Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história | Ana Carolina Barbosa Pereira

Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história encara “o desafio de propor um diálogo entre a teoria da história e a etnologia” (Pereira, 2019, p. 24). Ana Carolina Barbosa Pereira, professora na Universidade Federal da Bahia, aponta de saída que “se a etnologia fala exclusivamente aos(às), etnólogos(as), a teoria da história tampouco apresenta disposição para ouvi-los(as)” (Pereira, 2019, p. 24). E se o diálogo entre esses campos já é inusual, as vozes que a autora convoca para travar a conversação não parecem menos estranhas umas às outras: de um lado, o perspectivismo ameríndio; do outro, o historicismo alemão.

A rigor, o que a obra enseja não é bem uma conversa, mas um jogo (de cartas); ou ainda, como sugere a autora, “uma séria e desafiadora brincadeira” (Pereira, 2019, p. 24). Não há melhor modo de compreender um jogo do que jogando-o; de experimentar a seriedade de uma brincadeira do que brincando-a. Pois bem: valendo!

Como colocar-se na transversal do tempo? Em relação a que tempo uma determinada história se poria na transversal? Ou, ao revés, em relação a que história um tempo determinado estaria na transversal? Como dar conta desses atravessamentos recíprocos? E o que se diz através dessa operação?

Antes de abordar essas questões – e como em qualquer jogo -, é preciso aceitar o conjunto de regras proposto. Elas são poucas, relativamente simples e têm o fito de seguir lance a lance o argumento do livro, que é dividido em três grandes partes. Na primeira, as cartas serão dispostas segundo seus naipes e viradas para cima, de modo a explicitarem quais delas conferem vantagem desleal (porque não relacional) a quem as mobiliza(r). A despeito dessa propriedade distintiva, do ponto de vista formal, não se distinguem das demais. Daí o título do capítulo: “Um jogo de cartas conceituais (não) marcadas”.

Isso feito, na segunda parte acompanhamos a autora “Embaralhando as cartas conceituais”. O propósito aqui é deixar manifesta que vantagem posicional permanente não é contingente, mas arbitrária e, do ponto de vista conceitual, uma impostura. Na língua dos jogos – e no jogo das línguas – dir-se-ia que se trata de mera convenção. Como tal, em tese e sem nenhum prejuízo à natureza da atividade, poderia ser repactuada pelos participantes.

A terceira e última parte é, por assim dizer, um pseudoamistoso: uma tentativa de demonstrar como poderia se dar a dinâmica do jogo – entre as categorias “cultura”, “tempo”, “natureza” e “história” – se a interação entre elas fosse conduzida segundo o design conceitual esboçado a partir de uma redistribuição das cartas conceituais, orientado pelo conjunto de reflexões elaboradas ao longo do livro.

CARTAS CONCEITUAIS (NÃO) MARCADAS: TELEOLOGIA FORMALISTA

A História como discurso acadêmico profissional repousa sobre um consenso disciplinar acerca da obsolescência conceitual de abordagens teórico-metodológicas à moda teleológica das chamadas “velhas filosofias da história”. No lugar delas, a historiografia desenvolveu um campo próprio de reflexões e o batizou com o substantivo mais afeito ao propósito de constituir a História como ciência social dotada de critérios específicos de positividade: teoria.

Nesse sentido, uma das tarefas fundantes da teoria da história é, efetivamente e como argumenta a autora, “esvaziar o conteúdo das filosofias da história” (Pereira, 2019, p. 21). O primeiro giro de pensamento exigido para pôr-se na transversal do tempo é depreender em que medida, apesar de ter seu conteúdo esvaziado na e pela teoria da história, o cerne conceitual das filosofias da história – a saber, seu caráter teleológico – segue formalmente ativo, ou seja, atua na forma da forma.

Repare: não se trata de dizer, como de hábito, que há discrepância ou desconformidade entre conteúdo e forma. Muito menos se trata de delinear aspectos que comprovariam quanto a forma escamoteia o conteúdo que traz a efeito. Ou, pior do que isso, de construir esse escamoteamento como condição sine qua non da própria relação entre forma e conteúdo da história. Não se trata, em suma, de supor que a teoria da história não pareça, não tenha a forma, não se apresente como teleológica, mas, na verdade, o seja. Na transversal do tempo, a teoria da história parece, tem a forma, se apresenta como teleológica… e o é.

Uma empreitada conceitual empenhada em demonstrar que algo não é outra coisa senão precisamente o que parece ser pode ver-se obrigada, ao menos provisoriamente, a conceder que alguma noção deve estar sendo empregada de maneira “controversa”. No caso de Na transversal do tempo, a “controvérsia” se dá com a noção de teleologia. Pereira (2019, p. 21) explica que “por teleologia se entende aqui o descompasso entre o desenvolvimento e a consciência deste mesmo desenvolvimento”.

O exercício desse descompasso é, sem tirar nem pôr, a marca patente do que – o mais tardar desde a célebre formulação de Jürgen Habermas (1988) – veio a ser batizado como “discurso filosófico da modernidade”. O inaugurador deste discurso? Hegel. “Controverso” é, pois, o inverso do adjetivo mais apropriado para insinuar a homologia entre os modos de pensar filosoficamente a modernidade e a inclinação às teleologias à la Hegel, isto é, indelevelmente finalistas, mas, dado seu assentamento no contingente, à prova da acusação de determinismos tacanhos.

Na transversal do tempo traça um dos percursos possíveis para entender essa trama no campo da teoria da história. Aqui, assinala dois pontos de inflexão. O primeiro, em Newton e sua mecânica clássica, responsável pela noção de espaço e tempo absolutos e verdadeiros em si mesmos (Pereira, 2019, p. 30). O segundo, na “revolução copernicana” de Kant, que atribuiu uma dupla natureza a esses pressupostos, de sorte a transmutá-los em “grandezas ontológicas e transcendentais” também do espírito: espaço e tempo transmutados em “formas puras da intuição sensível”, que se constituem como condição de possibilidade do conhecer e, nesse sentido, “conteriam, anteriormente a toda experiência, os princípios de suas relações” (Pereira, 2019, p. 31-32).

O caráter absoluto, contínuo e homogêneo do “tempo em si”, herdado das acepções newtoniana e kantiana, operará por dentro do discurso filosófico da modernidade até ganhar a forma do que Na transversal do tempo (se) apresenta como “continuum temporal.

Aceitando a tese de que o germe filosófico que inaugura a modernidade é o pensar teleológico que deriva do investimento incessante em suprimir o descompasso entre o que já é (ou seria) e o que se é capaz de pensar que ainda é (ou venha a ser), pode-se dizer, acompanhando o argumento de Pereira, que, a partir dessa matriz, tudo quanto viermos a chamar de interpretação histórica “moderna” (a despeito de assumir a forma de teoria da história ou de historiografia) consistirá na diferenciação desse continuum através de um processo que ela denomina “dinâmica da insciência/consciência do tempo” (Pereira, 2019, p. 65).

A teoria da história de extração alemã será o campo de prova desta hipótese. Aqui, pensando com Manuela Carneiro da Cunha, a autora efetua uma “recuperação das cosmologias ocidentais como objeto de estudo antropológico” (Pereira, 2019, p. 208) e empreende uma densa análise cujo fito é delinear afinidades conceituais. Tais afinidades, para usar uma metáfora antropológica afim, funcionam como um verdadeiro deslinde das estruturas elementares de parentesco de dois dos mais importantes expoentes contemporâneos da teoria da história, Reinhart Koselleck e Jörn Rüsen – entre si e com seus conterrâneos e antecessores, a saber, Wilhelm Dilthey e Gustav Droysen -, num primeiro galho genealógico; e, em passado ainda mais recuado, os vínculos de todos com a filosofia de Kant, de Herder e de Hegel.

Visto nessa perspectiva, e parafraseando Lévi-Strauss ([1958] 2008, pp. 32 e 39), o “continuum temporal” faz as vezes da natureza enquanto a “consciência histórica”, tal qual a proibição do incesto, se apresenta como o ponto de passagem (ou mecanismo de articulação) entre natureza e cultura. Ou ainda, na mesma chave, o “continuum temporal”, do qual a etnóloga tentar se aproximar através da consideração de suas expressões mais ou menos conscientes, equivale a uma “condição inconsciente” (da teoria da história).

A partir de uma engenhosa reconstrução do arcabouço analítico de Reinhart Koselleck, cuja formulação mais célebre é a díade espaço de experiência/horizonte de expectativa, “arriscando uma síntese”, Pereira (2019, p. 78) conclui que “o conceito de ‘tempo histórico’ participa da Historik de Koselleck, ora como condição transcendental das histórias, ora como indicador do processo de tomada de consciência do tempo em si mesmo”. Submetendo o pensamento de Jörn Rüsen a escrutínio semelhante, a autora diagnostica, em sua “razão histórica”, outra variante deste movimento que vai da insciência à consciência do tempo.

Em suma, tanto um como o outro “concordam em relação ao essencial”, isto é, mantêm a prerrogativa de um continuum temporal “natural” que, diferenciado pela ação da consciência, faz emergir o tempo propriamente histórico. É esse o arranjo que Na transversal do tempo (se) apresenta correta e peremptoriamente como uma “teleologia formalista” (Pereira, 2019, p. 86): um tempo que faz as vezes de natureza (o continuum temporal), espécie de unidade originária ainda indiferenciada, é submetido à ação reflexiva do pensamento humano e, nesse processo, que pode ser também descrito como “desenvolvimento da consciência do tempo em si mesmo”, se transmuta em algo intencionalmente diferenciado e, nesse sentido, histórico. E é nessa forma que “consciência histórica” e “tempo histórico” passaram a ocupar um lugar irremovível não apenas na teoria, mas na ciência da história.

Por essa razão, como sugere Pedro Caldas (2004, p. 11), ao se considerar que “pensar historicamente é pensar teleologicamente”, não se está “ressuscitando um cadáver” conceitual. Muito pelo contrário. Vista Na transversal do tempo, esse tipo de “teleologia formalista” – constituída pela relação mimética entre tempo natural e tempo histórico ou consciência histórica – oferece régua e compasso para “esclarecer qual a finalidade do saber histórico, ou seja, […] explicitar seu método, seus limites, funções, normas” e, nesse sentido, representa “o esforço para o estabelecimento de uma autonomia do conhecimento histórico” (Caldas, 2004, p. 11).

“Teleologizar” pressuporia, portanto, manter a excepcionalidade relacional de categorias desenvolvidas a partir de uma experiência particular da consciência do tempo que, em sua própria consecução como cânone de um campo de saber, se projetou como imprescindível à “interpretação humana do tempo e consequente construção histórica de sentido” (Pereira, 2019, p. 21).

EMBARALHANDO AS CARTAS: FUTURO SEM DEVIR HISTÓRICO

O embaralhar de cartas tem como objetivo expandir a superfície de contato da contingência e, assim, aumentar o nível de dificuldade de controle de um jogo. Parte fundamental da arte de jogar cartas, aliás, consiste em dominar as formas de embaralhamento e, não menos, torná-las objeto de admiração e fascínio. Quem nunca terá visto algo do tipo nas apologias hollywoodianas dos cassinos e da jogatina? A propósito e não por acaso, a prática é também uma modalidade distintiva no mundo da mágica.

Vão longe as analogias possíveis entre o que a magia faz com os sentidos, sobretudo o da visão, e o que a teoria faz com o sentido das palavras e das coisas. Com isso em mente, consideremos que o embaralhamento conceitual que Na transversal realizará pretende nos fazer compreender que, “alheia e indiferente ao princípio da insciência/consciência do tempo, a consciência histórica ameríndia não é um devir histórico” (Pereira, 2019, p. 156). Para chegar à tese, a autora nos conduz por um longo percurso conceitual. Sintetizo-o em duas manobras.

Primeiro, ela mobiliza o perspectivismo ameríndio para replicar, dentro da teoria da história, a “inversão multinaturalista” que produz um tipo específico de deslocamento da disposição relacional entre natureza e cultura, a saber, “a cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a natureza ou o objeto, a forma do particular” (Viveiros de Castro, [2002] 2017, p. 303). Assim, fica neutralizada de saída aquela “carta marcada” da ontologia da modernidade, isto é, a persistente oposição entre natureza e cultura, e produz-se algum desarranjo na correspondência entre seus correlatos simétricos universal/dado/objetivo/fato versus particular/construído/subjetivo/valor (Viveiros de Castro, 2017, p. 303).

O segundo movimento consiste em produzir um tipo análogo de deslocamento relacional no que diz respeito à noção de indivíduo em sua relação com a sociedade. Aqui, Pereira (2019, p. 98) lança mão da noção do conceito de “personitude fractal”, termo desenvolvido por José Luciani para estabelecer o “fio da relacionalidade, isto é, a constituição relacional de pessoas e contextos” através da descrição do processo pelo qual se dá “tanto o encerramento de pessoas inteiras em partes de pessoas quanto a replicação de relações entre Eus [selves] e Outros [alters] em diferentes escalas (intrapessoal, interpessoal e intergrupal)” nas sociedades indígenas (Luciani, 2001, p. 97).

O primeiro deslocamento, entre natureza e cultura, é fundamental para que se entenda que qualquer ente pode participar da configuração de um campo relacional: um animal, um objeto, um espírito e, claro, pessoas, mesmo as completamente estranhas a um dado grupo. Aqui, a natureza do vínculo não decorre nem depende da identificação com o semelhante (na forma de corpo humano) e sim do estabelecimento de uma relação de afinidade na qual o corpo não é, em primeira linha, compleição material, traço físico, mas, antes, “feixe de afecções” – um conjunto de capacidades e comportamentos típicos de um ser (Viveiros de Castro, 2017, p. 128). Instituída nesses termos, a afinidade assume, portanto, “a função de matriz relacional cósmica” e “constitui-se, virtualmente, como o modo genérico da relação social” ou, usando o conceito de Viveiros de Castro (2017, p. 108) Na transversal, constitui-se como “afinidade potencial”.

Um exemplo de caráter intergrupal pode ser bem elucidativo para entender o modo como a categoria tempo entra – via personitude fractal – nesse arranjo conceitual e fecha o nó do ser e do tempo que nós chamamos de história. Falando dos tupinambás, Viveiros de Castro (1992, p. 291 apud Luciani, 2001, p. 105) analisa o modo como se estabelece um “momento crucial de mútua identificação” entre cativo e captor/matador, de sorte que “o cativo representa o futuro do matador (ser executado pelo inimigo) e o matador representa o passado do cativo (que foi um matador)”.

Em trabalho de campo etnográfico conduzido junto aos Yamináwa, Pereira reconhece traços desses mesmos princípios – afinidade potencial e personitude fractal – na relação entre tempo e pessoa. As estratégias de reprodução de nomes e dos termos entre os Yamináwa, ela explica, na medida em que tendem à replicação entre eus e outros em escala temporal, criam uma estrutura dinâmica e propriamente fractal do tempo (Pereira, 2019, p. 151). A partir dessa conclusão, ela convida: “especulemos por conta própria”.

Se é possível instalar-se no passado e/ou futuro conforme o princípio da reversibilidade, isso se deve, ao que parece, à existência de um fundo virtual de temporalidade não-marcada. A própria dinâmica da fractalidade é indicativa dessa relação de dependência. Aqui, é a simultaneidade (potencial) que impõe a não simultaneidade de “antes” e “depois”. Passado, presente e futuro correspondem justamente àquela dimensão não marcada da história que, por isso, deve ser atualizada (Pereira, 2019, p. 151).

A história assim atualizada é, portanto, ela também potencial, e seu traço fundamental, por conseguinte, é a relacionalidade: “Se o tempo histórico ameríndio é o tempo do parentesco e este é fabricado a partir da afinidade potencial, o mesmo se dá com o tempo como atualização de uma história potencial (Pereira, 2019, p. 153).

E assim, para fechar esta seção retomando o fio do raciocínio, compreende-se o que significa dizer que a “história potencial ameríndia” não pressupõe nenhum vínculo apriorístico “entre passado, presente e futuro que deva ser diferenciado por meio da consciência histórica”; ou seja, que “não é um devir histórico”.

REDISTRIBUIR AS CARTAS: HISTÓRIA MULTIVERSAL DA DIFERENÇA

Tendo, primeiro, deslocado as noções de “tempo histórico” e “consciência histórica” de sua posição não marcada e, em seguida, aguçado nossa compreensão da história rumo a uma relacionalidade radical via perspectivismo ameríndio, Pereira volta aos alemães na terceira (e última) parte do livro, mais precisamente ao projeto de história intercultural – ou humanismo moderno – de Jörn Rüsen.

Para que cheguemos a esse ponto bem equipados, um importante contorno epistemológico é feito: estabelecer a posição relacional da própria história Yamináwa, isto é, da história dos povos indígenas, em um quadro que tem o Acre como pano de fundo, mas que é bastante ampliado. Se usarmos aqui a própria noção de fractal – no que ela serve como recurso visual para imaginar o padrão de repetição de um fenômeno em diferentes escalas -, veremos a história do Acre como uma iteração ampliada da narrativa mestra que estrutura também, a um só tempo, o “paradigma da formação” da nação (no Brasil) e a evolução da modernidade (no Ocidente). Em síntese, produz-se uma epopeia acreana como capítulo particular da marcha universal e inexorável do progresso e da civilização, na qual os povos indígenas ou não figuram ou apenas aparecem para confirmar uma suposta incapacidade inata de oferecer qualquer resistência à ação colonizadora (Pereira, 2019, p. 175).

