Ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX: novos objetos e nova temporalidade em um panorama internacional / Varia História / 2017

Desde fins do século XIX, não só no Brasil, raça foi um dos temas mais recorrentes entre pensadores sociais, literatos e cientistas, sobretudo aqueles ligados à medicina, à antropologia e à história natural. Com a emergente discussão sobre evolução, saúde pública, imigração e ocupação dos territórios nacionais, o tema se tornou ainda mais premente, mobilizando uma série de ideias, teorias e explicações sobre a formação e o desenvolvimento biológico dos povos dos vários países do ocidente – que se pretendiam em processo de modernização -, o que teve como um dos desdobramentos o pensamento médico-eugênico. Miscigenação racial e degeneração, branqueamento e assimilação, classificações físicas e psicológicas dos grupos populacionais foram alguns dos assuntos privilegiados pelos cientistas e pensadores, sobretudo no Brasil, país visto pela comunidade científica internacional como “um laboratório racial”. Importante também foi a influência dos estudos sociais e de viés cultural, que tencionaram os discursos eugênicos e raciais, pautados no determinismo biológico. Desde meados do século XX, com a reconfiguração dos olhares sobre a diversidade humana, os debates ganhariam novos significados, orientados pelos pressupostos científicos da genética, dos estudos populacionais, dos estudos culturais e novas perspectivas das ciências sociais.

Conforme já demonstrado por uma ampla historiografia, o conceito de raça foi introduzido pela História Natural no século XVIII, com imediata aplicação para classificar a diversidade dos seres humanos. Ao longo do século XIX e XX, vários foram os médicos, cientistas e intelectuais que contribuíram para a elaboração e transformação dos saberes sobre raça, consolidando-se o que conhecemos como racismo científico, o que serviu como um dos fundamentos para pensar a formação dos estados-nações. A partir do início do século XX, com o avanço de ideologias imperialistas e nacionalistas, o racismo se disseminou pelo mundo todo, alimentado pelos interesses políticos e econômicos e justificados pelo racismo científico, mobilizando uma série de ideias, teorias e explicações – “legítimas por serem científicas”- sobre as diferenças biológicas entre as nações e suas populações. Diferenças biológicas, tidas como hereditárias, inscritas em formas de hierarquização dos diferentes grupos humanos, e que eram consideradas como passíveis de modificação por meio da eugenia, visando o melhoramento dos indivíduos e, por consequência, das sociedades. Aliás, eugenia e racismo foram perspectivados como termos praticamente intercambiáveis. Porém, as intervenções eugênicas – sobretudo dirigidas para a reprodução – não se reduziram às questões raciais, mas a uma política científica de controle de todos aqueles sujeitos tidos como degenerados ou que não se enquadravam nos supostos ideias de aptidão. Reformas sanitárias e medidas de saúde pública, puericultura, esterilização, contracepção, aborto e, no seu extremo, a eutanásia e o extermínio foram algumas das diversas práticas eugênicas implementadas ao longo do século XX para operacionalizar certa lógica em que algumas vidas valeriam mais do que outras.

No contexto do pós-segunda guerra, doravante, ocorreu um revisionismo envolvendo o conceito de raça, no qual a genética e a noção de população tiveram papel fundamental. Tal revisão é reflexo da repulsa provocada pelas consequências ético-políticas do extremismo das abordagens eugênicas e dos usos perversos do racismo científico nazista. A propósito, em contraposição, tentou-se descreditar a eugenia e a ciência racial como pseudociências. E é nesse novo contexto que o presente dossiê temático centrará suas discussões, para que possamos refletir sobre as transformações e continuidades nas concepções de raça e eugenia; que, vale chamar a atenção, persistem em povoar o nosso presente, mesmo que retraduzidas e com novas configurações científicas e sócio-políticas. Pretendeu-se com esta reunião de artigos, de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, desenvolver uma discussão histórica sobre a construção de discursos acerca da eugenia e da questão racial, propondo uma problematização a partir de novos objetos em torno desses consagrados temas, aqui então perspectivados em um cenário nacional e internacional, com o recorte principal na segunda metade do século XX.

