste contexto, temos a publicação de Vikings: a Era dos conquistadores, do britânico Philip Wilkinson. O autor é um destacado escritor, editor e roteirista de dezenas de títulos envolvendo temas históricos de divulgação, tanto da Antiguidade e medievo quanto de assuntos modernos, e até mesmo enciclopédias e recursos áudiovisuais.

Uma das suas últimas obras, Vikings: a Era dos conquistadores, é visualmente magnífica, repleta de belas ilustrações, gráficos, fotografias e maquetes tridimensionais, o que certamente colaborará para o sucesso do livro entre crianças e pré-adolescentes. A divisão da obra segue um modelo tradicional de obras congêneres, em três partes: a primeira, que reconstitui a história dos escandinavos na Era Viking; uma segunda, recontando alguns mitos e aspectos religiosos; e uma terceira, que aborda o cotidiano, a vida material e o progresso tecnológico e artístico.

A primeira parte (Primórdios, Barcos de guerra, Invasões, Exploradores navais, Jornadas pelo interior,) analisa a origem e a constituição das principais características que definiram o modo de ser e viver dos vikings, em especial, abordando os aspectos náuticos e a estrutura das embarcações – a principal arma de guerra e propiciadora das colonizações e explorações longínquas. O maior elemento caracterizador dos vikings – seus equipamentos de guerra e suas técnicas de combate – foi amplamente descrito em duas páginas com encarte lateral, detalhando inclusive nomes e designações. Mas os aspectos de interiorização comercial, mercantil e política dos vikings pela Europa não foram esquecidos, aprofundando outros aspectos além do caráter guerreiro e exploratório dos escandinavos, o que certamente contribuirá para uma representação mais equilibrada e positiva dos vikings no imaginário do leitor.

O capítulo “sagas e lendas” reconstitui algumas facetas da literatura medieval nórdica, mas é a mitologia que possui os maiores atrativos: uma bela ilustração entre as páginas 17 e 18, reproduz a estrutura cosmogônica do universo, e a página posterior concede informações sobre as deidades mais famosas. Neste momento, ocorrem alguns lapsos. Primeiro, em termos iconográficos: Odin é representado em um elmo com asas laterais e Thor utilizando um elmo com chifres. Nenhuma fonte medieval permite esse tipo de caracterização, e certamente o ilustrador foi influenciado pelo moderno imaginário sobre os vikings e seus deuses, criado durante o Oitocentos e permanecendo como imagem icônica e estereotipada até nossos dias (Langer 2002: 7-9; 2009a: 133- 147). Outro equívoco, muito comum, é considerar Loki como “deus da maldade”. Na realidade, a percepção desta entidade no pensamento nórdico era extremamente complexa e distante dos referencias do ocidental moderno, e era geralmente apoiada no eixo ordem e caos – em alguns momentos Loki era necessário à manutenção da ordem do universo; em outras, ele era necessário para causar desordem e conflitos. Em todo caso, é uma figura ambígua, complexa e enigmática, impossível de ser entendida apenas pelo referencial maniqueísta e simplista do homem contemporâneo (Dumézil 1986: 9- 53).

A sociedade viking foi abordada em uma seção sobre “Reis e leis”, enfocando as formas básicas de legislação e dominação política nas diversas áreas da Escandinávia. E de forma muito comum em outros livros similares, a mulher e a criança foram enfocados numa seção denominada “Vida diária’, abrangendo também a alimentação, a habitação e as diversões dos nórdicos durante o medievo. Um aspecto pouco comum na literatura de popularização sobre os nórdicos – a informação sobre o artesanato e as sofisticadas fases artísticas dos escandinavos – foi enfatizada na seção “Artes vikings”, com belas reproduções fotográficas.

Os aspectos religiosos são tratados no capítulo “morte e sepultamento”, com menções às práticas funerárias, como a inumação e a cremação, as runas e as estelas rúnicas. Mas outros aspectos importantes da religiosidade, como a magia, os centros cerimoniais, os festivais e os sacrifícios foram omitidos. Deixando pouco espaço para que o leitor possa ter mais familiaridade e conhecimento de um tema tão distante dos tempos atuais, as crenças e valores pagãos que existiam antes da cristianização da Escandinávia (Langer 2009b: 143)

A última parte do livro, “Desfechos”, explora a introdução de novos valores na Escandinávia, ocasionando diversas transformações sociais, políticas e culturais. Entre elas, a influência do processo de centralização monárquica, o feudalismo e o cristianismo, este último ocasionador não somente da presença de novos elementos sociais, mas também arquitetônicos, como a construção de igrejas de aduelas na Noruega.

O livro possui outros méritos, como uma excelente cronologia visual, abordando as mais importantes etapas e acontecimentos da Era viking (p. 29); recursos interativos, como a reconstituição de uma habitação nórdica, que permite ao mesmo tempo vislumbrar tanto o exterior quanto o interior da mesma (p. 20); um disco de decodificação da escrita rúnica e um barco viking em alto relevo, ambos extremamente atrativos para o público infanto-juvenil. Além disso, houve a inclusão de dois mini livros colados ao texto, cada um com 10 páginas. O primeiro, uma adaptação da Crônica anglo-saxônica (p. 4), uma das mais importantes crônicas históricas da alta Idade Média, e o outro, fragmentos adaptados da Saga de Njal (p. 16), importante documento literário da Islândia Medieval. Sendo ambas inéditas em língua portuguesa, as suas inclusões certamente proporcionarão uma excelente introdução a dois tipos diferentes de fontes históricas, uma produzida por povos não escandinavos, e a outra, realizada por nórdicos após a cristianização e vários séculos após a Era Viking – mas se reportando tematicamente a ela, um exemplo de saga de família do período feudo-cristão.

Em um momento onde a criança e o jovem estão cada vez mais distantes dos métodos tradicionais de obtenção do conhecimento, como a ida a bibliotecas, a pesquisa e a leitura de livros, certamente o livro de Wilkinson pode constituir um excelente meio de divulgação e até mesmo de recurso paradidático no ensino de história. No aguardo da publicação de obras mais especializadas e da tradução de fontes primárias da Era Viking, certamente os livros de popularização são sempre bem vindos ao grande público.

Notas

1. Em nosso país existem muitos poucos estudos traduzidos sobre o impacto dos vikings no mundo contemporâneo. Para um panorama deste tema, consultar especialmente: Glot 2002: 188-191; Mjöberg 1980: 207-239; Langer 2009a: 133-147.

2. Existem várias obras de popularização sobre vikings em língua portuguesa, com variados níveis de qualidade, a exemplo de Clarke 1983; Gibson 1990; Clare 1993; Brochard & Krähenbühl 1996; MacDonald 1996; Guy 1998; Táti s.d.

Referências

BROCHARD, Philippe & KRÄHENBÜHL, Eddy. Os vikings: senhores dos mares. São Paulo: Editora Augustos, 1996.

CLARKE, Helen. Os vikings. Lisboa: Editorial Verbo, 1983.

CLARE, John D. Vikings. São Paulo: Editora Manole, 1993.

DUMÉZIL, Georges. Loki. Paris: Flammarion, 1986.

GIBSON, Michael. Os vikings. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

GLOT, Claudine. Drakkars sur grand écran. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel. L´Europe des Vikings. Paris: Hoebeke, 2002, pp. 188-191.

GUY, John. Como viviam os vikings. Lisboa: Didáctica Editora, 1998.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage 4, 2002. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 10 de abril de 2010.

_____ Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da UNB, 2009a.

_____ Vikings. In: FUNARI, Pedro (org.). As religiões que o mundo esqueceu. São Paulo: Contexto, 2009b, pp. 130-143.

MAcDONALD, Fiona. Vikings. São Paulo: Editora Moderna, 1996.

MJÖBERG, Jöran. Romanticism and revival. In: WILSON, David (org.). The northern world: the history na heritage of Northern Europe. New York: Harry Abrams, 1980, pp. 207-239.

TÁTI, Miécio. Os vikings. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

Johnni Langer – Departamento de História – UFMA. E-mail: [email protected]


WILKINSON, Philip. Vikings: a Era dos conquistadores. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008. Resenha de: LANGER, Johnni. Popularizando os Nórdicos. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 41-43, 2009. Acessar publicação original [DR]

Norse warfare: unconventional battle strategies of the ancient viking | Martina Sprague

Os escandinavos são alguns dos mais famosos guerreiros do medievo. Suas ações de pirataria e feitos militares são popularizadas pelo imaginário e cultura de massa até nossos dias, ao mesmo tempo em que constituem temáticas de investigações pelos acadêmicos contemporâneos, sempre buscando compreender o impacto nórdico no continente europeu: “Os vikings estavam entre os povos mais belicosos e resistentes que jamais assaltaram a civilização” (Keegan 2006: 372).[1] A maior parte dos pesquisadores vêm buscando explicações para o sucesso das empreitadas nórdicas, geralmente dentro de dois referenciais, um interno – que procura as motivações dentro dos próprios valores sociais e culturais da Escandinávia, e outro externo, relacionado principalmente com os fatores econômicos, políticos e sociais da Europa cristã.[2]

Em sua recente obra, Norse warfare, a historiadora Martina Sprague [3] estrutura a maior parte de suas problemáticas de investigação dentro do referencial internalista. Deste modo, o livro pode ser dividido em três partes distintas: a que engloba os capítulos 1 ao 4, referente às características gerais da sociedade escandinava e do estilo de vida dos vikings; uma segunda abrangendo a tecnologia náutica, equipamentos militares e técnicas de batalha (capítulos 5 a 7) e a terceira, exemplificando o tema com guerreiros famosos (capítulos 8 a 15).

O primeiro capítulo (Raids on the Christian world) trata do impacto causado pelas incursões de pirataria e pilhagem dos nórdicos pela Europa nos séculos VIII e IX d.C. A autora reconstrói as incursões por meio de diversas fontes não escandinavas (como os Anais de São Bertin, As crônicas anglo-saxãs, cartas de Alcuino, a Gesta Normannorum, entre outras), mas procurando sempre contrastá-las com fontes escandinavas (especialmente as sagas), buscando assim uma reflexão histórica que consiga atingir as motivações sociais e culturais destas atividades – não ficando apenas nos estereótipos e imagens degradantes fornecidos pelos povos atingidos. Inclusive, a imagem dos raids vikings como desorganizados – muito comum nas fontes nãoescandinavas – é contestada pela autora: os ataques surpresas realizados por pequenos grupos criavam uma idéia de caos a povos acostumados com a presença de exércitos regulares, seja para manutenção da ordem quanto em ações militares. O modus operandi típicos destes grupos atacantes (entrar, assaltar, enriquecer e sair) é competentemente comparado por Sprague aos soldados de forças especiais dos tempos contemporâneos, onde o ataque de pequenas unidades com objetivos específicos e bem determinados, o uso de táticas, maneabilidade, flexibilidade, rapidez, surpresa e boa comunicação fazia toda a diferença: deixou boa parte das forças militares européias sem ação, alterou o panorama político e intranquilizou boa parte das populações européias da Alta Idade Média.

Os capítulos 2 (Live hard, Die with honor) e 3 (Going a-Viking) aprofundam o entendimento do papel do guerreiro na cultura nórdica, especialmente como os ideais de força, lealdade e coragem encontravam respaldo na religiosidade, na política e nas leis. A experiência de “sair como um viking”[4] não somente concedia oportunidade aos jovens para obterem uma melhor formação e experiência militar, mas também um melhor status na sociedade. No caso dos adultos, tanto o enriquecimento quanto as motivações religiosas eram impulsionadoras destas participações. A figura do líder demonstra essa ideologia: o guerreiro mais forte, de maior coragem e com mais sucesso nas batalhas era o indicado ao papel de comando, sempre coadunado com os modelos heróicos da tradição oral e religiosa.

A autora também concede um pequeno vislumbre na questão dos mais polêmicos guerreiros da Escandinávia Viking, os berserkers (no nórdico antigo – plural: berserkir; sing.: berserkr). Estes constituíam um grupo militar de elite, associado diretamente às crenças odínicas (da qual seriam inspirados no momento de fúria alucinada) e utilizados em operações terrestres no front da formação (para um primeiro ataque e choque) e em batalhas náuticas para proteger o navio real.[5] A autora preocupa-se em tentar explicar o estado alterado de consciência destes guerreiros pela teoria mais tradicional, surgida durante a década de 1950, a de que estes utilizariam bebidas e substâncias alucinógenas (como o fly acaris e a Amanita muscaria), mas não elenca os experimentos mais recentes que a questionam totalmente, comprovando a limitação da capacidade de batalha pelos efeitos colaterais provocados no guerreiro. A historiadora conclui o tema, afirmando que os berserkers eram muito admirados e temidos, mas o seu emprego militar foi limitado no período viking, devido à exigência de lealdade e confiança para os padrões sociais verificados no período, algo questionável, visto que a representação destes personagens nas sagas é variável e algumas vezes pode ter sido influenciada pelo referencial do período cristão em sua elaboração textual. De qualquer maneira, algumas fontes (como a Egil saga einhenda ok Ásmundar berserkjabana 8) apresentam os berserkers como soldados de extrema confiança do rei, realizando operações especiais a seu mando. A relação entre a percepção social e o registro histórico-literário é algo ainda passível de várias abordagens para o futuro (as formas de representação literária dos berserkers não dependeriam originalmente de sua percepção para os camponeses da Escandinávia viking, que os temiam, e a aristocracia, que contratava seus serviços e os enaltecia?)

Os capítulos 4 (Building the ship) e 5 (Seamanship and navigation) aprofundam a questão do grande referencial tecnológico dos escandinavos em relação aos métodos europeus do período, o navio de guerra, “um recurso contra o qual nenhum reino europeu tinha antídoto” (Keegan 2006: 371). O sucesso das empreitadas dos vikings não se explica somente pela sua superioridade tecnológica, mas também pelo grande conhecimento de navegação, orientação e sobrevivência pelo litoral (navegação de cabotagem) e alto mar, especialmente pelo Atlântico Norte. O navio adapta-se perfeitamente ao tipo de guerra anti-convencional praticada pelos soldados – naves robustas, espaçosas e flexíveis, importantes tanto para uma aproximação num curto espaço de tempo, como também imprescindíveis para uma rápida e segura saída de regiões pouco favoráveis em termos geográficos ou militares. Um pequeno detalhe omitido pela autora é referente à fabricação das velas (como também das roupas para alto-mar): elas não somente eram revestidas de alcatrão e gordura animal, mas originalmente feitas de um tipo de lã impermeável, obtidas de carneiros das altas montanhas.

O capítulo seguinte (weapons and armor) detalha a questão do armamento nórdico: os escudos de madeira e sua utilização como principal defesa corporal; as espadas com a média de dois quilos, simples e funcionais; lanças e dardos, utilizados a distância ou corpo a corpo; o machado de batalha e seu efeito devastador para a psicologia do inimigo; arcos e flechas como retardadores do avanço das tropas opositoras. As cotas de malha e os capacetes eram pouco utilizados, geralmente pelos aristocratas e pessoas mais ricas. Para Sprague, os equipamentos de batalha eram muito pouco diferentes dos outros povos europeus do período e o que explicaria o sucesso dos vikings seria muito mais a sua capacidade de comando, estratégia e liderança nos ataques.

Sem dúvida, o capítulo mais importante é o sétimo (Military organization and battlefield tactis), demonstrando que a formação do guerreiro nórdico provinha essencialmente de uma sociedade baseada na honra, bravura e no preparo para a guerra, muito mais do que um treinamento organizado, extensivo e disciplinado. A estratégia básica para qualquer tipo de operação militar era o conhecimento prévio do local a ser atingido (seja por informações de comerciantes, espiões ou mercenários), antecipando- se ao inimigo e preparando-se previamente para a batalha. No caso das pilhagens, tanto a inexistência de defesa permanente quanto os conflitos internos das regiões a serem atacadas (como Irlanda, Inglaterra e França) colaboraram para o triunfo escandinavo.

A população, geralmente camponeses, era responsável pela manutenção dos navios e da provisão do exército. Com o avanço das conquistas, da colonização nórdica e da centralização monárquica em várias regiões, a necessidade de armadas profissionais – incluindo oficiais, guarnições fortificadas e equipamentos mais padronizados – tornou-se freqüente. Alguns guerreiros e seus oficiais chegaram a viver periodicamente em guarnições separadas das cidades.

A descrição do cenário de batalha é aprofundada pela autora em diversos momentos, como, e.g., a situação do líder – considerado o homem mais forte e corajoso– que comanda o front da formação junto ao seu melhor subordinado e protegido por uma formação circular de escudos, sendo o primeiro homem a confrontar o inimigo. Quanto mais intrépido e audaz fosse o chefe, mais eficiente seria seu exército. Nos confrontos internos da Escandinávia, a probabilidade de confusão e acidente pelo fogo inimigo ou amigo era muito comum, como na famosa batalha de Stiklestad (Stiklarstaðir) na Noruega em 1030.

Outra preocupação da autora é com a descrição dos métodos de batalha naval, muito pouco explorados pelo cinema e literatura, consistindo desde a preparação das embarcações até em como podiam ser movimentadas umas com relação às outras, além do tipo de armamento utilizado (arcos e flechas, dardos, projéteis).