Isto é feito para que entendamos o excurso político que Na Transversal nos propõe quando traz a ideia de “florestania”. Fusão de “floresta” e “cidadania”, o termo pretendia, historicamente, enfatizar o protagonismo dos povos indígenas e, politicamente, sintetizar um caminho para a superação do antropocentrismo, preconizando um regime de igualdade de direitos entre todos os elementos da natureza, inclusive, naturalmente, os seres humanos. No fim, degenerou em “mero slogan”, de todo desvinculado da ambição originária, calcada numa mudança radical de paradigma (Pereira, 2019, p. 182).

Nessa altura, somos reconduzidos ao que Jörn Rüsen preconiza ao falar de um conceito de história intercultural que “deve vencer o próprio etnocentrismo e contribuir para uma nova cultura do reconhecimento mútuo das diferenças” (Pereira, 2019, p. 185).

Como Na Transversal apresenta essa aspiração em seus pressupostos, entendemos também em que medida a “cultura do reconhecimento mútuo das diferenças”, como critério normativo de validade universal na teoria da história de Rüsen, acaba desempenhando um papel análogo ao da “florestania” como princípio orientador da política, ou seja, o de “mero slogan”. Ambas, cada qual em sua seara, não apenas não operam o giro paradigmático que anunciam, mas, ao revés, atuam como vetor da primazia do moderno.

À luz do que essa modernidade tem sido até aqui para os povos indígenas, a saber, um processo contínuo de reprodução do genocídio como cerne da dinâmica de interação, Pereira (2019, p. 203) conclui que o argumento da “razão inclusiva” subjacente ao humanismo moderno de Rüsen “soa no mínimo ofensivo”. Mas, se não a nobre e bem-intencionada “inclusão”, então o quê? Hora de, finalmente, redistribuir as cartas conceituais.

As narrativas de contato dos Yamináwa – a exemplo da de outros povos indígenas, como os Arara e Manchineri – são dispostas de maneira tal que, embora os brancos sejam acomodados em lugares pré-marcados, isso não impede o surgimento de reordenações cosmológicas que derivam de uma “constante reelaboração do contingente como experiência inédita de algo conhecido de antemão”. Orientada pela “afinidade potencial”, a incorporação do outro se dá, via de regra, “em sua e pela sua diferença”. A história que assim se conta, portanto, “não é uma narrativa post festum, ela é o fundo virtual que prefigura toda a experiência, um veículo para a realização e simbolização de relações efetivas” (Pereira, 2019, pp. 143-144).

Em termos mais abstratos, dir-se-ia que o princípio de reconhecimento mútuo da diferença do qual Rüsen lança mão opera com base em uma lógica de diferenciação ancorada nas categorias tipológicas da semelhança, da oposição, da analogia e da identidade. Daí seus critérios de inclusão acabarem desandando sempre no taxonômico e classificatório, em um movimento que não cessa de repor as regulações hierárquicas que tenciona deslocar (Pereira, 2019, p. 203).

As matrizes de pensamento ameríndias, por sua vez, operam através de uma “síntese disjuntiva” cujo princípio de diferenciação é precisamente o não taxonômico e não substancial. Sua dinâmica relacional de individuação conduz, por isso, à constante “atualização do virtual”. Para retomar a metáfora geométrica, em vez de uma “ontologia plana”, corolária de uma lógica inclusiva da diferença, na qual existir pressupõe a identidade como causa ou como finalidade, poderíamos arriscar uma “‘ontologia fractal’ em que existir significa diferir: diferença intensiva, diferença das diferenças”. Assim, trocando em miúdos historiográficos, em vez de uma “história universal da identidade” construiríamos uma “história multiversal da diferença” (Pereira, 2019, pp. 204 e 207).

AFINIDADE (TEÓRICA) POTENCIAL

“Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória.” (Benjamin, 1996, p. 222). É assim, imaginando um jogo, que Walter Benjamin principia seu célebre “Sobre o conceito de história”.

O alvo declarado da crítica de Benjamin é um historicismo composto por dois traços fundantes: 1) a aspiração de representar o passado como “ele de fato foi” e que, como tal, 2) “culmina legitimamente na história universal” (Benjamin, 1996, pp. 224 e 231). No limite, Benjamin (1996, p. 231) provoca, o historicismo possibilita o paradoxo de apresentar uma “imagem ‘eterna’ do passado”, o que só é possível porque ele “faz da história objeto de uma construção cujo lugar é um tempo homogêneo e vazio” que se manifesta como “o continuum da história” (Benjamin, 1996, p. 229).

O materialismo histórico benjaminiano desejava explodir esse continuum (Benjamin, 1996, p. 230). Se seguirmos Na transversal do tempo, podemos fazer algo afim. Há (parece) uma afinidade potencial entre o jogo do tempo e da história de Ana Carolina B. Pereira e de Walter Benjamin.

Não obstante, é a diferença que os vincula: o tempo de Benjamin é monológico, intrassubjetivo e messiânico; está impregnado de um salvacionismo cuja virtuosidade parece imanente e, mormente, dado a “revolucionário”. O de Pereira é dialógico, intersubjetivo e contingente; de saída, desconfiado da própria virtude e avesso às epifanias da salvação.

Entre Pereira e Benjamim, a metáfora do jogo interpõe um elo dissonante. Na imagem que Benjamin (2020, p. 66) constrói há um elemento fundamental: “através de um sistema de espelhos criava-se a ilusão de que a mesa era transparente por todos os lados” e, assim, ocultava o espírito que animava o jogo (o anão corcunda da teologia). O truque, portanto, não consiste unicamente em ser guiado pela mente do mestre (de xadrez), mas garantir que – por intermédio da transparência – sua onipresente efetividade na condução dos eventos transcorra na forma da ausência e iluda quem entrar na contenda. Pereira, por sua vez, não quer parecer transparente, não aposta no logro do outro; seu jogo não demanda repor a consciência alheia a partir de uma posição declaradamente misteriosa.

O caso é que, e eis o nó, ao acenar com o estratagema da consciência escondida como guia – a transparência como opacidade -, Benjamin parece adotar prumo mais afeito à assimetria de poder, pois pretende equipar melhor quem joga em franca desvantagem. No que concerne à Pereira, ao revés, quem joga limitado por injustiças dadas de saída segue algo exposto, precisando contar, antes, com a abertura (ou transparência) de um outro que agora – não mais a despeito, mas dada a sua opacidade finalmente declarada – encerraria uma virtuosidade intrínseca e, mormente, capaz de engendrar uma dinâmica de supressão gradual de assimetrias que poderia ser tomada como o início de um tímido processo de reparação.

Que jogo teríamos se o corcunda de Benjamin aprendesse a jogar com as cartas ora embaralhadas e redistribuídas por Ana Carolina B. Pereira?

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. pp. 222-243.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história: edição crítica. São Paulo: Alameda, 2020.

CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Que significa pensar historicamente: uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004. 215 f.

HABERMAS, Jürgen. Der Philosophische Diskurse der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008 [1958].

LUCIANI, José Antônio Kelly. Fractalidade e troca de perspectivas. Mana, v. 7, n. 2, pp. 95-132, 2001.

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história. Salvador: EDUFBA, 2019.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2017 [2002].

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. From the Enemy’s Point of View: Humanity and Divinity in an Amazonian Society. Chicago: Chicago University Press, 1992.


Resenhista

Fernando Baldraia – Freie Universität Berlin, Berlim, Alemanha. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-0140-757X


Referências desta Resenha

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história. Salvador: EDUFBA, 2019. Resenha de: BALDRAIA, Fernando. O jogo da afinidade.  Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n. 89, 2022. Acessar publicação original [DR]

Acre, Formas de Olhar e de Narrar: Natureza e História nas Ausências | Francisco Bento da Silva

SILVA Francisco Bento da Acre

SILVA Acre AcreA proposta da resenha é apresentar a obra “Acre, Formas de Olhar e de Narrar: Natureza e História nas Ausências”, do escritor, professor e pesquisador Francisco Bento da Silva. O livro é o resultado do estágio de pós- doutoramento no curso de Pós- Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi, pensado e produzido entre agosto de 2019 até meados de 2020. No texto, o autor propõe desenvolver debates a respeito da historiografia, da natureza e dos imaginários que permeiam a história do Acre. Utilizando-sePara isso, utiliza-se de fontes documentais como: jornais, relatórios da época e referenciais teóricos dos mais diversos campos do conhecimento. Com isso,, o autor propõe diálogos que buscam novos modos de narrar e de olhar o Acre.

O pesquisador, ao escolher o título, já direciona o leitor a sua posição de questionador e de problematizador no campo das mentalidades. As colocações são bem articuladas, organizadas e cirurgicamente conceituadas para que o leitor, ainda que com pouco contato com a temática, se sinta confortável com a leitura. Francisco Bento da Silva (20200000, p.15 00), já no início do livro, deixa claro que: “não sou poeta”, mostrando sua posição de distanciamento de qualquer “liberdade poética” ou senso comum. Diante disso, o autor se aproxima e se utiliza de um aglomerado de fontes e de referências as quaisque suportaram sua obra. As problematizações que o autor propõe são referentes aos discursos de vazio, de ausência e de inexistência de saberes e viveres amazônicos, e que, na sua visão, contrapõem as realidades múltiplas que foram intencionalmente silenciadas pela historiografia hegemônica. Leia Mais

Nuestro viaje a la Luna: la idea de la transformación de la naturaleza en Cuba durante la Guerra Fria | Reinaldo Funes Monzote (R)

Filosofia e Historia da Biologia 7 Acre
Reinaldo Funes Monzote | Foto: YU |

SCOTT The common wind 10 AcreOs processos de transformação da natureza no século XX, sobretudo relacionado à revolução agrícola nesse período, continuam a instigar pesquisadores em diferentes disciplinas, e vêm ganhando destaque no campo da história da ciência, ou mesmo da história da agricultura. Ultimamente, a história ambiental tem procurado analisar essas transformações, sublinhando o papel governamental, de instituições, pesquisadores, políticos e ativistas. A própria natureza aparece como agente histórico em muitas dessas análises. Donald Worster (2020), mais recentemente, tem analisado a transformação da natureza como o avanço científico sobre o mundo pós-fronteira, que envolve tanto o desenvolvimento como as críticas à nova revolução na agricultura.

O tema da transformação da natureza é ainda urgente, pertinente e cheio de possibilidades. E o texto de Monzonte (2019) reforça essa assertiva, na medida em que se apropria das análises da geotransformação na construção do seu argumento, um desafio compartilhado com outros historiadores e cientistas sociais no estudo das transformações de paisagens e ecossistemas negligenciados e ameaçados, como o Cerrado brasileiro, por exemplo (Dutra e Silva, 2020). Apesar de os estudos agronômicos destacarem os avanços científicos na produção de grãos e commodities, essa realidade aponta para uma crise ambiental sem precedentes. Nesse sentido, a obra cumpre o importante papel de procurar evidenciar a instabilidade entre a busca pelo desenvolvimento econômico e a conservação dos recursos naturais. A despeito dos enredos político e geográfico de Cuba, o contexto da transformação da natureza não é visto apenas do ponto de vista regional, mas dialoga com contextos históricos globais, sem negar o valor histórico dos enredos regionais, detalhadamente apresentado por meio de ricas fontes documentais. E isso é muito bem orquestrado por Monzote, que transita confortavelmente na descrição da política local com as teorias do desenvolvimento na América Latina e os modelos de planificação do bloco socialista. Leia Mais

Viandante nel Novecento. Thomas Mann e la storia | Domenico Conte

Já definido como “monumental”, “rico”, “policromático” e “diverso”, o recente e imponente livro de Domenico Conte, intitulado Viandante nel Novecento. Thomas Mann e la storia, reúne, dividido em quatro partes (“História e mito”, “Política e primitivismo”, “Natureza e espírito”, “Benedetto Croce e Thomas Mann”), vinte e dois ensaios publicados pelo autor no período entre 2009 e 2018.

E precisamente o tempo, protagonista destas páginas juntamente com Mann, faz com que o tom do historiador da cultura napolitano em direção ao escritor de Lübeck, seja, sim, cheio de admiração, mas nunca subserviente ou temeroso, tornando-se cada vez mais familiar, tanto que se dirige a ele não apenas com o nome de batismo, Thomas, mas com o diminutivo Tommy. O que, como é evidente, representa uma marca de proximidade, uma intimidade cujas raízes devem ser procuradas no passado ou, aqui talvez seja mais adequado dizer: mais para lá, mais abaixo. De fato, o vínculo que une Conte a Mann é, como ele próprio confessa, “uma espécie de fidelidade”. Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo / Ailton Krenak

KRENAK Ailton Acre
KRENAK A Ideias para adiar o fim do Mundo AcreAilton Krenak / Foto: Fondation Cartier  /

O livro de Ailton Krenak, estruturado em três capítulos referente a palestras e adaptação de uma entrevista realizada em Lisboa – Portugal, configura-se enquanto uma excelente ferramenta de auxílio para o questionamento do desenvolvimento moderno e a sua humanidade. O autor indígena, oriundo do povo Krenak que se territorializou na região do Vale do Rio Doce, além de produtor gráfico e jornalista dedicou-se ao ativismo do movimento socioambiental e dos direitos dos povos indígenas, sendo lembrado muitas vezes pelo seu discurso proferido na Assembleia Constituinte de 1987, aonde, protestando pintou seu rosto com tinta de jenipapo como expressão do luto ao massacre dos povos indígenas legitimado pelo retrocesso dos direitos das comunidades tradicionais.

Seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” objetiva realizar uma discussão sobre os impactos das ações que imprimimos no planeta terra orientados pela cosmovisão de que somos seres separados da natureza, retroalimentando uma autodestruição, que não é compreendida pela ideia de humanidade construída pela modernidade eurocêntrica. Sendo assim, os povos tradicionais, compreendidos como sub-humanos pela modernidade, são compreendidos pelo autor como uma alternativa a lógica de autodestruição e exploração excessiva da natureza. Leia Mais

The People of the River: Nature and Identity in Black Amazonia/1835-1945 | Oscar De La Torre

Em 2020, The People of the River ganhou o prêmio de melhor livro do GT Amazônia da LASA (Latin American Studies Association). Publicação baseada na tese de doutorado em História do autor, este livro já havia obtido, em 2019, um prêmio (Outstanding First Book Prize) da ASWAD –Association for the Study of the Worldwide African Diaspora. Sem dúvida, a obra é instigante e fascinante, com uma narrativa fluente, às vezes com doses de ironia bem aplicadas ao longo do texto. Leia Mais

Generare, partorire, nascere. Una storia dall’antichità alla provetta – FILIPPINI (BC)

FILIPPINI, Nadia Maria. Generare, partorire, nascere. Una storia dall’antichità alla provetta. Roma: Viella, 2017. 349p. Resenha de: TIAZZOLDI, Livia. Il Bollettino di Clio, n.9, p.75-78, feb., 2018.

Nadia Maria Filippini, già docente di Storia delle donne presso l’Università Ca’ Foscari di Venezia e socia fondatrice della Società Italiana delle Storiche, propone un’articolata analisi diacronica di lunga durata sul tema della maternità nella cultura occidentale, all’insegna della continuità nella trasformazione.

Ne sottolinea la complessità, evidenziandone le molteplici sfaccettature culturali, sociali, scientifiche che stanno alla base di rituali, pratiche terapeutiche, norme civili e religiose, forme di controllo e potere.

La storia del parto è un capitolo fondamentale della storia delle donne, sostiene l’autrice nell’introduzione, ed è strettamente legato alla codificazione del genere dato che, per secoli, l’essere donna ha coinciso con l’essere madre e l’essere madre è stato criterio di misura del valore femminile. “Su questa capacità si concentravano dunque aspettative individuali, familiari, sociali, ma anche forme di tutela, controllo, disciplinamento che avevano il loro epicentro nella famiglia (con le sue interne gerarchie), nell’istituzione ecclesiastica e in quella politica.”  Luoghi, figure, rituali e pratiche terapeutiche riguardanti la gravidanza e il parto vengono proposti come osservatorio privilegiato per analizzare sia la storia delle donne che quella sociale e culturale con le sue trasformazioni: dalla progressiva costruzione del discorso medico-scientifico nel mondo antico, alle innovazioni del cristianesimo, all’affermarsi della figura del chirurgo-ostetricante nel Settecento, alla medicalizzazione del parto, fino alla rivoluzione delle tecnologie riproduttive del Novecento.

L’idea presente già nel titolo è quella di mettere a fuoco i vari soggetti coinvolti: alla capacità della donna di partorire è stata opposta per secoli quella maschile di generare, mentre il verbo nascere mette in evidenza il punto di vista del feto/neonato la cui importanza varia in base al modificarsi delle rappresentazioni che lo connotano nel tempo, condizionando di conseguenza pratiche e principi deontologici.

