Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais | Das Amazônias | 2022

Detalhe de cartaza do X Ser Negra Semana de Reflexoes sobre Negritude Genero e Raca dos Institutos Federais
Detalhe de cartaza do “X Ser Negra – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais”

Primeiramente, é um prazer sermos responsáveis pela apresentação desse dossiê. Mas o fundamental nesta apresentação são as pesquisas para as quais ela pretende abrir caminhos. É interessante que neste conjunto de pesquisas constatamos a relação entre cultura, conhecimento, poder e a centralidade, em especial, da água e dos diferentes papéis das assimetrias sociais, de modo a revelar importantes compromissos sociais.

Esse dossiê é composto a partir de trabalhos inicialmente apresentados no X Ser Negra – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça dos Institutos Federais, realizado entre 23 e 26 de novembro de 2021, um Congresso altamente científico e democrático que permite a interação entre os mais diferentes sujeitos sociais em um espaço de reciprocidades múltiplas. Foi organizado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM) e totalmente online devido aos efeitos da pandemia de Covid-19. Leia Mais

Dos corpos negros: escravidão, raça e pós-abolição em perspectiva comparada | Revista de História Comparada | 2022

É  com grande prazer que ora apresentamos o dossiê ”Dos corpos negros: escravidão, raça e pós-abolição em perspectiva comparada ”. A problemática abordada incide, a partir de diferentes pesquisas, sobre  o corpo negro feminino no período escravista e no pós-abolição, entendido como basilar na estruturação das realações de exploração e reprodução  na escravidão e na contrução dos caminhos da liberdade. Compreendemos o pós-abolição como um período que se inicia com a abolição, mas que acolhe um longo período de nossa história. À medida que os rastros e traços das relações  sociais brasileiras continuam a moldar a nossa estrutura social, consideramos que a etapa pós-abolição ainda não foi superada entre nós.

O objetivo das organizadoras foi oferecer ao público especializado  um panorama atualizado deste importante tema, a partir do acolhimento de difrerentes reflexões e pesquisas que têm sido desenvolvidas por um grupo de  pesquisadoras do Brasil e do exterior. Agradecemos à Revista de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo acolhimento de nossa proposta e pelo espaço oferecido para sua publicação. Os nossos agradecimentos se estendem igualmente às pesquisadoras que enviaram seus artigos e aos pareceristas que gentilmente se propuseram à leitura e análise-  atentos, generosos e críticos- dos trabalhos que apresentamos ao público. Leia Mais

Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição | Revista Maracanan | 2021

Maconha
Maconha | Foto: Notícias Chapecó

Durante as últimas duas décadas tem crescido o interesse historiográfico por temas como saúde, doença e ciência e, em especial, a saúde da população negra. A ampliação do debate sobre as múltiplas intersecções entre esses campos de análise e sociedade é de extrema relevância para reflexões acerca do Pensamento Social Brasileiro. Além disso, tem contribuído para a construção de novos campos de estudo, trazendo à tona pesquisas inovadoras tanto para o campo da História das Ciências e da Saúde como para a História do Negro no Brasil.

A Revista Maracanan publica o Dossiê Temático “Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição” em um momento crucial para os estudos em Saúde no Brasil e, também, para a História do Brasil. A relação entre saúde, doença e ciência tem sido posta em evidência, por exemplo, com pesquisas que apontam que a população negra tem sido a mais afetada pela pandemia da Covid-19 no Brasil, tanto em número de mortos como também em termos socioeconômicos.[1] Leia Mais

Arte e Política: raça, gênero e nacionalidades | Faces de Clio | 2021

É com enorme satisfação que apresentamos a edição número treze da Revista Faces de Clio com o dossiê “Arte e Política: raça, gênero e nacionalidades”, contando com 12 artigos ligados à temática do dossiê e 5 artigos livres. Temos a proposta, nesta edição, de apresentar discussões que contribuam nas pesquisas e reflexões acerca da complexa e estreita relação da arte com a política. Novamente apresentamos pesquisas que se detém sobre os mais diferentes suportes, desde o videogame, a ópera e a literatura, passando pela performance, pela dança, arquitetura e pintura. No presente dossiê reunimos artigos ligados à temática da raça, do gênero e das nacionalidades, pensados todos, claro, através e, a partir, da arte!

Este é o terceiro volume da Revista Faces de Clio publicado durante a pandemia do coronavírus e gostaríamos de agradecer à equipe da Faces de Clio por todo empenho em continuar com as atividades da revista diante de um cenário desolador da pandemia e do desmonte da pesquisa e da ciência no Brasil. É na resistência que encontramos formas de continuar sobrevivendo e lutando por um país mais justo e igualitário. Agradecemos também aos pareceristas que contribuíram com a revista e nos ajudaram a manter a qualidade de nossa publicação. Leia Mais

O Vestir e o Despir na História | Veredas da História | 2020

Em 2020, o contexto pandêmico transformou radicalmente nossa forma de relacionamento com os outros e nos condicionou a utilizar cotidianamente acessórios corporais antes usados de modo esporádico, tais como luvas, máscaras faciais, álcool em gel, face shield, entre outros. O uso destes objetos, ainda que instituídos de forma obrigatória para acessar determinados locais, dada a conjuntura sanitária, nos fez (re)pensar sua função social no espaço global. É interessante indicar que há um século, por volta de 1918 a 1920, a gripe espanhola também condicionou grande parte da população mundial às novas formas de se relacionar com os demais, bem como impôs acessórios com a finalidade de proteção contra a doença que foram absorvidos pelos movimentos da Moda, tornando-se tendências momentâneas.

Para além destes objetos pandêmicos e de suas apropriações, também podemos refletir os movimentos da Moda neste e em outros séculos, e os usos de certas indumentárias e acessórios por parte de indivíduos que, em micro ou macro escala, provocaram manifestações das mais diversas. Leia Mais

Ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX: novos objetos e nova temporalidade em um panorama internacional / Varia História / 2017

Desde fins do século XIX, não só no Brasil, raça foi um dos temas mais recorrentes entre pensadores sociais, literatos e cientistas, sobretudo aqueles ligados à medicina, à antropologia e à história natural. Com a emergente discussão sobre evolução, saúde pública, imigração e ocupação dos territórios nacionais, o tema se tornou ainda mais premente, mobilizando uma série de ideias, teorias e explicações sobre a formação e o desenvolvimento biológico dos povos dos vários países do ocidente – que se pretendiam em processo de modernização -, o que teve como um dos desdobramentos o pensamento médico-eugênico. Miscigenação racial e degeneração, branqueamento e assimilação, classificações físicas e psicológicas dos grupos populacionais foram alguns dos assuntos privilegiados pelos cientistas e pensadores, sobretudo no Brasil, país visto pela comunidade científica internacional como “um laboratório racial”. Importante também foi a influência dos estudos sociais e de viés cultural, que tencionaram os discursos eugênicos e raciais, pautados no determinismo biológico. Desde meados do século XX, com a reconfiguração dos olhares sobre a diversidade humana, os debates ganhariam novos significados, orientados pelos pressupostos científicos da genética, dos estudos populacionais, dos estudos culturais e novas perspectivas das ciências sociais.

Conforme já demonstrado por uma ampla historiografia, o conceito de raça foi introduzido pela História Natural no século XVIII, com imediata aplicação para classificar a diversidade dos seres humanos. Ao longo do século XIX e XX, vários foram os médicos, cientistas e intelectuais que contribuíram para a elaboração e transformação dos saberes sobre raça, consolidando-se o que conhecemos como racismo científico, o que serviu como um dos fundamentos para pensar a formação dos estados-nações. A partir do início do século XX, com o avanço de ideologias imperialistas e nacionalistas, o racismo se disseminou pelo mundo todo, alimentado pelos interesses políticos e econômicos e justificados pelo racismo científico, mobilizando uma série de ideias, teorias e explicações – “legítimas por serem científicas”- sobre as diferenças biológicas entre as nações e suas populações. Diferenças biológicas, tidas como hereditárias, inscritas em formas de hierarquização dos diferentes grupos humanos, e que eram consideradas como passíveis de modificação por meio da eugenia, visando o melhoramento dos indivíduos e, por consequência, das sociedades. Aliás, eugenia e racismo foram perspectivados como termos praticamente intercambiáveis. Porém, as intervenções eugênicas – sobretudo dirigidas para a reprodução – não se reduziram às questões raciais, mas a uma política científica de controle de todos aqueles sujeitos tidos como degenerados ou que não se enquadravam nos supostos ideias de aptidão. Reformas sanitárias e medidas de saúde pública, puericultura, esterilização, contracepção, aborto e, no seu extremo, a eutanásia e o extermínio foram algumas das diversas práticas eugênicas implementadas ao longo do século XX para operacionalizar certa lógica em que algumas vidas valeriam mais do que outras.

No contexto do pós-segunda guerra, doravante, ocorreu um revisionismo envolvendo o conceito de raça, no qual a genética e a noção de população tiveram papel fundamental. Tal revisão é reflexo da repulsa provocada pelas consequências ético-políticas do extremismo das abordagens eugênicas e dos usos perversos do racismo científico nazista. A propósito, em contraposição, tentou-se descreditar a eugenia e a ciência racial como pseudociências. E é nesse novo contexto que o presente dossiê temático centrará suas discussões, para que possamos refletir sobre as transformações e continuidades nas concepções de raça e eugenia; que, vale chamar a atenção, persistem em povoar o nosso presente, mesmo que retraduzidas e com novas configurações científicas e sócio-políticas. Pretendeu-se com esta reunião de artigos, de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, desenvolver uma discussão histórica sobre a construção de discursos acerca da eugenia e da questão racial, propondo uma problematização a partir de novos objetos em torno desses consagrados temas, aqui então perspectivados em um cenário nacional e internacional, com o recorte principal na segunda metade do século XX.