O capítulo oitavo descreve os mais renomados guerreiros profissionais da Escandinávia medieval, os jomsvikings, que serviam basicamente na fortaleza de Jomsborg, no Báltico. Realizavam duros testes de admissão e viviam sob um estrito código de ética e comportamento, sendo extremamente fiéis a seus companheiros e sem nenhum medo da morte. Participaram de uma das mais sangrentas batalhas dos vikings, a de Hjörungavágr (entre noruegueses e dinamarqueses, século X).

Outro renomado grupo militar nórdico, os varegues, são analisados no capítulo seguinte. Após a instalação dos suecos na área eslava oriental, formaram-se várias cidades e centros comerciais, que constituíram a base para os futuros ataques escandinavos à cidade de Bizâncio, na época a mais importante do medievo euroasiático. Logo, o sucesso dos vikings os colocou a serviço mercenário de outros povos, como foi o caso da guarda do próprio imperador de Bizâncio. Neste caso, o serviço estrangeiro constituía um meio de se obter prosperidade e fama para o referencial interno da Escandinávia, como foi o caso do rei norueguês Harald Hardrada. A principal função da guarda vareguiana era o de escolta, guarnição e policiamento da cidade.

Outros casos históricos e legendários analisados por Sprague são os de Ragnar Lodbrok e seus filhos (campanhas na Inglaterra anglo-saxônica); Rollo (pirataria e posteriormente colonização feudal na França); Erik Segersäll (o vitorioso), triunfante na batalha de Fýrisvellir (980, Suécia); Olaf Trygvason, o cristianizador da Noruega; Canuto (Knut), o Grande, construtor do maior império viking, unificando temporariamente a Inglaterra, Dinamarca e Noruega; Harald Hardrada, o último líder viking.

O livro de Sprague, enquanto manual sistematizador, não tem a competência e o detalhamento da obra de Paddy Griffith (The Viking Art ofWwar), mas certamente é uma ótima leitura recomendada aos iniciantes nas investigações sobre a história, cultura e literatura da Escandinávia Medieval.[6] Seu grande mérito é demonstrar que os vikings não foram mais cruéis do que os outros povos de sua época, nem que “a brutalidade é exclusiva dos não cristãos” (Sprague 2007: 309), diz a autora, citando as ações de Carlos Magno no processo de evangelização forçada dos saxões. Apesar da reputação dos nórdicos como uma cultura violenta, sua herança cultural ainda fascina o homem moderno por sua audácia, dinamismo e mobilidade.

AGRADECIMENTO

Ao Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ) pelos comentários e sugestões ao presente texto.

Notas

1. O historiador John Keegan possui uma visão extremamente tradicional sobre os nórdicos, impregnado do referencial britânico e francês sobre os povos ditos “bárbaros”, contrapostos aos civilizados: “(…) os vikings e magiares pagãos ainda viviam no mundo primitivo de deuses vingativos ou distantes ao qual pertenciam os povos teutônicos e da estepe antes de ouvirem a palavra de Cristo ou Maomé (…) cristãos, tal como o inglês São Bonifácio, apóstolo dos germânicos, também morreram como mártires no esforço de implantar o evangelho entre povos selvagens (…) Com efeito, uma Europa pós-romana sem a Igreja romana teria sido um lugar bárbaro” (Keegan 2006: 373, 374). A percepção sobre os antigos germanos vem sofrendo modificações, advindas da tradição acadêmica alemã, como podemos perceber na recente obra do historiador francês Jérôme Baschet: “ Bárbaro (…) a conotação negativa adquirida por este termo torna difícil empregá-lo hoje sem reproduzir um julgamento de valor que faz de Roma o padrão da civilização e de seus adversários os agentes da decadência, do atraso e da incultura (…) Interrogar-se sobre as noções de barbárie e de civilização e pôr em dúvida a possibilidade de julgar as sociedades humanas em função de tal oposição: é também isso que nos convida a história da Idade Média” (Baschet 2006: 49, 26). Também historiadores britânicos vêm questionando o antigo modelo de perceber as culturas não-romanas: “O declínio do Império romano não deve ser considerado a derrota da ‘cultura’ pelo ‘barbarismo’, mas sim um choque de culturas. Os Ostrogodos, Visigodos, Vândalos e outros grupos tinham suas próprias culturas (valores, tradições, práticas, representações e assim por diante). Por mais paradoxal que possa parecer a expressão, houve uma ‘civilização dos bárbaros’” (Burke 2000: 246). O referencial de Keegan sobre uma suposta superioridade religiosa do cristianismo em relação ao paganismo nórdico também é questionável: “nenhuma religião ou crença conduz à barbárie ou é uma proteção contra ela (…) O discurso do civilizador tem sempre esta estrutura: ‘Vamos levar a civilização (ou a verdadeira religião) aos povos bárbaros. Nossa superioridade nos autoriza a tratá-los como inferiores. Eles nos devem gratidão, já que contribuímos para arrancá-los de sua barbárie – ou da ignorância, ou do paganismo’. De modo geral, a noção de civilização serve tanto para valorizar a si mesmo como para justificar a sujeição de outros povos (ou sociedades)” (Wolf 2004: 28). O próprio ato do pesquisador em emitir juízos de valor sobre o passado tem uma longa tradição de questionamentos: “A função do historiador é compreender, não julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a Idade Média é a própria Idade Média” (Franco Júnior 1986: 20). Algumas vezes, referenciais sobre as religiosidades do passado remetem às próprias convicções pessoais dos acadêmicos, como no caso de John Keegan: “ (…) o ângulo de abordagem de religiões que já desapareceram costuma ser bastante diferente do que se aplica às religiões cuja vigência continua no presente (…) se vincula às repercussões das militâncias e vivências religiosas presentes hoje em dia” (Cardoso 2005: 209).

2. Para uma visão sistemática e crítica da arte da guerra entre os vikings, o melhor autor é Griffith 1995, que possui detalhados gráficos, tabelas, ilustrações, esquemas e uma competente descrição das fontes mais importantes para o estudo da temática, ao final da obra. Outros estudos complementares para a história militar escandinava são: Whittock 1997; Siddorn 2003; Short 2009.

3. Martina Sprague nasceu em Estocolmo e é mestre em História Militar pela Universidade de Norwich, Estados Unidos. É também autora do livro Sweden: an illustrated history.

4. O termo víkingr refere-se no contexto centro-medieval (fontes a partir do século XI) a toda pessoa que saía além mar para atividades de navegação, comércio, mas especialmente aos atos relacionados à pilhagem ou pirataria e atividades militares. A concepção original parece estar relacionada aos habitantes do fiorde de Vik (Hall 2007: 8).

5. Para um referencial genérico da temática dos berserkers, consultar Langer 2007b: 44-47. Uma excelente sistematização do tema com farta bibliografia é disponível em Ward 2004. Sobre a questão da inexistência histórica da conexão entre o deus Odin e os berserkers e a polêmica das fontes literárias medievais, verificar Liberman 2004: 97-101. Aqui questionamos o autor: sua idéia de que somente a Heimskringla associa este deus aos berserkers (portanto, o escritor Snorri Sturluson teria se apropriado de forma fantasiosa do folclore de seu tempo) e que os guerreiros alucinados não tem nenhuma relação com cultos religiosos é limitada. Existem fontes materiais para comprovar isso: a plaqueta de Torslunda; o fragmento de Gutenstein; capacetes pré-vikings e saxões com gravuras de guerreiros portando máscara de lobo e urso e em posição de dança. O imperador bizantino Constantino VII no Livro das cerimônias descreveu o que ele denominou de “dança gótica”, realizada pela guarda vareguiana com máscaras e peles (Barry 2003: 3). Como a série de fontes imagéticas sobre os berserkers está conectada aos simbolismos do deus Odin (muitas possuem dois pássaros, representações de Hugin e Munin), confirma-se o relato de Snorri como sendo originalmente de tradição pagã e não uma criação do período cristão. Outro erro de Liberman é procurar vestígios dos berserkers diretamente na mitologia: realmente os einherjar e a caça selvagem não têm nenhuma relação direta com os berserkers. Contudo, uma coisa são as narrativas mitológicas e outra os cultos: enquanto os einherjar, as valquírias e o valhala são temas imaginários, os berserkers são personagens históricos e enquadrados dentro da religiosidade, dos cultos e crenças da Era Viking. Por este motivo foram excluídos pelas leis islandesas de 1123 – pela associação aos ritos odínicos, e não simplesmente por serem enquadrados como fora da lei ou bandidos sociais, como quer Liberman 2004: 101. A respeito das transformações mítico-religiosas e dos estados alterados de consciência dos berserkers, verificar: Grundy 1998: 103-120. Para um excelente estudo comparativo das atividades dos berserkers entre os antigos germanos e na Escandinávia da Era Viking: Birro & Fiorio 2008. Porém, apresentamos algumas correções a esta última pesquisa. Reiterando Benjamin Blaney, o artigo afirma que a figura 2, plaqueta de Torslunda, com a imagem de um guerreiro com duas lanças – seria uma representação do deus Odin (Birro & Fiorio 2008: 60, 61).Trata-se de um equívoco interpretativo. Na maioria das fotografias e reconstituições ilustrativas deste objeto, a figura em questão não é caolha, mas possui dois olhos com o mesmo tamanho e forma. Todas as representações antigomedievais que permitem uma identificação objetiva de que são figuras desta deidade – pingentes, esculturas em madeira de igrejas norueguesas, etc, possuem um dos olhos fechados (para um panorama, ver Boyer 2004: 5-12). Somente algumas que não possuem este detalhe são consideradas como Odin pelos especialistas – como a estela gotlandesa de Ardre VIII – um resultado obtido pela análise de toda a cena/conjunto: pelo fato do deus montar o cavalo de oito patas, Sleipnir (se bem que existe a possibilidade de ser um morto em batalha, montado no dito cavalo, bebendo hidromel que recebera de uma Valquíria ao lado…); ou de figuras sendo devoradas por um lobo (como esculturas em igrejas e o relevo na cruz de Gosforth). Para estes temas, consultar Langer 2006, 2007a. Outro fato que desacredita esta interpretação de Blaney, e conseqüentemente também Birro & Fiorio, é o contexto da cena da plaqueta de Torslunda. Além de duas lanças, a figura porta uma espada – algo inusitado em se tratando de imagens de Odin, tanto para o período pré-viking quanto viking (a espada não é um dos objetos/atributos do deus caolho). Além disso, a figura está nitidamente em caracterização de dança, o que confirma algumas fontes bizantinas para o culto odínico dos berserkes. O capacete da dita figura não apresenta “duas serpentes gêmeas”, como afirma o artigo (Birro & Fiorio 2008: 61), e sim contém a figura de dois corvos na extremidade de um par de chifres. Isso é confirmado pela presença de outros objetos semelhantes encontrados em Starayja Ladoga e relevos em capacetes anglo-saxões e pré-vikings. Também em diversas imagens do período de migrações da antiguidade germânica foram representados guerreiros com lança e acompanhados por dois pássaros. A serpente não tem ligação direta com os cultos odínicos e a maior parte dos especialistas em mitologia-religiosidade viking (Régis Boyer, Rudolf Simek) e cultura material (Richard Hall 2007: 219, James Graham-Campbell), entre outros, identificam as duas figuras da plaqueta de Torlunsda como sendo dois guerreiros “dançando” para Odin. O artigo também relaciona uma interessante problemática investigativa: “A imagem dos combatentes acometidos pelo berserkgangr sofreu transformações à medida que o cristianismo penetrou na Escandinávia, pois os berserks passaram a despontar na literatura, ora como heróis, ora como vilões – um exemplo é a luta entre Egill e Ljótr; o oponente do herói era um berserk perverso e viciado em batalhas que desposou forçosamente a filha de um camarada de Egill” (Birro & Fiorio 2008: 65) Dependendo da fonte analisada, os berserkers podem ter conotação positiva, e em outros momentos negativa. Todavia, não poderia ser simplesmente a reprodução ou conservação de uma tradição oral escandinava dos tempos vikings, onde os guerreiros possuíam certa temeridade entre os camponeses e mais prestígio entre os aristocratas? Tal questão necessita de maiores aprofundamentos críticos.

6. A obra possui um excelente glossário terminológico, notas detalhadas e um eficiente índice remissivo. A bibliografia é genérica e não contém todos os títulos consultados: para isso é necessária uma revisão às notas dos capítulos. As fotografias são em preto em branco e não possuem muita qualidade de resolução.

Referências

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As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica | Mirella Faur

Os deuses nórdicos vêm fascinando o homem moderno desde a invenção da imprensa e a publicação das Eddas e das Sagas após o Renascimento. Em especial, com o advento do esoterismo e do ocultismo, os antigos cultos e mitologias foram retomados, recriados e interpretados segundo referenciais que muitas vezes afastam-se do que era concebido originalmente pelos escandinavos. É o caso do livro Mistérios nórdicos: deuses, runas, magias, rituais, de Mirella Faur, que propõe uma recuperação da antiga tradição nórdica, mas que na realidade é uma obra que mescla informações acadêmicas contemporâneas com diversos anacronismos criados por pensadores da atualidade. Um inventário de todos os erros, fantasias e equívocos de interpretação do livro transcenderia o espaço desta coluna, motivo que nos limita a apresentar apenas alguns destes lapsos e, principalmente, a refletir sobre a ideologia wiccana que esteve envolvida por trás da elaboração do texto de Mirella.

Ao caracterizar os sacrifícios realizados pelos Vikings, a autora afirma que estas práticas foram oriundas de contatos com as “tribos sanguinárias das estepes russas” (p.35), uma afirmação sem nenhuma comprovação histórica. As imolações já eram comuns desde os germanos da antiguidade, como atestam muitas das fontes clássicas (Langer 2004: 61-85). Também a respeito de registros visuais sobre os mitos, Faur equivoca-se: “Várias das imagens do Ragnarök existiam nas lendas escandinavas muito antes da cristianização. Existem pedras antigas na Suécia gravadas com cenas do Ragnarök” (p. 44). Na realidade, não existem imagens originalmente pagãs desta cena mítica. Em nosso levantamento sobre as estelas da ilha sueca de Gotland, o maior acervo visual pré-cristão da mitologia germânica disponível, não encontramos sequer uma imagem desta cena (Langer 2006: 10-41). Todas as esculturas sobre o Ragnarök foram produzidas em regiões e períodos de contato do paganismo com o cristianismo, no final da Era Viking (como as imagens produzidas em cruzes da área britânica). Em síntese, as antigas tradições orais sobre a batalha final dos deuses foram preservadas em manuscritos e seu núcleo básico talvez contenha muito do pensamento pagão original, mas as cenas visuais que restaram já possuem uma forte interferência e seleção cristã. Ainda no tema de imagens, a autora faz uma sistematização de símbolos que possuem realmente caráter pagão (como o valknut, o fylfot, o mjöllnir), mas enganou-se ao representar alguns, como um coração (segundo ela, “antiga representação dos atributos femininos”, p. 410)– que não ocorre no período germano antigo ou viking, ao menos em estelas e monumentos sagrados; e a espiral, que existiu somente na Escandinávia préviking.

Em relação ao simbolismo religioso das embarcações, novamente Mirella Faur equivocou-se: “Antes que os barcos se tornassem símbolos das conquistas vikings ou servissem como túmulos dos guerreiros, eles reproduziam nos petróglifos a Deusa como a doadora de vida e luz; o barco simbolizava a sua yoni (vulva) ou o veículo da deusa solar” (p. 426). Nada comprova isso: nas gravuras em rochas da Idade do Bronze sueca de Karlslund, os barcos estão associados a homens portando peles e chifres de animais, muitos com pênis eretos, portanto, associados à fertilidade e ao poder sexual masculino. Algumas destas gravuras também contém rodas solares junto a barcos, mas não sabemos se o Sol já era neste período considerado uma deidade feminina. No período pré-Viking da ilha de Gotland, muitas estelas funerárias contém espirais e rodas solares representadas acima de embarcações, uma clara alusão à morte e a passagem do morto para o outro mundo.

A autora preserva a equivocada concepção de que o culto aos Vanes foi mais antigo que o dos Ases: “o mundo pacífico dos adoradores dos Vanir foi dominado pela cobiça e violência dos conquistadores indo-europeus, cujo panteão formado por senhores do céu, dos raios, dos trovões e das batalhas foi se sobrepondo às divindades autóctones que regiam a terra, as forças da natureza, a fertilidade e a sexualidade” (p. 428), algo sem nenhuma comprovação histórico-arqueológica. Na realidade, divindades masculinas conectadas com o céu e com a guerra já apareciam na Escandinávia Neolítica, muito antes das invasões indo-européias, e eram simbolizados por figuras fálicas portando machados e lanças (Davidson 1987: 21).

Outro erro de Mirella é em relação à influência política das deusas: “Existem registros detalhados da devoção de certos reis, que dedicavam templos, estátuas e homenagens às suas madrinhas e protetoras. Posteriormente, o lugar dessas deusas responsáveis pelas dinastias reais e as vitórias nos combates foi outorgado a Odin, Frey, Thor e Tyr” (p. 429). Que registros são esses? Infelizmente a autora não concede maiores detalhes. Todas as fontes disponíveis (obras de Saxo Gramaticus, Snorri Sturlusson, etc) apontam que tanto as dinastias reais pré-Vikings quanto do período Viking eram consideradas influenciadas objetivamente pelo deus Odin (e em alguns poucos casos, por Freyr). Aliás, até mesmo os antigos reis germanos se consideravam descendentes diretos de Wotan e tinham muito orgulho disso (Davidson 1987: 31).