O artigo que abre o dossiê, de autoria da pesquisadora americana Diane Paul trata das transformações, nos anos 1990, dos parâmetros normativos de controle da reprodução, em que interromper ou impedir o nascimento de pessoas com doenças hereditárias graves passou a ser aceito socialmente em alguns países ocidentais, como uma questão de ordem privada, uma escolha individual, e não mais uma prática rotulada de eugênica. O artigo de Mariza Miranda e Gustavo Vallejo, ambos argentinos, também aborda as propostas eugênicas de controle da reprodução na Argentina, por meio da normatização e da disciplinarização da sexualidade, ainda muito difundida pelo ideário argentino católico e liberal anticomunista, pós anos 1950 (pós-holocausto). A originalidade deste artigo está em problematizar a continuidade da eugenia nesse cenário, até os anos 1980, como um saber universitário, com reconhecimento acadêmico, mesmo em um tempo em que a sua legitimidade científica passou a ser desconsiderada.

Com o artigo de Robert Wegner, pesquisador da COC-Fiocruz, recuamos alguns anos no tempo, entre 1929 e 1940, para problematizar a emergência no Brasil de concepções de hereditariedade segundo o ponto de vista da genética mendeliana – em dois geneticistas brasileiros, Octavio Domingues e Salvador de Toledo Piza -, suas implicações sobre o pensamento eugênico e o debate local acerca da miscigenação racial, em diálogo com o eugenista Renato Kehl. Tal discussão a respeito da história da genética, eugenia e raça no Brasil, é a ponte para uma reflexão mais ampla da pesquisadora alemã Veronika Lipphardt, que trata das transformações e permanências, em termos práticos e epistemológicos, com a passagem de uma ciência racial para as pesquisas em variação genética humana em meados do século XX. Como exercício empírico, a autora discute a persistente fascinação pela diferença biológica humana, abordando as permanências de uma lógica racial (segregacionista e discriminatória) nos estudos de genética populacional em ciganos, denominados também de os “Roma”.

Finalmente, o dossiê completa-se com dois artigos versando sobre o tema do antirracismo pós-1950. Marcos Chor Maio, também pesquisador da COC-Fiocruz, problematiza a oposição ao racismo científico e à eugenia presente na crítica do psicólogo e antropólogo judeu-canadense Otto Klineberg aos Testes de Inteligência e na sua atuação na Unesco. Crítica fundamentada nos argumentos sobre a importância de aspectos socioeconômicos e culturais no desenvolvimento da capacidade intelectual e que tomava as relações étnico-raciais no Brasil como um bom exemplo da inconsistência dos argumentos sobre a associação entre raça e inteligência. Para além da trama médico-científica e no âmbito das ciências sociais, este dossiê traz uma discussão sobre como os próprios sujeitos, alvos do racismo, enfrentaram relações e políticas raciais discriminatórias. O pesquisador americano Jerry Dávila contribui com um instigante artigo que justamente explora as tentativas para definir, reagir e combater a discriminação, partindo da análise de ações judiciais provocadas pela “Lei Anti-discriminação” brasileira de 1951. O autor busca demonstrar que tais enfrentamentos tinham inspiração nas experiências raciais estadunidenses, mas foram adaptados às circunstâncias legais, políticas, sociais e culturais locais.

Esperamos com este dossiê apresentar aos leitores da Varia Historia uma pequena amostra de uma produção historiográfica recente sobre ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX, procurando demonstrar as potencialidades e várias outras possibilidades de se explorar o assunto.

Ana Carolina Vimieiro Gomes – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

Robert Wegner – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Avenida Brasil 4036 / 407, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, 21.040-360, Brasil, [email protected]

Vanderlei de Souza – Departamento de História, Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus Santa Cruz. E-mail: [email protected]


GOMES, Ana Carolina Vimieiro; WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei de. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.61, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

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