O artigo que abre o dossiê, de autoria da pesquisadora americana Diane Paul trata das transformações, nos anos 1990, dos parâmetros normativos de controle da reprodução, em que interromper ou impedir o nascimento de pessoas com doenças hereditárias graves passou a ser aceito socialmente em alguns países ocidentais, como uma questão de ordem privada, uma escolha individual, e não mais uma prática rotulada de eugênica. O artigo de Mariza Miranda e Gustavo Vallejo, ambos argentinos, também aborda as propostas eugênicas de controle da reprodução na Argentina, por meio da normatização e da disciplinarização da sexualidade, ainda muito difundida pelo ideário argentino católico e liberal anticomunista, pós anos 1950 (pós-holocausto). A originalidade deste artigo está em problematizar a continuidade da eugenia nesse cenário, até os anos 1980, como um saber universitário, com reconhecimento acadêmico, mesmo em um tempo em que a sua legitimidade científica passou a ser desconsiderada.

Com o artigo de Robert Wegner, pesquisador da COC-Fiocruz, recuamos alguns anos no tempo, entre 1929 e 1940, para problematizar a emergência no Brasil de concepções de hereditariedade segundo o ponto de vista da genética mendeliana – em dois geneticistas brasileiros, Octavio Domingues e Salvador de Toledo Piza -, suas implicações sobre o pensamento eugênico e o debate local acerca da miscigenação racial, em diálogo com o eugenista Renato Kehl. Tal discussão a respeito da história da genética, eugenia e raça no Brasil, é a ponte para uma reflexão mais ampla da pesquisadora alemã Veronika Lipphardt, que trata das transformações e permanências, em termos práticos e epistemológicos, com a passagem de uma ciência racial para as pesquisas em variação genética humana em meados do século XX. Como exercício empírico, a autora discute a persistente fascinação pela diferença biológica humana, abordando as permanências de uma lógica racial (segregacionista e discriminatória) nos estudos de genética populacional em ciganos, denominados também de os “Roma”.

Finalmente, o dossiê completa-se com dois artigos versando sobre o tema do antirracismo pós-1950. Marcos Chor Maio, também pesquisador da COC-Fiocruz, problematiza a oposição ao racismo científico e à eugenia presente na crítica do psicólogo e antropólogo judeu-canadense Otto Klineberg aos Testes de Inteligência e na sua atuação na Unesco. Crítica fundamentada nos argumentos sobre a importância de aspectos socioeconômicos e culturais no desenvolvimento da capacidade intelectual e que tomava as relações étnico-raciais no Brasil como um bom exemplo da inconsistência dos argumentos sobre a associação entre raça e inteligência. Para além da trama médico-científica e no âmbito das ciências sociais, este dossiê traz uma discussão sobre como os próprios sujeitos, alvos do racismo, enfrentaram relações e políticas raciais discriminatórias. O pesquisador americano Jerry Dávila contribui com um instigante artigo que justamente explora as tentativas para definir, reagir e combater a discriminação, partindo da análise de ações judiciais provocadas pela “Lei Anti-discriminação” brasileira de 1951. O autor busca demonstrar que tais enfrentamentos tinham inspiração nas experiências raciais estadunidenses, mas foram adaptados às circunstâncias legais, políticas, sociais e culturais locais.

Esperamos com este dossiê apresentar aos leitores da Varia Historia uma pequena amostra de uma produção historiográfica recente sobre ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX, procurando demonstrar as potencialidades e várias outras possibilidades de se explorar o assunto.

Ana Carolina Vimieiro Gomes – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

Robert Wegner – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Avenida Brasil 4036 / 407, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, 21.040-360, Brasil, [email protected]

Vanderlei de Souza – Departamento de História, Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus Santa Cruz. E-mail: [email protected]


GOMES, Ana Carolina Vimieiro; WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei de. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.61, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Raça, Gênero e Violência na História / História.com / 2016

É com satisfação que o Conselho Editorial da Revista Eletrônica Discente História.com apresenta seu novo número com o dossiê temático Raça, Gênero e Violência na História. Esta escolha foi decidida a partir da pertinência dessas temáticas no presente, característica que vem se tornando chave na escolha dos dossiês do nosso periódico.

A evocação que o presente realiza em relação às relações raciais e gênero e aquelas mediadas pela violência – o mais bárbaro dos conflitos – tem respaldo nos episódios que vêm se tornando fatos corriqueiros no cotidiano do Brasil e de vários países do mundo.

Recentemente, no último dia de natal, um caso chocou e comoveu o nosso país, que foi o homicídio de um vendedor ambulante numa estação de metrô, em São Paulo, ao defender dois travestis de agressões causadas por dois homens. Estes espancaram o autônomo até a morte, sendo que o mesmo era negro e os agressores eram brancos.

Este episódio sintetiza o horror que a intolerância tem proporcionado ao círculo civilizado que anseia por uma sociedade em que as diferenças e as desigualdades tenham, no mínimo, um tratamento mais humano e igualitário, onde as violências não sejam justificadas por preconceitos e demais visões mesquinhas em relação ao outro.

O papel das Universidades diante do fenômeno da intolerância é proporcionar debates que procurem estabelecer diretrizes que possibilitem os movimentos sociais terem embasamentos para proporem políticas públicas, sejam elas com o aval do Estado ou por iniciativa comunitária. Sendo assim, a universidade jamais deve se furtar ao seu papel de definidora de conceitos para ações de promoção das igualdades e reparações.

E foi com muito brilhantismo que os autores que colaboraram com suas produções acadêmicas contribuíram para o dossiê supracitado. Textos que podem fomentar debates enriquecedores.

O artigo “Mulheres comunistas na Bahia: contribuições para a fundação da federação de mulheres do Brasil e para o movimento pela paz” de Iracélli da Cruz Alves é uma instigante contribuição ao estudo da História das mulheres nos movimentos comunistas, oferecendo às nossas leituras uma visibilidade até então não destacada do lado feminino dessa história.

Encontra-se também o texto “Ofícios estatais e a heterovitimização das mulheres” de Michelle Silva Borges que aborda de forma original a mulher enquanto sujeito dentro das hierarquias e violações às quais são submetidas na relação com a polícia.

No texto “Representações sociais e mulher trabalhadora: implicações do imaginário social na (re)produção de desigualdades de gênero no mercado de trabalho” de Pablo Luiz Teixeira Gomes de Moraes e Flávio Badaró Cotrim, encontramos um balanço bibliográfico que analisa as representações a qual são sujeitas às mulheres no mercado de trabalho.

O estudo presente em “Discursos repressores recifenses: a questão de gênero e da raça através dos discursos sobre o suicídio durante a década de 1920, na cidade do recife” de Pedro Frederico Falk nos traz o retrato da violência no Recife da década de 1920, destacando as diferenças raciais e de gênero nos discursos médico, religioso, jornalístico e jurista, em especial, quando tratavam da questão do suicídio.

E, por fim, “A participação de mulheres na faculdade livre de direito da Bahia no período 1911-1920” de Vitor Luis Marques dos Santos é uma interessante análise que busca descortinar as condições históricas em que as mulheres que ingressaram nessa instituição de ensino superior conseguiram agir.

Desde já, a equipe editorial também convida a você leitor para apreciar os textos das outras sessões: Artigo Livre e História na Sala de Aula. São textos que abordam outras discussões não contempladas no dossiê temático e que também contribuem para temas historiográficos e de diálogos com as disciplinas afins para que possamos melhor entender o presente e o passado e termos condições de lutar por um futuro.

Boa leitura!

Antônio Cleber da Conceição Lemos – Conselho Editorial. Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e mestrando em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Correio eletrônico: [email protected]


LEMOS, Antônio Cleber da Conceição. Apresentação. História.com. Cachoeira, v.3, n.6, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Gênero, Raça e Classe / Aedos / 2016

Gostaríamos de abrir esta publicação com uma imagem que consideramos muito significativa: uma foto da autora Carolina Maria de Jesus, em 1960, no lançamento de “Quarto de Despejo”, livro que a tornaria reconhecida como uma das escritoras mais importantes do Brasil. Mulher, negra e pobre, moradora da favela do Canindé, em São Paulo, Carolina de Jesus trabalhava como catadora de lixo e registrava seu cotidiano através da escrita, em diários posteriormente publicados, nos quais podemos ler sobre suas vivências e que nos revelam suas lutas, inspirações e maneiras de ver o mundo. Neste momento em que lembramos os 40 anos do seu falecimento, ocorrido no ano de 1977, os seus escritos, além de oportunizarem o contato com a habilidade e sensibilidade da autora, nos sugerem a possibilidade de perceber as maneiras multifacetadas e complexas pelas quais os sujeitos se compõem e existem no mundo, e colocam a importância de valorizar estas trajetórias e vivências.

Carolina de Jesus nos inspira, portanto, na apresentação do Dossiê Temático Gênero, Raça e Classe, com o qual a Aedos tem a intenção de abordar a complexidade das relações de poder entre as diferentes dimensões que compõem o social e tem implicação na composição de sistemas de opressão e de identidades, e também nas trajetórias dos sujeitos e suas maneiras de vivenciar a realidade, de se colocar nela e também de lutar e resistir às violências que a permeiam. Com essa publicação procuramos contribuir para a análise e compreensão de elementos e fenômenos que concernem à configuração e a interdependência das relações de poder e de formas de elaboração dos sujeitos e das relações sociais. Além disso, pretendemos enfatizar as dimensões políticas desta perspectiva e a posição que ela demarca, relacionadas à valorização das experiências e trajetórias de sujeitos marginalizados socialmente e frequentemente invisibilizados nas análises historiográficas. Compartilhamos da visão de que o conhecimento histórico pode constituir-se, ao mesmo tempo, em espaço e instrumento de luta política, visto que a introdução destes debates e problematizações pode contribuir para o questionamento de saberes supostamente neutros.