A maior parte da obra dedica-se ao estudo e interpretação das runas (p. 139-379), dentro de uma caracterização muito comum também em outros livros disponíveis em português sobre divinação, sem muitas novidades.[1] A associação de algumas runas a asteróides como Ceres e Vesta e planetas como Urano e Netuno (p. 143, 164, 273), todos invisíveis a olho nu e desconhecidos pelos escandinavos medievais, é ridícula. Não se sabe exatamente que runas eram utilizadas para previsão do futuro e nem que métodos de leitura eram empregados, ao menos durante a Era Viking. Os manuscritos medievais conhecidos como galdraboks são muito posteriores e contém influências mágico-esotéricas alheias à religiosidade pré-cristã. Em especial, o método de divinação apresentado como cruz rúnica (p. 319), nada mais é que uma adaptação do conhecido método da cruz celta do Tarot, transposto para as runas. Outras aplicações mágicas com as runas descritas no livro, como a relação com os pranaiamas da ioga e o stadhagaldr (a ioga rúnica), popularizados pelos esotéricos Ralph Blum e Edred Thorsson (p. 399), são concepções contemporâneas, sem relação direta com a religiosidade Viking.

Durante a descrição da prática mágica do seiðr, a autora possui uma postura ambígua. Primeiro adota a concepção de que o caráter negativo desta magia foi devido ao registro tardio de algumas sagas, já influenciadas pelo cristianismo, sendo seu caráter positivo o verdadeiro aspecto existente na sociedade viking (p. 413). Em um momento posterior do livro, ela apresenta uma outra visão, a de que o seiðr já era considerado negativo pelos escandinavos pagãos, devido a sua relação com os homens efeminados (p. 420). Apesar de ser um tema complexo ainda sujeito a maiores pesquisas, algumas investigações revelam que o verdadeiro poder religioso e social da mulher escandinava era o da esfera privada, onde o seiðr era fundamental, oposto à esfera pública, dominada pelo odinismo e posteriormente pelo cristianismo. Isso foi revelado magistralmente pela pesquisa de Borovsky 1999: 6-39. Já para Schurbein (2003: 129), o xamanismo foi a primeira forma de poder entre as escandinavas, enquanto Dommasnes (2005: 104) reforça os conflitos existentes entre a magia feminina doméstica e a religiosidade pública (todas afirmações de mulheres e pesquisadoras acadêmicas, então, não é uma conspiração masculina de minha parte…).

Na verdade, o intento maior de Mirella Faur é transmitir ao leitor a idéia de que a religiosidade nórdica original era a efetuada por mulheres ou pelo sagrado feminino: “Prevaleciam os ritos e rituais femininos em relação aos masculinos, por ser o universo das mulheres muito mais complexo, amplo e diversificado” (p. 430). Uma afirmação totalmente errônea, se levarmos em conta que desde a pré-história os cultos de divindades masculinas eram os mais preponderantes e importantes na sociedade escandinava em seus aspectos públicos: “As cenas representadas nas rochas mostram rituais de um culto predominantemente masculino, indicado para guerreiros e agricultores, nos quais a mulher desempenha pequeníssimo papel, sendo-lhe apenas permitido aplaudir as procissões” (Davidson 1987: 26). Isso não desmerece de maneira nenhuma a importância das mulheres para a sociedade escandinava, sendo elas no período Viking as transmissoras de quase todo o conhecimento e cultura (Jochens 2005: 217-232).

Em todo momento de seu livro, Mirella Faur leva o leitor a pensar que tanto o pequeno papel das divindades femininas nos mitos e na religiosidade foi causado por uma misoginia dos transcritores dos manuscritos: “O advento do cristianismo levou a uma perseguição intensa do princípio sagrado feminino” (p. 431), quanto do próprio trabalho dos acadêmicos modernos (!), em sua maioria homens: “iniciei a árdua tarefa de procurar a verdade primeva, soterrada sob a poeira dos tempos e fragmentada pelas interpretações tendenciosas dos monges cristãos e dos historiadores e pesquisadores do sexo masculino” (p. 15). Mas o que se percebe de forma geral nos manuscritos transcritos durante o período cristão, no tocante à feitiçaria nórdica masculina e feminina, é que seus praticantes não foram necessariamente descritos como sinistros ou satanizados, mas caracterizados dentro de regras de micro-política das comunidades (Ogilvie 2006: 1-8).

A própria mitologia nórdica, em sua forma como nos foi legada pelas fontes medievais, é questionada por Mirella:

“Da mesma maneira que o mito da criação, a descrição do Ragnarök foi feita pela ótica masculina (…) Nenhuma outra deusa, nem mesmo as Valquírias, é mencionada na grande batalha final (…) A guerra e a destruição jamais foram provocadas ou sustentadas por manifestações do princípio sagrado feminino, pois nenhuma deusa provocou o Ragnarök, participou dele ou colaborou para que ele ocorresse” (p. 44, 45).

Para se entender a batalha final, é preciso estudar o próprio fenômeno da cosmologia e cosmogonia nórdica, sendo que todas as ações realizadas pelos deuses no início dos tempos e em sua trajetória colaboraram para o caos futuro, devido à própria ambigüidade e contradições das divindades masculinas e femininas – neste caso, incluindo desde a “promiscuidade” de Freyja até o ato de Frigg para tentar salvar Balder, não sendo, portanto, as deusas omissas na ordem dos acontecimentos. Para um melhor aprofundamento, ver o estudo de Jesch (2003: 133-140).

Mas qual seria a causa deste posicionamento da autora? Em seu capítulo “O princípio feminino na tradição nórdica” (p. 425) encontramos as respostas. Mirella foi influenciada diretamente pela esoterista Diana Paxson, que auxiliou Marion Bradley a escrever o romance As Brumas de Avalon, durante os anos 1970 e uma das divulgadoras da wicca diânica. Surgido na Califórnia, esse ramo wiccano é conhecido pelo seu radicalismo feminista, propagador da utopia do matriarcado (que nunca foi comprovado historicamente em nenhuma sociedade, vide Georgoudi 2007: 24-27) e pela falsa concepção de que existiu uma poderosa magia feminina européia e um culto a uma única deusa desde a pré-história, perseguida pelo poder masculino pagão e depois pelo cristão, mas que sobreviveu na forma da bruxaria medieval [2].

Em outro livro, As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica, de Valquíria Valhalladur, encontramos muitos dos mesmos equívocos de Mirella Faur, especialmente o uso da stadhagaldr e ativação de chacras com as runas (p. 79-150), além da idéia de uma ancestralidade autóctone do culto aos vanires (“eram pacíficas, sedentárias e, provavelmente, matriarcais e apologistas da igualdade dos sexos”, p. 66). Alguns novos erros: “Ao contrário dos alfabetos gregos e romanos, as runas nunca se tornaram um sistema fonético fixo” (p. 14). Mas e as centenas de textos em estelas e monumentos na Escandinávia? Antes de tudo, as runas eram uma forma de escrita alfabética, sendo a magia uma aplicação secundária, assim como sua ligação com a cura e relacionadas diretamente ao culto das dísir (Nasstrom 2000: 361). Erros históricos também são comuns: “os barcos Knörr eram temidos por quem cruzasse na sua rota” (p. 157). Esse era o termo empregado para os barcos cargueiros e comerciais, que não utilizavam carrancas, nem escudos ou remos, portanto, não infligiam medo a ninguém. A autora desconhece cronologias sobre os Vikings: “Esses guerreiros desbravaram territórios até se instalarem como um temível império rival dos romanos” (p. 157).

As obras esotéricas, desta maneira, acabam criando muitas falsas interpretações sobre a história, a religiosidade e a sociedade da Escandinávia da Era Viking, confundindo especialmente os neófitos em leituras sobre estes temas. Tanto para os estudantes e pesquisadores quanto para os interessados na reconstituição das antigas práticas religiosas e mitos pré-cristãos, só resta aguardar a publicação de livros mais sérios e fundamentados em nosso país ou recorrer a bibliografia acadêmica em línguas estrangeiras.

Notas

1. O estudo das runas ainda é extremamente precário em nosso país, mesmo dentro da academia. Como exemplo, em uma recente monografia de bacharelado em História na cidade de Vitória (ES), a pesquisadora Mila Marques cometeu vários equívocos sobre o tema da Escandinávia Medieval, entre eles atribuindo a autoria do poema éddico Hávamál, integrante da Edda Poética, ao poeta islandês Snorri Sturlusson: “A intenção foi pesquisar as representações rúnicas no poema Hávamál na obra Textos Mitológicos das Eddas (1220) de Snorri Sturluson”. O poema em questão é anônimo, mais antigo que a Edda Prosaica de Snorri, do qual ele próprio faz citações (Cf. Hall 2007: 211). Outro equívoco de Mila Marques é a respeito da estrutura do poema: “O maior interesse desta pesquisa foi analisar o capitulo 4 do Hávamál intitulado: A História das Runas de Odin”. Cf. Marques, Mila. Defesa de pesquisa acadêmica. Na trilha das runas. Disponível em: http://www.milarunas.net Último acesso: 2 de dezembro de 2008. O Hávamál não possui títulos ou divisões nas estrofes do manuscrito medieval. Esses lapsos demonstram que os estudos sobre runas em nosso país ainda necessitam de maior seriedade e referências bibliográficas de obras acadêmicas, bem como a co-orientação de especialistas nos estudos escandinavísticos.

2. Sobre esse assunto e uma reflexão historiográfica para a wicca diânica, consultar o artigo de Campos e Langer (2007: 12-18).

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The quest for the shaman: shape-shifters, sorcerers and spirithealers of Ancient Europe | Miranda Aldhouse-Green

O fenômeno do xamanismo vem atraindo intensamente a atenção de acadêmicos há cerca de duas décadas, além de ser praticado por muitos adeptos em grandes cidades do mundo e até mesmo no Brasil. Neste contexto, a recente publicação dos arqueólogos Miranda e Stephen Aldhouse-Green, The quest for the shaman, é emblemática por realizar uma sistematização do tema, além de apontar várias outras perspectivas para os estudos das práticas mágico-religiosas. Este livro se insere em uma nova perspectiva dos estudos arqueológicos, não tendo apenas uma preocupação com os objetos materiais em si mesmo, mas também preocupados com sua inserção em uma ampla rede de significados sócio-culturais: “O estudo da cultura material, de todo o imenso artesanal de artefatos que fazem parte do cotidiano do ser humano depende, em muitos casos, da interação da arqueologia com outras áreas” (Funari 2003: 85).1 Miranda Jane Green é uma das mais conceituadas celtólogas e especialistas em Idade do Ferro européia, enquanto Stephen Aldhouse-Green é pesquisador de pré-história do Velho Mundo. Além de considerações teóricas advindas do estudo de sítios arqueológicos, mitologia, literatura e história comparada, os autores também investigaram o fenômeno do xamanismo in loco, entre os Mapuche no Chile, utilizando metodologia antropológica.

A introdução (Shamanism, p. 9-18), elabora uma discussão conceitual e bibliográfica sobre o tema. Os autores propõem novas perspectivas de abordagem pelo viés da cultura material e psicológica, preocupando-se mais em tratar o xamanismo como uma visão de mundo do que como um sistema religioso no sentido tradicional. A discussão de que esta prática teria sido uma construção discursiva de acadêmicos foi abandonada,2 em detrimento da concepção de que é um fenômeno relacionado com a feitiçaria, o ritual e o curandeirismo. Também a visão tradicional de que o conceito do transe ou estado alterado de consciência é fundamental para circunscrevermos os cultos xamânicos3 permanece no livro, mas atrelado a recentes estudos de neuropsicologia, simbolismo e performance social. Este último aspecto é tratado com mais detalhes: o “teatro” do xamã é essencial para a construção de sua figura pública, criando condições materiais para a eficácia simbólica de um contato espiritual. Desta maneira, os objetos arqueológicos encontrados no sítio são delineados também dentro desta perspectiva sócio-cultural, procurando reconstruir o fenômeno europeu com analogias vindas da América, Ásia, Austrália e Sibéria.

O segundo capítulo (Beyond the stone Gates, p. 19-64), explora as possibilidades do registro xamânico durante o Paleolítico, contrastando os registros fósseis e materiais com as teorias de William Davies e David Lewis-Williams. Aqui as supostas origens dos cultos estão atreladas diretamente com o nascimento da arte, da consciência de uma cosmologia, enfim, da criação da própria religiosidade humana – uma conseqüência, segundo os autores, da fixação e intervenção de imagens cerebrais. E a capacidade de entrar em transe seria limitada a um pequeno número de pessoas, que passam a controlar a religião ao mesmo tempo em que a sociedade torna-se estratificada. Assim, percebemos uma profícua união teórica entre o pensamento biológico-psicológico com as considerações da arqueologia e da sociologia. A última parte deste capítulo, realiza um interessante debate sobre o fenômeno da therantropia – o último estágio do estado alterado de consciência, segundo a teoria de William Davies, que produziria visões de monstros e criaturas antropomórficas, especialmente relacionada com as narrativas mitológicas e literárias do lobo e do lobisomem.

O capítulo seguinte (Swan’s wings and chamber tombs, p. 65-88), discute o xamanismo durante os períodos Mesolítico e Neolítico, especialmente entre os vestígios megalíticos da Irlanda. Neste momento os autores fazem uso especialmente das pesquisas de Jeremy Dronfield, segundo o qual a arte megalítica (constituída de motivos geométricos, dando destaque para a figura do espiral) teria sido criada para realizar experiências religiosas nas tumbas. Estudando a distribuição, tipologia e identidade dos motivos artísticos, Dronfield criou a hipótese da “experiência do túnel”, associando os estados alterados de consciência e visões da morte com as passagens nas câmaras megalíticas. Apesar de Miranda e Stephen Aldhouse-Green considerarem esta idéia complexa e polêmica (a união entre arte e práticas mortuárias), referenciam a mesma como hipótese em sua sistematização.

O quarto capítulo (Rock and gold, p. 89-110), examina o tema na Idade do Bronze européia. Os principais sítios arqueológicos examinados nesta análise são os provenientes da Escandinávia, especialmente os importantes conjuntos petroglíficos de Bohuslän, Boglösa, Scania e Litslena, todos situados na Suécia. A grande maioria das representações destes locais é figurativa, mostrando em especial cenas de homens dançando, portanto máscaras, equipamentos de guerra, cenas de fertilidade e consagração, barcos, animais e variados desenhos geométricos como círculos raiados. Seguindo certa tradição analítica, os autores dedicam sua interpretação para mitos relacionados com o transcurso solar e os ritos funerários. Alguns objetos que também são associados a motivos celestes e a mitos solares são o cone de Etzelsdorf e o recentemente polêmico disco de Nerbra, ambos da Alemanha, e o carro solar de Trundholm, da Dinamarca.

Os capítulos quinto e sexto (Priests, politics and power, p. 111-142 e Monsters, gender-benders and ritualist in the roman empire and beyond, p. 143-178) examinam com detalhes as fontes arqueológicas da Idade do Ferro e as literárias greco-romanas. Os temas mais explorados pela dupla de pesquisadores são as visões de explorações de outros mundos – típica de relatos de experiências xamânicas durante o transe – e as questões relacionadas com o status dúbio destes praticantes, tanto a nível social quanto sexual. Um dos momentos mais interessantes é o confronto entre o relato clássico de Tirésias com Odin, deus dos escandinavos, especialmente no que diz respeito às suas ambivalências sexuais e o papel de negociadores de outros mundos. Outros relatos igualmente mencionados com destaque são os de Plínio, o velho, Tácito e a Saga de Erik, o vermelho.4 Tanto na literatura romana quanto na celta e nórdica, os autores identificam a importância do triplismo a nível simbólico e cosmológico – refletindo o imaginário religioso original da Eurásia, onde os mitos xamânicos dividem o cosmos em três níveis e nove mundos. A nível material, o triplismo é manifestado especialmente na arte escultural, por exemplo, nas representações de deuses latinos com três faces ou três chifres, e a nível simbólico nas figuras do triskelion, triqueta e valknut, estes últimos da área celto-nórdica.5

O último capítulo (Myths and magic, p. 179-202), detalha várias análises sobre a literatura e mitologia de origem céltica, em especial, as fontes literárias galesas e irlandesas da Idade Média. Diversos personagens dos manuscritos Mabinogi e Táin Bó Cúailnge, como Pwyll, Math, Lleu, Gwydion e Cu Chulainn, são analisados dentro de uma perspectiva de conexões com o xamanismo,6 especialmente em seus contatos com outros mundos e metamorfoses animais. Em outro momento, os autores debatem o tema das profetisas e profetas nas ilhas britânicas, como Fedelma e Cathbadh, estabelecendo algumas relações entre magia e política, entre as quais as advindas da realeza e da sucessão dinástica.7 Também relacionado a poderes proféticos e xamanismo é o fenômeno do druidismo, onde os sacerdotes ligam-se a múltiplas funções no mundo Celta.8 Alguns dos mais peculiares casos de druidismo-xamânico são os denominados “homens pássaros”, profetas que vestiam peles de pássaros, conectados ao simbolismo destes animais como intermediários do outro mundo, do poder sobrenatural e do “vôo xamânico”.