Grande centralità è data alla scena del parto che permette di analizzare i luoghi (la casa e poi l’ospedale), le pratiche adottate, i soggetti coinvolti (la madre, la levatrice, il medico) i cui ruoli cambiano nel tempo in un continuo confronto professionale e di genere fatto di collaborazione, ma anche di contrapposizione.

Il libro è suddiviso in quattro parti. La prima parte (Rappresentazioni culturali) mi sembra particolarmente interessante e spendibile sul piano didattico, nel caso si voglia attivare una riflessione su come sia cambiata nel corso del tempo l’idea di generazione e nascita.

Vi si analizzano le grandi rappresentazioni fondanti la differenza di genere nella cultura occidentale e che si ritrovano nei miti, nel linguaggio con le sue metafore e proverbi, nella filosofia, nelle raffigurazioni artistiche, nella religione pagana e cristiana.

Ci si rende subito conto della dicotomia maschile/femminile; di come esista una continuità di lunghissima durata dell’idea dell’uomo come seminatore, come principio attivo della generazione, e della donna come un campo da seminare, passivo, posseduto da un contadino-padrone che lo rende fertile.

Questa impostazione è alla base di una tradizione di pensiero che attraversa la cultura greca con Ippocrate e Aristotele, quella araba, il pensiero di Tommaso d’Aquino ripreso poi da Dante Alighieri, fino al Settecento.

La superiorità del maschile sul femminile è sottesa anche all’idea del “partorire con la mente” (Platone), appannaggio esclusivo dell’universo maschile. Socrate parla di maieutica e si paragona in quest’arte alla madre ostetrica, con la differenza che, mentre lei fa nascere i bambini, lui aiuta i suoi allievi a partorire i prodotti della mente (arte, letteratura, filosofia) che garantiscono fama immortale.

Il parto di Atena dalla testa di Zeus esemplifica come il mito e la religione abbiano attribuito ad un Dio maschile perfino la capacità di generare e di partorire. Le dee madri di antica tradizione vengono dimenticate e la coppia Zeus-Atena sostituisce quella preindoeuropea di Demetra-Core, provocando una forte rottura di identità e di alleanze nella storia delle donne.

La Medea di Euripide propone una stretta analogia fra parto e guerra, due prove dolorose da superare, ad alto rischio di morte, che si giocano in aree separate: gli uomini vanno in guerra, le donne partoriscono con l’aiuto di altre donne (levatrici, vicine di casa, familiari). Però, mentre la guerra dei maschi ha carattere fondativo di una civiltà, viene raccontata ed esaltata nella figura dell’eroe, la guerra delle donne (il parto) resta confinata nel chiuso delle pareti domestiche ed è esclusa dal racconto pubblico.

A differenza di quanto accadeva nel mondo antico, il cristianesimo pone al centro il momento della nascita, valorizzando il rapporto madre-figlio, ma, nel corso del tempo, priva sempre più la Vergine (anche nelle rappresentazioni artistiche) delle tracce di maternità corporea. La Madonna è una madre spirituale più che fisica, esente non solo dal peccato originale, ma dagli stessi dolori del parto (dogma dell’Immacolata Concezione del 1854).

La corporeità del parto, sinonimo di impurità, viene invece attribuita ad un’altra figura femminile: Eva, responsabile dell’introduzione della morte nel mondo e incaricata di espiare con le doglie il peccato originale.

L’idea cristiana del dolore come espiazione del peccato distoglierà per molto tempo la ricerca medico-scientifica dall’indagine sulle cause del dolore e sui farmaci per contrastarlo.

L’influenza del pensiero cristiano ha determinato nelle donne un vissuto molto contraddittorio in bilico tra orgoglio e vergogna, tra fierezza e silenzio: da un lato la maternità viene esaltata come realizzazione di un dovere e di un comandamento divino (il modello è la Madonna), dall’altra viene mortificata sul versante corporeo (oggetto di scandalo, segregazione in casa ed esonero dalla messa). Il parto è diventato un tabù, cancellato perfino dal linguaggio: si racconta che i bambini nascono sotto ai cavoli o li porta la cicogna.

Nella seconda parte (Partorire e venire al mondo dall’antichità al Settecento), utilizzabile sul piano didattico per ragionare sul potere declinato al femminile (subìto, agito, condiviso, invidiato), si descrive la gravidanza come esperienza peculiare della donna, il cui corpo è sottoposto a forme di controllo sociale con divieti e obblighi rituali, oggetti scaramantici. Interessante la questione introdotta dal cristianesimo relativa al momento in cui Dio infonde l’anima nel feto: il quarantesimo giorno se è maschio, l’ottantesimo se è femmina. Dopo la Controriforma la data si sposta al terzo giorno dal concepimento.

Varie pagine sono dedicate al parto, al puerperio, alla nascita, alle credenze ed ai rituali connessi prima nel mondo antico, poi nel mondo cristiano, quando la Chiesa impone il suo controllo sulla sfera della sessualità e della riproduzione.

Si evidenziano permanenze di lunga durata e rielaborazioni simili in tutta Europa (Francia, Germania e paesi anglosassoni con vari esempi di storia veneziana). A questo discorso si intreccia poi la descrizione della nascita del pensiero medico antico e della sua lunga continuità nell’occidente medievale e moderno.

Attenzione particolare è data alla figura della levatrice, presenza fondamentale sulla scena del parto sia nel mondo antico che nell’Occidente cristiano, ma anche figura di riferimento in caso di problemi legati al ciclo mestruale, all’allattamento, in casi di sterilità o stupro o per indurre un aborto attraverso pozioni particolari, incantesimi e amuleti. Per questa sua partecipazione sia alla sfera della vita che a quella della morte, questa donna appariva ambigua allo sguardo degli uomini, esclusi da quel mondo di conoscenze e pratiche. Alla levatrice si collega anche il concetto di nascita sociale che sancisce, attraverso un rituale, l’ingresso del nuovo nato nella famiglia e nella società. Essa infatti assiste alla nascita naturale, ma consegna poi il neonato al padre e lo affianca, assieme alla madrina, nel rito del battesimo, da cui la madre è esclusa. Talvolta è lei stessa a fare da madrina, diventando la madre spirituale del bimbo, ed è comunque autorizzata ad amministrare il battesimo “sotto condizione” in caso di pericolo di vita del neonato al momento della nascita.

La terza parte (Lo snodo del Settecento) si confronta col XVIII secolo, un periodo di profonda trasformazione nella storia della nascita per i cambiamenti che investono sia la scienza che il contesto socio-politico.

Si impongono nuove teorie sulla fecondazione e sullo sviluppo fetale e si afferma la figura del chirurgo-ostetricante che modifica la secolare tradizione di presenza esclusivamente femminile sulla scena del parto.

Emerge da parte degli Stati un interesse specifico per il controllo della popolazione e nasce il biopotere il cui fine è quello di potenziare e gestire la vita, il corpo stesso delle persone, controllando salute, natalità mortalità.

In linea con questa nuova concezione si colloca il processo di personificazione dell’embrione-feto e l’affermarsi dell’idea del feto-cittadino, che giustifica l’intervento pubblico nel settore della nascita. Vengono istituite le scuole ostetriche, nascono gli ospedali per partorienti.

L’ultima parte (Le molteplici rivoluzioni del Novecento) affronta l’età contemporanea quando il biopotere si afferma sempre di più fino ad arrivare alle politiche eugenetiche e demografiche dei regimi totalitari, in particolare del nazismo, e quando il parto diventa sempre più soggetto alla medicalizzazione e all’ospedalizzazione.

Si affermano nuove tecniche come l’ecografia, definita un “nuovo rito conoscitivo”, la psicoprofilassi e l’analgesia.

Dal punto di vista legale si arriva progressivamente, in un numero crescente di paesi, alla legalizzazione della contraccezione e dell’interruzione volontaria di gravidanza, al varo di leggi a tutela della maternità.

Si fa sempre più strada, sulla spinta delle rivendicazioni femministe, l’idea dell’autodeterminazione della donna e della maternità come libera scelta e viene messo in discussione l’automatismo del legame sessualità-procreazione. Anche la figura del padre acquista un ruolo più partecipe, sia durante la gravidanza che al momento della nascita.

La fecondazione artificiale infine apre nuovi orizzonti coniugando il termine di maternità con quello di diritto, mentre si diffondono nella società nuovi modelli genitoriali e familiari (famiglie arcobaleno).

La crioconservazione di ovuli e spermatozoi sembra assicurare una specie di immortalità biologica all’individuo, non più legata alla filiazione reale, ma già realizzata nell’idea di filiazione possibile.

Alle soglie del terzo millennio, l’autrice sottolinea la presenza di aspetti contraddittori: le gerarchie di genere alla nascita sono state scardinate nei paesi occidentali, ma l’applicazione della tecnologia ha portato all’alterazione del rapporto naturale tra i sessi in molte parti del mondo; l’applicazione di alcune leggi a favore della donna non è sempre praticata, la fecondazione assistita rimane un privilegio per gli alti costi; la maternità è certamente una scelta, non più un obbligo o un destino, ma la crisi economica e la precarietà dei contratti di lavoro compromettono a volte una effettiva libera scelta.

In estrema sintesi si può dire che queste stimolanti pagine evidenziano la continuità nel tempo di quattro nodi fondamentali: l’idea di impurità legata alla sessualità femminile; il carattere ambivalente sul piano sociale e culturale dell’esperienza del parto (sacro, ma anche indicibile); la connotazione culturale di parto e nascita, definiti dall’ambiente in cui avvengono, dai rapporti fra i generi, dalle conoscenze mediche e anatomiche; il corpo femminile al centro di continui scontri di potere.

Il libro, che si conclude con un’ampia bibliografia ragionata in cui si valorizzano gli studi femminili, fornisce agli insegnanti una grande ricchezza di elementi per un approccio didattico ampio e articolato anche sul piano interdisciplinare. Potrebbe essere interessante un percorso sul tema dei diritti umani (acquisiti in alcune parti del mondo, non ancora in altre dove sopravvivono situazioni simili a quelle descritte nel testo e riferite al passato dei paesi occidentali), con collegamento agli obiettivi di sviluppo sostenibile dell’Agenda 2030 dell’ONU.

Livia Tiazzoldi

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A invenção da natureza. A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt

Apenas um ano depois do lançamento do original em inglês, a editora Planeta e o tradutor Renato Marques brindam-nos com uma obra indispensável para todos aqueles interessados em história das ciências e da geografia. A invenção da natureza. A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt é uma pesquisa bibliográfica e arquivística de fôlego cuja narrativa seduz o leitor da primeira à última página. Méritos para a autora, cuja escrita parece ter sido cuidadosamente elaborada — com destaque para a forma como ela posiciona as citações. São frases tão pequeninas quanto eloquentes cujo efeito é o de fazer parecer que estamos a conversar diretamente com Humboldt, Goethe, Bonpland, Darwin, Muir. Elogios também para o tradutor, que logrou a proeza de manter a fluidez e a elegância da versão original.

Baseado em nossa experiência como professor de História e Epistemologia da Geografia, cumpre confessar que Alexander von Humboldt (1769-1859) nunca foi tarefa fácil. Grosso modo, a impressão passada pela literatura acadêmica é a de que, a despeito de sua inquestionável erudição, seu projeto científico foi “ultrapassado” pela progressiva especialização disciplinar exigida pela institucionalização da geografia universitária. Todavia, as menções a ele são incontornáveis dentre os representantes franceses (Paul Vidal de la Blache), ingleses (Andrew J. Herbertson) e norte-americanos (Richard Hartshorne). Leia Mais

Ecología política en Chile: naturaliza, propriedade, conocimiento y poder – BUSTOS et al (EA)

BUSTOS, Beatriz; PRIETO, Manuel; BARTON, Jonathan (Compiladores). Ecología política en Chile: naturaliza, propriedade, conocimiento y poder. [Sn.]: Editorial Universitaria, 2015. Resenha de: GIMINIANI, Piergiorgio;  JACOB, Daniela. Estudios Atacameños, San Pedro de Atacama, n.53, nov., 2016.

El libro “Ecología política en Chile: naturaleza, propiedad, conocimiento y poder”, editado por Beatriz Bustos, Manuel Prieto y Jonathan Barton, reúne a doce investigadores afiliados a universidades nacionales e internacionales, que comparten un interés en el estudio de los procesos eco-políticos que están afectando Chile. Los nueve capítulos que componen este libro dan fe de una gran heterogeneidad de enfoques analíticos y de las localidades de investigación. A pesar de su diversidad, los capítulos de “Ecología Política en Chile” se encuentran organizados a partir de una reflexión conceptual sobre los elementos claves para establecer un análisis comparativo y un diálogo entre las distintas posibilidades de investigación abiertas por la ecología política. Los editores proponen pensar la ecología política a partir de cuatro dimensiones: naturaleza, propiedad, conocimiento y poder. Al problematizar estas cuatro dimensiones, el libro nos invita a preguntarnos sobre cuáles son las naturalezas que las prácticas de uso y conservación de recursos naturales producen desde el punto de vista tanto ontológico como epistemológico.

El enfoque hacia la producción ontológica y epistemológica de la naturaleza en cuanto proceso político es una de las principales novedades del volumen. Sin embargo, no es la única. En los debates analíticos y políticos existe una tendencia a reducir la ecología política a oposiciones dicotómicas, que obscurecen la fragmentación e hibridación de lo político en las relaciones de poder en juego en los conflictos ambientales. Los capítulos de este libro, en particular los capítulos de Palomino-Schalscha y de Román y Barton, nos invitan a considerar el conflicto socio-ecológico más allá de categorías binarias, demostrando el carácter inmanentemente político de estos procesos. Esto va acorde al planteamiento de los autores sobre la ecología política como una postura que “rompe con el mito de la naturaleza como fenómeno prepolítico” (50). La reflexión sobre lo político avanzada por los autores de este libro, nos ayuda a reconocer las especificidades de este fenómeno en la ideología y lógica neoliberal. Esta consideración es inevitable debido a que cualquier estudio de ecología política en Chile, un bastión del neo-liberalismo desde el comienzo de la dictadura militar en 1973, hace evidente los mecanismos particulares de esta ideología en los procesos extracción y, en menor medida, de conservación de recursos naturales en la esfera pública como privada. A diferencia de lo que pueda pensarse en un primer momento, el neoliberalismo no es simplemente la ausencia de Estado, sino que más bien se caracteriza por la reconfiguración de la gobernanza pública según modelos de lógica financiera, (y ya no la teoría política o filosofía moral) con el fin de sustentar la expansión del mercado, en este caso, de recursos y servicios naturales. A pesar del evidente énfasis de la gobernabilidad medio ambiental neoliberal en el extractivismo, el neoliberalismo en el campo ecológico (como en tantos otros) no es un fenómeno exento de contradicciones. El ejemplo más evidente es el así llamado “neoliberalismo verde”, que mediante la propiedad privada de territorios coarta el extractivismo de recursos, iniciativa que va acorde a las lógicas y expansión del mercado. Como bien señala Palomino-Schalscha en su capítulo sobre los senderos pewenche Trekaleyin en el Alto Bío-Bío, dentro de las mismas lógicas neoliberales, hay espacio para la reapropiación de estas por parte de la sociedad civil, dando espacio a la contestación con el efecto de producir espacios de “aguante”, como fue propuesto por la antropóloga Elizabeth Povinelli (2011).

Otro aspecto llamativo de este libro es la apertura de un espacio de diálogo teórico entre corrientes de pensamiento que no suelen entrar en relación. Los capítulos de este libro se inspiran tanto en los principios de la acumulación por desposesión desarrollado por David Harvey (2003) y en general por la geografía neo-marxista a las corrientes post-humanas, inspiradas en el trabajo de Donna Haraway (2008) y Bruno Latour (2008) en el estudio de la ciencia y tecnología. La relación entre estas dos corrientes permite ver cómo su conjunción es solo en apariencia contradictoria. Por un lado, un enfoque estructural nos permite ver quién produce e impone modelos epistémi-cos dominantes sobre la naturaleza; por otro lado, una perspectiva post-humanista nos invita a reconocer cómo el conocimiento en sí mismo, es un proceso de construcción ontológico donde resulta difícil plantear una clara distinción entre conocimientos científicos y sociales. Ambas posibilidades coexisten en conflictos medioambientales, como el desastre ambiental provocado por la celulosa Arauco que vio la pérdida de vida de cien Cisnes de Cuello Negro en Valdivia, presentado por Sepúlveda y Sundberg, y el desarrollo de enfermedades causada por la sobrepoblación de salmón comercial en todo el sur de Chile analizado por Bustos. El estudio de estos tipos de casos se vuelve necesario por una reflexión crítica constante sobre la cultura del experticia, como un campo de saber a -politicizado que caracteriza la producción de conocimiento y políticas públicas en Chile.