É fundamental mencionar que a presença ativa destes sujeitos na proposição destas discussões, na medida em que, com a sua atuação na academia – e também fora dela –, passam a produzir conhecimento a partir das próprias vivências e a problematizar as próprias realidades e opressões, pautando assim debates acadêmicos, historiográficos e políticos mais amplos. Nesse número temos a contribuição de pesquisadores que se identificaram como integrantes de grupos de pesquisa e instituições voltadas para sujeitos marginalizados socialmente, como: Carlos Henrique Lucas Lima que integra o Grupo de Pesquisa Corpus Possíveis, Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS) e é co-criador e editor-adjunto da primeira revista brasileira dedicada exclusivamente aos Estudos Queer, a Periódicus; Marcio Rodrigo Vale Caetano integrante do Nós do Sul – Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Identidades, Currículos e Culturas; e Néstor Anibal Rodriguez integrante da Cooperativa Mujer Ahora e do Colectivo Ovejas Negras do Uruguai.

Da mesma forma, para essa publicação a integrante da equipe editorial Ana Júlia Pacheco entrevistou Cristiane Mare da Silva. Cristiane é doutoranda em História Social pela PUC / SP, pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UDESC (NEAB / UDESC) e do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora CECAFRO da PUC / SP, é também fundadoras do “Coletivo Pretas em Desterro” oriundo das articulações do “Comitê impulsor da Marcha de Mulheres Negras de Santa Catarina” onde foi uma das coordenadoras que organizou a presença das mulheres negras catarinenses na nacional “Marcha das Mulheres Negras 2015”. Antes disso, atuou como Secretaria de Mulheres da União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO / SC). Como escritora, crítica e poeta, ela mantém em seu blog “Literatura Afrolatina e Diásporas do Atlântico”.

“Instantáneas acerca de la construcción del sujeto del feminismo” de Néstor Anibal Rodriguez, abre o dossiê com uma provocação: qual tem sido o sujeito do feminismo? Essa questão surge quando alguns coletivos de mulheres não se sentem representadas pela tendência feminista hegemônica que é branca, burguesa e heterossexual. Apresenta, a partir dessa questão, a articulação entre raça, classe, gênero e orientação sexual e distingue o sujeito social do político e do epistemológico. Continuamos com o artigo de Carlos Henrique Lucas Lima e Marcio Rodrigo Vale Caetano, que entendem ser um gesto político necessário defender uma historiografia literária “fora do armário”. Os autores afirmam que a homossexualidade foi recluída nos discursos sobre a Nação, mas relegada ao espaço do privado e do “gueto” e, assim, através de comentários de escritos de críticos / as literários / as vinculados / as aos estudos sobre sexualidades e gêneros, buscam problematizar o lugar desta população no ideário da Nação.

Ronaldo Manoel Silva pesquisa o pecado nefando, que atualmente corresponde à conduta homossexual, na primeira visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Brasil (1591-1595). Suas fontes são processos inquisitoriais de homens sentenciados por crime de sodomia e que atestam que apesar da repressão, o sexo entre iguais foi praticado no primeiro século da colonização brasileira. O artigo de Renato Drummond Tapioca Neto e Marcello Moreira analisa a dinâmica social da concessão de dotes e dos casamentos no Brasil entre os anos de 1850 a 1870, a partir do romance “Senhora” (1875) de José de Alencar. Os autores interpretam o matrimonio dos personagens do romance como uma construção de uma analogia da relação estabelecida entre senhor e cativo no regime escravocrata, ferindo a concepção religiosa de sacralidade do casamento.

Três pesquisas sobre “pensamento raciológico”, “racismo científico” e “teorias racialistas” compõem o dossiê, com abordagens, períodos e espaços diversos. Joice Anne Carvalho e Renata Baldin Maciel expõem um panorama geral do pensamento raciológico do século XIX e início do XX trazendo como exemplo as concepções de Manoel Bomfim, intelectual que refutou as teorias raciais de sua época e de alguns eugenistas, em especial Renato Kehl, que reforçou tais percepções, além de problematizar as questões relativas ao gênero nessas teorias. O objeto do estudo de Denis Henrique Fiuza, por sua vez, é justamente Renato Kehl e a implantação do racismo científico no Brasil a partir da obra “Lições de Eugenia”, obra que seria o resultado de mudanças de Kehl em direção a uma eugenia ainda mais radical, informada pelo racismo europeu e pelo determinismo biológico.

“Das teorias racialistas ao genocídio da juventude negra no Brasil contemporâneo: algumas reflexões sobre um país nada cordial” é o provocante título do artigo de Juliana de Almeida Goiz, no qual defende que a população negra foi deixada às margens da sociedade, como consequência do processo de escravização e também do racismo institucional e que tem provocado o genocídio da juventude negra, o qual problematiza. O tempo presente também é o recorte da jornalista Samara Araújo da Silva, que se debruça sobre a série “Sexo e as negas” (Rede Globo), na qual percebe narrativas estereotipadas e sexistas na representação das mulheres negras. Para Samara a mulher negra se mantém vista e apresentada como no período escravocrata a mercê dos desejos sexuais de seus patrões dentro de um hipersexualismo constante.

Nesse número também contamos com seis artigos “livres”. Gabriel José Pochapski e José Adilçon Campigoto são os autores de um desses artigos, no qual articulam igreja, casa e cemitério para analisar a morte entre os descentes ucranianos de uma cidade do Paraná, entre os anos de 1923 e 2012, utilizando como fontes a fotografia e a história oral. Já Patricia da Costa Machado pretende compreender o surgimento e a trajetória da luta por justiça no Uruguai após o fim da ditadura civil militar, principalmente o impacto da Ley de Caducidad, que impediu a realização de julgamentos dos crimes da ditadura. Recuando no tempo e rompendo com o recorte da América Latina, Maicon da Silva Camargo debate a peculiar situação da União Ibérica (1580-1640) através da filosofia política da primeira Idade Moderna e do discurso de Manuel Severim de Faria (1583 – 1655). Por sua vez, uma equipe de historiadores, composta por Nathany Belmaia, Henrique Bresciani, Luiz Manini, Érika Myiamoto, Hilton Oliveira e Thaís Silva, se debruçou sobre a capa do álbum intitulado Powerslave, da banda Iron Maiden, para analisar a produção, o consumo e a apropriação de elementos da cultura do Antigo Egito pela indústria cultural da década de 1980.

O anticomunismo e o antifascismo são os temas dos últimos artigos desse número. Luiz Otavio Monteiro Junior analisa a origem da ideologia anticomunista no seio do Exército Brasileiro durante a Era Vargas, observando a produção intelectual para percorrer a historicidade da ideologia anticomunista dentro do pensamento militar. E Bruno Corrêa de Sá Benevides estuda o antifascismo internacional entre 1919 e 1922 através da propagação e circulação de textos antifascistas, de tendência anarquista, nos jornais militantes e operários brasileiros e a compreensão acerca do conceito de fascismo através da ótica dos militantes anarquistas. Por fim, ainda há a resenha do livro A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939) de Jerzy Mazurek, publicada pela editora Espaço Acadêmica.

Esperamos que todos e todas aproveitem a leitura!

Micaele Irene Scheer (Editora Chefe)

Marina Gris da Silva (Editora Gerente)


SCHEER, Micaele Irene; SILVA, Marina Gris da. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 8, n. 19, Dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Histórias do tempo presente: ditadura, redemocratização e raça no Brasil / História – Questões & Debates / 2015

Sobre diálogos e interconexões

Já houve quem tentasse colocar tudo na “raça”. Numa mistura de ciência e uma espécie de obsessão – pela negação muitas vezes. Foi por aí que se urdiu uma reflexão candente sobre o destino da nação nas últimas décadas do século XIX até os alvissareiros anos 1930. Falava-se amiúde em “raça” para destacar a sua não importância, enquanto espectro que rondava a comunidade nacional, constituindo preocupação cardinal do pensamento social brasileiro. De Francisco Adolfo de Varnhagen, Silvio Romero, Oliveira Lima, passando por Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Oliveira Viana e Paulo Prado, assim caminhamos.

Nota-se um consenso na historiografia brasileira de que a “questão racial” mobilizou uma gama multifacetada de agencies: desde teóricos, políticos, gestores públicos, juristas, médicos sanitaristas, jornalistas e ensaístas da geração dos “intérpretes do Brasil” (Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior) até os especialistas da chamada “Escola Paulista de Sociologia” (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni), que no pós-guerra desenvolveram o projeto UNESCO de estudos sobre as relações raciais. Ainda assim atravessamos boa parte do século XX com um Brasil republicano arrastando a memória do cativeiro para um distante “passado-esquecimento”, por assim dizer. O pós-emancipação sequer virava capítulo derradeiro dos estudos sobre Abolição. As pesquisas sobre as “relações raciais” foram de fundamental importância para se compreender as desigualdades e assimetrias entre negros e brancos na sociedade brasileira, é bom destacar, porém acabaram por encapsular o campo do pós-abolição das narrativas históricas. Vários processos– urbanização, industrialização, modernidade, mundos do trabalho, questão agrária, relações de gênero, culturas políticas, cidadania, eleições etc. – foram desidratados da dimensão mais ampla desse campo, com seus legados e principais sujeitos.

Diante de tal panorama, inscrever a “questão racial” às múltiplas experiências históricas da sociedade brasileira e não vê-la confinada aos temas da escravidão virou – em certa medida – um projeto político do tempo presente, que tem a sua maior aposta a lei 10.639.Não há porque negar o avanço democrático do processo atual, saudá-lo e reconhecer o seu próprio percurso de debates e embates, dentro e fora das universidades. Investimento importante seria identificar como foram gerados “silêncios” sobre a “questão racial” para vários temas-eventos da história do Brasil. Podemos citar, por exemplo, as atmosferas de disputassimbólicas – imagens e representações – em torno da “independência” no Brasil. Na década de 1970, Maria Odila já chamava a atenção para o fator “medo” e o “haitianismo” na arena das expectativas sobre a separação política e a participação popular nas ruas da Corte, por um lado. E autoridades despejando socos e pontapés em comícios que escondiam xenofobias, por outro. Os estudos clássicos já mostraram que muitas das “questões raciais” – travestidas de outras linguagens, nomenclaturas e significados – estavam presentes.