Na conclusão do livro (p. 203-211), talvez o ponto mais importante destacado pelos autores seja a respeito de uma revisão do conceito diacrônico de xamanismo e em problematizar como os elementos tradicionais deste fenômeno mágico-religioso foram manifestados em diferentes modelos de expressão na arte, na sociedade e nas culturas européias. Em particular, a possibilidade de futuros estudos sobre tradições religiosas sobrevivendo abaixo da romanistas e reputadas como superstições na Idade Média, e, de que forma a herança do paganismo foi manipulada ou “filtrada” pelos redatores cristãos dos manuscritos.

O livro possui uma bela e bem cuidada estrutura iconográfica. Dezenas de gráficos, mapas, tabelas, ilustrações e fotografias coloridas e em preto e branco tornam o texto muito mais acessível ao leitor. Em especial, as ilustrações de Anne Leaver reconstituindo as atividades da profetisa Veleda (p. 117) e do uso de runas entre os germanos antigos (p. 123), ambas descritas por Tácito, foram bem pesquisadas.

A obra é recomendável não apenas aos interessados em história da religião e da magia na Antiguidade e Idade Média. É um valioso instrumento reflexivo para os pesquisadores interessados na documentação arqueológica enquanto reflexo de práticas, ideologias e simbolismos sócio-culturais. Neste sentido, a Arqueologia não se torna excludente do conhecimento produzido em outras áreas das ciências humanas, mas cria a possibilidade de uma interação entre as várias vias de interpretação do passado. Investigando o tema do xamanismo dos remanescentes pré-históricos à literatura de origem Celta, Miranda e Stephen Aldhouse-Green também tornam possível o diálogo interdisciplinar, algo muito necessário aos atuais estudos acadêmicos em nosso país.

Notas

1. Um exemplo do recente interesse arqueológico pelos estudos xamânicos: Price (2001; 2004: 109-126).

2. Sobre o xamanismo em geral e sua relação com as religiosidade e mitologias da Europa pré-cristã, conferir a sistematização de alguns debates críticos recentes (como limites metodológicos e conceituais de abordagem, além da questão da construção discursiva da academia), especialmente os vinculados à Antropologia e história da religião: Stuckard (2005: 123-128). Para recentes discussões sobre o xamanismo urbano no Brasil e suas implicações teórico-metodológicas, verificar: Magnani (1999: 113- 140).

3. Para um debate clássico sobre esta perspectiva, conferir: Eliade 1998 (originalmente escrito durante os anos 1950).

4. O historiador Carlo Ginzburg demonstra a sobrevivência folclórica de mitos e símbolos de origem xamânica euro-asiáticas em plena Idade Média, que constituíram a base das imagens sobre bruxaria e o fenômeno imaginário do sabá das bruxas: “um único esquema mítico foi retomado e adaptado em sociedades muito diferentes entre si, do ponto de vista ecológico, econômico e social” Ginzburg (2001: 162).

5. Para um debate sobre o xamanismo entre os germanos, especialmente na Escandinávia da Era Viking, verificar: Schnurbein (2003: 116-138); Langer (2004: 98-102).

6. Para o historiador francês Christian-J Guyonvarc’h (1997: 218-219) é um erro associar o xamanismo aos Celtas, citando como reforço a esse posicionamento o clássico de Mircea Eliade, Le chamanisme et les techniques archaiques de l’extase, 1951. Porém, constatamos que neste referido livro (Eliade 1998: 416- 417), o autor cita algumas narrativas confirmando mitos e ritos de caráter extático, portanto xamânicos, entre os Celtas. Também o historiador italiano Carlo Ginzburg, em sua formidável obra sobre mitos medievais, faz um detalhado levantamento de diversas fontes confirmando o xamanismo céltico: Ginzburg 2001: 111-112, 115-118, 121-123, 128, 191-193.

7. Vários acadêmicos atuais acabam perpetuando fantasias, anacronismos e interpretações equivocadas em se tratando de temas relacionados com a mulher nas sociedades antigas, especialmente a céltica. Um dos mais correntes destes erros é o vínculo com a utopia do matriarcado: “O dragão pagão é antes de tudo um símbolo de poder; símbolo da mulher que já possuiu um lugar social garantido pelo matriarcado céltico em épocas remotas” (Rocha, 2003). Em uma perspectiva ainda mais equivocada, a pesquisadora canadense Manon Dufour (Mestre em Ciências da Religião pela Universidade de Quebec) analisou os supostos aspectos sacerdotais da mulher celta antigo-medieval por meio da obra literária contemporânea As Brumas de Avalon, além de também defender uma feminilidade sagrada e o matriarcado entre os Celtas, mesclando as teorias de tripartição de Dumézil com um referencial feminista radical e o simbolismo dos arquétipos (cf. Dufour 1999: 5-21). Para um referencial da construção da utopia do matriarcado entre o academismo oitocentista e sua inexistência de um ponto de vista arqueoantropológico para qualquer período da História, verificar a sistematização de Georgoudi (1990: 569-590, 2007: 24-27).

8. A respeito do druidismo entre os Celtas, ver: Lupi 2004: 70-79.

Referências

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Luciana de Campos – Professora Mestra. Doutoranda em Letras UNESP. E-mail: [email protected]

Johnni Langer – Pós-doutor em História pela USP bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected]


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Sangue de gelo | Orlando Paes Filho

Desde o século XIX a literatura vem tomando a História como locus privilegiado de inspiração. O denominado romance histórico sempre encontrou sucesso entre os leitores ávidos de aventuras, em detrimento de narrativas puramente fantasiosas, a exemplo da ficção científica. Mas essa aproximação entre história e literatura nem sempre rendeu bons frutos: “A literatura apropriou-se tanto dos fatos quanto dos personagens históricos, modificando-os de maneira a, muitas vezes, perpetuar falsas representações” (Campos 2005: 106) [1]. Nesta perspectiva, os romances envolvendo os escandinavos da Era Viking algumas vezes mantiveram estereótipos e em outras ocasiões refletiram uma boa reconstituição sócio-histórica. No primeiro caso, temos a narrativa Vikingaliv (de Vinje 1860), repleta de moralismos cristãos e preconceitos, enquanto The long journey (Johannes Jensen 1924), Gryningsfolket (Jan Fridegard 1944), The long ships (Frans G. Bengtsson 1941-1945) incluem-se no segundo caso: ótimas reconstituições, unindo qualidade narrativa com as pesquisas acadêmicas disponíveis no período (Mjöberg 1980: 237-238; Lönnroth 1999: 247-249).

No primeiro caso, também podemos incluir o novo romance de tema nórdico do escritor Orlando Paes Filho, Sangue de gelo. Nesta obra, são narradas as aventuras da personagem Seawulf Yatlansson num período anterior ao romance Angus, o primeiro guerreiro. O escandinavo é convocado para resgatar a filha de um rei, capturada por um traficante de escravos, sob ordens do danês Ivar, o sem-ossos, durante o ano de 843 d.C. O estilo narrativo de Orlando Paes Filho não evoluiu em nada desde o primeiro romance publicado em 2003, com descrições de batalha, situações cotidianas, conflitos e rivalidades entre os nórdicos, que em muitos momentos tornam-se cansativas e até enfadonhas. A estrutura geral do livro é dividida entre o romance (p. 13 a 158), seguido de um anexo e de muitas ilustrações (p. 159 a 253), aqui residindo um dos seus primeiros pontos fracos: mesmo para os fãs da série, ele mostra-se decepcionante, visto que entre as 253 páginas do livro, somente 88 páginas de texto são dedicadas à narrativa romanceada em si. Para os leitores que já possuem Angus, o primeiro guerreiro, os livros Vikings e Artur da coleção universo Angus, a decepção é ainda maior: praticamente todas as ilustrações de Sangue de gelo são repetidas destas três edições. O autor parece não estar interessado numa obra qualitativa e sim, em muito lucro e expansão comercial de seu produto. Isso é nítido quando analisamos a obra de um ponto de vista acadêmico.

Na contra-capa, Paes afirma que este romance em questão foi produto de uma longa pesquisa: “Ao longo desses anos, Orlando trabalhou incessantemente na pesquisa histórica e religiosa”. Mas os erros textuais e iconográficos apontam para uma outra conclusão. Por exemplo, na descrição do guerreiro chamado Hagarth, este aparece portando “um machado duplo nas mãos” (p. 25). Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento em armamentos medievais sabe que os nórdicos empregavam somente machados de uma lâmina, ao qual o próprio escritor faz referência em ilustração do anexo (p. 240). Esse dado pode ser obtido mesmo em publicações traduzidas ao português (como Graham-Campbell 1997: 54; para maiores detalhes ver Griffith 1995: 176-177). Infelizmente, o imaginário artístico é que tratou de popularizar o estereótipo do imenso guerreiro Viking portando machados de dois gumes descomunais – vide a ilustração Duelo entre Seawulf e Wulfgar (Paes Filho 2003: 35) e Ataque surpresa (idem: 340).

Outro estereótipo é a suposta presença de uma bússola magnética primitiva entre os escandinavos, a exemplo da popularizada pelo filme Vikings, os conquistadores, de 1958: “Seawulf confirmou a rota, consultando sua pedra mágica. Se um pedaço de ferro fosse nela esfregado, ele apontaria para o norte” (p. 70). Na realidade, a Arqueologia nunca confirmou este tipo de material e sim, de uma bússola solar (gnômon), que seria um disco de madeira cujo ângulo da sombra determinaria a latitude e o norte geográfico. Vestígios deste equipamento foram descobertos nos anos 1960 na Groelândia e mais recentemente no Báltico, e reconstituições imagéticas podem ser vislumbradas no Brasil até mesmo em ilustrações de livros paradidáticos (como Brochard 1996: 47).

Alguns erros históricos também estão presentes no romance. Na descrição da alimentação durante as travessias marítimas, estas são basicamente mingau de aveia (p. 101). Na realidade, este era um alimento específico para a vida cotidiana em terra, durante todo o ano (Graham-Campbell 2001: 123-124) e que não era útil para a vida no mar, visto que a umidade poderia facilmente estragá-lo: “a vida a bordo, eu já comentei, não devia ser fácil, em particular no caso de grandes travessias. A comida – peixe seco, carne seca e salgada, manteiga salgada, algas secas, pão torrado, reserva de água potável – era escassa” (Boyer 2000: 117).

Algumas terminologias estão equivocadas como: “uma armada de nórdicos poderia ser facilmente confundida com uma frota de daneses” (p. 91). Na realidade, tanto dinamarqueses (na Era Viking: Danes, Heruls), quanto suecos (Gottar, Svear) e noruegueses (Raumariki, Granii, Aetelrugi, Arothi e Raumi) são indistintamente povos nórdicos (Haywood 1995: 25).

Alguns erros com imagens sugerem uma edição publicada com muita pressa e sem nenhum critério de revisão. Por exemplo, as notas 32, 33, 34, 40 e 41 (referindo-se às ilhas bálticas de Öland e Gotland) remetem ao mapa inserido na página 164 (que contém apenas a Dinamarca e sul da Suécia), mas na realidade, o correto seria os mapas das páginas 167 e 168 (com detalhes do Báltico sueco).

Outro erro, muito pior se levarmos em conta a credibilidade do leitor e fã da série, é a utilização da mesma imagem para diferentes cidades nórdicas. Entre as páginas 112- 113, a ilustração refere-se à“cidade mercantil de Paviken” (situada no oeste de Gotland), e na página 244, a mesma ilustração (em tamanho diminuído) é descrita como “cidade de Dublin” (capital da Irlanda). A imagem foi anteriormente utilizada também nos livros Angus: o primeiro guerreiro (p. 252) e Vikings (Universo Angus, p. 29) para representar Dublin. Para uma análise crítica dos erros da representação desta cidade viking pela equipe do livro, consultar Langer (2006a).

Desta maneira, o ponto mais fraco do livro acaba sendo mesmo as imagens. Entre as poucas ilustrações inéditas inseridas no romance, encontramos a proliferação de estereótipos criados durante o século XIX: Odin (p. 14), apresenta a divindade nórdica com uma estética advinda das óperas germânicas, com um machado de guerra imenso (o correto seria uma lança), cota de malha, um capacete com asas laterais (outra fantasia oitocentista) e pior, com os dois olhos intactos (ele perdeu um segundo as Eddas); a ilustração Jovem Seawulf (p. 36) repete a fantasia do capacete com asas, assim como a do deus Thór (p. 182). A fraca inspiração e qualidade artística da equipe de ilustradores é demonstrada pela reutilização de imagens clássicas: Guerreiros vikings (p. 50), repete fielmente a pintura de N. Wyeth The first Cargo, de 1910, mas deixando os guerreiros do primeiro plano com cabelos loiros. Trata-se de uma representação também estereotipada, principalmente pelo uso dos capacetes com chifres, algo totalmente em desuso na arte contemporânea com temática escandinava e, de maneira muito estranha, incluída em uma obra que se diz realizada após “anos de pesquisa”.[2] Em outra ilustração (Funeral de Thorsfastr, p. 44) percebemos um plágio de má qualidade da pintura The Viking funeral, do britânico Franck Dicksee, 1893. Aliás, no primeiro volume da série Angus, esta mesma imagem recebeu o título de Funeral de Wulfgar (p. 40), mostrando um reaproveitamento iconográfico também para outras ilustrações: Chegada de Seawulf em Cait (p. 27, em Angus), tornou-se Batalha contra vikings daneses (p. 83, em Sangue de gelo); Armada de Seawulf (p. 28) transforma-se em Desembarque em Öland (p. 98); Sítio de York (p. 90), torna-se Batalha contra Ivar (p. 140); Ataque a Cait (p. 30), é rebatizada de Batalha contra saxões (p. 32); Armada de Angus (p. 272) vira Rothger lidera o desembarque (p. 136). Economia de artistas gráficos? Ou um recurso para diminuir despesas e ter mais lucro?

Acreditamos que a literatura possui grande importância para a divulgação dos estudos acadêmicos: “os romances têm o poder de provocar nos leitores o interesse e a busca por uma perspectiva científica dos fatos históricos” (Campos 2005: 106). Mas esse não é o caso de Sangue de gelo e da coleção Angus [3], que procura através de uma linguagem e pesquisa medíocre atrair somente o interesse de adolescentes fãs de RPG, perpetuando estereótipos e falsas imagens sobre Idade Média. Nosso país merece a tradução de romances sobre nórdicos medievais com maior qualidade literária, como as séries do espanhol Manuel Velasco e do sueco Frans Bengtsson, além do recente O último reino, de Bernard Cornwell (publicado no Brasil pela Record), que com certeza vão ampliar muito mais o conhecimento dos interessados na fascinante Era Viking.

Notas

1. Mas as fronteiras entre história e literatura são muito nítidas, sendo a primeira uma ciência e a segunda uma forma de manifestação artística: “O historiador copia o que aconteceu; o poeta, o que poderia ter acontecido” (Teixeira 2004: 98); “Desde Aristóteles, história e ficção se avizinham, mas os compromissos de uma e outra são distintos. Da ficção, se espera o uso sistemático da imaginação, e, no caso do romance, em geral um compromisso com a verossimilhança; da história, se pretende a verdade” (Pimentel Pinto 2006: 98).

2. Para uma análise do estereótipo dos Vikings portando chifres, ver Langer (2002: 6-9, 2005: 89).

3. Para detalhes de outros erros históricos, anacronismos e estereótipos na coleção Angus, consultar Langer (2003: 67-70). Para uma análise dos referenciais de moralidade cristã do historiador Ricardo da Costa na obra paradidática Vikings (coleção Universo Angus), consultar Langer (2006a, 2006b).

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Curso de literatura inglesa | Jorge Luís Borges

Originário de aulas ministradas na Universidade de Buenos Aires durante a década de 1960 [1], o livro ainda mantém um interesse vivo pelas valiosas conclusões que Borges sugere de seus conhecimentos em fontes manuscritas e impressas de línguas germânicas. Os sete primeiros capítulos – ou aulas – referem-se aos períodos da Antigüidade e Idade Média. Neles, o professor explicita sobre as técnicas poéticas, as características e os princípios da literatura dos antigos saxões e dos escandinavos. Também demonstra em suas aulas que o panorama político europeu, especialmente da Inglaterra, foi muito favorecido pelas invasões nórdicas. É justamente neste aspecto que Borges revela muito mais que uma simples admiração por estes povos, identificando as personagens com um passado glorioso e heróico: “Os Vikings talvez tenham sido a gente mais extraordinária entre os germanos da Idade Média. Foram os melhores navegantes da sua época (…) à maneira de muitos escandinavos cultos, não era apenas guerreiro mas, além disso, era poeta” (p. 22).

Simplificadores do moderno idioma inglês, os antigos escandinavos possibilitaram a consolidação do futuro império britânico, segundo as mesmas idéias de Borges (pp.100-102).[2] Essa visão heróica e gloriosa dos bárbaros pode ser percebida pelo espaço concedido à análise dos épicos anglo-saxões, como Beowulf e das sagas islandesas. Para o escritor, o período em que viveram estes aventureiros não era simplesmente uma época de desordem e caos, mas um momento extremamente propício para a formação de estruturas literárias complexas: “uma época bárbara mas que propendia à cultura, que gostava da cultura”(p.20). Assim, podemos incluir os estudos teóricos de Borges como a culminação de um processo de recuperação da imagem do bárbaro que teve início no século XVIII e que foi essencialmente centrada na literatura.

