Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica | Edvânia Torres Aguiar Gomes

Este trabalho produzido originariamente sob a forma de tese em 1997 pode ser considerado de vanguarda em diversas acepções, analisando o seu conteúdo e suas advertências no plano das novidades que cercam a discussão contemporânea sobre Paisagem. Pode-se argumentar que se trata de um trabalho clássico na revisão dos conceitos mais primevos dos primeiros entendimentos sobre paisagem, desde a escola alemã, passando por alguns desdobramentos disciplinares inclusive para além da Geografia. Por outro lado, pode ser considerado crítico na perspectiva sócio-ambiental, ao se utilizar este trabalho no âmbito do urbanismo. Verifica-se o efeito denúncia que marca os embates entre o idealizado e o realizado, entre a cidade e o meio. A voz de distintos segmentos da sociedade se expressa através dos 600 questionários trabalhados, capturando as vertentes da representação da cidade no final do século passado. Através dessas falas são reveladas as idealizações e representações da cidade, podendo subsidiar o urbanismo e a gestão dos espaços públicos na metrópole recifense. Essa mescla guarda nexos marcados pelo esforço transversal, enunciando que não existe novidade na feitura das práticas e interesses – principalmente quando se trata de um mundo confeccionado colonialmente, que se busca num jogo de espelhos – e sim, que o mundo é permanentemente (re)criado. Este trabalho é uma excelente maneira de afirmar que não é por natureza que se compreendem e se estabelecem múltiplas aproximações ao objeto do saber. É preciso sentir, estar apaixonado, em conexão com referentes que historicamente constituem elos estruturadores da cidade, mas, e, principalmente, priorizar na escolha por tornar visíveis experiências vividas, na fala de seus usuários, identificando sentimentos profundos do povo na relação com trechos da cidade, para descobrir neles os elementos, mesmo confusos, que podem impulsionar relações de respeito por representações culturais fundamentais que reflitam, na paisagem, as necessidades humanas que a reproduzem. Trata-se de uma pesquisa instigante, qualitativa, e quantitativa de corte teórico e empírico, que passando pela apropriação fenomenológica, subsidiada por um rico elenco de fotografias, mapas, gráficos e gravuras conseguiu preservar a coerência entre o método de pesquisa e a apresentação da realidade estudada. A autora partindo das contribuições da geografia alemã leva-nos de passeio, pela trajetória da paisagem, aproveitando aportes de diversas disciplinas, em legados de historiadores, psicólogos, antropólogos, poetas, filósofos para analisar a composição da paisagem: o meio físico e o meio social, em estreito nexo com as percepções, o imaginário, a atividade humana constituída por atos, com os quais visa algo. A pesquisa tem como campo empírico o dilema na perspectiva das coexistências do planejador, do artista, do político, do cientista, do simples habitantes em uma cidade anfíbia, marcada por atributos da natureza e engenharia humana. As águas dos rios e dos manguezais que configuram o sítio da cidade são enfatizadas a luz desses diferentes segmentos da sociedade em suas práticas. No contemporâneo, até olhares menos atentos registram evidentes provas de agressão como negação a presença das águas na cidade, subestimando a sua morfologia genuína. Através de uma linguagem simples e dialogando com imagens, letras de músicas, poesias, o trabalho nos ajuda a entender que em função da subordinação à lógica da acumulação de riqueza, este processo de construir os espaços vividos se faz à custa de uma decadente condição da sociedade, singularizando alguns resultados que impactam os modos vida dos seus habitantes. Nesse campo, a autora dialoga com reflexões realizadas por renomados geógrafos como Josué de Castro, Milton Santos, Manoel Correia de Andrade, Rachel Caldas Lins e Jan Bitoun, bem como com poetas como Bento Teixeira, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, Chico Science, consegue ilustrar faces desses impactos no sítio urbano natural do Recife. Os historiadores, urbanistas, engenheiros pesquisados em suas obras propiciam apoio para firmar a posição da autora em suas críticas aos processos de planejamentos da cidade, com a adoção de mudanças que priorizam a técnica aplicada a demandas pseudo uníssonas, tornadas homogeneizantes na leitura de escala global. Como através de um painel, passando pelos primeiros esboços da cidade Mauricia até os dias atuais, com base nos trabalhos comparativos, Edvânia propicia uma revisão da concepção da paisagem idealizada para a cidade e refletida na estrutura do planejamento e suas práticas ao longo da história. O trabalho utiliza três eixos espaciais como referências para cotejar Recife à luz de algumas questões urbanas significativas e que dizem respeito ao cotidiano daqueles que animam a cidade do Recife. As variáveis eleitas espelham a história do presente e do futuro, revelando aproximações entre as representações das paisagens instituídas e divulgadas do Recife e as representações contidas nas falas e depoimentos de alguns usuários de seus espaços. As inquietações da autora são marcas indeléveis que saltam nas páginas deste livro realizando um arco interdisciplinar no sentido acadêmico, mas também no sentido da vivência. De um lado essas inquietações remontam as vivências cotidianas de lembranças primordiais de vida familiar percorrendo a cidade, mas também as interpelações da vida profissional na passagem como técnica em Órgãos de Planejamento Urbano Ambiental na cidade do Recife e, continuando como intelectual, no ideário Gramsciano que inspira as conexões entre intelectuais e o povo-nação. Evidencia-se, assim, a novidade do trabalho, no movimento que incorpora e o inspira, como uma importante contribuição da autora, que se tornará cada vez mais necessária para nos ajudar a recolocar na ordem do dia a agenda do meio físico e do meio ambiental nos espaços da vida urbana, numa cidade de referência histórica para a reprodução das culturas. Edvânia o manifesta nas inquietações finais: “Afinal o que é natureza? Esta pergunta aparentemente tão simples de responder não encontra eco plausível na história da confecção de Paisagens de nossas cidades. Os pilares sobre os quais foram edificados os espaços urbanos não contemplam entendimentos nítidos acerca da existência da natureza possível. No “mundo da engenharia e da técnica” ideologicamente os elementos físico-naturais são convertidos em acessórios subliminares até o surgimento de protótipos que os substituam”. A obra finaliza como se estivesse iniciando pela carga de provocações que evoca e pelas inquietações que ultrapassam a leitura e fazem vagar o pensamento. Nesse sentido, cabe concluir essa resenha retomando mais um importante atributo desse trabalho que é a forma como ele se encontra estruturado em seqüência ascendente partindo da teoria, história e a parte empírica. Dividido em blocos que podem ser lidos de forma solta, enfim degustados, o livro é uma referência sem dúvidas para aqueles que querem aprender a paisagem e apreender as paisagens e a história da cidade do Recife enquanto registro e nova metodologia.

Aura González Serna – Doutora em Serviço Social pela UFPE, (2005). Docente Pesquisadora, na direção do Grupo Território na “Universidad Pontificia Bolivarianam-UPB”. Campus de Laureles. Medellín, Colômbia. E-mail: [email protected]


GOMES, Edvânia Torres Aguiar. Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica. Recife: Massangana, 2007. Resenha de: SERNA, Aura González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p.375-378, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]