É fato que em determinadas paisagens historiográficas os cenários que envolveram personagens, contextos, movimentos e expectativas que cruzaram narrativas sobre “raça”, racismo, nação, identidades e culturas sequer apareceram emoldurados nas retóricas iconoclastas. Inclui-los hoje na agenda de pesquisa pode ser mais do que tão somente um “resgate” historiográfico. Sugerem novas pautas, revisões, polifonias e multivocalidades desafiadoras, nem sempre percebidas nos eventos-efemérides, nos roteiros analíticos e / ou nas políticas editoriais acadêmicas.

As temáticas da ditadura e da redemocratização vistas pela transversalidade da “raça”, especialmente no decurso dos anos 1970 e 1980, podem seguir outros caminhos– nunca desvios –, considerando os sentidos político-culturais de vários atores e segmentos sociais, com suas estratégias, clivagens, aspirações e demandas por reconhecimento, direitos e liberdade de manifestação. Neste dossiê o ponto de partida foi exatamente a tentativa de estabelecer diálogos e interconexões entre as temáticas da ditadura e da redemocratização, de um lado, e a experiência negra, de outro, a fim de superar falsas dicotomias.

A temporalidade que organiza estas aproximações ou entrecruzamentos são os anos 1970 e 1980, sobretudo. Quem começa é George Reid Andrews ao surpreender o protagonismo político negro a partir de novas balizas, diretrizes e cronologias – embora por vezes cristalizadas – que antecederam o surgimento de organizações contemporâneas de luta antirracista (1978) até o pós-centenário da Abolição (1988). Tratou-se de um protagonismo ativo e entrelaçado à história nacional (e transnacional) no período da redemocratização. Nem sempre ideias e ações político-partidárias foram orquestradas. Sons repercutiam e ganhavam ritmos que assustaram mesmo ouvidos insuspeitos. Paulina Alberto acompanha a efervescência do Black Rio e dos bailes de soul music, que contagiavam a juventude negra do subúrbio carioca e redesenhavam símbolos racializados – muitos dos quais transnacionais – em torno da identidade positivada, do estilo contestatório e da afirmação estética. Já conhecemos algo sobre tais experiências e repertórios para São Paulo, embora contextos urbanos diferenciados ainda precisem de mais investigações. Para uma parte da juventude negra dos anos 1970, o protesto político teve uma trilha sonora própria que os estudos temáticos ainda não se interessaram em ouvir. Linguagens, tramas e performances foram diversificadas e nem sempre apareceram textualizadas. A campanha contra o apartheid na África do Sul – e com ela a luta para que Nelson Mandela fosse libertado da prisão– converteu-se em ferramenta política nas mãos de ativistas negros que denunciavam a segregação racial, tanto do outro lado do Atlântico como no Brasil. Com Jerry Dávila conseguimos “ouvir” outros sons e vozes que embarcavam e desembarcavam nos litorais africanos: dos movimentos de independência em países como Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, até chegar aos apelos para a libertação de Mandela e as homenagens a Steve Biko, líderes sul-africanos.

Vale destacar que a dimensão cultural – quase sempre crítica ou apropriada pelo viés político – foi um porta-voz nos debates e impasses dos anos de chumbo. Com poucos canais de expressão diante do arbítrio da ditadura, identidades, comportamentos, alteridades e taxinomias raciais ganharam laudas, palcos e telas. Noel Carvalho rouba a cena – melhor seria o set – ao abordar a trajetória do cineasta negro Odilon Lopes, desde os primeiros anos de atividade profissional na televisão até a realização do seu filme Um é pouco, dois é bom, de 1970. Enquanto isso Dmitri Fernandes examina a emergência da emblemática artista Clementina de Jesus – e tudo que ela representou sobre a cultura negra – nas décadas de 1970 e 1980. Sua “descoberta” (da “autêntica” sambista) se transformaria em metáfora para se investigar os sentidos de uma diáspora que foi articulada pelos movimentos de afirmação da “raiz afro-negra”. Com Mário Augusto da Silva conhecemos o despontar da pulsante literatura negra na década de 1980, por meio de eventos, obras e debates que galvanizaram a atenção de intelectuais nacionais e estrangeiros.

Num artigo coletivo Sandra Martins, Togo Ioruba (Gerson Theodoro) e Flávio Gomes invadem os muros acadêmicos para encontrar uma juventude negra original que, a partir do início dos anos 1970 cria um movimento de reflexão (e reivindicação) sobre objetos / sujeitos da “raça” e do racismo na Universidade Federal Fluminense através do GTAR (Grupo de Trabalho André Rebouças), que teve a força viral de Beatriz Nascimento e o apoio luxuoso de Eduardo de Oliveira e Oliveira, intelectuais negros ícones daquela geração. Para encerrar o dossiê, Petrônio Domingues nos conduz a outras latitudes que interseccionam as relações entre redemocratização e “raça” no Brasil contemporâneo, na medida em que se vale de memórias, mitos e símbolos para reconstituir o processo de invenção de João Mulungu como herói negro. Revalorizado no imaginário das hostes antirracistas, esse líder quilombola vem fazendo a cabeça e tocando o coração de muitos negros que sonham com igualdade, ampliação de direitos e justiça.

Agradecemos aos colegas que colaboraram com o presente dossiê e possibilitaram ampliar os estudos e reflexões sobre Histórias do tempo presente: ditadura, redemocratização e raça no Brasil. Esta edição da revista ainda traz três artigos. Leyserée Xavier investiga a reforma religiosa promovida por Akhenaton, faraó egípcio da XVIII Dinastia, que, entre outras coisas, elevou Aton ao lugar de divindade suprema. Julio Bentivoglio, por sua vez, debruça-se sobre os textos publicados nos primeiros onzes anos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), de 1839 a 1850, tendo em vista a mapear autores, temáticas, recortes temporais e geográficos, dentre outros aspectos que constituíam a escrita da história brasileira vinculada ao IHGB. Concluímos esse número com o artigo de Alessandro Batistella sobre o político paranaense Abilon de Souza Naves, principal liderança do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na década de 1950.

Petrônio Domingues

Flávio Gomes

(Organizadores)


DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.63, n.2, jul./dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Futebol, Raça, e Nação no Brasil / História Unisinos / 2015

O que está em jogo? Em torno do futebol, da raça e da nação no Brasil: apresentação para uma história ausente

Há quem reclame sobre a necessidade de mais estudos de história intelectual na historiografia brasileira, de mais reflexões que deem conta dos processos que mobilizaram intelectuais, perspectivas teóricas e suas interpretações, um esforço que iria de campos de estudo como a questão agrária, passando por aquele da ecologia e meio ambiente, o da história das doenças e mesmo da história dos esportes, entre tantos outros. Quando surgem? Quais os seus principais e pioneiros intelectuais? Quais os diálogos teóricos propostos? Como se conectaram (ou não) com os debates contemporâneos da sociedade brasileira?

Muitas reflexões historiográficas, ao alinharem obras e autores, abriram mão de abordagens que pudessem apontar os termos dialógicos dos debates intelectuais – sempre amplos e multifacetados. O mundo acadêmico no Brasil produziu mesmo uma convenção sobre a existência de um pensamento social brasileiro, algo que não poucas vezes foi superdimensionado, supostamente definitivo e prospectivo. Nesse quadro, algumas influências e ideias foram destacadas, entre outras tantas abandonadas.

Interessante perceber como a música, o carnaval, o futebol, a capoeira, entre outros temas, ficaram banidos da historiografia brasileira até 30 anos. Começaram a interessar muito lentamente, inicialmente mais a antropólogos e sociólogos, só depois a historiadores. Durante muito tempo, na abordagem desses assuntos reinavam os jornalistas, mas não os acadêmicos.

Paradoxal, pois o carnaval e o futebol se transformaram, em meados do século XX, em símbolos da identidade nacional brasileira. Já a capoeira, nos dias de hoje, é considerada uma das maiores representações internacionais de cultura do Brasil. Ainda assim, só recentemente estes temas têm mobilizado pesquisadores acadêmicos para revolver seus processos históricos de surgimento, transformações e evocações sociológicas contemporâneas. Para muitos são símbolos (construídos) da nação e com uma história do tempo-presente ainda incompleta.

O que pensariam disto os explicadores do Brasil – intelectuais pioneiros, passando não só por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado, mas também Paulo Prado, Fernando de Azevedo, Raymundo Faoro, Celso Furtado, e outros? Para muitos destes, a sociedade escravista – colonial, patriarcal e patrimonialista – explicaria muito de um Brasil contemporâneo, desigual e hierarquizado. Mas como pensar a sociedade brasileira no pós-emancipação exatamente quando o futebol avança entre práticas, fábricas e personagens com diversas origens e identidades? Foi um longo processo no qual ex-escravos e seus filhos e netos foram transformados em “cidadãos de cor preta”, nomenclatura utilizada até praticamente o início dos anos 1940 em comícios políticos de setores conservadores, trabalhistas e mesmo comunistas.

No alvorecer do século XX, ideias em torno da identidade nacional, da cultura nacional e de outros símbolos envolventes foram manipuladas por intelectuais diversos. O futebol, um estrangeirismo para alguns, se transformaria em paixão, esporte de massa e envolveria milhares de adeptos e agremiações em pouco mais de duas décadas. O Brasil inventava-se numa modernidade que escolhia cores, rostos, corpos e identidades.

Nem sempre a associação entre nação e futebol – algo relativamente recente – apareceria nas interpretações clássicas. Mesmo outros campos de estudos – aqueles das relações raciais e da cultura negra – pouco avançariam na possibilidade de articular interpretações sobre o futebol e suas dimensões históricas e sociológicas. Foram assim intelectuais como Arthur Ramos, Edison Carneiro, passando por Florestan Fernandes e toda a geração da Escola Sociológica Paulista. O futebol poderia ser uma chave interpretativa para o Brasil, mas vários intelectuais não se aproximaram dela.