Ao contrário do Renascimento e sua revalorização da cultura clássica, o Setecentos foi marcado pelo ressurgimento dos estudos da literatura dos povos da Europa Setentrional, especialmente os de origem Celta e Germânica [3]. Manuscritos foram traduzidos e publicados nas línguas modernas, obras teóricas surgiram, novos poemas e narrativas foram criadas ao estilo das arcaicas. Esta adaptação e reinterpretação literária esteve atrelada à concepções de fundo nacionalista, tão em voga na época. Os intelectuais, na realidade, estavam preocupados em resgatar valores tais como identidade social e demarcar as origens do que eles então definiam como sendo suas nações. A literatura servia diretamente tanto como marco simbólico desta consciência nacional, como um instrumento de propaganda dos valores antigos que deveriam ser resgatados.

Um caso especialmente estudado por Borges diz respeito ao Ciclo Ossiânico [4]. Durante o século XVIII, a Escócia procurou criar uma identidade diferenciada da Inglaterra (de origem histórica anglo-saxônica), mas que o mesmo fosse alternativa ao passado Celta comum aos irlandeses. James Macpherson [5] foi incumbido de recolher lendas na Escócia, de origem irlandesa mas que foram alteradas e sintetizadas para que sua região tivesse uma identidade nacional própria. O resultado foi a obra Fingal: Ancient Epic Poem in Six Books (1762), que fez grande sucesso em toda a Europa pré romântica. [6] O Ciclo Ossiânico também conhecido como Ciclo de Finn apresenta narrativas supostamente ambientadas no século III d.C. O ciclo de narrativas traz longas composições muito populares entre as gentes simples da Irlanda durante a Idade Média. Essas narrativas de cunho popular em muito se assemelham as narrativas do Ciclo Arturiano ou Bretão [7] compostas a partir do século XII principalmente na França. Esses dois ciclos de narrativas mais se aproximam do que se distanciam pois, além do caráter popular e folclórico de suas narrativas têm em comum as aventuras de suas personagens. Os Fiannas são considerados uma espécie de guarda de elite do grande rei da Irlanda. Entre as suas tarefas estão o recolhimento de impostos e a proteção dos mais fracos. As incumbências dos Fiannas são praticamente as mesmas dos Cavaleiros do Távola Redonda, fiéis servidores do rei Artur. Muitas das aventuras narradas no Ciclo Ossiânico podem ser comparadas com as do Ciclo Arturiano. Acreditamos que a semelhança narrativa mais próxima seja uma aventura vivida pelo próprio Finn, na aventura amorosa intitulada Diarmaid e Grinné. Grinné é uma jovem que vai ser entregue como concubina para o rei Finn mas ela se apaixona por Diarmaid, jovem cavaleiro e fiel servidor de Finn. Sabendo da paixão dos jovens o rei Finn finge que desistiu de manter a jovem como concubina, mas durante uma caçada ele constrói uma armadilha para que Diarmaid morra. Ao perceber a trama de morte inevitável Grinné não consegue avisar seu amado e, ao vê-lo morto deixa-se morrer ao seu lado. Essa “aventura” é o arquétipo da mais conhecida narrativa do Ciclo Arturiano, Tristão e Isolda, onde os jovens incapazes de concretizarem seu amor em vida se deixam morrer para que o sentimento sobreviva após a morte e possa se consumar. O tema do amor que só é possível se concretizar após a morte sempre trágica ou violenta dos amantes é recorrente na literatura ocidental desde a Antigüidade e para os românticos foi um tema profícuo, não só pelo fascínio que ele exercia e que foi representado tanto na prosa como na poesia dos autores dessa escola literária, mas que inspirou também pintores e escultores que representaram com beleza as malezas arquitetadas por Eros e Tanatos.

A narrativa de Tristão e Isolda que tem a sua matriz em Diamaid e Grinné teve desde o século XII muitas versões. No século XII Béroul e Thomás de Inglaterra compuseram duas das mais conhecidas e estudadas versões, Gottfried de Estrasburgo no século XIII compôs uma versão mesclando elementos da cultura celta com a cultura germânica e que no século XIX serviu de inspiração para Richard Wagner compor a sua versão da tragédia dos amantes. E, por fim no século XIX, Joseph Bédier, filólogo francês estabeleceu uma versão onde mescla elementos das três narrativas medievais mas que se iguala em beleza e elementos fundamentais para se estudar a força do mito do amor eterno que sobrevive após a morte.

O amor dos jovens Diarmaid e Grinné e Tristão e Isolda é um sentimento puro, que se encontra em seu estado “natural”, ele ainda não foi corrompido por convenções sociais, podemos dizer que, grosso modo, esse sentimento é algo sentido apenas por bárbaros, pessoas que não receberam o refinamento social devido e é por essa mesma razão que os românticos – tanto escritores como pintores – tão avessos às convenções vão eleger o “amor bárbarico” como um dos principais temas de suas obras, representando assim toda a sua rebeldia e insatisfação com as leis, padrões e moldes sócio- culturais vigentes. [8]

Além deste caráter puramente estético, no século XIX a imagem do bárbaro foi reforçada como incentivo nacionalista, mas desta vez com cada região tendo os seus próprios mitos literários. Os países da Escandinávia utilizaram seu patrimônio cultural dentro de especificidades regionais, onde os sentimentos patrióticos incorporaram elementos da literatura, história e mitologia dos tempos pagãos. Especialmente o historiador e poeta Erik Geijer no livro Svenka folkets historia (História dos povos suecos, 1836) utilizou a sociedade dos antigos nórdicos como um modelo social perfeito, onde a harmonia do povo e de seus líderes foi quebrada pela chegado do cristianismo e do feudalismo.[9] O “espírito” dos tempos passados era refletido na arte decorativa, no interior das casas e dos edifícios, nos jornais, na vida cotidiana e nas idéias políticas, sempre em consonância com o progresso tecnológico e social dos tempos modernos.[10] A poesia e a literatura romântica da Escandinávia refletiam diretamente os mitos nórdicos com ideologias políticas do presente. Obras literárias como a famosa Frithiofs Saga (1825) de Esaias Tegner, apesar de conter heróis medievais, possuem comportamentos e valores condizentes com a realidade histórica vivida pela Suécia do Oitocentos.

Concedendo especificidade ao contexto inglês, Borges examinou em suas aulas um conjunto de artistas que resgataram a imagem bárbara durante o final do século XIX, a Irmandade Pré-Rafaelita. [11 ]Os temas preferidos do grupo eram a mitologia arturiana, temas medievais e escandinavos. Os principais escritores pré-rafaelitas que Borges analisou foram Dante Gabriel Rosseti [12] e William Morris [13]. Rosseti foi um dos fundadores do movimento e peça fundamental para entender a principal ideologia artística reinante na época vitoriana. Segundo Borges, a valorização de temas medievais visava essencialmente a busca da nobreza no passado. Em uma época onde a tecnologia, o urbanismo e a industrialização tomavam grande vulto na Inglaterra, os artistas voltam-se para a busca do belo – idealizada nas figuras femininas de Isolda, Guinevere e Morgana – e no herói, principalmente no rei Artur, Tristão e Lancelot. Tanto estas figuras femininas quanto masculinas pertencem ao ciclo arturiano, um conjunto de narrativas de origem Celta, que foram mescladas aos princípios cristãos do comportamento cavalheiresco da Idade Média, como já vimos. Com isto, temos duas formas básicas da imagem do bárbaro realizada pelos artistas pré-rafaelitas: de um lado, o bárbaro (herói pagão), que é resgatado em sua forma pura, de um ponto de vista estético e histórico.[14] De outro lado, o herói pagão que foi cristianizado e moldado pelo cavalheirismo medieval, principalmente na forma dos personagens arturianos.

Um dos principais idealizadores do herói pagão foi o poeta William Morris. Além de tradutor de várias Sagas e epopéias escandinavas, o artista escreveu poemas narrativos resgatando o que Borges denomina de “consciência do germânico” dentro da História e arte inglesa.[15] Em um deles, The Earthly Paradise (1870), a mitologia nórdica é apontada diretamente como elemento nostálgico e nobiliárquico da sociedade inglesa: “Oh Breton, and thou Northman, by this horn/Remember me, who am of Odin’s blood”.[16] Ou seja, aqui o narrador apresenta o rei inglês como descendente direto do deus Odin, o principal do panteão germânico. Um resgate literário dos valores simbólicos das antigas sociedades, em plena Inglaterra vitoriana. Em outra obra, Sigurd the Volsung (1876), a importância do herói pagão de origem escandinava foi ainda mais acentuada. Baseado em manuscrito islandês homônimo, este poema épico enfatizava a tragédia, a derradeira morte do principal personagem. Esta característica essencialmente romântica, também seria muito comum ao movimento pré-rafaelita com a predileção iconográfica dos artistas pelas narrativas trágicas de Tristão e Isolda [17] e da morte de Artur.[18] Mas não podemos nos esquecer que os próprios deuses germânicos também eram essencialmente trágicos, pois ao contrário da mitologia clássica (onde todas as divindades são imortais), eles teriam um final, durante a batalha de Ragnarök. Explicando a existência de telas como Odin (1870) e Freyr (1870), por Edward BurneJones,[19] onde as duas divindades apresentam um olhar melancólico, ambas olhando para baixo e numa atmosfera de extrema tristeza. Outro momento trágico resgatado por este movimento artístico é o funeral, que surge ao final do poema Sigurd, de Morris (com a morte do herói e o suicídio de Brunhilde na pira funerária) e na famosa tela de Francis Dicksee, Funeral of a Viking (1893).

A imagem literária do homem e também da mulher bárbara que foi construída durante os séculos seja na literatura como nas artes plásticas, em muitos momentos não foi uma imagem negativa, mas procurou exaltar determinadas virtudes que para os jovens idealistas românticos estavam um tanto esquecidas. Ao nos expor com maestria e bom humor aspectos tanto da literatura inglesa como da efervescência cultural que foram os séculos XVIII e XIX na Inglaterra, Borges nos oferece também novas perspectivas de análises de fontes importantes não só para uma maior compreensão das letras, mas das representações de figuras que ainda hoje povoam nosso imaginário e nos encantam!

Ao apresentar suas aulas durante um período conturbado da história latino-americana, Borges não ensinou apenas nomes, autores e características literárias, ele concedeu aos seus alunos uma aproximação com a literatura germânica – e repete o feito com os seus leitores de hoje – de se encantarem com a beleza das letras compostas em um momento especial, onde resgatar a imagem e o espírito dos bárbaros não era somente uma fonte de inspiração e um modelo estético mas sim uma admiração pelo espírito de liberdade e de criatividade.

Notas

1 O livro foi organizado por Martín Arias e Martín Hadis, através de transcrições das aulas ministradas por Borges na Universidade de Buenos Aires.

2 Muito da imagem que o teórico transmite em suas aulas na década de 1960 provinha do cinema: “E eles, enquanto isso, vêem como os vikings vão desembarcando. Podemos imaginar os vikings com seus elmos ornamentados com chifres, ver chegar aquela gente toda” (p. 60). Essa representação dos guerreiros nórdicos portando chifres com ornamentos córneos surgiu durante o início do Oitocentos, produto de uma arte romântica e nacionalista, promovendo o resgate viril e poderoso dos Vikings. Posteriormente, essa fantasia popularizou-se nas histórias em quadrinhos, literatura e cinema. Conf. LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies, Visby (Sweden), n. 4, 2002. Borges deve ter estruturado este estereótipo em filmes como Príncipe Valente (1954) e romances populares, dos quais cita The Long Ships (do original Röde Orm, 1945, versão inglesa da década de 1950).

3 Designamos literatura de origem Celta toda produção literária originada do folclore ou tradição oral e transcrita após o século VIII em países como a Irlanda (Celtas irlandeses), Escócia (Pictos e Escotos), País de Gales, Bretanha inglesa e francesa (Bretões) e França (Gauleses). A de origem germânica refere-se aos países escandinavos e Islândia (Vikings), Alemanha (Germanos antigos) e Inglaterra (Anglosaxões). Borges realizou um estudo clássico sobre literatura germânica: BORGES, Jorge Luís & VAZQUES, Maria E. Literaturas germanicas medievales. Buenos Aires: Falbo Librero, 1965.

4 “Le Cycle de Finn, ou Cycle Ossianique, est le cycle consacré à la province du Leinster. Mais il déborde de loin les frontières de ce petit état et se retrouve, très florissant, dans l’Écosse tout entière. C’est le Cycle de Finn, transmis par la tradition orale depuis de siècles, que Mac Pherson a connu et quíl a répandu dans toute l’Europe. Car Fingal n’est autre que le nom romantique de Finn et Ossian celui de Oisin (= le Faon). Finn est le roi. Mais à la différence de Conchobar, il n’exerce pas une autorité légale sur l’Irlande ou sur une troupe de véritables nomades, de guerriers errants, qui sont passés à la posterité sous le non de Fianna (Fenians). Ces Fianna ont vraisemblament eu une existence historique, au temps du roi suprême Cormac Mac Airt, c’est-à-dire à la fin du IIe. Siècle de notre ère. Ils constituaient une sorte d’État dans l’État, et ils furent souvent en froid, nom seulement avec le roi suprême mais aussi avec les différents rois de provinces ou de tribus sur le territoire desquels ils exerçaient leurs talents”. MARKALE, Jean. L’épopée celtique d’Irlande. Paris: Payot, 1993, p. 159.

5 “James Macpherson nasceu nas Highlands da Escócia, nas Terras Altas da Escócia, nas serras da Escócia, no ano de 1736, e morre em 1796. (…) Macpherson nasce e se cria num lugar agreste ao norte da Escócia, onde ainda se falava um idioma gaélico, isto é, um idioma celta, afim, naturalmente, ao galês, ao irlandês e à língua bretã levada à Bretanha – antes chamada Armórica – pelos bretões que se refugiaram das invasões saxãs do século V” (Borges, 2002: 157-8).

6 “Como Macpherson não queria que os personagens fossem irlandeses, fez de Fingal, pai de Ossian, rei de Morgen, que era a costa setentrional e ocidental da Escócia (…) Macpherson foi acusado de falsário (…) Atualmente, não nos interessa se o poema é ou não é apócrifo, mas o fato de que nele já está prefigurado o movimento romântico” (Borges, 2002: 166). Uma das pinturas mais famosas inspiradas na obra de Macpherson é Ossian na margem do Lora invocando os deuses ao som de uma harpa, de Grançois Gérard (sem data). Nesta composição, temos os elementos chaves do romantismo europeu: atmosfera de mistério e horror, elementos ruinísticos, atmosfera onírica, e é claro, os elementos advindos da mitologia Celta. Conforme: WOLF, Norbert. A pintura da era romântica. Lisboa: Taschen, 1999.

7 “O Ciclo Bretão, no qual se destacam os feitos do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, as aventuras de Galvain, Lancelot, Tristão e Isolda, Parcifal e a Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na História Britonum, de Nennius, obscuro historiador latino do século VIII, Artur aparece como herói dos celtas britânicos contra os invasores anglo-saxões. As versões autenticamente célticas da lenda estão no Mabinogion, coleção de narrações na língua do País de Gales; aqui a figura de Artur e dos Cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achando-se inteiramente transformados pela vivíssima imaginação céltica, nutrida de lendas de feiticeiros, fadas, florestas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabinogion na sua forma atual, foi redigido só no século XIV; os seus heróis célticos já têm a feição de cavaleiros franco-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma transformação foi operada pelo ‘historiador’ Geoffrey of Mommouth, cuja fantástica História Regum Britanniae que foi escrita entre 1135 e1138; parece que Geoffrey pretendeu criar, intencionalmente, um pendant inglês da geste francesa. O último retoque, enfim, foi de natureza religiosa. Deu-se sentido cristão a certos episódios do ciclo, e como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei Artur para a ilha de Avalon, paraíso dos celtas, a Demanda do Santo Graal e a transformação da Távola Redonda de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cavaleiros místicos”. CARPEUAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume I Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2ª edição, p. 140.

8 LE BRIS, Michel. Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004, p. 162-165. Na literatura francesa do século XIX, o Viking torna-se o herói romântico perfeito: aventureiro, sem nenhum temor, feroz, galante e essencialmente, livre. “Un personnage, dont le nom est déjà intervenu plusieurs fois, rassemble ce que le XIXe siècle a voulu mettre, en ce sens, sous le mot viking: c’est celui du roi de mer. L’expression seule suffisait déjà à déchaîner imaginations et passions: iéal aristocratique mêlé à tous les parfums de l’aventure, lois de l’héroïsme et de la brutalité (…) Le Viking, c’est l’homme libre”. BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986, p. 83-103.

9 LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999, p. 238.

10 Além disso, cada país escandinavo resgatou a memória dos tempos Vikings dentro de um referencial próprio, condizente com a realidade política então vigente (p.ex., a Suécia de 1814 a 1905 foi unida com a Noruega, ao mesmo tempo em que mantinha uma grande rivalidade com a Dinamarca).