Otras dos novedades relevantes de este libro son la pro-blematización del concepto de propiedad en las disputas medioambientales y la relación entre colonialismo y ex-tractivismo en juego, en los procesos eco-políticos contemporáneos en Chile. Los capítulos de Manuel Prieto y David Tecklin, demuestran como la propiedad es una relación de poder práctica más allá de su carácter legal. De esta forma, la propiedad aparece tanto como una imposición gubernamental y como un campo político abierto a fracturas, contradicciones y resistencias. La relación entre extractivismo y colonialismo es evidente en consideración de una larga historia de expropiación de recursos naturales hacia los pueblos originarios en Chile, legitimizada, principalmente, por mecanismos legales de propiedad como el de la terra nullius. La faceta opuesta del racismo ambiental es la penetración de ideas y símbolos asociados a los pueblos indígenas en el movimiento ambientalista, un fenómeno ampliamente documentado a nivel global (Tsing 2005). A pesar del riesgo implícito de esencializar las sociedades indígenas, el conocimiento de sus nociones eco-cosmológicas pueden contribuir al problemático reconocimiento de la diversidad cultural en Chile (o más bien su falta) y al desarrollo de nuevos valores medioambientales universales, un punto planteado por Rozzi en su capítulo sobre ética biocultural.

A pesar de las contribuciones que se han hecho explícitas, hay una interrogante que inevitablemente aparece al leer el texto ¿Hasta qué punto este libro sólo aplica marcos teóricos globales, provenientes de centros de producción de conocimiento a Chile, que vendría a ser periférico a estos? De hecho, rellenar un vacío analítico en un lugar como Chile, puede parecer inicialmente como el trabajo típico de traducción de conceptos desarrollados en los centros de una particular disciplina, en este caso los departamentos de geografía en las universidades del “norte”, y la aplicación de esto a un contexto supuestamente periférico. La centralidad de la traducción entre centros y periferias del saber académico ha sido destacada en los estudios coloniales para recalcar cómo ciertos lugares son destinados a ser casos de estudio y otros centros de producción de teoría. Es innegable que en este libro hay un interés loable en presentar al lector chileno e hispano hablante, algunas de las discusiones globales contemporáneas en geografía desarrolladas principalmente en el mundo anglófono. Sin embargo, la comunicación generada entre los contribuidores de este libro, de distintos contextos académicos, demuestra implícitamente no solo lo que el estudio del caso chileno puede beneficiar en términos de comprenderse a sí mismo mediante marcos teóricos globales, sino también lo que la comunidad académica y política global puede aprender de Chile. De esta manera, algunos conceptos que han tenido su génesis en el norte vienen a desterritorializarse y a enriquecerse con otras experiencias, dialogando y modificando el modo en que aparecen en el lugar de su génesis estos mismos conceptos.

Más allá de las contribuciones y discusiones teóricas de este libro, que hemos listado anteriormente, vale volver también a lo planteado por Tom Perreault en el prefacio del libro “el conocimiento académico crítico sirve tanto para la crítica como para la acción” (9). Esta frase, estrechamente vinculada a los orígenes de la ecología política y a su relación a los movimientos sociales, deja desde un comienzo este libro como una promesa inacabada. La función crítica está cumplida con creces, ahora queda esperar a ver cómo estas ideas son capturadas y resignificadas en las luchas ambientales que se están dando en el Chile actual, para sólo de este modo pasar a la tan ansiada acción.

Referências

Latour, B. 2008. Reensamblar lo social: una introducción a la teoría del actor-red. Buenos Aires: Manantial.         [ Links ]

Harvey, D. 2003. The new imperialism. Oxford University Press.         [ Links ]

Haraway, D. J. 2008. When species meet. Vol. 224. U of Minnesota Press.         [ Links ]

Povinelli, E. A. 2011. Economies of abandonment: Social belonging and endurance in late liberalism. Durham, NC: Duke University Press.         [ Links ]

Tsing, A. L. 2005. Friction: An ethnography of global connection. Princeton University Press.         [ Links ]

Piergiorgio Di Giminiani – Programa de Antropología y CIIR (CONICYT/FONDAP/15110006), Pontificia Universidad Católica de Chile. Avenida Vicuña Mackenna 4860, Macul, Santiago ([email protected]).

Daniela Jacob – CIIR (CONICYT/FONDAP/15110006), Pontificia Universidad Católica de Chile. Avenida Vicuña Mackenna 4860, Macul, Santiago ([email protected]).

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Meio ambiente e Antropologia – WALDMAN (RMPEG-CH)

WALDMAN, Maurício. Meio ambiente e Antropologia. São Paulo: Editora SENAC, 2012. (Série Meio Ambiente, n. 6). 233 p. Resenha de: LELIS, Michelle Gomes; FERREIRA NETO, José Ambrósio. Um olhar antropológico sobre a questão ambiental. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.9, n.2, mai./ago. 2014.

O homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior, um ‘invasor de corpo’ preocupado em devorá-lo por dentro e, quem sabe, assumir de vez sua corporalidade (Waldman, 2012, p. 185).

Maurício Waldman, brasileiro, docente na Universidade de São Paulo (USP), onde leciona as disciplinas Administração dos recursos ambientais, Sociedade e meio ambiente, Ética profissional, Geografia da África negra e Introdução aos estudos africanos, é sociólogo, geógrafo e antropólogo pela USP. Possui Doutorado em Geografia Humana (2006) e Mestrado em Antropologia Social (1997), ambos pela USP. Com uma importante reflexão na área de antropologia social, escreveu “Meio ambiente e antropologia”, entre outros livros. Neste texto, seu objetivo central foi discutir as relações que conjugam a antropologia com a questão ambiental. Paralelamente a essa preocupação, outra intenção foi alinhavar as possíveis contribuições do enfoque antropológico, no sentido de aprofundar a compreensão da temática relacionada ao meio ambiente.

Na introdução, esclarece que somente a partir das três últimas décadas do século passado é que a defesa da natureza passou a inspirar crescentes manifestações, envolvendo os mais diversos segmentos sociais ao redor do mundo. Tal mobilização, explicitamente posicionando-se em favor de uma relação equilibrada com o meio ambiente, configurou-se por intermédio de um rol de reivindicações impensáveis, mesmo em passado histórico não muito distante. É nesse contexto que o autor justifica a importância da análise do meio ambiente, um tema contemporâneo e urgente de mudanças.

Como foco da sua reflexão, ele ressalta que a antropologia tem se voltado, cada vez mais abertamente, para o estudo dos processos sociais e culturais na sua acepção mais ampla, independentemente da localização no espaço ou no tempo. Na antropologia, a cultura distingue um modo de vida típico de um grupo de pessoas, fundamentado em comportamentos apreendidos e transmitidos de geração a geração, por meio da língua e do convívio social.

O primeiro capítulo do livro explana sobre a relação entre “Antropologia, questão ambiental e cultura”, trazendo algumas considerações relacionadas com as potencialidades da antropologia enquanto ciência da cultura. Waldman detalha o debate a respeito das possíveis contribuições da antropologia e sua particularidade diante das demais disciplinas. Para o autor, tanto a biologia quanto a geografia desconsideram a abordagem social e cultural, não as utilizando para analisar a questão ambiental.

O autor evidencia a proeminência dos estudos clássicos desenvolvidos no âmbito da antropologia relativamente às potencialidades da disciplina para o entendimento da questão ambiental. Ele aponta que uma grande produção teórica efetivou-se em termos do paradigma da oposição entre cultura e natureza, atentando para a postura do antropólogo.

No segundo capítulo, denominado “Cultura, mundo tradicional e meio ambiente”, a análise centra-se no homem tradicional e nas implicações do seu relacionamento com o meio natural. O autor deixa claro que, qualquer que seja o tipo de relacionamento estabelecido pela sociedade tradicional com o meio natural, este, no geral, mantém seus grandes ciclos em funcionamento. Ao contrário da sociedade contemporânea, o mundo da tradição pautou-se por uma convivência com a esfera do natural, e não pela sua exclusão.

No terceiro capítulo, “Temporalidade, modernidade e natureza”, visando sublinhar o que há de descontínuo nas duas grandes esferas da cultura humana que define como objeto da discussão – quais sejam, o mundo da tradição e o da modernidade -, o autor analisa as mudanças que o mundo contemporâneo instaurou na forma de compreensão do meio natural, assim como no relacionamento mantido com este. Isso sem perder de vista o mundo tradicional, cujo estranhamento conduz a se colocar em questão o que aparenta ser autenticamente novo.

Ele destaca que o tempo linear e progressivo, emanação de forças sociais que subentendiam os humanos e a natureza como elementos à disposição do progresso, excluiu todas as acepções sensíveis porventura existentes. Por isso mesmo, o homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior, um “invasor de corpo”, preocupado em devorá-lo por dentro e, quem sabe, assumir de vez sua corporalidade. Separado física e psiquicamente dos seus semelhantes, fica comprometido para o homem moderno qualquer vínculo duradouro e sincero do indivíduo com o coletivo e com o espaço público.

Até o quarto capítulo, “Antropologia, humanidade e questão ambiental”, o autor percorre um caminho que conduz o leitor desde os tempos mais remotos até as cintilantes metrópoles da modernidade. Nesse momento, Maurício Waldman traça alternativas, propõe enfoques e costura proposições referentes ao tema primordial. Conclui, nesta parte, que a diversidade cultural não pode estar dissociada da diversidade biológica, sendo redobrado o interesse pela perpetuação dos estilos de vida que se mantiveram regrados pela tradição.

A partir da análise construída por Waldman, ressalta-se que o conceito de cultura, além de materializar-se como um instrumental de indispensável importância para a análise das sociedades tradicionais, mantém, de igual modo, seu vigor operatório e sua eficácia na avaliação do dinamismo cultural contemporâneo. A cultura perpassa por todo um rol de comportamentos relacionados com o meio ambiente e, na ausência dessa perspectiva, necessariamente qualquer avaliação estaria prejudicada na sua fundamentação, nas suas propostas e nas suas conclusões.

Na “Conclusão”, o autor ressalta que o esforço de sua análise foi muito mais direcionado para construir uma perspectiva de avaliação, ao invés de pensar sobre formas de gestão, atividades gerais ou aplicadas da disciplina. Por outro lado, argumenta que essa opção em nada seria impeditiva da indicação de problemáticas com as quais a antropologia pode, com toda distinção possível, prontificar-se a destinar sua contribuição no que se refere à questão ambiental.

Para tanto, ao longo do texto, Waldman dialoga com diversos autores, entre eles François Laplantine (1988), “Aprender antropologia”, Edward Evans-Pritchard (1978), “Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições de um povo nilota”, e Walter Neves (1996), “Antropologia ecológica: um olhar materialista sobre as sociedades humanas”, para argumentar e refletir sobre a relação da antropologia com o meio ambiente. Ele apresenta uma abordagem educativa interdisciplinar por meio de duas áreas, meio ambiente e antropologia, transformando-as em uma antropologia ambiental, empenhada em revelar o caráter transformador do homem em sociedade diante do ambiente natural, instigado particularmente pela dimensão da cultura, da sociedade e das suas dinâmicas.

A antropologia, tendo por objetivo estudar a mais vasta gama possível da diversidade humana nos modos de vida, nas formas de organização social, nos comportamentos e nas crenças, foi levada a privilegiar a observação das sociedades que permanecem (ou que permaneceram) fora do quadro unificador, representado pela civilização técnica e científica corporificada no Ocidente moderno. Dessa forma, estudos antropológicos privilegiam permanentemente a periferia do sistema dominante.

Segundo o autor, é justamente nos marcos da modernidade que os problemas ecológicos se especificaram na sua plenitude. Dessa forma, esclarecer e discutir as perspectivas da antropologia, enquanto disciplina, para com este mesmo mundo moderno abre caminhos para evidenciar o alcance das possíveis contribuições, assim como da eficácia operacional das abordagens que agitam o interior do seu campo teórico.

A capacitação da antropologia em identificar opções diversas das que regram o mundo moderno pode, de igual modo, prontificar-se para consolidar propostas alternativas aos desafios criados ao longo do processo de expansão da civilização ocidental, entre esses evidentemente os de ordem ambiental.

Waldman discute os conceitos de cultura e de natureza, além de reforçar a importância da diferença entre etnografia e etnologia. Afirma que a antropologia cultural teve sua consolidação enormemente apoiada no paradigma da oposição entre cultura e natureza.

Outro argumento do autor é que o leque de consequências da modernidade possui rebatimentos inquestionáveis no relacionamento com o meio natural. Basicamente em razão de que, com a modernidade, o fruir do tempo se materializa a partir de uma sobreposição globalmente desarmoniosa para com o tempo da natureza, o dos homens e com todos os demais tempos sociais, entendidos como obstáculos à implantação dos ritmos e das sequências da temporalidade moderna.

O autor destaca que o conceito de meio ambiente diz respeito aos elementos habilitados a influenciarem o dinamismo social, a repercussão das intervenções culturais e o conjunto das condições que permitem o estabelecimento e a reprodução da vida humana. Assim, ele propõe a construção de uma antropologia ambiental, preocupada em identificar os vínculos indissociáveis que a crise do meio ambiente sustenta com o padrão civilizatório, que é origem da sua manifestação. Tanto no passado do homem quanto nos dias de hoje, a questão ambiental relaciona-se sumamente com um sistema de poder econômico, social, político e ideológico, não podendo ser aquilatada na sua devida extensão na ausência desses referenciais.

Este ensaio, ao mesmo tempo desafiador e aberto aos questionamentos, apresenta a importância de abordar diálogos entre duas áreas abrangentes, como meio ambiente e antropologia, reforçando a possibilidade e a necessidade do trabalho interdisciplinar, com o intuito de minimizar os problemas ambientais causados pelo homem. O autor manifesta nas entrelinhas sua esperança e expectativas de que a humanidade consiga construir um oikos comum a todas as pessoas, um mundo socialmente justo e ecologicamente responsável, no qual o homem não mais permaneça artificialmente dividido e encontre-se na sua totalidade.

Referências

EVANS-PRITCHARD, Edward E. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições de um povo nilota. São Paulo: Perspectiva, 1978. (Coleção Estudos, n. 53).         [ Links ]

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1988.         [ Links ]

NEVES, Walter. Antropologia ecológica: um olhar materialista sobre as sociedades humanas. São Paulo: Cortez, 1996. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 59).         [ Links ]

Michelle Gomes Lelis – Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

José Ambrósio Ferreira Neto – Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

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[MLPDB]

 

In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region – GARFIELD (RBH)

GARFIELD, Seth. In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region. Durham: Duke University Press, 2014. 343p. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34 n.67, jan./jun. 2014.

Nas primeiras páginas de seu livro In Search of the Amazon, Seth Garfield evoca os antigos relatos de exploradores – narrativas emocionantes de jornadas hercúleas – para apresentar sua própria empreitada de anos de investigação sobre a Amazônia. As narrativas antigas de viagens às quais o autor alude, entretanto, representavam o meio tropical por meio de identidades bem estabelecidas e contrapostas ao mundo europeu, fundando mitos e firmando preconceitos. Diferentemente, estamos agora diante de uma refinada reflexão histórica que nos incita a questionar o que sabemos sobre a Amazônia. Com ele palmilhamos – página a página – as trilhas construídas no passado por diversos atores históricos, continuamente refeitas e redirecionadas no jogo dos enfrentamentos sociais e políticos. Munido de minuciosa pesquisa documental e disposto a trilhar territórios inexplorados, Garfield desmonta armadilhas de pretensas identidades, conceitos e representações arraigadas. Demonstra como a busca bem-sucedida de uma essência da Amazônia implica a conclusão de que ela não tem essência alguma, pois é lugar historicamente produzido em intricadas relações sociais de escalas locais, regionais, nacionais e globais. Com guia tão perspicaz, torna-se uma aventura intelectual estimulante adentrar a floresta. Garfield integra a melhor estirpe de historiadores, pois, como disse Marc Bloch (s.d., p.28), “onde fareja a carne humana, sabe que ali está sua caça”.

O tema da exploração da borracha na Amazônia brasileira no período do Estado Novo conduz o livro. A despeito de referenciar continuamente os tempos áureos dessa commodity no Brasil entre 1870 e 1910, e dedicar o epílogo às representações e práticas que delineiam a Amazônia desde os anos 1970 até os dias de hoje, o foco principal concentra-se nos anos da Segunda Guerra Mundial. O contrabando de sementes da Hevea brasiliensis, a seringueira, para o sudeste da Ásia, em 1876, e o sucesso das novas plantações nas primeiras décadas do século XX estabeleceram uma competição internacional na qual o Brasil saiu derrotado: no início dos anos 1930, a Amazônia produzia menos de 1% da borracha consumida no mundo.

Entretanto, com o lançamento da Marcha para o Oeste como projeto de integração nacional por Vargas e o avanço da conquista japonesa sobre o sudeste asiático em 1941, a Amazônia emergiu como local estratégico para o fornecimento dessa matéria-prima. In Search of the Amazon concentra-se na análise política, cultural e ambiental da região, acompanhando a produção de múltiplos sentidos para a Amazônia, no entrecruzamento de práticas sociais e disputas de poder.