Por muito tempo, o futebol foi transformado num espaço sacralizado para os cientistas sociais. Podia ser admirado com quase ufanismo mas nunca investigado em termos sociológicos.

A obra de Mário Rodrigues Filho, O Negro do Futebol Brasileiro1, tem sido recuperada, embora ainda como leitura secundária, enquanto memória. Ela foi escrita num período de intenso debate sobre raça, racismo e cidadania, no cenário do pós-guerra, em meio aos debates da Constituinte de 1946 e quando, nos palcos do Rio de Janeiro, intelectuais negros – Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos e outros – criavam o Teatro Experimental do Negro e outras atividades como a Convenção do Negro Brasileiro (1945) e a Conferência do Negro no Brasil (1946), no Rio de Janeiro e São Paulo.

Enquanto isso, a organização de ligas desportivas, a criação de clubes e a presença cada vez mais marcante de negros e mestiços no futebol tinham mobilizado debates desde os anos 1930. Não poderia ser mais um tema de menor importância. O interessante é que no início dos anos 1950, a partir da proposta da Unesco de realizar uma grande pesquisa sobre as relações raciais na América Latina, surgiriam no Brasil vários estudos regionais, particularmente de sociólogos e antropólogos. O silêncio a respeito do futebol e o que ele simbolizava sobre imagens e símbolos em torno da raça e identidade nacional produziram estrondos, no que a obra de Mário Filho, em parte esquecida, tem ajudado a recuperar.

Ao contrário daquele momento, racismo e futebol, práticas e manifestações de xenofobia, estão hoje na pauta internacional. O esporte de massa – que reúne paixões, empresas multinacionais, mídias, debates de cidadania e (inter)nacionalismos – se confronta hoje com outras reflexões. Debates contemporâneos que evocam histórias, processos, experiências e interpretações. Também acadêmicas.

Imagem 1: O jogador negro pega a bola e a leva para a quina do gramado, a fim de cobrar um escanteio. O inusitado – lamentavelmente nem tão inusitado assim – ocorre: um torcedor atira uma banana no relvado. Num gesto de grande perspicácia, o futebolista descasca a fruta, a come e dá seqüência à partida. O público, em grande maioria a discordar do gesto absurdo do adepto, o saúda em uníssono.

As polêmicas mundiais que se seguem dão conta da dificuldade de tratar da questão das manifestações de racismo nos espaços de futebol, terreno, a princípio, de uma inversão da ordem, no qual se manifestam as mais diferentes facetas humanas, mesmo as mais extremadas, algumas que não podem mais ser toleradas.

Meses depois, são veiculadas repetidamente nos meios de comunicação as imagens do comportamento de uma parte da torcida de um grande clube do país num jogo realizado na região Sul do Brasil. Choca a naturalidade da adoção de procedimentos racistas, expondo mais uma vez a nervura aberta. Contrariamente ao que alguns insistem em afirmar, de forma explícita ou velada, o racismo ainda é uma mácula dolorosa na história desse país (e do mundo) que acaba por se manifestar naquele que é considerado o seu principal esporte, aquela modalidade que tem sido, pelo menos desde os anos 1930, mobilizada como uma das representações de uma suposta peculiaridade nacional.

A propósito, esses episódios de racismo, que grassam pelos gramados nacionais, contradizem mesmo essa construção identitaria. Se o futebol é uma das grandes representações de que a mistura relativamente pacífica de raças é uma das marcas da formação de uma cultura brasileira – na acepção freyreana expressa de forma mais explícita por esse autor no seu artigo “Foot-ball mulato”, publicado do Diário de Pernambuco, em 1938, fonte de inspiração para vários intelectuais que se debruçaram sobre o velho esporte bretão – como esse tipo de manifestação estaria a ocorrer? O único mérito desses episódios é, portanto, expor a fragilidade dessa compreensão, conclamando-nos a melhor refletir sobre as relações entre o mais querido esporte do Brasil, as questões raciais e os discursos sobre a nação.

A popularização do futebol em terra brasilis está relacionada à apropriação desse esporte pelas diferentes classes e grupos sociais, e isso se deu de maneira entrelaçada às questões da cor e raça. Se na fase inicial o futebol era predominantemente aristocrático, com o tempo essa prática desportiva foi apropriada pelos “de baixo”, levando progressivamente à passagem do amadorismo para o profissionalismo, o que possibilitou um aumento significativo da entrada e do sucesso de jogadores das classes populares em geral e de negros em particular. No entanto, não desapareceram do universo do futebol as crenças e práticas racistas que assumiram novas formas e se revitalizaram ao longo dos anos.

Vale frisar que a presença do negro nas lides esportivas não é um fenômeno recente. Foi mesmo um dos primeiros fóruns sociais em que gozou de certo protagonismo e destaque social, ainda que sempre enquadrado pelos limites dos estereótipos e preconceitos.

Imagem 2: Em dezembro de 1853, o célebre Francisco Otaviano, ao narrar as concorridas corridas de cavalos realizadas na Corte, se refere de forma distinta a alguns personagens que nelas tomaram parte. Sobre o gentlemen-rider Alba Carvalho, “aluno do quarto ano da escola de medicina” (Correio Mercantil, 9 dez. 1853, p. 1), sugere ter sido saudado como o grande herói do dia, ao vencer seis outros amadores, todos “trajando elegantes casacas verdes e montados em cavalos de sua propriedade” (Correio Mercantil, 11 dez. 1853, p. 1). Não pode fechar os olhos, contudo, para o fato de que “um demoninho bronzeado, como o amante de Desdemona, de quatro palmos de altura e trajado de azul, foi proclamado, ao som de estrondoso vivas, o primeiro jockey do Prado” (Correio Mercantil, 11 dez. 1853, p. 1): era Balbino (ou Albino), um negro ou pardo de cerca de 13 anos que ganhou as seis provas que disputou.

Na verdade, não podemos negligenciar o fato de que o esporte e as atividades físicas em geral foram claramente mobilizadas nas iniciativas de “branqueamento” da população brasileira. Consideradas como expressão civilizacional superior, supostamente contribuiriam para a “pureza” racial brasileira, devendo ser limitado, portanto, seu alcance ao grande conjunto da população, que não tomou conhecimento desse tipo de compreensão e, de alguma forma, tomou para si o direito de fazer e assistir os mais diversos esportes.

Há que se lembrar, da mesma forma, que a prática de esportes também foi um importante elemento de articulação de comunidades de estrangeiros no país, reunidos em clubes próprios que tinham em conta tanto relembrar algo de sua cultura de origem quanto prestar contas e exaltar a nova nação que os acolhia. Por todo o país, são inúmeras as agremiações de portugueses, italianos, espanhóis, franceses, britânicos, alemães, cujas iniciativas também contribuíram com a formação de uma cultura esportiva nacional.

Este dossiê aborda alguns aspectos da história do futebol brasileiro, desde quando não se suspeitava que a habilidade dos jogadores e as vitórias nesse esporte fossem vistos como um atributo inerente à nacionalidade. Retratando o Brasil em todas suas virtudes e mazelas, grandezas e misérias, o futebol é um domínio em que conflitos sociais, contradições raciais e dilemas nacionais são postos em evidência de maneira cristalina.

Trata-se, assim, de tema de enorme importância e o pequeno número de (excelentes) artigos que integra este dossiê é mais um indicador de que o assunto está a merecer mais atenção, e uma atenção mais cuidadosa, dos historiadores brasileiros. A trilha apresentada pelos autores que integram esta edição, sem sombra de dúvida, se constitui em um chamamento e um alerta acerca da necessidade de esforços mais contundentes.

Abrimos o dossiê com o artigo Futebol, nação e representações: a importância do estilo “futebol-arte” na construção da identidade nacional, de Filipe Fernandes Ribeiro Mostaro, Ronaldo George Helal e Fausto Picorelli Montanha Amaro. O debate muito brevemente aqui apontado nesta apresentação é analisado em profundidade pelos autores, uma contribuição para que melhor compreendamos determinadas ideias que se naturalizaram no senso comum a respeito dos significados do esporte bretão no Brasil.

Numa esteira semelhante, ainda que por caminhos distintos, “Diz-me como jogas e te direis quem és…”: estilos de jogar futebol em Pasolini, Freyre e DaMatta, de André Mendes Capraro, chama para o jogo novos personagens, esgrimindo a ideia de que também no cenário internacional a mobilização do futebol em construções identitárias guarda interessantes recorrências.

Em Entre o ethos aristocrático e o associativismo: futebol amador e competência esportiva na cidade de São Paulo (1920-1930), Diana Mendes Machado da Silva prospecta as diferentes construções de representações sobre o futebol em duas agremiações paulistanas, uma delas eminentemente ligada aos estratos socioeconômicos superiores, o Clube Atlético Paulistano, e outra herdeira de uma das mais pujantes experiências clubísticas nacionais, vivenciada nas várzeas da capital de São Paulo, a Associação Atlética Anhanguera.

Temos ainda uma nota de pesquisa de um dos organizadores deste dossiê. Petrônio Domingues nos apresenta os primeiros resultados de sua investigação sobre a trajetória da Associação Atlética São Geraldo, uma das que teve maior destaque entre as muitas agremiações de negros dedicadas à prática desportiva que se organizaram em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Sem dúvida, um fascinante objeto de pesquisa.

Embora o futebol seja uma prática desportiva importante no Brasil desde longa data, mobilizando interesses políticos, sociais, econômicos e culturais diversos e catalisando esperanças, sonhos e paixões de milhares de pessoas, inexistiam estudos em torno das intersecções do esporte bretão, raça e identidade nacional até por volta do início do terceiro milênio. Alguns ensaios aludiam ao assunto colateralmente ou então só de passagem, de forma genérica. Felizmente, esse quadro vem se alterando, porém ainda é possível observar algumas peculiaridades. Não se trata mais de negligenciar esse esporte como de suma relevância na vida do brasileiro, com seus signifi cados polissêmicos e sentidos entrecruzados, mas de reequacioná-lo na agenda dos historiadores. Assim, nosso desejo é que muitos outros dossiês e artigos sobre “Futebol, raça e nação no Brasil” venham à baila. O tema é urgente. Os historiadores não podem se eximir dessa responsabilidade.2

Notas

1. O livro do jornalista Mário Rodrigues Filho, O negro no futebol brasileiro, foi publicado originalmente em 1947 e reeditado em 1964, quando recebeu o prefácio de Gilberto Freyre e o autor adicionou mais dois capítulos e fez alterações em sua parte inicial.