11 Em inglês Pre-Raphaelite Brotherhood, grupo de artistas britânicos fundado em 1848 e dissolvido cerca do ano 1853. Movimento de reação ao convencionalismo da arte vitoriana, que buscava através da inspiração literária e simbólica, mitológica ou bíblica, restituir à pintura a pureza alcançada antes de Rafael, ou seja, no século XV. Seus representantes mais famosos foram Dante Gabriel Rosseti, W. H. Hunt, J. E. Millais, F. Brown, E. Burne-Jones e William Morris. O pintor brasileiro Eliseu Visconti chegou a ser influenciado pelo movimento. Conf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 19, p. 4772. A Irmandade Pré-Rafaelita fundou uma revista chamada The Germ (O Germe) para divulgar suas idéias, pinturas e poesias. BORGES, op. cit., p. 284. Para uma crítica estética deste movimento artístico ver: GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 404. Para o teórico Arnold Hauser, os pressupostos do pré-rafaelismo residiam em seu caráter poético/literário, espiritualista, histórico e simbólico: “(…) são idealistas, moralistas e eróticos envergonhados, como a grande maioria dos vitorianos (…) une um realismo que encontra expressão num deleite em ínfimos detalhes, na reprodução prazenteira de cada folha de grama e de cada prega de saia (…) exageram os sinais de perícia técnica, talento imitativo e perfeito acabamento”. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 840-842.

12 Dante Gabriel Rosseti: pintor, desenhista e poeta inglês (Londres, 1828 – Kent, 1882). Filho do escritor napolitano Gabriele Rossetti, exilado por suas opiniões políticas. Foi um dos fundadores da confraria prérafaelita. Seus quadros (Ecce ancilla Domini, 1850; O sonho de Dante, 1871) e poesias (A moça eleita, 1850) inspiram-se em lendas medievais e temas da poesia primitiva inglesa e italiana. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 21, p. 5137.

13 William Morris: poeta, artista e ativista político inglês (Essex, 1834 – Hammersmith, 1896). Inovador da estamparia e xilogravura. Escreveu poesias narrativas como The Life and Death of Jason (1867) e The Earthly Paradise (1868), poemas pós-românticos, medievalistas. Traduziu a Eneida (1876) e a Odisséia (1887) e interessou-se pelas literaturas escandinavas. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 17, p. 4090.

14 O herói pagão sobreviveu na literatura arturiana sob a forma do mago Merlin, um druida (sacerdote dos Celtas) que ainda mantinha seus poderes sob o surgimento do cristianismo. Este personagem arturiano também recebeu diversas representações pelos pré-rafaelitas durante o Oitocentos: O engodo de Merlin (1874), de Edward Burne-Jones; Merlin e Nimue (1870), de Gabriel Rossetti. Também as representações de feiticeiras, fadas e druidas fizeram sucesso na arte vitoriana: Morgan Le Fay (1864), de A. Sandys; Os druidas trazendo o azevinho (1890), de George Henry e A. Horned.

15 Segundo Borges, a literatura inglesa havia esquecido suas raízes germânicas. Foi com o romantismo que essa vertente foi redescoberta, algo impensável com Shakespeare e totalmente consciente no caso de William Morris e os pré-rafaelitas. BORGES, op. cit., p. 356-357.

16 “Ó bretão, e tu Normando, por este chifre/Lembre-se de mim, que sou do sangue de Odin”. Texto original retirado de BORGES, 2002: 359.

17 A personagem Isolda foi muito representada pelos pré-rafaelitas, especialmente Burne-Jones, Rosseti, Morris e Francis Dicksee. A imagem de Isolda resgata muitos dos valores da mulher pagã, em meio à sociedade cristã das primeiras versões literárias. O seu amor impossível com Tristão inspirou o romance de Shakespeare, Romeu e Julieta. Contemplação, redenção e tragédia tornaram-se as características essenciais do movimento pré-rafaelita. Sobre o tema ver: CAMPOS, Luciana de. Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina. Brathair 1 (2), 2001: 11-18 (www.brathair.cjb.net); CAMPOS, Luciana de. Em busca da bela dos cabelos de ouro: um estudo da representação da mulher/rainha Celta em Tristão e Isolda de Béroul. Tese de doutorado em Teoria Literária (Linha de pesquisa: História, Cultura e Literatura). Unesp/São José do Rio Preto, 2005.

18 Praticamente em todo o movimento pré-rafaelita, o rei Artur é quase sempre representado morrendo ou já morto na ilha de Avalon: L’morte d’Artur (1860) de James Archer – as rainhas choram ao lado de seu corpo próximo à praia; O rei Artur em Avalon (1894) de Edward Burne-Jones – o corpo do trágico rei repousa sobre uma ilha da costa da Bretanha, velado por nove rainhas. Para uma discussão historiográfica acerca de fontes literárias arturianas, consultar: ZIERER, Adriana. Artur: de guerreiro a rei cristão nas fontes medievais latinas e célticas. Brathair 2 (1), 2002: 45-61 (www.brathair.cjb.net).

19 Sir Edward Burne-Jones: pintor e desenhista inglês (Birmighan 1833 – Londres 1898). Aluno de Rosseti, uma das figuras marcantes do pré-rafaelismo; sua obra mistura mitologia antiga, lendas medievais e a religião cristã. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 5, p. 996.

Referências

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CAMPOS, Luciana. Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina. Brathair 1 (2), 2001: 11-18 (www.brathair.cjb.net).

_____ Em busca da bela dos cabelos de ouro: um estudo da representação da mulher/rainha Celta em Tristão e Isolda de Béroul. Tese de doutorado em Teoria Literária (Linha de pesquisa: História, Cultura e Literatura). Unesp/São José do Rio Preto, 2005.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume I. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2 ª edição.

DABEZIES, André. Mitos primitivos a mitos literários. In: BRUNNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies, Visby (Sweden), n. 4, 2002.

_____ Rêver son passé. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004.

LE BRIS, Michel. Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004.

LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999.

MARKALE, Jean. L’époppé celtique d’Irlande. Paris: Payot, 1993.

WAWN, Andrew. The Vikings and the victorians: inventing the Old North in 19Th-Century Britain. London: D.S. Brewer, 2002.

WOLF, Norbert. A pintura da era romântica. Lisboa: Taschen, 1999.

ZIERER, Adriana. Artur: de guerreiro a rei cristão nas fontes medievais latinas e célticas. Brathair 2 (1), 2002: 45-61. (www.brathair.cjb.net)

Johnni Langer – Professor da UNICS, PR. E-mail: [email protected]

Luciana de Campos – Professora Mestre. Doutoranda em Letras/UNESP. E-mail: [email protected]


BORGES, Jorge Luís. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: LANGER, Johnni; CAMPOS, Luciana de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.1, p. 144-150, 2005. Acessar publicação original [DR]

Deuses e mitos do norte da Europa | Hilda Roderick Ellis Davidson

Recentemente vem ocorrendo um grande resgate da cultura Viking. Dezenas de livros, documentários, eventos acadêmicos e descobertas arqueológicas vem demonstrando o valor da Escandinávia para o estudo da formação do Ocidente Medieval e Moderno, bem como a desmitificação de muitos estereótipos e fantasias2. Dentre todas as áreas de investigação, algumas das mais promissoras são os estudos de mitologia e religião pré-cristã, extremamente importantes para se entender o posterior processo de estruturação da mentalidade religiosa na Europa.

Uma das mais famosas pesquisadoras de mitologia germânica é a inglesa Hilda Davidson, autora do clássico Gods and Myths of Northern Europe, originalmente publicado em 1964 e que agora recebe a primeira tradução para a língua portuguesa3. Esta obra se tornou um marco das investigações na área, tanto por seu caráter sistematizador quanto pela utilização de diversos tipos de fontes, sejam elas históricas (documentos e livros de caráter nobiliárquico/institucionais), literárias, epigráficas, iconográficas e arqueológicas. A obra é dividida em oito capítulos, seguidos de uma interessante relação de referências onomásticas e de um índice remissivo. Leia Mais

L’Europe des Vikings | Claudine Glot e Michel Le Bris

Para o imaginário ocidental, os Vikings sempre foram vistos como bárbaros cruéis, assolando e destruindo as costas européias durante a Idade Média. Apesar de estudos acadêmicos escandinavos desde o século XIX demonstrarem outras facetas desta cultura, foi somente a partir dos anos 1960 que a historiografia contemporânea iniciou uma nova concepção sobre os nórdicos. O historiador britânico Peter Sawyer (The Age of the Vikings, 1962) e o francês Lucien Musset (Les invasiones: le second assault contre l’Europe chrétienne, 1965) reabilitaram os guerreiros Vikings, especialmente para o contexto social e político dos tempos medievais. Desde então, diversos estudos demonstraram a complexidade da arte, da estrutura social, as concepções mitológicas e religiosas dos antigos escandinavos, e como eles interferiram nos rumos políticos do Ocidente, deixando diversas marcas perceptíveis até hoje.

A recente publicação L’Europe des Vikings comprova esse interesse renovado pelos audaciosos aventureiros da Escandinávia. Lançado simultaneamente com uma megaexposição na Abadia de Daoulas (França) [1], o livro reuniu alguns dos maiores especialistas do mundo na área da Vikingologia, desde mitólogos, arqueólogos, historiadores, epigrafistas até museólogos. A direção da obra foi de Claudine Glot (Centro do Imaginário Arturiano) e Michel Le Bris (Centro Cultural Abbaye de Daoulas) [2].

O pesquisador com maior quantidade de trabalhos é Régis Boyer (professor emérito da Universidade de Paris-IV-Sorbonne). No artigo Les dieux, les hommes, le destin, faz uma sistematização sobre a religiosidade nórdica pré-cristã, cuja principal característica era a ausência de centralizações tanto a nível teológico quanto a nível organizacional. Não possuíam dogmas, sacerdotes no sentido moderno do termo (sem castas ou iniciações), sem “fé” e ritos [3]. Ao contrário de outros sistemas religiosos, os escandinavos não privilegiavam a força bruta ou os valores essencialmente marciais em seus cultos, mas sim, as noções de fertilidade-fecundidade pelo viés da magia. A reverência às forças da natureza e os cultos aos ancestrais foram preponderantes, tanto na forma de padrões mitológicos quanto no cotidiano social. Se para os mitos enquanto narrativas simbólicas, Boyer ainda conserva uma influência direta de Georges Dumézil, ao continuar dividindo-os em três níveis (variantes líquidos, telúricos e solares-aéreos), percebemos que a importância concedida para as artes mágicas vem progressivamente tendo importância em seus estudos. Em seu clássico de 1981 (Yggdrasil: la religion des anciens scandinaves), Boyer já denotava a relevância dos rituais de magia na sociedade nórdica, neste artigo percebemos que esta perspectiva tornou-se mais acentuada, especialmente para os ritos de Nið (infames e dessacralizadores), Seiðr (divinatórios sagrados) e Blót (sacrifícios propiciatórios). Preocupados essencialmente com seu destino, os Vikings procuravam o conhecimento deste através de todos os meios possíveis. Segundo a perspectiva de Boyer, a religião para os Vikings era baseada profundamente na ação, em valores de reciprocidade, uma “prodigieuse leçon d’énergie et de confiance en la vie” (p. 29).

Em outro trabalho, De la hache à la croix, Boyer concede sua interpretação para o processo de cristianização da Escandinávia, um tema que vem ganhando cada vez mais importância no medievalismo. O historiador mantém duas posições básicas e interdependentes. A primeira enfatiza a transferência de um modelo religioso do continente para as terras do norte. Os pagões Vikings possuíam um contato prévio com o cristianismo, tanto pelas viagens exploratórias e comerciais, conhecendo seus ritos, crenças e hábitos (especialmente pelos intercâmbios com Constantinopla). Isto foi uma das razões que, ao contrário da lenda, não houveram conversões feitas de sangue e mártires. Já na literatura islandesa, sua redação utilizou os textos hagiográficos em latim, o modelo clássico de um rei convertido ou a vida de um santo local. É o que Boyer denomina de aggiornamento, muito mais que uma mudança de mentalidade, uma adaptação das novas tendências com o antigo. Isso pode ser exemplificado com o fato da Igreja tolerar e mesmo incentivar a utilização de inscrições rúnicas – consideradas mágicas pelo paganismo – ou pelo fato dos templos cristãos serem erigidos em áreas de antigos cultos pagãos [4]. O segundo aspecto enfatizado por Régis Boyer é o político. Durante a Era Viking, os reis possuíam um carisma sagrado, mas por outro lado não tinham autoridade suprema. O cristianismo trouxe novas possibilidades para o aumento da centralização do poder real, além de possuir um sistema hierárquico extremamente piramidal. A religião nórdica antiga não tinha dogmas, rituais precisos e definidos, templos, iniciação sacerdotal, enquanto o cristianismo fornecia além de tudo isso, também a possibilidade de contatos mais freqüentes com a Europa, como a própria manutenção simbólica dos reinos. Mas com isso, o Viking não pode ser mais livre e independente. Ele simplesmente desaparece: “le christianisme aura été l’un des grands facteurs d’extinction du Viking” (p. 147).

Mais um estudo integrante do livro é La longue histoire des runes, de Alain Marez (Universidade de Bordeaux-3). Uma das fontes mais prestigiadas nos atuais estudos de Escandinávia, a runologia ou epigrafia rúnica possui a vantagem de reconstituir a história através dos próprios povos nórdicos e não em documentos escritos posteriormente. Em 1999 foram calculados cerca de 3.200 inscrições rúnicas na Suécia, 900 na Noruega e 700 na Dinamarca. Um grande potencial para novas pesquisas e interpretações da sociedade escandinava. Marez é partidário da opinião de que as runas surgiram no século II d.C., influenciadas pelos alfabetos da região norte da Itália, o Piemonte subalpino, especialmente pela migração entre os povos do norte e sul da Europa. Durante o século III, a Dinamarca predominava na produção de inscrições, mas no período de migrações até a Era Viking, a Suécia tornou-se preponderante.

No primeiro período de produção rúnica, o principal suporte das inscrições foi o metal, mas com os escandinavos houve a posterior preponderância das gravações em rocha. A maioria do conteúdo é bem curto, sendo muitas sequências do futhark [5] de caráter mágico ou de nomes próprios, bens familiares, conjurações e malefícios. As vezes as inscrições funerárias traziam o nome do defunto ou do gravador. Em sua origem, a prática de gravar nomes era feita por uma elite social, membros da aristocracia. E a partir do século V, apareceram as estelas rúnicas sobre pedras para honrar o morto. As estelas com serpente rúnica (runslangen) apareceram na Suécia central do século XI. A fórmula dos textos é bem simples: “X elevou esta pedra (em memória de) Y (seu parente, amigo)”. Caso as circunstâncias da morte sejam excepcionais, o texto exaltava o bom caráter do defunto. O “centro de gravidade” da tradição rúnica situava-se na província de Uppland, norte do lago Mälar (Suécia). Concentrada na sede da monarquia dos Svear, uma rica aristocracia de famílias muito influentes favorecia o surgimento de uma literatura rúnica. Atualmente as estelas escandinavas, especialmente da Suécia, estão sendo tema de inúmeros estudos que procuram relacionar o texto com aspectos sociais, religiosos e econômicos, permitindo uma visão muito mais ampla das potencialidades desta fonte [6].

Segundo Marez, após a cristianização a Igreja não encarou as runas como vetores do paganismo e acabou adotando-as em suas cruzes e objetos de culto. Com o triunfo da escrita alfabética latina, o futhark escandinavo começou a decair, mas no século XIII ocorreu uma nova variação para tentar rivalizar com o latim – o futhark medieval do século XIV, utilizado nos funerais cristãos, epitáfios, marcas de propriedade, nas assinaturas de artistas, carpinteiros e escultores. Os bastões rúnicos (runakefli) foram calendários muito populares, uma das últimas formas do futhark, utilizados em 1300. Para o desfecho do artigo, Marez cita uma frase do epigrafista francês Lucien Musset: “l’emploi vivant des runes cesait, la runologie naissait…” (p. 39). Com o surgimento dos movimentos esotéricos a partir do Oitocentos, as runas tornaram-se muito populares, especialmente como oráculos divinatórios. Mais do que nunca, estudos acadêmicos sobre o alfabeto rúnico e seu verdadeiro significado na Antigüidade são necessários. Neste sentido, o artigo de Marez além de uma ótima introdução, esclarece vários procedimentos metodológicos sobre epigrafia, evitando que as runas continuem apenas a serem imaginadas como algo misterioso e transcendental.

Michel Le Bris (Centro Cultural Abbaye de Daoulas) assina o interessante artigo Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. Neste trabalho, o autor recupera alguns aspectos do imaginário moderno sobre os bárbaros. Não podemos pensar os Vikings, Saxões e outros grupos sem levar em consideração as representações literárias e artísticas realizadas pelos europeus a partir dos séculos XVIII e XIX [7]. Le Bris enfatiza principalmente como os artistas desta época utilizaram a imagem do bárbaro como um reflexo de suas próprias inquietudes, de seus medos e de suas aspirações políticas ou ideológicas. Poetas como Chateaubriand e Thierry enfatizaram a figura do bárbaro com um significado de liberdade, o selvagem liberto na natureza. Já para Burgh, Hulme e a escola escocesa, houve a pretensão em demonstrar a origem gótica da liberdade inglesa e as idéias democráticas de seus antecessores ingleses. O grande mito bárbaro da época foi reinventar a explosão, a liberdade e a terra, em uma figura que fascina ou é temida, o homem nãogrego, do tumulto, da tempestade, da desordem, da desgraça. Bárbaros podiam ser os homens da Convenção ou Napoleão, convertido em Átila: após Waterloo, os bárbaros do Norte salvam a democracia e livraram a Europa dos bárbaros do sul. Os jovens românticos franceses se proclamavam bárbaros para se opor à Academia. Ainda para Le Bris, os novos bárbaros nasceram no interior da própria sociedade européia depois de 1831, as hordas obscuras que se levantaram na sociedade, os proletários. Enfim, a representação barbárica foi extremamente polimórfica, variando conforme o contexto político e social, ou ainda, dependendo do referencial artístico.