A Amazônia é analisada como lugar instituído na temporalidade histórica por uma miríade de sujeitos que, por sua vez, enfrentam as condições do meio físico. Para tanto, Garfield dialoga com o geógrafo David Harvey, para quem os lugares são artefatos materiais e ecológicos construídos e experimentados no seio de intricadas redes de relações sociais, repletos de significados simbólicos e representações, produtos sociais de poderes políticos e econômicos. Com Bruno Latour, o autor argumenta que a “natureza” é inseparável das representações sociais, e que a sociedade resulta também de elementos não humanos. Com Roger Chartier, considera os conflitos sociais à luz das tensões entre a inventividade de indivíduos e as condições delineadas pelas normas e convenções de seu próprio tempo. Esses horizontes precisam ser avaliados na investigação do que homens e mulheres pensaram, fizeram e expressaram.

Garfield escarafunchou arquivos em Belém, Fortaleza, Manaus, Porto Velho, Rio Branco e Rio de Janeiro, como também nos Estados Unidos. Enfrentou condições diversas de conservação, organização e acesso aos acervos, nos quais encontrou jornais da época publicados em várias cidades, boletins e revistas de serviços ligados à borracha, programas de rádio, cinejornais, trabalhos científicos de diversas áreas do conhecimento, entrevistas com migrantes nordestinos, processos criminais e civis, relatórios diversos, correspondências pessoais de homens e mulheres envolvidos na saga dos “soldados da borracha” nos anos 1940, romances sobre a Amazônia, literatura de cordel e fotografias. As imagens são pedra de toque na caprichosa edição do livro. Vinte e oito fotografias – além de figuras e mapas – privilegiam aspectos urbanos de Ma-naus e Belém, cenas de trabalho e vida cotidiana, poses de autoridades políticas e técnicos, acampamentos de migrantes. O diálogo entre as análises do autor e as imagens é extremamente rico, mesmo que o leitor permaneça curioso sobre as condições de produção de algumas fotografias.

Desde a decadência da borracha em 1910, ruínas invadiram a paisagem amazônica, com cidades fantasmagóricas, retração demográfica e um rastro de miséria e doenças tropicais. Os ideólogos do Estado Novo elegeram a Amazônia como imperativo nacional, investindo-a de muitos significados: interior a ser desenvolvido pelo Estado centralizado, fronteira a ser delimitada e protegida, terra de promissão para os migrantes nordestinos, torrão natal e metonímia da nação. Vargas visitou Manaus em 1940, discursou, lançou financiamentos para migrantes, inaugurou serviços para incrementar o comércio da borracha, o abastecimento, condições sanitárias e transporte. Mas a invenção da Amazônia não seria urdida apenas “de cima”. Contou com outros atores e interesses: elites regionais, militares, médicos e sanitaristas, engenheiros, botânicos, agrônomos, geógrafos, literatos, cordelistas e migrantes.

A despeito do caráter espasmódico das articulações entre a Amazônia e o mercado internacional, a história investigada no livro é sobretudo uma história de conexões globais. As transformações tecnológicas colocavam a borracha – isolante, flexível, resistente e impermeável – entre os materiais mais estratégicos para as nações. Em 1931, Harvey Firestone Jr. gabou-se de como as coisas feitas de borracha se haviam tornado indispensáveis para o ser humano civilizado, desde o primeiro choro do recém-nascido até a lenta marcha para o túmulo. A borracha alimentou a cultura do automóvel na sociedade norte-americana e o crescimento da aviação por todo o mundo. Presente em milhares de produtos (como luvas cirúrgicas, sapatos, preservativos e pneus), a borracha revolucionou o cotidiano dos civis e a fabricação de artefatos militares. Evitando interpretações deterministas, o autor alerta para o fato de que as inovações tecnológicas e aplicações da borracha na indústria eram produtoras e produtos das mudanças políticas, econômicas e culturais resultantes de práticas dos agentes sociais (p.55).

Quando o ataque japonês à Malásia suspendeu o fornecimento de borracha, a atenção norte-americana se voltou para a Amazônia. Delinearam-se profundas divergências entre membros do governo de Franklin D. Roosevelt. Alguns, como o empresário e político Jesse Jones, viam a Amazônia como inferno verde e inelutavelmente bárbaro: uma vez que nenhuma ação poderia transformá-la, tratava-se de explorar a borracha da forma mais prática possível. Outros, como o vice-presidente Henry Wallace, apostaram na Amazônia como terra promissora, pedra fundamental da integração interamericana, defendendo projetos de saúde, melhorias e integração social. Ao delinear a ação norte-americana na Amazônia, o autor argumenta a multiplicidade de intenções e práticas dos Estados Unidos na região – resultantes paradoxais de enfrentamentos na política interna desse país – traçando uma análise complexa e original das relações entre o Brasil e os Estados Unidos naqueles anos.

O diálogo entre os norte-americanos defensores de projetos sociais paralelos à exploração da borracha e as autoridades nacionalistas do governo Vargas foi profícuo e gerou iniciativas conjuntas de formalização do trabalho e estabelecimento de condições mínimas de higiene, saúde e alimentação. Autoridades brasileiras e representantes norte-americanos se esforçaram pela presença efetiva do Estado brasileiro na Amazônia, com ações e estratégias para formação e controle da mão de obra. Todas essas práticas eram informadas por projetos políticos críticos da mera exploração descompromissada e inconsequente, embalados tanto pelos sonhos brasileiros de construção nacional como pelas aspirações dos Estados Unidos no sentido de estabelecer conexões interamericanas sob sua égide.

Os seringueiros, por sua vez, surgem nas páginas do livro como sujeitos sociais ativos. Garfield critica sua representação recorrente como vítimas passivas, fáceis de manipular, meros joguetes de campanhas pela borracha. Relatos orais transmitidos entre gerações acenavam com histórias pessoais de enriquecimento com a borracha. Signos de masculinidade abrilhantavam a aventura de partir para a Amazônia. O caráter sazonal, móvel e independente da atividade atraía muito mais que a perspectiva do trabalho nas fazendas de café do Sudeste. A informalidade e a mobilidade combatidas pelo Estado seduziram homens em busca de trabalho e com ganas de enriquecimento. A decisão de migrar foi fruto da seca e da falta de perspectivas nos locais de origem, mas também se baseou em cálculos informados por relações de parentesco, gênero e valores culturais.

Analisando as relações entre Brasil e Estados Unidos em torno da Amazônia em termos de interesses recíprocos, o autor afasta-se das interpretações do Brasil como país subdesenvolvido e vitimado pelo Tio Sam. Nem por isso desconsidera o legado impactante das políticas norte-americanas de guerra, que acirraram a competição em torno do acesso e uso dos recursos, representações divergentes da natureza e disputas pelo exercício do poder.

In Search of the Amazon encontrou também todos os indícios do sofrimento e miséria dos trabalhadores da borracha, e das tragédias de isolamento e abandono após o final da guerra. Entretanto, mostra como os seringueiros foram capazes de se reinventar nas décadas que se seguiram. Passaram de aventureiros desavisados a populações tradicionais e detentoras de saberes, de “soldados da borracha” a ambientalistas. Obtiveram apoio internacional para suas lutas e interesses na conservação da floresta. Investiram a Amazônia de novas significações e desafios. Explorando conexões regionais, nacionais e globais da saga da borracha no período da Segunda Guerra Mundial, Garfield problematiza a natureza da região, apresenta ao seu leitor um panorama instigante da Amazônia como lugar produzido socialmente, arena contínua de conflitos e lutas no jogo da história contemporânea, cenário de controvérsias garantidas dos tempos que virão.

Referências

BLOCH, Marc. Introdução à História. 4.ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.         [ Links ]

DUARTE, Regina Horta.- Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora CNPq. reginahorta [email protected].

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Sobre a vontade na natureza

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. Tradução, prefácio e notas de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013. Resenha de: SILVA, Luan Corrêa da. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.4, n.2, p.103-111, 2013.

Gabriel Valladão Silva acaba de publicar, pela editora L&PM, a primeira tradução brasileira, e direta do alemão, do escrito Sobre a vontade na natureza, com o subtítulo Uma discussão das confirmações que a filosofia do autor obteve das ciências empíricas desde seu aparecimento, publicado pela primeira vez em 1836 e reeditado em 1854. A tradução também acompanha uma apresentação e notas do tradutor.

Passados dezessete anos desde a primeira edição de O mundo como vontade e como representação (1818), Arthur Schopenhauer quebra o silêncio e divulga neste texto aquilo que ele pensa ser, de certo modo, a “prova real” de sua doutrina, isto é, a confirmação da filosofia do Mundo oferecida pelas ciências empíricas que vinham se desenvolvendo em seu tempo. A estratégia de Schopenhauer é a de considerar os relatos de cientistas das mais diversas áreas como confirmações empíricas da sua doutrina, tendo como fio condutor “os degraus da natureza de cima para baixo”, ou seja, da complexidade das ações mais arbitrárias dos entes animais até a manifestação mais fundamental da natureza que é a gravidade. Desse modo, mais do que prestar contas da credibilidade de sua posição, o filósofo encontra uma excelente oportunidade para desenvolver a temática na qual todas as ciências empíricas encontram o seu limite, a saber, a da identidade metafísica da vontade em meio à pluralidade das suas aparições.

Com muito entusiasmo, Schopenhauer oferece conselhos aos “jovens sedentos de verdade”, dizendo-lhes para não perder tempo com a filosofia de cáte [DR] a, universitária, e, em vez disso, estudarem as obras de Kant e também as suas (Prefácio, 41). Teria sido Kant o responsável por introduzir a seriedade na filosofia, que Schopenhauer faz questão de manter em pé, uma seriedade que é expressa sobretudo na verdade fundamental e paradoxal da oposição entre mera aparição e coisa em si que, no contexto do Mundo, traduzem-se em termos de representação e vontade. Esse substrato de toda aparição e de toda natureza, a coisa em si, embora barrado pela doutrina kantiana do idealismo transcendental como absolutamente incognoscível, se corporificado em termos de vontade torna-se aqui aquilo que nos é imediatamente conhecido e confiado; que, diferentemente do que supunham os filósofos até então, não é inseparável e nem tampouco resultado da cognição, mas fundamentalmente primária a esta, podendo se manifestar sem ela, como é o caso, aliás, em grande parte dos reinos da natureza. Assim, portanto, toda a diversidade de constituição e organização da natureza, o seu maquinário, são em si e fora da aparição (da representação) absolutamente idênticas àquilo que reconhecemos em nós mesmos como vontade.

É por isso que a física, em seu sentido mais antigo grego de “physis”, deve chegar, em todas as suas ramificações, a um ponto final onde as suas explicações já não avançam mais, e este ponto é a sua fronteira com a metafísica. Diante do caráter inacessível e obscuro da metafísica, os cientistas viam-se pressupondo muitas vezes em suas explicações, intencionadamente ou não, noções tais como “força vital”, “força da natureza”, “impulso de constituição”, etc., que em última instância não querem dizer mais do que um “x”, “y” ou “z” desconhecido. Nos casos em que os cientistas foram adiante e espiaram por detrás das cortinas dessa fronteira, arriscando um passo além de simplesmente percebê-la como tal, eles experimentaram verdadeiramente um pressentimento comum ao dos filósofos da natureza, “semelhante àquele de mineradores que, escavando duas galerias a partir de dois pontos muito distantes entre si, uma em direção à outra, após ambos terem trabalhado muito tempo na escuridão subterrânea, confiando apenas na bússola e no nível, experimentam finalmente a felicidade de há muito desejada de ouvir as marteladas um do outro” (Introdução, 48).

Sobre a vontade na natureza é dividido em oito capítulos, além do Prefácio adicionado à segunda edição (1854), Introdução e a Conclusão. São eles: Fisiologia e patologia; Anatomia comparada; Fisiologia vegetal; Astronomia física; Linguística; Magnetismo animal e magia; Sinologia e Indicação à ética. Poderíamos sugerir uma divisão metodológica do escrito em duas partes: na primeira, até Astronomia física, Schopenhauer segue explicitamente o fio condutor da gradação “decrescente”, em relação às espécies da natureza, e “ascendente”, em direção às leis mais gerais, tendo como clímax as confirmações no reino inorgânico; e na segunda parte encontramos confirmações complementares, e não menos importantes, daquelas oferecidas na primeira parte, assim, o magnetismo animal aparece apropriadamente após já se ter considerado o magnetismo mineral, por exemplo.

No primeiro capítulo, Fisiologia e patologia, Schopenhauer encontra comprovações na Fisiologia e na Medicina de que na tentativa de explicar o funcionamento do organismo, seja no estado de saúde ou de doença, os cientistas eram obrigados a admitir um princípio condutor da vida, como fonte primordial das funções vitais. Jean Pierre Flourens teria demonstrado que o cérebro é a morada do arbítrio (atos da vontade motivados), mas não da vontade, e Albrecht von Haller teria avançado em comprovar que não somente as ações externas acompanhadas de consciência, mas também os processos vitais totalmente inconscientes ocorrem sob a direção do sistema nervoso: as primeiras direcionadas pelos nervos do cérebro guiando ações externas (sistema nervoso central) e os últimos, porém, sem essa mediação, guiando ações internas. Tem-se, portanto, o cérebro como morada dos motivos, e um “segundo” cérebro, o cérebro abdominal do sistema nervoso simpático, como responsável pelos estímulos internos; “o primeiro pode ser comparado ao ministério do exterior, o último, ao do interior: a vontade, porém, permanece autárquica e onipresente” (Fisiologia e patologia, 71). A verdadeira fisiologia explicaria, assim, o que há de espiritual no ser humano como produto do que nele é físico, e a verdadeira metafísica ensinaria que justamente este “eu físico” é apenas aparição de algo espiritual, a vontade.

Em Anatomia comparada Schopenhauer encontra aliados entre os zootomistas, fisiólogos e biólogos para enfrentar o argumento físico-teológico da constituição anatômica dos animais, partindo da tese de que “o caráter do querer como um todo deve estar na mesma relação para com a forma e a constituição de seu corpo que o ato singular da vontade está para a ação corporal singular que o executa” (Anatomia comparada, 83). A adequação perfeita do animal à sua forma de vida própria, como também a perfeição de sua constituição e organização, entendida como uma absoluta conformidade a fins, indicam de modo bastante evidente que aqui não agiriam forças da natureza casuais e desorientadas, mas uma vontade. Ocorre que não se pensava em uma vontade que não fosse guiada pelo conhecimento, de tal modo que presumidamente a ação da vontade tinha de ser uma ação exterior e, assim, a vontade cujo produto é o animal teria de ser externa a ele; de acordo com essa visão, o animal teria de existir na representação antes mesmo de existir em realidade, ou em si. O touro chifra porque quer chifrar e o pássaro voa porque quer voar a partir da Ideia que constitui a espécie, e cada órgão deve ser tomado como expressão de uma manifestação universal, concretizado no desejo fixo característico de cada espécie enquanto vontade para a vida (Wille zum Leben).

Descendo mais um degrau na escala dos seres, o reino vegetal recebe seu desenvolvimento em Fisiologia vegetal, cujo objetivo principal é o de mostrar como também os vegetais são movidos pela vontade, onipresente em todos os níveis, todavia visível aqui de forma muito mais lenta. As comprovações e relatos apresentados indicam que o movimento das plantas é espontâneo, isto é, dependente de um princípio interno que “acolhe imediatamente a influência de agentes externos” (Fisiologia vegetal, 114), como relata Georges Cuvier, e apenas por hesitação é que não se atribuíra sensibilidade às plantas, preferindo-se termos menos fortes tais como “nervimobilidade”. Entendida como sinônimo de manifestação da vontade, a espontaneidade evidencia também algum grau de conhecimento – e até de escolha – manifestada nas plantas como excitação; exemplos disso encontramos em espécies de trepadeiras que, obstinadas em extrair o seu alimento de outras plantas vivas, descrevem ao longo de seu crescimento um movimento circular similar àquele das minhocas, permitindo sua aproximação do alvo. A dificuldade de se reconhecer, portanto, um sentido interno para os vegetais, um “instinto vegetal”, também resulta da influência da antiga opinião de que a consciência é condição para a vontade. De fato, as plantas possuem somente algo análogo à cognição, o estímulo, mas a vontade elas possuem plenamente de forma imediata, pois esta enquanto coisa em si está em tudo o que aparece.

A coisa em si também é vontade na natureza inorgânica, e suas forças são idênticas àquilo que em nós aparece na forma do querer. Em Astronomia física, capítulo central de Sobre a vontade na natureza, a vontade é considerada a partir de seu menor grau de expressão, que conhecemos pelas leis que regem a matéria. Que a todo movimento possamos atribuir uma causa e um efeito, isto é, que haja na natureza uma identidade causal, isso pode nos ser constatado exteriormente, pelo intelecto; é apenas a sua ocasião. Mas que a condição do movimento ou ação seja interna, nisso reside todo o mistério e obscuridade, cuja compreensão só pode ser alcançada na direção contrária àquela do intelecto, ou seja: “quanto mais próximo, portanto, um lado do mundo estiver, tanto mais perderemos o outro de vista” (Astronomia física, 152). Assim, também onde a relação de causa e efeito parece nitidamente compreensível, no patamar mais inferior da natureza inorgânica, uma identidade interior permanece misteriosa; algo que é ainda mais latente quando nos elevamos até o fenômeno (Phänomen) da vida no reino orgânico, expresso na desproporção magnífica existente entre a germinação rudimentar de uma semente e a complexidade e diferenciação das inúmeras espécies vegetais, gerando a impressão de estarmos diante de “um verdadeiro milagre” (Astronomia física, 146). A resolução do enigma da vida e da existência reside, portanto, na passagem (Übergang) de uma explicação a partir de causas para a compreensão da própria vontade que, quando estabelecida pela reflexão, revela-nos o segredo para o qual a filosofia busca solução há tanto tempo, trata-se da identidade metafísica da vontade.