2. Sem a pretensão de esgotar as referências bibliográficas sobre o assunto, ver Gordon Jr. (1995, 1996), Lopes (2004), Santos (2008) e Basthi (2014).

Referências

GORDON Jr., C. 1995. História social dos negros no futebol brasileiro: primeiro tempo. Pesquisa de Campo, 2:71-90.

GORDON Jr., C. 1996. História social dos negros no futebol brasileiro: segundo tempo. Pesquisa de Campo, 3-4:65-78.

LOPES, J.S.L. 2004. Classe, etnicidade e cor na formação do futebol brasileiro. In: C.H.M. BATALHA; F.T. da SILVA; A. FORTES (orgs.), Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas, Ed. Unicamp, p. 121-163.

SANTOS, R.P. 2008. Futebol e racismo no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 439:131-147.

BASTHI, A. 2014. Breve reflexão sobre Pelé e a experiência negra no futebol brasileiro. In: F. CAMPOS; D. ALFONSI, Futebol objeto das Ciências Humanas. São Paulo, Leya, p. 115-127.

Victor Melo – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Petrônio Domingues – Universidade Federal de Sergipe

Flávio Gomes – Universidade Federal do Rio de Janeiro


MELO, Victor; DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.19, n.3., setembro / dezembro, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Pureza, Raça e Hierarquias no Império Colonial Português / Tempo / 2011

O tema da discriminação racial, das cotas universitárias para os negros, enfim, da identidade baseada na raça, está constantemente presente na imprensa escrita e televisiva. Nos últimos anos, o governo brasileiro investiu em políticas sociais dedicadas a minorar as distâncias econômicas e educacionais entre os cidadãos. Parte do mesmo debate, os estudos sobre a escravidão no período colonial pretendem, em grande parte, investigar as desigualdades sociais de ontem e de hoje e entender o processo gerador do descompasso entre os extremos da pirâmide populacional.1 Embora a história social dos negros e mulatos tenha notavelmente avançado nas últimas décadas, ainda são poucos os estudos dedicado às ideologias geradoras ou legitimadoras da discriminação, sobretudo no que toca o período colonial.

Em perspectiva panorâmica, Charles Boxer analisou as relações raciais no império colonial português e fez ruir o mito da integração harmoniosa entre os portugueses e os povos coloniais, conforme defendiam Gilberto Freyre e a historiografia salazarista.2 Apesar desse notável pontapé inicial, os estudos mais centrados no preconceito racial no mundo português dedicaram-se especialmente ao problema cristão-novo, pouco investigando os impedimentos discriminatórios referentes a negros, índios e mulatos: Maria Luiza Tucci Carneiro e José Alberto Veiga Torres, ou ainda Fernanda Olival, em suas importantes contribuições, analisaram os estatutos de pureza de sangue e as habilitações para cargos na Inquisição ou para hábitos de Ordens Militares, privilegiando os impedimentos ligados à origem judaica dos habilitandos.3 Por certo, nos últimos anos, não surgiram novas pesquisas dedicadas às hierarquias sociais sustentadas pela ideia de raça capazes de avaliar, de modo ao mesmo tempo mais amplo e mais fino, os privilégios e impedimentos que sustentavam ou barravam a ascensão social de portugueses, africanos, índios e mestiços no mundo português.4 Faltam portanto pesquisas mais alentadas sobre a construção das noções de pureza e de raça no mundo português do Antigo Regime. O presente dossiê pretende investigar o tema e incentivar as análises que partam não somente de um grupo específico, mas sobretudo de uma avaliação mais ampla dos diversos segmentos sociais nos diferentes recantos do império português.

Em geral, historiadores e cientistas sociais investigam a questão racial nos fenômenos contemporâneos, pois consideram que as classificações sócioraciais tenham tomado importância somente a partir de meados dos oitocentos. Para esta vertente, seria impróprio o emprego da noção de raça para entender a dinâmica social do Antigo Regime.5 Esta vertente também pode ser identificada por entre os especialistas da história da época moderna. Segundo Jean-Pierre Zuñiga, por exemplo, na América espanhola, as classificações étnicas de um indivíduo eram muito instáveis. A denominação de mestiço, mulato ou espanhol variava segundo sua posição social, domínio da língua castelhana, aparência e até mesmo do testemunho que registrou a sua classificação. À época, os mestiços não eram entendidos como fruto da mistura de raças, mas como mistura de sangues, na acepção nobiliárquica do termo. Ou seja, a classificação étnica era, em grande parte, determinada pelo sangue. O casamento de indivíduos com qualidades diferentes, entre espanhóis e índias, produzia uma “mésalliance”, união entre indivíduos desiguais. Para o estudioso, seria portanto um evidente anacronismo empregar aqui o conceito de raça na sua acepção biológica, mais adequado então era recorrer à concepção nobiliárquica, a ideia de linhagem e sangue.6 Em suma, em defesa desta primeira vertente, Zuñiga contesta o emprego de raça para o Antigo Regime e recorre à ideia nobiliárquica de sangue. No entanto, nos parece que o argumento somente se sustenta quando se refere à dicotomia entre nobres e plebeus, puros e impuros, espanhóis e índios. A ideia de sangue, sangue misturado (sang-mêlé), não comporta a variedade de tipos sociais, não explica a dinâmica das hierarquias próprias do mundo colonial pois iguala e concebe como inferiores a todos os que não eram espanhóis. Sobre a complexidade de tipos raciais e sociais na América espanhola, vale lembrar a fabulosa pintura de casta e seu inventário visual das misturas entre índios, espanhóis e africanos.7

Em contrapartida, alguns estudiosos buscam dilatar a existência do racismo. Christian Delacampagne situou suas origens na Antiguidade enquanto James H. Sweet identificou as suas raízes na Península ibérica, recorrendo ao legado árabe e cristão medievais.8 De fato, as duas vertentes trazem problemas e não destacam as variações históricas da noção de raça. A primeira minimiza as manifestações racistas anteriores ao século XIX, e, portanto enfatiza a importância da origem religiosa (ou seja, cristã) para o surgimento e difusão da noção de pureza de sangue. Seguindo este pressuposto, esses estudiosos desconsideram as experiências coloniais, ou seja, as conexões metrópole-colônia e a dominação colonial pautada pela inferioridade dos povos ultramarinos. Já a segunda vertente banaliza os preconceitos racistas e os torna universais e quase atemporais, naturalizando assim perigosamente a sua existência.

Num terceiro ponto de vista, o historiador canadense Pierre H. Boulle considera que o racismo não apareceu repentinamente. Aliás, modificou-se ao longo tempo, aglutinando elementos novos, formando-se aos poucos. Tal construção ideológica teria tido uma tríplice origem que remonta aos séculos XVI e XVIII. Segundo Boulle, ela se iniciara sob a influência da expansão marítima europeia e da conquista de povos ultramarinos. A segunda grande contribuição para a construção do racismo viria do desenvolvimento das ciências, responsáveis pela melhor compreensão dos processos naturais e da transmissão das características humanas. Finalmente o fim do predomínio da explicação religiosa, em favor da razão matemática, fomentou a ideia de progresso material e da superioridade tecnológica dos europeus.9 Tais elementos esclareceriam, enfim, os vínculos entre ciência e racismo, entre controle da natureza e hierarquia entre os povos. Embora o estudo de Boulle explore o caso francês, os estudos sobre as sociedades ibero-americanas não divergem nos resultados.

Para o mundo hispânico, a perspectiva atual pretende não apenas analisar as ideias de pureza e raça antes de determinismo biológico, mas também demonstrar que o princípio religioso não era a única e determinante forma de classificação social na Espanha e no seu império colonial antes do advento do século XIX. Para além da ampliação cronológica do problema, os atuais estudos não pretendem restringir a análise às sociedades do Velho Mundo, 10 mas ampliar o seu espectro em direção ao mundo colonial, assim como fizera o historiador canadense. Não mais se concebe o ultramar como mera extensão das áreas metropolitanas, ou como áreas apartadas da civilização europeia.11 Assim, ultimamente os estudos sobre o conceito de raça enfatizam as trocas culturais e as dinâmicas sociais comuns a metrópole e colônias.12 Eles entendem o pensamento racial, como Jean-Frédéric Schaub em artigo seminal,13 como parte de um sistema ideológico forjado não apenas nas sociedades europeias, mas também na vivência colonial, nos contatos íntimos entre brancos, índios, negros e asiáticos. Inevitavelmente, as trocas e os conflitos entre esses povos eram mais intensos no ultramar, mas cidades como Lisboa, Sevilha e Paris não ficaram imunes aos movimentos migratórios e à miscigenação. No presente dossiê, exploram esta perspectiva os artigos de Giuseppe Marcocci, Ângela Barreto Xavier, João de Figueirôa-Rêgo e Fernanda Olival.

Ao propormos um dossiê sobre a ideologia da raça na época moderna, pretendemos analisar a dinâmica das sociedades, as hierarquias e os diferentes graus de mobilidade social. Focados notadamente entre os séculos XVI e XVII, os artigos primam por analisar: o sangue como distinção entre nobres e plebeus (artigo de Arlette Jouanna); a hierarquização entre índios e negros (artigo de Giuseppe Marcocci); os discursos sobre pureza entre os brâmanes (artigo de Ângela Barreto Xavier). Com enfoque social, os estudos de Francis Dutra, Fernanda Olival e João de Figueirôa-Rêgo analisam a presença de negros e mulatos nas Ordens Militares em Portugal e na administração colonial.