Em Les mille trésors de l’île de Gotland, Malin Lindquist (Museu Regional de Visby, Gotland) perfaz um panorama dos atuais estudos sobre a ilha de Gotland, uma das mais importantes regiões da Era Viking. O local serviu para manter a independência política dos chefes em relação a Suécia: ainda no período Vendel, os Götar já possuíam um dialeto e uma cultura diferenciada do resto da Escandinávia. A ilha foi centro do comércio LesteOeste, concentrando as influências vindas do Oriente e por isso mesmo um grande alvo para piratarias desde tempos remotos. O grande diferencial cultural da região foram as maravilhosas estelas funerárias. Com uma elegância refinada, decoradas com símbolos de glória, de morte e ressurreição, cenas dramáticas e dragões entrelaçados. As mais antigas serviam como pedras de túmulo (séc. V) e as mais recentes (séc. XII) como memoriais de propriedade. A decoração das pedras consiste em motivos espiralais, representações estilizadas de animais e outras de simbologias religiosas dos Vikings. As imagens ilustram os acontecimentos que marcaram a vida de um defunto enquanto era vivo. Foram erigidas não muito longe das rotas, pontes e locais de passagem: constituíram essencialmente monumentos para serem vistos e recordados – um importante elemento legitimador da ordem política (a classe dos Jarl) e da ordem religiosa (os cultos odínicos) [8]. As pedras rúnicas do século XII testemunham a ruptura do paganismo e do cristianismo, um dos grandes temas de investigação nos atuais estudos de epigrafia nórdica.

A obra ainda contém outros estudos importantes, como La Finlande et les Vikings, de Leena Söyrinki-Harmo (Museu de Helsinki, Finlândia), concedendo algumas perspectivas entre o contato dos escandinavos com as populações finno-ungricas. James GrahamCampbell (Universidade de Londres), traça um panorama das invasões nórdicas no extremo da Grã-Bretanha (Jarls des îles d’Écosse), enquanto Neil Price (Universidade de Uppsala), reconstitui as invasões e a formação das colônias escandinavas na Inglaterra (Angleterre: de la violence à la royauté). A descoberta e colonização do Atlântico Norte foi enfatizada por Jean-Yves Marin (Museu da Normandia) em seu artigo Les Vikings ont-ils découvert l’Amérique?, enquanto os raids pelo Mediterrâneo foram contemplados por Claudine Glot (L’Espagne et la Méditerranée).

O livro conta com uma estrutura gráfica espetacular, reproduzindo além de fotografias de diversos artefatos arqueológicos, ilustrações e pinturas de museus europeus e coleções particulares. Algumas destas obras de arte são muito pouco reproduzidas em publicações, como Pirates normands au IX siécle, de Évariste Luminais (1894); Le reliquaire, de Henri-Georges Charrier (1881); Gissur défiant les Huns, de Peter Arbo (1886); Les Rois des mers, de Alfred Didier (século XIX). Enfim, um lançamento imprescindível para os vikingólogos e muito útil também para os medievalistas em geral, pesquisadores e amantes dos fascinantes escandinavos.

Notas

1. A exposição L’Europe des Vikings foi realizada na Abadia de Daoulas, França, de 14 de maio a 14 de novembro de 2004. Dirigida por Michel Le Bris, teve como principal consultor técnico/curador o historiador Régis Boyer. A exposição contou com mais de 600 peças provenientes de 40 museus da Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Inglaterra, Russia, França e coleções particulares.

2. O Centre Culturel Abbaye de Daoulas situa-se na Bretanha Francesa é um órgão dedicado exclusivamente aos estudos de imaginário e mitologia (http://www.abbaye-daoulas.com.fr). O Centre de l’Imaginaire Arthurien também sediado na Bretanha Francesa, sendo um importante centro de referência sobre mitologia arturiana. (http://perso.wanadoo.fr/merlin77/cia.htm).

3. Boyer chama a atenção para o fato da Edda Poética não ter uma única prece verdadeira: “Au demeurant, le corpus impressionnant des textes ‘religieux’ que nous propose l’Edda poétique ne nous offre pas une seule véritable prière!” (p. 146).

4. O reaproveitamento de áreas sagradas foi uma tendência em grande parte das áreas evangelizadas pelo cristianismo: ocorreu no Peru (Igrejas construídas acima das bases de templos incas), México, Irlanda e Escandinávia. Na Inglaterra, região de Glastonbury, foi construído um mosteiro – a primeira Igreja do país – em um tradicional local de cultos pagãos, local sagrado do druidismo (ENGER, Michael (dir.). Fata morgana. Michael Enger Film Production for ZDF/Arte, 2001. VHS, documentário, 45 min.). Na Escandinávia muitas paróquias foram erigidas em locais tradicionais do paganismo nórdico (as áreas das antigas reuniões – things – foram as escolhidas para a edificação de Igrejas, como em Uppsala, Suécia). A continuidade da ostentação de estelas rúnicas em locais públicos ainda demonstrava a riqueza familiar, mas passava agora a ser um ato encorajado pela Igreja. Muitos temas pagãos presentes nas estelas foram reinterpretados pela nova fé. Heróis como Sigurðr combatendo o dragão Fafnir transformaram-se no Cristo triunfante destruindo a besta; a representação do deus Þórr pescando a serpente do mundo foi reencenada como sendo Cristo capturando o leviatã. Apesar de não ser fácil traçar a mudança de mentalidade no período de conversão, as inscrições rúnicas são uma excelente fonte para a investigação dos historiadores. As possibilidades de novas análises ainda são muito grandes. Conf. SAWYER, Birgit. The Viking-Age Rune-Stones: custom and comemmoration in early Medieval Scandinavia. London: Oxford University Press, 2003.

5. O futhark é o nome que se emprega para o alfabeto rúnico, derivado dos seis primeiros nomes dos sinais em Old Norse, na escrita Rama Longa e Rama Curta (PAGE, Raymond Ian. Runes. London: British Museum Press, 2000, p. 9).

6. Muitos runologistas revelam o quanto é promissora a investigação sistemática da epigrafia rúnica e dos monumentos Vikings. Pesquisas sobre genealogias, aspectos administrativos e eclesiásticos, dados estruturais do paganismo, o período inicial de evangelização na Escandinávia, autorias e estilos de confecção rúnica, todos estes aspectos ainda dependem de maiores esclarecimentos. As pesquisas futuras devem estabelecer uma relação entre o conteúdo, design e a ornamentação das estelas rúnicas.

7. Também participamos no livro em questão com um artigo sobre a formação do imaginário a respeito dos escandinavos, Rêver son passé, p. 166-169. Outros estudos que tratam do imaginário contemporâneo sobre os Vikings: LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies. Visby (Sweden), n. 4, 2002; BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986; WAWN, Andrew. The Vikings and the victorians: inventing the Old North in 19Th -Century Britain. London: D.S. Brewer, 2002; LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999.

8. Sobre estes aspectos das estelas de Gotland, ver o estudo: LANGER, Johnni. Morte, sacrifício e renascimento: uma interpretação iconográfica da estela Viking de Hammar I. Revista Mirabilia n. 3, 2003. www.revistamirabilia.com

Johnni Langer – Universidade do Contestado, SC. E-mail: [email protected]


GLOT, Claudine; LE BRIS, Michel (Orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004. Resenha de: LANGER, Johnni. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.2, p. 159-163, 2004. Acessar publicação original [DR]

Nine worlds of Seid-Magic: ecstasy and neo-shamanism in North European paganism | Jenny Blain

Em 1854 um dos primeiros estudos acadêmicos sobre religião nórdica foi publicado. Realizado pelo historiador norueguês Rudolph Keyser, o livro The religion of northmen concedia muito pouco espaço para a prática mágica do Seiðr, estrategicamente discutida num capítulo intitulado “feitiçaria”. Segundo este pesquisador, o Seiðr teria um caráter secreto e muito misterioso (KEYSER, 1854). Mesmo a tradução exata da palavra sempre foi muito debatida. Em 1935 D. Strömbäck publicou um estudo clássico sobre o tema, Sejd: Textstudier I nordisk religionhistoria, o primeiro a propor a conexão entre práticas xamanistas lapônico-finlandesas e os cultos Vikings (1), retomada parcialmente por Eliade em 1951 (Le chamanisme) e plenamente por Thomas DuBois em 1999 (Nordic religions in the Viking Age).

Dentro do contexto desse debate, a antropóloga norte-americana Jenny Blain apresenta sua mais recente contribuição: o livro Nine worlds of Seid-Magic. A principal proposta da autora não é realizar um estudo historiográfico ou literário, mas sim entender o desenvolvimento do Seiðr dentro da sociedade moderna, seus valores e sua relação com a prática original da Idade Média. Para entender essa conexão, ela utiliza a metodologia dos estudos de gênero, principalmente as teorias de J. Butler; análise de fontes literárias do século 12 à 14 e observação participante de vários meses com praticantes de neo-xamanismo europeu e indígenas da América do Norte.

Afinal, o que é Seiðr? Para Boyer (1981, p. 144) a palavra significaria tanto “canto” como “união”, ao contrário da maioria das traduções, que entendem a mesma como “feitiçaria” (WARD, 2001). Por sua vez, Jenny Blain prefere utilizar vários conceitos ao longo do livro, testando todos conforme o contexto analítico. O que todos concordam é que o Seiðr teria sido uma prática mágica realizada essencialmente por mulheres (seiðkonas) durante a Era Viking, algumas vezes utilizando cantos, outras vezes utilizando técnicas de adivinhação.

Os primeiros quatro capítulos do livro são dedicados a contextualizar as práticas do Seiðr moderno, questões conceituais e introdutórias, além de descrições de narrativas xamanísticas. É a partir do capítulo 4 (Approaching the spirits), que a obra se torna mais interessante aos estudos historiográficos. Blain retoma o conceito de Mircea Eliade para explicar o fenômeno do xamanismo, isso é, seria toda técnica de êxtase para alcançar experiências em outro mundo. Logo de início a autora tem uma constatação muito interessante: não há nas sagas elementos primordiais ao xamanismo – a supremacia de homens nos cultos, a ocorrência de tambores ritualísticos e a existência do xamanismo como um prática central na comunidade (toda ela aceitando o ritual). Sabemos que no Seiðr Viking as mulheres eram preponderantes, mas era a religião sob a forma de sacerdotes masculinos que prevalecia socialmente (com variações de culto). As seiðkonas eram marginalizadas ou mesmo estrangeiras atuando momentaneamente nas comunidades. E tambores nunca foram encontrados pela arqueologia e são mencionados raramente nas fontes.

A questão social do Seiðr é fundamental para Blain: quando as relações com as praticantes são negativas na comunidade, elas eram denominadas de fordæða (ou mesmo seiðkonas), mas ao contrário, quando estas relações eram positivas, elas eram chamadas de spákona. Outra técnica mágica conhecida na Era Viking, o Spá (profetizar), várias vezes confunde-se nas fontes com o Seiðr. Muitas das situações positivas das mulheres que realizavam magia registradas pelas sagas, refere-se ao papel profético ou de cantos mágicos realizados para benefício de alguns membros ou de toda a comunidade envolvida. Sempre associados com algum caráter de fertilidade e prosperidade. Como na situação em que uma mulher é chamada para resolver o problema da fome de um vilarejo (por meio de cantos obteve peixes…), ou na Groelândia, quando uma spákona foi solicitada para predizer o progresso da comunidade, algo que ela fez por meio da invocação de espíritos (varðlokur).

A situação mais complexa para análise são os momentos em que a magia feminina foi considerada maléfica, não importando a classe social da praticante. O caso mais famoso é a rainha Gunnhildr da Noruega, uma seiðkona, acusada de feitiçaria e atos malévolos. Para Blain, essa rainha encarnaria o protótipo do mal e da mulher vingadora no mundo nórdico, manifestado pela misoginia das fontes. Gunnhildr foi inimiga do célebre Viking Egil Sakalla-Grímsson.

O capítulo 7 (Ergi seiðmen, queer transformations?) analisa a polêmica relação entre homens e a magia Seiðr. A maior parte das fontes tratou os praticantes masculinos como Ergi, passivos sexuais ou efeminados. O problema é que nos dias atuais existem muitos homens que se envolvem com esse tipo de ritual nórdico e contestam esta visão (2). As fontes que tratam dessa circunstância são de dois tipos: as que se referem aos deuses e as que citam situações históricas. No primeiro tipo, temos as famosas passagens do Lokasenna 23, 24 e Ynglingasaga 7, onde o deus Óðinn foi acusado de ser Ergi, justamente por ter se envolvido com o Seiðr. Lembramos que esse tipo de magia era associada aos deuses Vanires, especialmente à deusa Freyja e existem registros de cultos ligados a sacerdotes efeminados (3).

No contexto histórico, existem dois episódios muito populares. Rögnvald, filho do rei norueguês Haraldr Finehair, com mais 80 homens acusados de praticar Seiðr, foram queimados – um ato totalmente aprovado pela comunidade (Haralds saga hárfagra 36). Outro rei, Óláfr Tryggvason, também mandou executar 80 seiðmaðrs (BLAIN, 2002: 112). Para analisar esses e outros episódios violentos, Blain recorre à teoria do chamado “terceiro gênero”, homens que encarnariam papéis tanto masculinos quanto femininos na sociedade nórdica. A principal sustentação para esse ponto de vista pela autora, é uma passagem do poema Hyndluljóð 32, que cita os três principais tipos de praticantes de magia nórdica: völvas (videntes, outro termo para spákonas e seiðkonas), vitkis (homens que praticavam a magia rúnica, Galldr, também chamados de galdramaður) e Seiðberender. Neste último, teríamos um exemplo de terceiro gênero – homens efeminados com papéis as vezes tolerados, as vezes reprimidos pela sociedade escandinava. Baseada na teórica inglesa J. Butler, a autora realiza uma interessante discussão sobre gênero, que não reside apenas no sexo biológico e nem confinado na oposição binária dos papéis coletivos, mas sim numa noção de performance: a atividade dos homens efeminados na comunidade e os limites de sua transgressão nas fronteiras fixas dos códigos e leis sociais sobre comportamento sexual.

Ainda nesse mesmo capítulo, influenciada pelas novas perspectivas da antropologia (como a obra de A. Salmond), Blain trabalha o conceito de religião como algo sempre mutável nas sociedades, recebendo influências externas, ao mesmo tempo que se modifica internamente no decorrer da História. O momento mais interessante é a discussão dos termos Ergi e Nið, dentro do contexto das fontes. Deixando sempre claro o uso dessas palavras como insultos, e seguindo reflexões do historiador sueco Meulengracht Sørensen, a autora envereda para o conceito de Nið com conotações políticas e sociais. Ela consegue vislumbrar (p. 131), que a acusação de Óðinn por Loki e os conflitos históricos mencionados, não se baseavam apenas nas categorias de gênero, mas faziam parte de uma oposição interna entre “os guerreiros de Óðinn” e os “praticantes de Seiðr”. E é justamente nesse instante que percebemos a maior deficiência do livro: poderia ter analisado muito mais a fundo essa perspectiva. Talvez se tivesse consultado o clássico Du mythe au roman, 1970, de Georges Dumézil, a autora teria elementos analíticos muito mais eficientes. Em um trecho rápido, mas extremamente denso, o famoso mitólogo explora o insulto a Óðinn e a queima histórica dos seiðmaðrs como reflexo de uma rivalidade religiosa interna ao mundo Viking, uma “magia nobre” – identificada ao deus caolho, e outra “menos nobre ou baixa”, vinculada à deusa Freyja e aos vanires (DUMÉZIL, 1992: 79-96).

Em nosso ponto de vista, o que estava em jogo na antiga sociedade escandinava não eram apenas relações de gênero e padrões de comportamento sexual, mas tensões entre diferentes formas de culto (4). A elite (Jarls), maiores cultuadores de Óðinn – onde presenciamos os casos de execução pública de homens praticantes de Seiðr; e ao contrário, as menções às mulheres do Seiðr nas fontes, nem sempre bem vistas, mas quase sempre necessárias nas comunidades de fazendeiros (bóndis) – justamente, a classe dos Karls, a exemplo do caso mencionado dos fazendeiros da Groelândia. Existiria um conflito direto entre formas religiosas públicas da elite (dominadas pelo referencial masculino/odinista) e a magia privada dominada por mulheres (cultuadoras de vanires)? Enquanto que nas comunidades de fazendeiros essas tensões seriam suplantadas pelas necessidades cotidianas, atendidas pelo Seiðr? E a misoginia das fontes é apenas influência do período cristão ou reflexo direto do pensamento Viking?