No breve capítulo Linguística Schopenhauer vai além do meramente linguístico, visa mostrar como que algumas expressões da linguagem ordinária e também científica vão além das aparentes metáforas e de outras figuras de linguagem, e contêm em si uma sabedoria concreta ligada à essência das coisas, como expressão mais imediata de nossos pensamentos (Linguística, 156). Já no extenso Magnetismo animal e magia, Schopenhauer encontra nas sabedorias ocultas comprovações ainda mais profundas de sua filosofia, sobretudo no magnetismo animal e nas curas simpáticas, que já vinham garantindo certo espaço nas discussões mais científicas. Se podemos definir a magia como “actio in distans” (ação à distância), ou seja, ação que não ocorre por via causal determinada mas sim por via subterrânea metafísica, então devemos supor que haja um nexo metafísico em oposição ao nexo físico dos corpos. O “sobrenatural” escapa de nossa compreensão causal, suspende o isolamento na ordem do indivíduo e amplia a ação da vontade que agora extrapola o seu limite corpóreo. Após inúmeras referências às maiores contribuições daqueles que se ocuparam do assunto, Schopenhauer conclui que o verdadeiro agente do magnetismo animal, e de toda ação mágica, é a vontade. Assim, o magnetismo animal e a magia são efetivamente como uma metafísica prática – nos termos que Francis Bacon já utilizara para designar a magia, como metafísica empírica ou experimental – são a antecipação daquilo que é desenvolvido na sua metafísica da vontade, cuja decomposição do mundo em vontade e representação serve de melhor correlato teórico.

A Sinologia, que há muito pouco vinha se desenvolvendo na Europa, já apresentava resultados e desafios que também corroboravam a filosofia de Schopenhauer. O dado mais relevante diz respeito à difusão do Budismo no oriente – considerado por Schopenhauer como a mais nobre das religiões (Sinologia, 198) – o que no mundo chinês é testemunhado pela profunda admiração a Dalai-Lama e a Teshu-Lama. A apropriação ocidental da palavra chinesa “tien” tem como correspondente mais imediato “céu”, mas em sentido figurado revela-se também em seu sentido metafísico, como o princípio supremo e todas as coisas, dentre as suas inúmeras designações, “o espírito celeste é dedutível daquilo que é a vontade da espécie humana” (Linguística, 205). E por fim, em Indicação à Ética, Schopenhauer antecipa algumas questões presentes em dois escritos publicados sob a rubrica Os dois problemas fundamentais da Ética (1841), são eles: Sobre a liberdade da vontade e Sobre o fundamento da moral. Dentre essas questões está a asseidade da vontade, isto é, a sua autodeterminação no mundo, que deve ser condição primeira de uma Ética séria, bem ancorada na metafísica. O que Schopenhauer chama de vontade é o que conhecemos em nosso próprio interior, um verdadeiro ens realissimum (ente realíssimo); a explicação do mundo não parte, assim, de um desconhecido, mas daquilo que nos é mais íntimo, apenas de uma maneira totalmente distinta de todo o resto que aparece (Indicação à Ética, 213).

Nos Suplementos ao Mundo, publicados em 1844, Schopenhauer remete ao Sobre a vontade na natureza todo o capítulo intitulado Da cognoscibilidade da coisa em si, onde ele diz:

Já em 1836 publiquei com o título “Sobre a vontade na natureza” os suplementos mais essenciais deste livro, que contém o avanço mais característico e importante da minha filosofia: a passagem [Übergang] da aparência [Erscheinung] para a coisa em si, que Kant deu por impossível (…). E isto é feito de maneira mais exaustiva e rigorosa no capítulo “Astronomia física”; de modo que não espero encontrar uma expressão mais correta e precisa do núcleo da minha filosofia, daquela estabelecida ali. Aquele que deseja conhecer a fundo e examinar com seriedade a minha filosofia deverá, antes de mais nada, remeter-se ao mencionado capítulo.

Desse modo, o cerne de Sobre a vontade na natureza é o problema da passagem (Übergang) pelo profundo abismo existente entre a aparência e a coisa em si, cuja identidade absoluta fora barrada depois de Kant ter revelado com profundidade a completa diversidade entre ambos. Porém, aquilo que conhecemos do mundo, portanto como um produto fisiológico de nosso cérebro (imbuído das formas espaço, tempo e causalidade) e que constitui o conteúdo da aparência – a representação – não pode sequer ser pensado sem que se suponha uma existência em si mesma, e não simplesmente como objeto para um sujeito, sob pena de sucumbirmos ao “egoísmo teórico” de um idealismo absoluto, em que toda realidade do mundo é diluída em um mero “fantasma subjetivo”. Assim, apenas considerando que a diferença nos seja dada na representação é que se torna possível pensar em uma identidade entre ideal e real, vontade e representação, tal qual aquela que se lê em Astronomia física. Uma identidade que, todavia, jamais pode se dar entre o representar enquanto tal e o seu em si, pois o mundo como vontade e o mundo como representação são conhecidos de formas radicalmente distintas.

O conhecimento da identidade entre vontade e suas efetivações nos é dado na consciência de si (Selbstbewusstsein), de forma quase totalmente imediata, mediada apenas pela relação própria de conhecimento (sujeito e objeto) e pela forma do tempo. Ora, se a consciência de si exige que esta se volte para o seu interior, por uma via subterrânea àquela do conhecimento das outras coisas, então é no nosso próprio corpo que encontramos a chave para a compreensão da identidade da vontade, como seu lugar privilegiado. O “milagre por excelência” consiste no reconhecimento da identidade entre sujeito do conhecer e sujeito do querer no corpo; só assim podemos induzir a partir do reconhecimento dessa identidade que, se pudéssemos também conhecer tudo o que nos aparece de fora tão imediata e intimamente, reconheceríamos a identidade entre a nossa vontade e a vontade no restante da natureza; nisso consiste o procedimento analógico, no §18 do Mundo. O corpo é a objetidade da vontade, o seu objeto mais íntimo, disso se explica também por que, na exposição de Sobre a vontade na natureza, Schopenhauer parte do ser humano, em movimento ascendente em direção às leis mais gerais da natureza inorgânica; ou seja, aplica a sua versão do método indutivo de Francis Bacon para o qual “conhecendo as coisas particulares da maneira mais perfeita possível, conheceríamos, por assim dizer, o que é a coisa em geral”.

Aquilo que Ruy de Carvalho Júnior chama de “a tese da inteligibilidade inversa”, apresentada no capítulo Astronomia física, isto é, da relação inversa entre a “explicação” do mundo como representação e da sua “compreensão” como vontade, evidencia um fato importante no contexto de todo este escrito: haverá sempre, por detrás das aparências, algo de inexplicável. E mesmo onde a relação causal for mais evidente, como no choque entre dois corpos, ainda assim permanecerá o mistério da “possibilidade da passagem do movimento”, que é incorpóreo. A incompreensibilidade do sentido mais oculto da natureza, como vontade, não se restringe, portanto, apenas aos fenômenos sobrenaturais; pelo contrário, qualquer tentativa de explicação metafísica configura-se, antes, como uma explicação do sobrenatural, metafísico e sobrenatural são, portanto, sinônimos neste contexto. A atração magnética da gravidade, o choque mecânico e a eletricidade não são mais do que a magia entendida em seu sentido mais básico.

Vale ressaltar, por fim, alguns aspectos relevantes desta tradução para as reflexões futuras, como por exemplo na tradução de “Wille zum Leben” por “vontade para a vida”, no lugar de “vontade de vida” ou “vontade de viver”; bem como na adoção lúcida da distinção entre “aparição”/”aparência” (Erscheinung) e “fenômeno” (Phänomen), este último Schopenhauer reserva o uso em quatro momentos específicos: para “fenômeno da vida” (Phänomen des Lebens), no capítulo Astronomia física (p. 145); e no capítulo Magnetismo animal e magia, referindo-se primeiro aos “fenômenos” do magnetismo animal (p. 157), lê-se em seguida “o magnetismo animal e seus fenômenos são idênticos a uma parte da magia de outrora” (p. 163), e por último para se referir à concordância, de todos os escritores citados, na magia como antecipação da sua metafísica da vontade (p. 192).

Luan Corrêa da Silva – Doutorando em Filosofia pela UFSC. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Hobbes: Natureza, história e política – VILANOVA; BARROS (FU)

VILANOVA, M.G.; BARROS, D.F. Hobbes: Natureza, história e política. São Paulo: Discurso Editorial, 2009. Resenha de: CRUZ, Michael de Souza. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.2, p.192-195, mai./ago., 2011.

Hobbes: Natureza, história e política é uma coletânea de artigos de alguns trabalhos apresentados no Colóquio Internacional (que possui o mesmo nome do livro) realizado na USP (Universidade de São Paulo), em São Paulo, em outubro de 2009. Fruto da parceria entre CAPES e MINCyT a partir dos grupos de pesquisa da UNC (Universidad de Córdoba) e USP, o colóquio foi organizado em diferentes mesas temáticas, que foram seguidas pelo livro, contando com a participação de especialistas da filosofia hobbesiana da Argentina e do Brasil. Com o objetivo maior de estimular a troca de ideias entre os pesquisadores dos dois países (divulgar diferentes linhas de pesquisa, resultados e projeções), tal colóquio teve como resultado impresso tal livro, que retrata ao leitor a grandiosidade da filosofia de Thomas Hobbes de uma maneira perspícua. Os artigos são apresentados segundo os diferentes eixos temáticos: Hobbes e a Tradição, Religião e Política, Filosofia Natural e Política e O Legado de Hobbes na Contemporaneidade.

Após a apresentação dos editores, segue o artigo de Abertura: Hobbes, recente (p. 9-19), de R.J. Ribeiro. Em seu artigo, Ribeiro pretende mostrar ao leitor a atualidade da filosofia de Hobbes a despeito do temor gerado pela sua política (em especial, o Leviatã) aos seus contemporâneos. Como filósofo, o que Hobbes faz é levar a cabo o princípio de que “conhecemos o que fazemos”, desde a geometria ao contrato social (seus maiores exemplos de saberes teórico e prático). Contudo, o autor julga que a marca distintiva da filosofia hobbesiana é justamente o seu legado político: “se dependesse de sua ciência, Hobbes seria nota de rodapé” (Ribeiro, 2009). Hobbes é essencialmente um teórico da soberania que desnudou o que há de terrível no poder: a importância central do seu próprio uso. Entretanto, há que distinguir pavor (ou temor) de medo (awe), cabendo o uso desse último no exercício da soberania no Leviatã. Manter os súditos não em uma condição aterrorizada, mas em “reverente temor”, isto é, em um sentimento que está entre o temor e a reverência, eis a originalidade e a riqueza da filosofia política hobbesiana.

Na temática Hobbes e a Tradição, temos: Hobbes, Bodin e a liberdade como problema (p. 21-32), de D.F. Barros. Nesse artigo, o autor problematiza a tese cara a alguns intérpretes da filosofia de Hobbes que afirmam que a sua teoria política é fundadora da doutrina do liberalismo político. Tal como apregoam os defensores de tal tese, a função central do soberano hobbesiano é a proteção daquilo que seria mais germinal ao pensamento liberal: vida e propriedade. Entretanto, Barros replica: como conciliar o poder ilimitado do soberano em mandar (tal como uma “máquina despótica”) com um modelo de Estado destinado a guardar e proteger os direitos naturais do indivíduo? No artigo Leviatã e Oceana (p. 33-44), E. Ostrensky defende uma tese heterodoxa acerca do Leviatã: tratava-se de um experimento constitucional, isto é, um modelo político para uma nova ordem que se fazia necessária na Inglaterra pós-guerra civil. A defesa dessa tese passa pela análise de uma tese complementar que estabelece que os méritos e limitações do Leviatã como um experimento constitucional foram apresentados nas críticas de James Harrington em sua obra Oceana. Em favor da primeira tese, a autora estabelece: (i) a obra se apresenta como projeto científico genuíno, amparado num método rigoroso; (ii) oferece-se como ortodoxia a ser adotada nas universidades e contempla subcasos de soberania absoluta (adquirida e instituída). Em favor da segunda tese, estabelece que Oceana (obra dedicada a Oliver Cromwell) é o contra-ataque republicano ao modelo absoluto desenhado por Hobbes no Leviatã, criticando-lhe a concepção de que haveria liberdade num regime monárquico e percebendo na obra hobbesiana uma receita antiquada para a solução de conflitos. Em Pasiones e imaginación: tradición y modernidad (p. 45-60), M.L.L. de Stier pretende mostrar o que a teoria das paixões de Hobbes guarda em comum e em que sentido rompe com a teoria aristotélico-escolástica. No que diz respeito à primeira perspectiva, a autora atenta para o fato de que tanto Aristóteles e a Escolástica quanto Hobbes defendem que as paixões são basicamente movimentos e afecções involuntárias vinculadas ao prazer e a dor. Acerca da perspectiva de diferenciação das teorias, Stier joga luz no conceito de vontade: enquanto que na concepção aristotélico-escolástica ela é uma faculdade ou capacidade de querer, para Hobbes ela nada mais do que um ato ou um apetite último da deliberação.

Na temática Religião e Política, temos o artigo Hobbes y los usos políticos de La Trinidad (p. 63-82), de A.J. Coldero. Coldero trata em seu artigo de uma das questões mais delicadas da filosofia de Hobbes: o papel e o lugar da religião na commonwealth. E faz isso tratando de um dos problemas teológicos mais intrincados: a trindade. Tal como já expresso pelo título do artigo, o autor afirma o caráter instrumental da leitura bíblica hobbesiana, evidenciado pela sua forma “politizante” de interpretação das escrituras. Sendo assim, o próprio problema da trindade sofrerá essa instrumentalização. Não obstante, isso não exclui o exercício hobbesiano de uma leitura própria da trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Essa análise leva, segundo o autor, a uma tensão que não teria passado despercebida da análise de Hobbes, entre duas perspectivas trinitárias: econômica (aspecto histórico e centrado na divisão das pessoas) e ontológica (que faz referência a uma unidade divina “substancial”). Além disso, acerca da disputa interpretativa estabelecida entre Edwin Curley e Aloysius Martinich, Coldero segue a linha deste último; enquanto o primeiro defende uma ironia hobbesiana ao tratar da questão política (desacreditando no dogma trinitário, mas reafirmando a teoria da personificação), o último parte do reconhecimento factual da legitimidade da doutrina da trindade à época de Hobbes. A despeito da dita instrumentalização do religioso ao político em Hobbes, M.G. Villanova, em Desobediência de motivação religiosa (p. 83-95), trata a questão da religião em Hobbes sob outra perspectiva: a religião como motivação da desobediência civil. É sabido que, paralelo ao irrestrito poder do soberano, é admitido por Hobbes o direito de resistência, isto é, à defesa da liberdade vital e corporal. Contudo, sustenta o autor, o filósofo reconheceria também o direito à proteção de “bens imateriais”, a exemplo da crença religiosa. Assim como no direito de natureza pré-cívico, o mesmo pode-se dizer quanto ao direito de resistência do cidadão na commonwealth, ou seja, continua a pertencer a ele a avaliação quanto à conveniência de quando e como resistir ao direito de punir do soberano.