O dossiê aborda então questões da maior relevância. A noção de pureza da raça, inicialmente, tencionava naturalizar as diferenças morais entre plebeus e nobres.14 Determinava ainda o forte vínculo entre superioridade do sangue e capacidade de governar. O líquido vital respaldava a continuidade da casa real: o poder régio não se estribava somente nos exércitos e na tradição, mas particularmente na natureza, na hereditariedade transmitida entre pais e filhos, como demonstra o artigo de Jouanna. No entanto, a defesa da pureza do sangue não se restringiu aos circuitos cortesãos e se expandiu pelos mais diferentes estratos das sociedades europeias e coloniais.

Aliás, para receber títulos, assumir cargos eclesiásticos e postos na administração régia, os súditos não poderiam ter origens cristã-nova ou moura. Os defeitos de “qualidade” ou “defeitos mecânicos” eram também impedimentos, embora fossem menos graves e mais facilmente perdoados, segundo o caso, pela monarquia. As investigações mais recentes, aos poucos, demonstram que a origem gentia, negra ou mulata não era concebida como defeito de sangue, mas de qualidade, como defende Maria Elena Martinez em seus trabalhos15 e Francis Dutra neste dossiê. Na época moderna, porém, a ideologia da raça ainda não era capaz de excluir índios, negros e mulatos dos cargos eclesiásticos, administrativos e militares, sobretudo em áreas despovoadas de homens brancos.16 O artigo aqui assinado por Olival e Figueirôa-Rêgo demonstra o quão frequente era a presença de homens sem a devida qualidade nos postos chaves nas colônias da África e da América. Embora considerados inferiores, os aliados da monarquia eram indispensáveis para a defesa e gerenciamento das possessões régias. Ao reconhecer e remunerar os serviços de índios e negros, a monarquia contrariava os princípios da hierarquia racial defendida onde ocorria o predomínio de súditos brancos e cristãos-velhos, ciosos de sua honra e privilégios.

Segundo Paolo Prodi, no correr da época moderna, uma paulatina decadência da ideologia nobiliárquica, “última trincheira na defesa da cadeia hierárquica dos seres e da ligação entre as gerações” deu pouco a pouco lugar a um novo tipo antropológico, a nobreza como raça ou casta garantidora do mando sendo substituída por uma outra, de serviço, que busca a honra e o exercício de uma função social.17 Podemos também dizer que esta mesma decadência acaba por abrir espaço para o surgimento de outras hierarquias, de outras explicações para as diferenças entre as pessoas, ou seja: as que hoje chamamos raciais. Ainda, as infindáveis querelas que perpassam boa parte dos séculos XVII e XVIII sobre a importância da origem, do mérito, da virtude, dos favores ou da riqueza para se definir o lugar de um indivíduo na sociedade, são um importante sintoma do que importava na definição do corpo social,18 mas também mostram que esse mesmo corpo estava vivendo um momento de redefinição.19

Este já não era mais o caso no século das luzes quando os filósofos dividiram a humanidade entre coletores, caçadores e agricultores, entre caucasianos, africanos, asiáticos e americanos, entre arianos e semitas. Valorizavam assim não somente os costumes e a forma física, mas também a capacidade de controlar os processos naturais. A condição material dos povos era um diferencial entre europeus e os povos do ultramar. Desde então o progresso tornou-se parâmetro que concorria com a antigas bases religiosas do preconceito. Nessa conjuntura, entre fins do século XVIII e inícios do XIX, a ideia de raça se consolida para respaldar a alegada superioridade dos brancos, promotores da civilização e da ciência, sobre os territórios coloniais.20

Notas

1. Como exemplos, vale mencionar os estudos de Jacob Gorender, O escravismo colonial, São Paulo, Editora Ática, 1980; [ Links] Kátia de Queirós-Mattoso, Ser escravo no Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense, 1982; [ Links] Stuart B. Schwartz, Segredos internos, São Paulo, Companhia das Letras, 1988; [ Links ] Silvia Hunold Lara, Campos da violência, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988; [ Links ] Manolo Florentino, Em costas negras, São Paulo, Companhia das Letras, 1997; [ Links ] Hebe Mattos, As cores do silêncio, 2a ed., Nova Fronteira, 1998. [ Links ] 2. Vale lembrar Charles Boxer, O império colonial português (1515-1825), 3a ed., Lisboa, Ed. 70, 1981 [1969] [ Links ]; Relações raciais no império colonial português, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967. [ Links ] Mencionemos ainda os estudos que enfatizam questões étnicas, embora não explorem a ideologia e as classificações raciais: Stuart B. Schwartz, “The formation of colonial identity in Brazil” in: N. Canny & A. Pagden (eds.), Colonial identity in the Atlantic World, Princeton, Princeton University Press, 1987; [ Links ] A. J. R. Russell-Wood: “Comunidades étnicas” in: F. Bethencourt e K. Chaudhuri (eds.) História da expansão portuguesa, v. 3, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998. p. 210-222. [ Links ] Para um estudo sobre a questão racial entre os historiadores entre os séculos XIX e XX, veja o artigo de Ronaldo Vainfas, “Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira”, Tempo, 8, 1999. [ Links ] 3. Maria Luiza Tucci Carneiro, Preconceito racial em Portugal e no Brasil colônia, 2a ed. São Paulo, Perspectiva, 2005 [1983] [ Links ]; José Alberto Veiga Meira Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 40, 1994, pp. 109-135; [ Links ] Id., Limpeza de geração, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 2008; Fernanda Olival, “Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal”, Caderno de Estudos Sefaraditas, 4, 2004, pp. 151-182. [ Links ] 4. Sobre o serviço régio enquanto instrumento de mobilidade social, cf. Nuno G. Monteiro, Pedro Cardim, Mafalda Soares da Cunha (ed.) Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime, Lisboa 2005 e F. [ Links ] Chacón Jiménez e Nuno G. Monteiro (ed.), Poder y movilidad social. Cortesanos, religiosos y oligarquias em la península ibérica (siglos XV-XIX), Madrid, 2006. [ Links ] 5. Sobre a relação estreita entre raça e ciência, veja: Michèle Duchet, Anthropologie et Histoire au siècle des Lumières, Paris, Albin Michel, 1995; [ Links ] Emmanuel C. Eze (ed.), Race and the Enlightenment, London, Blackwell, 1997; [ Links ] Tzvetan Todorov, Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana,v.1.Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993; [ Links ] H. F. Augstein (ed.) Race; The origins of an idea, 1760-1850, Bristol, Thoemmes Press, 1996; [ Links ] Stefano F. Bertoletti, “The Anthropological Theory of Johann Friedrich Blumenbach” in: S. Poggi & M. Bossi (ed.) Romanticism in Science, Dordre-cht, Kluwer, 1994. [ Links ]; Marvin Harris, The rise of Anthropological Theory, London, Routledge & Kegan Paul, 1968; [ Links ] Georges Gunsdorf, Introduction aux Sciences Humaines, Paris, Ed. Ophys, 1974; [ Links ] Sergio Moravia, La scienza dell’uomo nel Settecento, Bari, Editori Laterza, 1970; [ Links ] Para a estreita ligação entre o surgimento da linguística e da ideia de raça: Maurice Olender, Les langues du paradis. Aryens et sémites: un couple providentiel, Paris, Seuil, 1989. [ Links ] 6. Jean-Pierre Zuñiga, “La voix du sang. Du métis à l’idée de métissagen en Amérique espagnole”, Annales, v. 54 n. 2, 1999. pp. 443-444. [ Links ] 7. Ilona Katzew, Casta painting, New Haven, Yale University Press, 2004. [ Links ] 8. Christian Delacampagne, L’invention du racisme: Antiquité et Moyen Age, Fayard, Paris, 1983; [ Links ] James H. Sweet, “The Iberian Roots of American Racist Thought.” The William and Mary Quarterly, 3rd Ser., Vol. 54, No. 1 (Jan., 1997), pp. 143–166. [ Links ] 9. Pierre H. Boulle, Race et esclavage dans la France de l’Ancien Régime, Paris, Perrin, 2007, pp. 61-62. [ Links ] 10. Como é o caso do clássico livro de Albert Sicroff, Los estatutos de limpieza de sangre, Madrid, Taurus, 1979 [1960] [ Links ], ou ainda da obra de Juan Hernández Franco, Cultura y limpieza de sangre en la España Moderna, Murcia, Universidade de Murcia, 1996. [ Links ] 11. Estes estudos são fortemente influenciados por Sanjay Subrahmanyam, “Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia”, Modern Asian Studies, v. 31, n. 3, 1997, pp. 735-762. [ Links ] Aliás, neste dossiê os artigos de Giuseppe Marcocci e Angela Barreto Xavier exploram especificamente esta perspectiva.
12. Para os estudos dedicados ao conceito de raça nas metrópoles e no ultramar, veja: Nicholas Hudson, “From ‘Nation’ to Race, The Origin of Racial Classification in Eighteenth-Century thought”, Eighteenth-Century Studies, v. 29, n. 3, 1996, pp. 247-264; [ Links ] Roxann Wheeler, The complexion of race; categories of diference in Eighteenth-century British culture, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2000; [ Links ] John Beusterien, An eye on race; perspectives from Theater in Imperial Spain, Lewisburg, Bucknell University Press, 2006; [ Links ] Kim F. Hall, Things of darkness; economies of race and gender in early modern England, Ithaca, Cornell University Press, 1995. [ Links ] 13. Jean-Fredéric Schaub, “La catégorie – études coloniales – estelle indispensable?”,  Histoire, Sciences Sociales, 63, 2008. [ Links ] 14. Vale mencionar o principal estudo sobre a idéia de sangue nobiliárquico: Ellery Schalk, L’épée et le sang, Seyssel, Champ Vallon, 1996. [ Links ] 15. Maria Elena Martínez. Genealogical fictions, pp. 91-122. Veja também Dutra, Francis, “A hard-fought struggle for recognition”, The Americas, n. 56, 1999, pp. 91-113. [ Links ] 16. Para os estudos sobre a limpeza de sangue dos índios, ver: Ronald Raminelli, “Servicios y mercedes de los vasallos de la América Portuguesa”, Historia y Sociedad, v. 12, 2006, p. 107-131; [ Links ] Id. “Jefes potiguaras, entre portugueses y neerlandeses, 1633-1695”, Historias (México), v. 73, p. 67-85, 2009. [ Links ]; Ide. “Privilegios y malogros de la familia Camarão” in: Giovanni Levi (org.), Familia, jerarquización y movilidad social, Murcia, EDITUM – Universidad de Murcia, 2010, pp. 45-56. [ Links ] 17. Paolo Prodi, Introduzione allo studio della Storia Moderna, Bolonha, Il Mulino, 1999, pp. 57-58. [ Links ] 18. Natalie Zemon Davis, L’histoire tout feu, tout flame. Entretiens avec Denis Crouzet, Paris, Albin Michel, 2004, pp. 115-116. [ Links ] 19. Especificamente sobre a questão do mérito: Jay M. Smith, The Culture of Merit: Nobility, Royal Service and the Making of Absolute Monarchy in France, 1600-1789, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1996. [ Links ] Sobre as hierarquias sociais no mundo ibérico, ver Rodrigo Bentes Monteiro et alii (org.), Raízes do privilégio. Mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [ Links ] 2011 e as obras citadas acima na nota 4.
20. Ronald Raminelli, Viagens Ultramarinas, São Paulo, Alameda, 2008. cap. 5; [ Links ] Id. “As raças contra a nação: reflexões do médico Francisco Soares Franco” in: J. L. Cardoso, N. G. Monteiro e J. V. Serrão (orgs.) Portugal Brasil e a Europa Napoleónica, Lisboa, ICS, 2010. pp. 415-434 [ Links ]