Essa é a perspectiva que acreditamos que sejam necessárias novas investigações, um caminho multi-disciplinar: o estudo entre as variações das formas de cultos + classes sociais + gênero + sexualidade, que geraram tanto as tensões sociais quanto os referenciais sobre homem e mulher na Era Viking. E também novos estudos linguísticos e historiográficos para entender com mais profundidade as noções de Seiðr, Nið e Ergi nas sociedades escandinavas cristãs dos séculos 12 a 14 (a época em que foram redigidas as fontes).

Sem ter a densidade analítica de autores acadêmicos como Boyer (1981), Davidson (1993) e DuBois (1999), o livro de Jenny Blain ainda assim será uma referência muito importante para todos aqueles que querem entender melhor o papel da magia e da religião no mundo nórdico medieval.

Agradecimentos: à historiadora Luciana de Campos, pelas informações sobre teoria de gênero e história das mulheres.

Notas

1. Infelizmente esse livro de D. Strömbäck permanece inédito em inglês, francês e espanhol.

2. Um exemplo é o artigo esotérico de Ed Richardson, Seiðr Magic, publicado na internet. Segundo esse autor, os rituais dos guerreiros Berserkers e Ulfhednar utilizariam a magia Seiðr. Mas isso não é corroborado por nenhuma fonte literáriohistórica nem referencial bibliográfico acadêmico. Na realidade, Richardson utilizou outros autores esotéricos (como Jan Fries e Nigel Pennick) para referenciar essa informação. Como os Berserkers são identificados com elementos extremamente viris dentro da cultura Viking, não seria uma forma de alguns neo-paganistas tentarem legitimar a prática do Seiðr para homens em nossos dias? Esse artigo também possui outros erros: o uso do Seiðr para guerras e batalhas; a descrição dos deuses Vanires como sendo um antigo povo escandinavo (algo nunca confirmado pela arqueologia ou historiografia). Os melhores e mais documentados textos na Web sobre Seiðr são os de Paxson (1997), Blain & Wallis (2000), Berlet (2000) e Ward (2001). Segundo o excelente estudo de Berlet (2000), homens viris na Era Viking seriam adeptos da prática do Galldr (magia rúnica, a exemplo do herói Sigurðr da Völsunga Saga e do poetaguerreiro Egil Sakalla-Grímsson, este último filho de um Berserker).

3. Saxo Grammaticus (Gesta Danorum VI, v, 10), cita que o herói varonil Starkatherus ficou horrorizado quando presenciou cultos para o deus Freyr realizados na Suécia Viking: os homens realizariam danças efeminadas (effeminatos corporum motus) e teriam “trejeitos mimosos” (DUMÉZIL, 1992: 140). Os Lapões realizavam cultos onde os homens se travestiam de mulheres (idem, p. 141). Tácito citou a tribo germânica dos Naharvalos, onde existia um sacerdote que presidia os cultos vestidos de mulher (Germânia 44). Segundo Heródoto (História), entre os Citas ocorria uma casta de sacerdotes efeminados chamados de Enarees (homem-mulher). O antropólogo Timothy Taylor cita vários casos de sacerdotes xamanistas que mutilavam ritualísticamente a região genital, na Europa, Ásia e Índia. O mesmo pesquisador apresenta uma análise de certas figuras do caldeirão de Gundestrup (originário da Dinamarca do século II a.C.), apresentando androginia ritualística, onde as figuras andróginas portam espadas, com pelos nos ombros e seios (TAYLOR, 1997: 203-211). Mircea Eliade menciona sacerdotes xamanistas que se vestem de mulheres entre os tchuktche asiáticos, esquimós, índios da América do Sul e Norte (berdaches: homens-mulheres). A explicação do mitólogo para esse fenômeno universal é clássica: “A transformação simbólica e ritual explica-se provavelmente por uma ideologia derivada do matriarcado arcaico”. (ELIADE, 1998: 286). A respeito do homossexualismo na cultura Viking, o trabalho mais documentado é o da historiadora Christie Ward (2002).

4. Em seu excelente artigo Galldr and Seiðr, Robert Berlet apresenta uma perspectiva muito próxima de nossas problemáticas. Para ele, existiria a prática do Seiðr – dominada por mulheres e com técnicas muitas vezes agressivas/malévolas, quebrando as convenções sociais; e a magia rúnica (Galldr) – totalmente dominado por homens viris, especialmente voltada para proteção e com caráter nobre. Odinistas míticos (Sigurðr) e históricos (Egil Skallagrimssom) foram treinados nessa última arte mágica. Assim, para Berlet, Seiðr e Galldr seriam essencialmente diferentes em seus resultados (Berlet 2000).

Referências

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BERLET, Robert. Galldr and Seiðr: Two Sides of the Same Coin. Gender & Identity in Viking Magic, 2000. http://www.publiceye.org/racism/Nordic/viking-magic.htm

BOYER, Régis. Yggdrasill: la religion des anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.

DAVIDSON, Hild Roderick Ellis. The lost beliefs of Northern Europe. New York: Paperback, 1993.

DUBOIS, Thomas A. The intercultural dimensions of the Seiðr ritual. In: _____ Nordic religions in the Viking Age. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999.

DUMÉZIL, Georges. A magia má dos Vanes. In: _____ Do mito ao romance. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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PAXSON, Diana L. Sex, Status and Seidh: homosexuality and Germanic Religion. Idunna n. 31, 1997. http://www.hrafnar.org/seidh/Sex-status-seidh.html

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WARD, Christie L. Women and magic in the Sagas, 2001. http://www.vikinganswerlady.com

_____ Homosexuality in the Viking Age, 2002. http://www.vikinganswerlady.com

Johnni Langer – Departamento de História/ UNC. E-mail: [email protected]


BLAIN, Jenny. Nine worlds of Seid-Magic: ecstasy and neo-shamanism in North European paganism. London/New York: Routledge, 2002. Resenha de: LANGER, Johnni. Poder feminino, poder mágico. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.1, p. 98-102, 2004. Acessar publicação original [DR]

Angus: o primeiro guerreiro. Livro um | Orlando Paes Filho

As narrativas de antigos guerreiros sempre fascinaram o ocidental moderno. Desde o romantismo, diversos romances foram escritos sobre façanhas ancestrais, elegendo principalmente a Idade Média como cenário para tal aventuras. Mas os denominados povos “bárbaros” – celtas, germanos e eslavos – sempre ocuparam uma posição secundária nestas literaturas. Foi somente no século XX que os escritores descobriram o universo encantador das obscuras etnias que sempre estiveram “à margem da civilização”.

Em seu lançamento de estréia, Angus, o escritor brasileiro Orlando Paes Filho realizou um projeto editorial ousado, com uma produção gráfica impecável e um monumental apoio de pesquisa. O livro conta a primeira etapa da formação do clã escocês MacLachlan, acompanhado de belas ilustrações e diversos mapas históricos ao final do texto. A condução da narrativa é bem feita, cativando em muitos momentos a imaginação do leitor. As cenas de batalha, desde seus preparativos até a sua sequência final, são maravilhosas, demonstrando um grande conhecimento do autor sobre a guerra nos tempos antigos. Aliás, a preocupação em conseguir definir um contexto histórico com mais precisão por toda a narrativa, levou o autor a solicitar apoio de acadêmicos, como o de alguns medievalistas brasileiros, alem de pesquisadores em arte sacra, como Marcelo Bertani. Mas devido ao fato da primeira parte da obra utilizar principalmente referências sobre a cultura Viking – praticamente desconhecida da academia brasileira – a obra acabou cometendo inúmeros erros, anacronismos, concepções moralistas e interpretações equivocadas, o que acabou comprometendo a qualidade geral do romance.

Em primeiro lugar, encontramos muitos erros etimológicos no texto, como por exemplo a utilização da palavra drakkar como sendo própria da cultura Viking (p. 31). Na realidade, ela surgiu de uma expressão latinizada na França, e a expressão original em Old Norse é Langrskip (navio longo, Haywood, 2000, p. 171). Já com relação à palavra Viking, no texto menciona-se “homens do norte, que chamavam a si mesmos de vikings” (p. 29). Recentemente, o especialista Jesse Byock demonstrou que o termo não designava originalmente os habitantes da Escandinávia, ou seja, eles não auto conclamavam-se com essa expressão. Ela era empregada para qualquer tipo de pessoa que navegava além mar, seja para motivações de pirataria, comércio pacífico e colonização (Byock, 2001, p. 11-13). Na mesma página, outro erro etimológico: “jarl, palavra da língua deles que significava exatamente comandante”. Porém, em Old Norse ela é traduzida como “conde” ou “lorde”, e segundo Haywood, originalmente significava “meant simply prominent man” (2000, p. 181). Para nomear as sacerdotisas das runas (p. 85), o autor utilizou a palavra “anjos da morte”, utilizada pelo árabe Ibn Fadlan no século IX d.C. e popularizada pelo filme “O 13º guerreiro”. Seria melhor utilizar a expressão original, spá-kona (mulher que conta o destino) ou völva (profetisa) (Boyer, 1981, p. 145).

Continuando a análise do livro, encontramos diversas interpretações incorretas. Logo no início, o autor descreve uma reunião de druídas, sacerdotes da religião celta, onde um monge cristão participa para revelar uma profecia (p. 11-22). A mesma situação se repetirá no desfecho, onde no círculo megalítico de Stonehenge, em meio a monges cristãos, um sacerdote druida oferece a Angus uma espada feita com os cravos da cruz de Cristo. Um situação totalmente impossível, do ponto de vista histórico. Representantes do paganismo nunca permitiriam a participação de cristãos em seus cultos, ainda mais num local muito significativo para as religiões pré-cristãs da Inglaterra, as ruínas de Stonehenge.

Com relação aos marinheiros Vikings, Paes Filho afirma que temiam a grande serpente marinha, Jormungandr, assim como os deuses oceânicos (p. 54). Nada mais incorreto. Esse monstro marinho não era temido, e sim respeitado pelos nórdicos, um verdadeiro símbolo da ordem e do caos no universo (Boyer, 1997, p. 435). Quanto aos deuses primordiais do oceano, Aegir e sua mulher Rán (depois substituidos em importância por Njörðr), eram aplacados facilmente com o transporte de peças de ouro nos navios (Boyer, 1981, p. 136). Aliás, em nosso conhecimento dos escandinavos medievais, podemos afirmar categoricamente que eles não temiam nada!

Outro equívoco do autor é a descrição do ritual Blóðörn (asa de águia) como sendo uma prática específica de um filho para vingar o pai morto. Na realidade, era um ritual utilizado para honrar o deus supremo, Óðinn, e também praticado em criminosos e prisioneiros de guerra (Boyer, 1981, p. 160).

Dois momentos do romance são puramente anacrônicos. No primeiro, o pai de Angus torna-se possuído por um sentimentalismo típico do mundo moderno, de origem hebraico-cristão: “Ninguém mais vai torturar prisioneiros que já foram derrotados e que não têm como se defender!” (p. 113). A prática de oferecer prisioneiros de guerra para rituais ao deus Óðinn era muito comum entre os nórdicos (tanto por afogamento, queima, enforcamento e pelo asa de águia), e de maneira nenhuma podemos considerála sádica, e sim, característica de uma cultura voltada essencialmente ao culto da guerra, ao belicismo e as consequências simbólicas na vitória dos conflitos (Boyer, 1981, p. 158-162). Em outro momento, Angus chora a morte do pai Seawulf (p. 138). Outra situação impensável para um guerreiro Viking e para os bárbaros germânicos em geral, pois mesmo diante da própria morte portavam-se sempre sorridentes e cômicos (Brøndsted, s.d., p. 236).

Comentando sobre antigos reis da Germânia e sua suposta descendência de Woden (Óðinn para os Vikings), Angus se revela perplexo: “Achei impossível e até engraçado alguém descender do próprio Odin” (p. 150). Era muito comum entre os escandinavos a associação entre esse deus com a dinastia dos governantes, e diversos skalds (poetas) e historiadores do século XII montaram verdadeiras listas da descendência divina dos reis nórdicos (Boyer, 1981, p. 142).

Mas apesar dos erros textuais, os piores problemas ocorrem nas ilustrações, obviamente as maiores perpetuadoras de estereótipos sobre os Vikings para a sociedade moderna (Langer, 2002). Nas maioria das imagens do livro os guerreiros são representados com enormes bíceps, musculatura descomunal, quase como praticantes de fisiculturismo moderno. Algo tão irreal quanto anacrônico. Essa maneira de representar os bárbaros surgiu com as primeiras imagens da obra do escritor Robert Howard, especialmente de seus heróis Conan e Kull. Durante os anos 1950, com Frank Frazetta, e posteriormente com Boris Vallejo e os inúmeros quadrinistas dos mesmos personagens, o bárbaro foi idealizado como símbolo do homem perfeito – forte e descomunal até os limites máximos do corpo humano. Com o filme Conan, o bárbaro (1982), o ator Arnold Schwarzenegger encarnou esse ideal, que persiste na arte atual como um verdadeiro modelo estético. Um dos únicos pintores que conseguiu retratar os Vikings com grande perfeição histórica foi Tom Lovell, com magníficas ilustrações realizadas para a revista National Geographic em 1970. Do mesmo modo, as mulheres representadas no livro Angus são irreais: seios gigantescos, corpo esguio e detalhes faciais típicos das modelos atuais.

Em uma análise do equipamento, causa muita admiração o fato dos ilustradores terem realizado uma pesquisa minuciosa, representando corretamente alguns capacetes reais da era Vendel, broches, mantos, escudos e espadas celtas. Mas ao mesmo tempo, apesar do estudo rigoroso, acabaram por perpetuar estereótipos bem conhecidos do grande público, como os fantasiosos capacetes com chifres e asas laterais (a ilustração “funeral de Wulfgar”, foi baseada na pintura “funeral de um Viking”, de F. Dicksee, 1893, uma das popularizadoras do estereótipo dos elmos chifrudos). Consideramos inadmissível um romance moderno sobre escandinavos ainda persistir em uma imagem tão ultrapassada dentro das pesquisas medievalistas (Langer, 2002).

Mas ainda existem outros erros. Por todo o livro, inclusive por parte do personagem central Angus, ocorre a utilização de machados duplos – um equipamento totalmente desconhecido pelos Vikings (utilizavam apenas machados de uma lâmina). Aliás, analisando-se o tamanho proporcional das peças ilustradas, o seu uso por apenas uma das mãos é algo impossível, mesmo por fortes guerreiros. Ainda com relação à esse armamento, na página 59 o autor descreve que no machado de Angus estaria gravado nas duas faces a runa de Þórr (Thor), chamada Thorn. Mas a ilustração “Seawulf, Angus e Hagarth na Ânglia do Leste” (p. 53), dentro deste contexto do romance, traz erroneamente a representação da runa Beorc no machado de Angus. Um descompasso entre texto e imagem.

Também as cotas de malha representadas (cobrindo todo o corpo) estão fora de contexto na época retratada (século IX d.C.) – visto que os escandinavos as utilizaram genericamente somente a partir do século XI d.C., principalmente na área da Normandia.

Em um ponto de vista da religiosidade medieval, a obra trata da conversão de Angus ao cristianismo – e em sentido simbólico – da supremacia teológica do cristianismo sobre o paganismo Viking: “Os deuses nórdicos são geniosos e impetuosos, mais humanos do que divinos. Mas aquele Deus dos cristãos, que fazia reis renunciar ao trono por devoção a Ele, deveria ser muito poderoso” (p. 107). Implicitamente, dizer que os deuses germânicos são mais antropomórficos que o deus monoteista hebraico-cristão é totalmente fantasioso e fora do contexto acadêmico moderno. O autor deveria ter lido alguns pesquisadores como Mircea Eliade, Régis Boyer e Joseph Campbell, que com certeza teria criado uma visão bem diferente das crenças da Europa pré-cristã. Aqui, evidentemente, as opiniões religiosas do escritor prevaleceram sobre seu personagem, tornando o livro uma ode ao triunfo do cristianismo. Uma lamentável opção, segundo o referencial dos leitores mais exigentes.

Em conclusão, devido aos inúmeros anacronismos do romance Angus, recomendamos a leitura dessa obra apenas como um passatempo inconseqüente. Para atingir uma proximidade maior com a verdadeira sociedade dos Vikings, ao leitor só resta aconselhar a busca por obras acadêmicas.

Referências

BOYER, Régis. Yggdrasill: la religion des anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.

_____ A grande serpente. In: BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1997.

BRÖNSTED, Johannes. Os vikings: história de uma fascinante civilização. São Paulo: Hemus, s.d.

BYOCK, Jesse. Viking Age Iceland. London/New York: Penguin, 2001.

DUBOIS, Thomas A. Nordic religions in the Viking Age. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999.

HAYWOOD, John. Encyclopaedia of the Viking age. London: Thames and Hudson, 2000.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies. Visby (Sweden), n. 4, 2002b.

Johnni Langer – Facipal, Faculdades Integradas de Palmas, PR. E-mail: [email protected]


PAES FILHO, Orlando. Angus: o primeiro guerreiro. Livro um. São Paulo: Arxjovem, 2003. Resenha de: LANGER, Johnni. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.1, p.67-70, 2003. Acessar publicação original [DR]