Na temática Filosofia Natural e Política, temos ¿Quién obedece al Leviatán? (p. 97-109), de D.J. Rosanovich. Em seu artigo, cujo título mais esclarecedor não pode ser, Rosanovich procura estabelecer quais são os “atores políticos” que têm lugar na teoria de Hobbes. A tese central do autor é que, na contramão do que proporiam, por exemplo, Locke e Kant, Hobbes recusa aceitar atores coletivos como elementos fundadores do Estado. Nesse sentido, em vez de uma pessoa jurídica ou de um povo, Hobbes afirma que uma multidão, isto é, um conglomerado de indivíduos, é logicamente anterior ao Estado. Recusa também, por conseguinte, a ideia de um pacto bilateral entre os indivíduos e o soberano na criação do Estado. Porque o pacto é somente entre indivíduos, o soberano é alheio a ele, razão pela qual o ato de instituição da soberania não pode ser desfeito. Entretanto, do fato de Hobbes recusar a constituição de agentes supraindividuais na formação do Estado, daí não se segue que o soberano não possa constituir mecanismos que gerem condições sociais aptas a favorecer a obediência dos súditos. Talvez o artigo de C. Balzi, Descripción de un animal artificial, o ¿por qué Hobbes escribió Leviathan? (p. 111-123), seja o mais polêmico e heterodoxo do livro no que toca à interpretação do sistema filosófico de Hobbes. O autor indaga-se acerca das razões históricas e intelectuais do filósofo ter escrito o Leviatã, visto que era uma obra que não parecia estar no itinerário filosófico hobbesiano (mas sim a tradução para o inglês do De Cive). Para Balzi, a criação do conceito de representação, o quadro sinóptico das ciências, o extenso aparato teológico e a valorização da retórica não são explicações suficientes para isso. Seria, na verdade, a fundamentação do conceito de Estado a grande tarefa do Leviatã – que não fora realizada nas obras anteriores. Entretanto, ao fundamentar a sua interpretação, o autor acaba por valorizar o quadro sinóptico das ciências do capítulo IX do Leviatã, em que Hobbes estabeleceria a completa autonomia da sua Filosofia Civil em relação à sua Filosofia Primeira. Assim, o Livro I da obra não seria mais um tratado antropológico que fundamentaria a política, mas tão somente uma parte negativa (pars destruens) do Leviatã. Já em Thomas Hobbes e o argumento dominador (p. 125-141), W.B. Lisboa faz de uma dificuldade filosófica que remonta a Aristóteles e aos os medievais um convite à compreensão do sistema filosófico de Hobbes. Sabendo-se que o argumento dominador (supostamente apresentado primeiramente por Diodoro Cronos; também analisado por Aristóteles no capítulo IX do De Interpretatione) conclui que “tudo o que é possível é atualmente ou será”, isto é, estabelece um determinismo universal, Lisboa trata de apresentar a defesa hobbesiana dessa conclusão a partir das premissas do próprio sistema do filósofo. Num primeiro momento, faz uma “reconstrução ontológica” do argumento hobbesiano, estabelecendo a necessidade do passado, bem como a dicotomia necessidade e impossibilidade – sendo a noção de possibilidade reduzida à primeira. Assim, para Hobbes, todo evento futuro terá uma causa necessária. Noutro momento, o autor faz uma reconstrução “lógico-metafísica” do argumento hobbesiano. Assim como possibilidade e necessidade, também há a identificação entre causas suficientes e causas necessárias no determinismo de Hobbes. Ademais, no que toca à determinação do valor de verdade dos enunciados, o instante de tempo em que se realiza o que diz a proposição é indiferente à determinação do seu valor de verdade – sendo um problema da temporalidade e limitação do conhecimento humano e não da constituição das coisas.

Na última temática do livro, O Legado de Hobbes na Contemporaneidade, temos Leviatã secreto: Hobbes e o Serviço de Inteligência (p. 143-152), de C.R.C. Leivas. Fazendo justiça à temática em que se enquadra, o artigo de Leivas é muito original ao fazer de Hobbes um pensador de uma questão típica das relações políticas contemporâneas: o Serviço de Inteligência. Hobbes seria um dos filósofos que veriam na espionagem e no Serviço de Inteligência uma necessidade para a segurança pública; porém, a concepção hobbesiana não se esgotaria nessa necessidade imediata de subsistência do Estado moderno: ela seria, com efeito, ensejada por uma fundamentação moral estruturada pelo imperativo de segurança a saúde do povo é lei suprema (salus populi suprema Lex). Ora, a boa visão política dos Estados modernos depende de um bom êxito de seus espiões na coleta de informações sigilosas. Assim, o Leviatã possui um Sistema de Inteligência para decifrar o poder invisível de inimigos do Estado através da coleta de informações e decodificação de códigos secretos, tudo em prol do imperativo de segurança salus populi. O artigo de N. Souki, Da guerra civil de Hobbes às guerras nossas de cada dia (p. 153-167), realiza uma daquelas tarefas que se nos parecem mais pertinentes ao compreendermos a filosofia política hobbesiana: uma vez que se trata de um clássico, seu estudo só ganha sentido se fizermos dos problemas e das respostas de Hobbes nossos problemas e, por que não, nossas respostas. Apesar da pertinente advertência que nos diz que o estudo de Hobbes deve circunscrevê-lo ao seu tempo (um período de guerra civil confessional), não estamos eximidos da tarefa de ler Hobbes como um “barulho de fundo” frente às condições da realidade política atual, partindo do seu conceito de guerra civil: eis a proposta da autora. Se considerarmos, tal como faz Hobbes, a guerra não como um confronto efetivo, mas como uma disposição de entrar em confronto, seremos então, tal como admite Souki, obrigados a reconhecer esse fenômeno na atualidade.

Em suma, Hobbes: Natureza, história e política apresenta ao leitor – desde aquele imerso em pesquisas especializadas sobre o autor àquele que tem dele um conhecimento mínimo – as diversas facetas da filosofia hobbesiana iluminadas por pesquisadores argentinos e brasileiros ao longo dos últimos anos. Desse modo, esse livro não somente representa o diálogo entre as diferentes pesquisas, mas a verdadeira originalidade, complexidade, profundidade exegética e atualidade da filosofia de Thomas Hobbes.

Michael de Souza Cruz – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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The Emergence of a Scientific Culture | Stephen Gaukroger || Nature, Empire and Nation | Jorge Cañizares-Esguerra

O objetivo da presente resenha é apresentar e discutir dois livros publicados em 2006, porém de pouca repercussão no meio acadêmico brasileiro. O primeiro é The Emergence of a Scientific Culture, do historiador britânico Stephen Gaukroger, enquanto o segundo é Nature, Empire and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra, estudioso da América hispânica colonial na chamada primeira modernidade ou early modern period. A pequena recepção das duas obras não deixa de ser estranha visto serem ambos os autores já conhecidos do público brasileiro; de Stephen Gaukroger se publicou em 2000, pouco após sua edição original em língua inglesa, uma biografia intelectual de René Descartes [2] , enquanto Cañizares-Esguerra é o autor de How to write the history of the New World, livro ao qual, se não se lhe pode dar a pecha de influente, não obstante encontrou seu caminho nas bibliografias de alguns artigos e importantes estudos [3] . Ao longo do texto, contudo, não procurarei entender os dois livros aqui estudados com relação às trajetórias acadêmicas dos seus autores, e sim os lerei a partir das concepções – e, por que não, projetos – acerca da história da ciência que ambos veiculam. Apresentarei, portanto, primeiro o livro de Gaukroger, apontando algumas das problemáticas em que se envolve e algumas questões que podem ser tratadas nele, para, num segundo momento, discutir a obra de Cañizares-Esguerra e algumas reflexões que podem ser feitas a partir dele, procurando pontos de contato e distanciamentos entre os dois.

The Emergence of a Scientific Culture faz parte de um projeto maior acalentado por Stephen Gaukroger visando retraçar a “transformação dos valores cognitivos e intelectuais na era moderna”, do qual este é apenas seu primeiro livro. Com relação à história da ciência, sua proposta é perceber como a ciência passou a moldar os valores sociais, culturais, políticos e/ou morais da sociedade contemporânea, constituindo-se, ao menos em sua auto- imagem, como parte intrínseca da modernidade. Com isso, procura atender à condição que coloca de escrever uma “história conceitual e cultural da emergência de uma cultura científica no Ocidente” e, embora não problematize explicitamente o que considera ser uma “cultura científica”, ela não obstante está presente no modo como redescreve seu objeto de estudos. Desse modo,

Este estudo trata a ciência no período moderno como um tipo particular de prática cognitiva e como uma espécie particular de produto cultural, e meu objetivo é mostrar que se explorarmos as conexões entre esses dois, nós podemos aprender algo acerca das preocupações e dos valores do pensamento moderno que não poderíamos aprender de ambos separadamente (GAUKROGER, 2006, p.3) [4].

Ao perceber a ciência imbricada na cultura de sua época, o autor se coloca a questão de explicar a singularidade da Revolução Científica ocidental, contrapondo-se a outras culturas e civilizações que tiveram culturas científicas avançadas, mas não conseguiram imprimir a elas o mesmo caráter de expansão e inovação constantes tampouco conseguiram remodelar suas culturas a partir da ciência. Por isso, sua caracterização da ciência, percebe o autor, é ao mesmo tempo uma confirmação e uma refutação da conceituação oferecida por Thomas Kuhn. Seu objeto quebra com a lógica kuhniana porque apesar de se articular em torno às sucessivas mudanças de paradigmas, sempre influenciadas pela sociedade, também advoga a ruptura entre os desenvolvimentos científicos ocidentais e os dos demais lugares do mundo. Sua problemática, logo, escapa da mera escrita da história da ciência e entra no domínio das discussões acerca da modernidade, metamorfoseando seu objeto no da percepção da inter-relação entre um contínuo desenvolvimento da ciência e rupturas estruturais mais profundas, as quais explicam a singularidade da ciência ocidental. Não deixa, portanto, de se incluir no mesmo programa já perseguido pelo historiador italiano Paolo Rossi, em especial em seu Naufrágios sem espectador [5], livro que também procura correlacionar – embora sem determinar um e outro de forma causal – o desenvolvimento da ciência e o de certos aspectos da modernidade. Da mesma forma, também a obra de Frances Yates, em especial os volumes sobre Giordano Bruno e sobre o movimento rosacruz, [6] são referencias para a compreensão do projeto de Gaukroger, embora se deva destacar com relação a ambos os autores tanto a atualização dos debates nos quais se inserem por este último como também o fôlego de seu projeto, que afeta o próprio estatuto da história da ciência por dedicar igual atenção às doutrinas científicas elaboradas por suas personagens e à condição social do filósofo natural – muito embora se possa questionar se a delimitação temporal de seu livro, terminando no final do século XVII, dá conta de explicar esses desenvolvimentos decisivos ou se se trata apenas de um prelúdio para uma abordagem mais direta dessas questões [7].

O livro, dividido em cinco partes, começa sua narrativa propriamente dita em sua segunda seção, a qual trata da própria colocação em cena da filosofia natural pelo encontro da tradição cristã com a filosofia aristotélica. Nesse sentido, seu segundo capítulo descreve a solução agostiniana para o problema da interpretação do mundo na esteira do fim da Antiguidade e o desafio que representou a essa solução a introdução do aristotelismo no Ocidente. O terceiro capítulo trata do desafio à nova “amálgama” aristotélica representada pelo neoplatonismo renascentista e, por fim, o quarto capítulo aborda a transformação interior à própria filosofia natural no que toca a seus critérios de validade. Se antes a leitura do mundo tentava captar o significado religioso do que nele estava presente, as transformações na leitura das Escrituras, derivadas de desenvolvimentos na filologia, na história e no direito implicaram que a própria filosofia natural sofreria mudanças. Essas mudanças, aliadas às descobertas do Novo Mundo, abrem espaço para a inserção da experiência e da observação direta nos domínios da ciência, fazendo-a deixar de ser apenas a dedução de princípios primeiros a partir da realidade sensível. Percebe-se, nessa segunda parte de seu livro, a preocupação do autor de relacionar as transformações da ciência a mudanças maiores que acontecem no âmbito da cultura, o que lhe permite sustentar seu argumento mais recorrente, o de que ao invés de uma autonomia com relação ao mundo religioso, a ciência nascente se modela e se pensa através da própria religião.

É tendo esses problemas em vista que se articula a terceira seção do livro. Os capítulos cinco, seis e sete do livro são seus capítulos centrais porque são onde mais claramente se apresenta sua proposta de perceber a ciência como parte de uma cultura mais ampla. Dessa forma, os capítulos questionam, respectivamente, a prática da filosofia natural, seu praticante e o lugar que ele ocupa na sociedade. Quanto à primeira, o autor descreve o movimento da filosofia natural de se afirmar a partir de sua relação com a verdade para sua relação com a utilidade; quanto à segunda, demonstra como são transferidas as características do filósofo moral para o filósofo natural, isto é, para aquele que virá a ser o cientista, do qual se espera agora comportamento condizente com sua ocupação. Esse comportamento, que lhe faz ocupar o papel de sábio, é modelado pelas virtudes morais e religiosas. Por fim, quanto ao lugar do filósofo natural, ele problematiza a afirmação de que as universidades eram o ambiente mais propício a estes, reconstruindo a partir, sobretudo, do exemplo de Galileu Galilei a importância do mecenato aristocrático com relação à prática científica. Concernentes à epistemologia científica, as transformações estudadas implicam, primeiro, que a preocupação com a verdade passa a ser uma preocupação com a objetividade, ou seja, da defesa de modelos de conhecimento se passa à defesa (e ao ataque) dos procedimentos científicos; em segundo lugar, que o modelo medieval do magister de um colégio de artes universitário, o qual pensava a si mesmo livre de dogmas, podendo discutir uma mesma questão de diversas maneiras, é colocado de lado em favor de um intelectual preocupado em oferecer conhecimento útil à sociedade ou, em termos da primeira modernidade, à coroa. A ciência, portanto, estava afastada de um ideal atemporal de verdade e inserida em sua época.

A quarta parte, que ocupa a maior parte do livro, e a quinta problematizam os desenvolvimentos internos à ciência. De um lado, as relações entre os diversos modelos de explicação da natureza disponíveis no século XVII – a história natural, o mecanicismo e, por fim, a aplicação prática da matemática ao estudo da natureza –, deixando em aberto a disputa em torno à compreensão dominante do mundo. Essa inconclusão com que termina o livro – embora dependa de seu caráter de ser parte de um projeto maior – visa ressaltar a inexistência de uma teleologia guiando o desenvolvimento científico, mostrando que não existia (ainda) um ordenamento consensual de suas disciplinas. Ao mesmo tempo, mostra como todos os modelos explicativos visavam apoiar-se na religião ou em alguma concepção de conhecimento revelado para assegurarem sua posição. A quinta e última parte é, por sua vez, um breve excurso sobre as tentativas de unificar a ciência e o conhecimento no século XVII, questão candente e que também é deixada em aberto.

Mesmo que se possa pensar que por vezes Stephen Gaukroger esteja demasiadamente preso a discussões e problematizações epistemológicas, uma vez que discussões acerca de doutrinas científicas ocupam a maior parte do volume, seu livro é bem-sucedido em re- situar a emergência da ciência ou, como chama, de uma cultura científica na história ocidental; também é importante por estar atento às rupturas estruturais com as quais as continuidades culturais, num contexto amplo e de grandes transformações, se relacionam. É a partir deste ponto que se pode problematizar o livro de Jorge Cañizares-Esguerra.

O livro do historiador americano compila artigos escritos num intervalo de mais de dez anos que tocam no tema da história da ciência. Seu principal objetivo é discutir as proposições que afirmam o atraso cultural e científico da Península Ibérica e de seus impérios coloniais. Segundo o autor, o desprezo da história da ciência – e aqui se pode incluir também Gaukroger, pois embora ele afirme que seu projeto partiu de algumas leituras e comparações com o mundo ibérico, ele só o trate marginalmente em seu livro – é derivado de uma auto- narrativa do Norte da Europa com relação à Revolução Científica, que percebe no Sul da Europa apenas o atraso e que, por conseguinte, reafirma apenas as ciências que a teriam encabeçado – matemática, física, astronomia –, deixando de lado os desenvolvimentos, resultado dos impérios coloniais, que os reinos da Península Ibérica fizeram com relação à cartografia, à metalurgia, à engenharia, entre outros conhecimentos, agrupados normalmente como conhecimentos técnicos.

Dessa preocupação resulta também o seu segundo problema de pesquisa. Percebendo que os reinos ibéricos não se opunham ao conhecimento científico – embora tivessem políticas que não combinam com a percepção que hoje temos de ciência, como é o tema de seu primeiro capítulo, o qual aborda a figura do cavaleiro-cientista –, ele passa a demonstrar como esse conhecimento era ressignificado pelos sujeitos coloniais, enfatizando como as elites crioulas se apropriavam do conhecimento científico para defenderem seus privilégios e imporem uma idéia de América frente às metrópoles coloniais. Tendo isso em vista, ele enfatiza os modos pelos quais essas elites crioulas percebiam o mundo, modos os quais, em sua maior parte, enquadram-se numa concepção barroca de ciência e sociedade. Os “cientistas” crioulos participavam e reafirmavam a existência de uma coletividade social, participando de seus rituais e celebrações e, principalmente, eles também procuravam defender sua posição.

Assentado nas doutrinas neoplatônicas e herméticas, o clero crioulo constantemente buscava na natureza assinaturas escondidas e subliminares com significado patriótico. Para eles, o corpo humano, a Terra, e o cosmo eram todos “teatros” barrocos (nos quais os objetos eram reduzidos a uma linguagem de imagens) com analogias micro e macroscópicas inter-relacionadas. Todos os objetos tinham significados polissêmicos e as habilidades exegéticas do clero lhes ajudavam a descobrir sua importância subliminar, revelando um cosmos pleno de desígnios providenciais que favoreciam as colônias. (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006, p.50) [8].

E, principalmente, no capítulo seguinte, “New World, New Stars”, onde procura demonstrar a gênese do conhecimento racial nas tipologias corporais formuladas a partir do Novo Mundo. Essas tipologias – tentativas de lidar e simplificar a heterogênea realidade americana –, criadas sobretudo pelos crioulos, procuravam defender, de um lado, a primazia da América e, de outro lado, a subserviência dos indígenas a esses mesmos crioulos.