Ronald Raminelli

Bruno Feitler

RAMINELLI, Ronald; FEITLER, Bruno. Apresentação. Tempo. Niterói, v.16, n.30, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Raça, genética, identidades e saúde / História, Ciências, Saúde – Manguinhos / 2005

Este número de História, Ciências, Saúde — Manguinhos é um dos mais densos que já produzimos. Além dos artigos submetidos à publicação, contém um interessante dossiê, na verdade dois: um sobre raça e genômica, organizado pelo sociólogo Marcos Chor Maio e pelo antropólogo Ricardo Ventura Santos, e outro, que alojamos na seção Debate, orquestrado por Luisa Massarani, tendo por tema a ciência, a tecnologia e os diálogos com os cidadãos.

Relembro um fato recente, dos mais controvertidos, que não deve ter passado desapercebido aos leitores: em junho, a imprensa noticiou a liberação, pela Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, de um medicamento contra a insuficiência cardíaca (BiDil) para ser usado por negros, ou ‘afro-descendentes’. Na história da medicina e farmácia, é o primeiro destinado especificamente a uma raça, com base no pressuposto de que seus indivíduos têm quantidades menores de óxido nítrico no organismo (“EUA estudam liberar droga só para negros”, Jornal da Ciência, 14.6.2005; “EUA aprovam droga específica para negros”, O Globo, 25.6.2005).

No cerne do dossiê apresentado neste número de História, Ciências, Saúde – Manguinhos estão as supostas relações entre raça e saúde, cada vez mais debatidas mundo afora e Brasil adentro – veja-se, por exemplo, o programa do Seminário Internacional sobre Raça, Sexualidade e Saúde realizado no Rio de Janeiro, em novembro de 2004 (disponível em www.clam.org.br).

Em “Razões para banir o conceito de raça da medicina brasileira”, Sergio D. J. Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, demonstra que a reduzida variabilidade genética da espécie humana é incompatível com a existência de raças como entidades biológicas e, portanto, cor ou ancestralidade geográfica pouco ou nada contribuem para a prática médica. A anemia falciforme, doença hereditária com maior prevalência na população negra, é analisada tanto por Pena como por Peter H. Fry, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de “O significado da anemia falciforme no contexto da ‘política racial’ do governo brasileiro (1995-2004)”. Para o primeiro autor, esta e outras doenças supostamente ‘raciais’ são, na verdade, produtos de estratégias evolucionárias de populações expostas a agentes infecciosos específicos. Fry mostra que a anemia falciforme é objeto, no Brasil, de um discurso que conta com destacada participação de ativistas negros, e que constitui poderoso catalisador da naturalização da ‘raça negra’, em oposição à ‘raça branca’, num país que até recentemente se via como mestiço, biológica e culturalmente.

Josué Laguardia, médico epidemiologista, estuda a hipertensão arterial, outro caso em que se atribui papel causal tanto a fatores genéticos como à raça. O autor analisa os pressupostos que embasam os argumentos racializadores desta patologia, as hipóteses alternativas presentes na literatura científica e os aspectos éticos nela implicados.

A partir de pesquisa etnográfica com usuárias e profissionais envolvidos com as novas tecnologias reprodutivas, que permitem a procriação sem relação sexual, Naara Luna, antropóloga da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, discute as concepções de natureza humana implicadas na biologização e genetização do parentesco.

Dois estudos abrangentes e complementares de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz encerram o dossiê deste número de Manguinhos. No primeiro, Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos analisam os debates motivados por estudos sobre o perfil genético da população brasileira, cuja interpretação mobiliza biólogos, sociólogos, movimentos sociais e outros atores. Além de mostrar as confluências entre antropologia, genética e sociedade no mundo atual, os autores examinam como o híbrido de novas tecnologias biológicas com velhas configurações ideológicas influencia as interpretações da realidade brasileira contemporânea. Em “Tempos de racialização”, Maio e Simone Monteiro detêm-se na ‘saúde da população negra’, campo de reflexão e intervenção política que se firmou entre 1996 e 2004: a postura ambivalente do governo Fernando Henrique Cardoso deu lugar, na presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, à expansão das políticas compensatórias, inclusive no âmbito da saúde pública, inflexão que os autores relacionam à Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU em Durban, África do Sul, em setembro de 2001.

Na seção Debate, a jornalista Luisa Massarani, do Centro de Estudos do Museu da Vida (Fiocruz), pôs, lado a lado, profissionais de grande competência a discutir a importância de se ampliar a participação do público não-especializado nas decisões concernentes a temas de ciência e tecnologia com impacto na sociedade. As experiências do Canadá, Chile, Reino Unido, – Argentina e Dinamarca – modelo internacional no tocante a mecanismos participativos nessa área – são dissecadas na entrevista com Lars Klüver, diretor do Conselho de Tecnologia da Dinamarca, e Edna F. Einsiedel, da University of Calgary, no Canadá, assim como nos textos de Tom Shakespeare, do Policy, Ethics and Life Sciences Research Institute; Alberto Pellegrini Filho, da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS); Ricardo Ferraro, da Universidad de Buenos Aires, Adriana J. Bacciadonne, do International Doorway to Education & Athletics e, ainda, Alberto Díaz, da Universidad Nacional de Quilmes (Argentina).

Outros materiais enfeixados neste número de História, Ciências, Saúde — Manguinhos chegaram a nós de forma espontânea, formando, naturalmente, um leque mais díspar de temas. Sergio Alarcon, da Secretaria Estadual de Ação Social do Rio de Janeiro, identifica distintas linhagens teóricas e práticas no âmbito da reforma psiquiátrica, e propõe um debate sobre as mudanças de estratégia para evitar que sofra retrocessos. Ricardo Waizbort, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, analisa dois novos campos de conhecimento que integram ciências biológicas e sociais: a psicologia evolutiva procura compreender a mente humana como produto de processos biológicos e evolutivos, e a ainda incipiente memética trata as informações culturais e as tradições como complexos de idéias que usam os cérebros humanos para se reproduzir. Rita de Cássia Ramos Louzada, da Universidade Federal do Espírito Santo, e João Ferreira da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, investigam a relação entre pós-graduação e trabalho através de observação participante e relatos de doutorandos de um curso de excelência na área de ciências da saúde. Por fim, Marcos Henrique Fernandes, Vera Maria da Rocha e Djanira Brasilino de Souza, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, investigam a concepção dos docentes do ensino fundamental sobre a saúde do escolar, bem como a formação desses profissionais no que se refere a esta temática.

As seções Fontes e Imagens reúnem materiais que se complementam: de um lado, o renomado “Chernoviz” e outros manuais de medicina popular no Império, trabalho de Maria Regina Cotrim Guimarães, da Universidade Federal Fluminense; de outro, Theodoro Peckolt, naturalista e farmacêutico alemão que deu contribuições decisivas para o desenvolvimento da fitoquímica no Brasil, como mostra o cuidadoso levantamento elaborado por Nadja Paraense dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Além de diversas resenhas de livros que certamente despertam o seu interesse, este número da revista traz ainda duas Notas de Pesquisa, o que nos alegra muito, porque essa é uma seção subutilizada, não obstante seu potencial como indutora ou valorizadora de projetos de pesquisa em andamento. Amílcar Davyt, Bernardo Borkenztain, Fernando Ferreira e Patrick Moyna, da Universidad de la República de Uruguay, nos falam sobre o desenvolvimento da química naquele país, a partir de um quadro de grande projeção neste campo do conhecimento, Giovanni Battista Marini Bettolo. Daniela Barros mostra como surgiram os estudos sobre imagem corporal e analisa as implicações fisiológicas e sociais desse conceito.

— “Raios me partam! Dentro em pouco vão me faltar forças para erguer tão polpudos volumes” — diz o leitor, de si para si. Eu próprio reconheço que me vejo em apuros para fazer caber tanta matéria na carta de editor, que já está longa demais.

Tranqüilize-se, leitor amigo. A partir de 2006, História, Ciências, Saúde — Manguinhos será trimestral e, assim, recuperará a elegância de formas que tinha à época em que as colaborações eram mais escassas.

Jaime L. Benchimol – Editor.


BENCHIMOL, Jaime Larry. Carta do Editor. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.12, n.1, jan./abr, 2005. Acessar publicação original [DR].

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