É com relação a este segundo propósito de seu livro que Jorge Cañizares-Esguerra faz suas afirmações mais contundentes e, também, controversas. Embora não se possa rejeitar sua argumentação, pode-se questionar, por exemplo, sua percepção muitas vezes simplificada dos elementos sociais presentes na América hispânica, que percebe os mesmos crioulos, peninsulares, ameríndios e negros por toda a extensão de seu território. Um segundo elemento que pode ser problematizado é a ênfase na reapropriação pelas elites coloniais do conhecimento ibérico visando à construção de uma identidade própria – o revisionismo do autor acerca das posições normalmente aceitas da história ocidental está presente também nos últimos capítulos do livro, onde tenta demonstrar a primazia pelos pintores mexicanos da pintura de paisagens (capítulo sete) e também a origem mexicana das preocupações ecológicas de Alexander von Humboldt (capítulo seis). O revisionismo, sempre bem-vindo, não é, contudo, problemático por si só, pois a argumentação de Cañizares-Esguerra é sólida e sua discussão e revisão bibliográficas bastante bem-feitas. O problema específico que pode trazer sua obra é na consideração das rupturas existentes entre um momento onde essa ciência era formulada – a primeira modernidade trabalha por Stephen Gaukroger – e o momento que lhe é o referencial para contrapor sua visão, a Revolução Científica que tomou forma em contexto e época diferentes. Ao tratar das causas pelas quais o conhecimento racial ibero-americano não deu origem ao racismo oitocentista europeu, o autor refere apenas a motivos secundários, tais como a rejeição da tradição hipocrática-galênica de medicina ou o rechaço da filosofia aristotélica. Dessa forma, Cañizares-Esguerra, ao não conseguir dar conta das transformações estruturais pelas quais passou o conhecimento científico europeu – objeto do livro de Gaukroger – e no qual, se seu argumento pretende adquirir toda a sua importância epistemológica, também o conhecimento ibérico estava inserido, acaba por reiterar a visão que pretende questionar, pois deixa intocado o construto conceitual “Revolução Científica”. Da mesma forma, o principal mérito de sua argumentação – demonstrar que, mesmo de maneiras diferentes, espanhóis peninsulares e americanos participavam do mesmo contexto intelectual – pode ser elemento a jogar contra o autor, uma vez que para sustentar seu argumento ele frequentemente subsume a identidade dessas elites crioulas no orgulho que, frisa ele, sentiam frente à incompreensão de sua realidade por aqueles que tinham a Europa como base de onde partia seu olhar. Pensando nos debates que aconteciam na Espanha bourbônica, pode-se pensar se Cañizares-Esguerra, em seu afã de desestabilizar concepções tradicionais acerca da história iberoamericana não acaba por aceitar demasiadamente fácil a imagem que essas elites crioulas fazem de si mesmas; problema candente ao se considerar as guerras de independência que se avizinham do recorte temporal que escolhe para seus estudos.

Apesar dessas críticas, a contribuição de Cañizares-Esguerra, historiador que procura sempre novas formas de abordar velhos problemas [9], é uma importante adição a uma revisão substantiva da história da ciência. Junto com Gaukroger, ambos os autores fornecem uma reestruturação importante e significativa de seu objeto, a qual certamente servirá de base para historiadores futuros.

Notas

1. Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]

2. GAUKROGER, Stephen. Descartes – Uma biografia intelectual. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. Publicado originalmente em 1997.

3. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. How to write the history of the New World. Stanford: Stanford University Press, 2001; refiro-me, por exemplo, a Esquecidos e Renascidos, de Íris Kantor, livro seminal para o estudo recente da historiografia luso-brasileira setecentista, assim como seu estudo em Júnia FERREIRA FURTADO. Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas, África. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2008.

4. “The study treats science in the modern period as a particular kind of cognitive practice, and as a particular kind of cultural product, and my aim is to show that if we explore the connections between these two, we can learn something about hte concerns and values of modern thought that we could not learn from either of them separately” (GAUKROGER, 2006: 3; todas as traduções são do autor).

5. ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador. São Paulo: UNESP, 2000; o original é de 1995.

6. YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995; The Rosacrucian Enlightenment. Nova York: Routledge, 2004; sendo os originais, respectivamente, de 1964 e 1972.

7. O que não significa que o autor reifique as diferenças através de um estudo estrutural estanque, pelo contrário. É significativa, nesse sentido, sua crítica ao que chama de “abordagem weberiana” da história da ciência, a qual, segundo ele, ao ficar apenas no âmbito da contraposição entre epistemologias de diferentes civilizações, perde de vista “o valor das dimensões extra de análises, e logo se torna evidente que precisamos ir além do que acabam sendo distinções formais oferecidas por este tipo de abordagem” (GAUKROGER, 2006: 35). Sua abordagem, dessa forma, insere-se em debates recentes acerca do estudo da história política e da história dos discursos; em especial, parece reiterar proposição de Yves-Charles Zarka, em contraposição a Quentin Skinner, para quem a necessidade de relacionar os sujeitos a seus contextos não deve deixar de lado a discussão das idéias que – no interior da história da filosofia – eles esposam. No caso de Gaukroger, a dupla ênfase nas doutrinas científicas e nas condições sociais implica que a história da ciência não pode se resolver facilmente aceitando apenas uma dessas opções e não outra. ZARKA, Yves-Charles. “Que nous importe l’histoire de la philosophie?” in ZARKA, Yves-Charles (dir.). Comment écrire l’histoire de la philosophie? Paris: PUF, 1999, pp. 19-32.

8. “Steeped in Neoplatonic and hermetic doctrines, the Creole clergy constantly searching in nature for underlying hidden signatures with patriotic significance. For them, the human body, the Earth, and the cosmos were all baroque “theaters” (in that objects were reduced to a language of images) interlocked by micro- and macroscopic analogies. All objects held polysemic meanings, and the exegetical skills of the clergy helped discover their underlying import, revealing a cosmos suffused with providential designs that favored the colonies” (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006: 50).

9. Refiro-me, por exemplo, a Puritan Conquistadors, também do autor, o qual procura demonstrar as semelhanças entre o discurso puritano de conversão dos indígenas e expansão britânica nas América com a “demonologia” indígena veiculada pelos espanhóis. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Puritan Conquistadors – Iberianizing the Atlantic, 1550-1700. Stanford: Stanford University Press, 2006.

Pedro Telles da Silveira – Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]


GAUKROGER, Stephen. The Emergence of a Scientific Culture – Science and the Shaping of Modernity, 1210-1685. Oxford: Clarendom Press/New York: Oxford University Press, 2006. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Nature, Empire and Nation – Explorations of the History of Science in the Iberian World. Stanford: Stanford University Press, 2006. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Reescrevendo a história da ciência: The Emergence of a Scientific Culture, de Stephen Gaukroger, e Nature, Empire, and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.240-247, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica | Edvânia Torres Aguiar Gomes

Este trabalho produzido originariamente sob a forma de tese em 1997 pode ser considerado de vanguarda em diversas acepções, analisando o seu conteúdo e suas advertências no plano das novidades que cercam a discussão contemporânea sobre Paisagem. Pode-se argumentar que se trata de um trabalho clássico na revisão dos conceitos mais primevos dos primeiros entendimentos sobre paisagem, desde a escola alemã, passando por alguns desdobramentos disciplinares inclusive para além da Geografia. Por outro lado, pode ser considerado crítico na perspectiva sócio-ambiental, ao se utilizar este trabalho no âmbito do urbanismo. Verifica-se o efeito denúncia que marca os embates entre o idealizado e o realizado, entre a cidade e o meio. A voz de distintos segmentos da sociedade se expressa através dos 600 questionários trabalhados, capturando as vertentes da representação da cidade no final do século passado. Através dessas falas são reveladas as idealizações e representações da cidade, podendo subsidiar o urbanismo e a gestão dos espaços públicos na metrópole recifense. Essa mescla guarda nexos marcados pelo esforço transversal, enunciando que não existe novidade na feitura das práticas e interesses – principalmente quando se trata de um mundo confeccionado colonialmente, que se busca num jogo de espelhos – e sim, que o mundo é permanentemente (re)criado. Este trabalho é uma excelente maneira de afirmar que não é por natureza que se compreendem e se estabelecem múltiplas aproximações ao objeto do saber. É preciso sentir, estar apaixonado, em conexão com referentes que historicamente constituem elos estruturadores da cidade, mas, e, principalmente, priorizar na escolha por tornar visíveis experiências vividas, na fala de seus usuários, identificando sentimentos profundos do povo na relação com trechos da cidade, para descobrir neles os elementos, mesmo confusos, que podem impulsionar relações de respeito por representações culturais fundamentais que reflitam, na paisagem, as necessidades humanas que a reproduzem. Trata-se de uma pesquisa instigante, qualitativa, e quantitativa de corte teórico e empírico, que passando pela apropriação fenomenológica, subsidiada por um rico elenco de fotografias, mapas, gráficos e gravuras conseguiu preservar a coerência entre o método de pesquisa e a apresentação da realidade estudada. A autora partindo das contribuições da geografia alemã leva-nos de passeio, pela trajetória da paisagem, aproveitando aportes de diversas disciplinas, em legados de historiadores, psicólogos, antropólogos, poetas, filósofos para analisar a composição da paisagem: o meio físico e o meio social, em estreito nexo com as percepções, o imaginário, a atividade humana constituída por atos, com os quais visa algo. A pesquisa tem como campo empírico o dilema na perspectiva das coexistências do planejador, do artista, do político, do cientista, do simples habitantes em uma cidade anfíbia, marcada por atributos da natureza e engenharia humana. As águas dos rios e dos manguezais que configuram o sítio da cidade são enfatizadas a luz desses diferentes segmentos da sociedade em suas práticas. No contemporâneo, até olhares menos atentos registram evidentes provas de agressão como negação a presença das águas na cidade, subestimando a sua morfologia genuína. Através de uma linguagem simples e dialogando com imagens, letras de músicas, poesias, o trabalho nos ajuda a entender que em função da subordinação à lógica da acumulação de riqueza, este processo de construir os espaços vividos se faz à custa de uma decadente condição da sociedade, singularizando alguns resultados que impactam os modos vida dos seus habitantes. Nesse campo, a autora dialoga com reflexões realizadas por renomados geógrafos como Josué de Castro, Milton Santos, Manoel Correia de Andrade, Rachel Caldas Lins e Jan Bitoun, bem como com poetas como Bento Teixeira, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, Chico Science, consegue ilustrar faces desses impactos no sítio urbano natural do Recife. Os historiadores, urbanistas, engenheiros pesquisados em suas obras propiciam apoio para firmar a posição da autora em suas críticas aos processos de planejamentos da cidade, com a adoção de mudanças que priorizam a técnica aplicada a demandas pseudo uníssonas, tornadas homogeneizantes na leitura de escala global. Como através de um painel, passando pelos primeiros esboços da cidade Mauricia até os dias atuais, com base nos trabalhos comparativos, Edvânia propicia uma revisão da concepção da paisagem idealizada para a cidade e refletida na estrutura do planejamento e suas práticas ao longo da história. O trabalho utiliza três eixos espaciais como referências para cotejar Recife à luz de algumas questões urbanas significativas e que dizem respeito ao cotidiano daqueles que animam a cidade do Recife. As variáveis eleitas espelham a história do presente e do futuro, revelando aproximações entre as representações das paisagens instituídas e divulgadas do Recife e as representações contidas nas falas e depoimentos de alguns usuários de seus espaços. As inquietações da autora são marcas indeléveis que saltam nas páginas deste livro realizando um arco interdisciplinar no sentido acadêmico, mas também no sentido da vivência. De um lado essas inquietações remontam as vivências cotidianas de lembranças primordiais de vida familiar percorrendo a cidade, mas também as interpelações da vida profissional na passagem como técnica em Órgãos de Planejamento Urbano Ambiental na cidade do Recife e, continuando como intelectual, no ideário Gramsciano que inspira as conexões entre intelectuais e o povo-nação. Evidencia-se, assim, a novidade do trabalho, no movimento que incorpora e o inspira, como uma importante contribuição da autora, que se tornará cada vez mais necessária para nos ajudar a recolocar na ordem do dia a agenda do meio físico e do meio ambiental nos espaços da vida urbana, numa cidade de referência histórica para a reprodução das culturas. Edvânia o manifesta nas inquietações finais: “Afinal o que é natureza? Esta pergunta aparentemente tão simples de responder não encontra eco plausível na história da confecção de Paisagens de nossas cidades. Os pilares sobre os quais foram edificados os espaços urbanos não contemplam entendimentos nítidos acerca da existência da natureza possível. No “mundo da engenharia e da técnica” ideologicamente os elementos físico-naturais são convertidos em acessórios subliminares até o surgimento de protótipos que os substituam”. A obra finaliza como se estivesse iniciando pela carga de provocações que evoca e pelas inquietações que ultrapassam a leitura e fazem vagar o pensamento. Nesse sentido, cabe concluir essa resenha retomando mais um importante atributo desse trabalho que é a forma como ele se encontra estruturado em seqüência ascendente partindo da teoria, história e a parte empírica. Dividido em blocos que podem ser lidos de forma solta, enfim degustados, o livro é uma referência sem dúvidas para aqueles que querem aprender a paisagem e apreender as paisagens e a história da cidade do Recife enquanto registro e nova metodologia.

Aura González Serna – Doutora em Serviço Social pela UFPE, (2005). Docente Pesquisadora, na direção do Grupo Território na “Universidad Pontificia Bolivarianam-UPB”. Campus de Laureles. Medellín, Colômbia. E-mail: [email protected]


GOMES, Edvânia Torres Aguiar. Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica. Recife: Massangana, 2007. Resenha de: SERNA, Aura González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p.375-378, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]

 

Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família – LAMOUNIER (RBH)

LAMOUNIER, Bolívar. Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família. São Paulo: Augurium, 2004. 431p. Resenha de: NOVINSKY, Anita Waingort. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.54 , dec. 2007.

Com uma obra que vem revolucionar a historiografia brasileira – Moinho, esmola, moeda, limão: conversa em família –, Bolívar Lamounier se lançou numa aventura histórica cujas proporções se estendem da mais profunda fantasia ao mais sério rigor científico.

Num volume de 431 páginas que lemos como se fosse o mais atraente romance, o autor mergulha no passado e fala a todos nós, leigos e historiadores, que buscam encontrar um elo entre o que somos e toda a galeria de antepassados, que não conhecemos, que viveram e lutaram antes de nós, para sobreviver com o trabalho, a caridade, o negócio, as plantas e a natureza.

Inicialmente, Lamounier partiu de um sentimento, uma curiosidade, uma curiosidade que nos preocupa a todos: quem somos? Não apenas como seres biológicos, mas como seres sociais.

Parte então fascinado pelos nomes. O que significam os nomes? E os sobrenomes? Como se formaram? Como evoluíram? Para responder a estas questões o autor penetra fundo no poço da história, vai ao Império Romano, vai à Idade Média, vai às Cruzadas. De onde veio seu nome? Buscou pistas, vasculhou o longínquo passado atravessando a realidade vivida pelos homens, suas lutas para sobreviver, suas misérias, até chegar ao grande tema político – a formação dos Estados Nacionais – e a alucinante corrida pela posse das riquezas. Mostra-nos que os apelidos e sobrenomes são derivados de ofícios, e isso é uma constante no mundo; entretanto, esse fenômeno não se verifica na onomástica brasileira durante o período colonial, talvez por causa da escravidão, talvez porque Portugal não permitia o desenvolvimento da colônia, limitada apenas a produzir para o Reino.

Os apelidos, na Europa em geral, têm origem em uma ocupação – que depois se generaliza e se transforma em sobrenome hereditário. Lamounier foi buscar seus ancestrais, longínquos, que viveram em outro universo, diferente do nosso, e caminhando através da história chega até nós – e até as fantásticas conquistas da técnica, sempre num crescendo até ancorar em Minas Gerais.

Vejamos o caminho percorrido pelo autor: partiu de quatro focos – o moinho, a esmola, a moeda e o limão. Partiu de um mundo onde a identificação das pessoas era precária e incipiente, para o mundo onde a identificação é completamente institucionalizada. Passou de um mundo ‘ignominioso’, sem nomes, ou de nomes difusos e instáveis, para o mundo atual, onde a identificação individual é minuciosa.

Apresenta-nos então o ‘moinho’ e a ‘miséria’, que era percebida como condição imutável, para em seguida chegar à ‘moeda’, quando se formam os Estados Nacionais, que controlam a fabricação e a circulação do dinheiro – e por último, nos conduz ao ‘limão’. Desses quatro focos evolui o mundo na direção do progresso.

Assim, duas visões de mundo se confrontam: uma é hostil à modernidade, nostálgica de um mundo mais simples; outra valoriza as conquistas materiais e a cultura, como caminho para uma vida humana mais feliz.

Lamounier mostra-nos o destino humano em um tempo quando tudo era desígnio divino e inexistia a idéia de progresso. A pobreza era aceita como algo natural e os reinos praticavam a caridade não para ajudar o ‘outro’, mas para salvar sua própria alma. As esmolas, escreve Lamounier, eram vistas como recibos de depósitos a serem cobrados no céu. Essa visão de mundo se manteve durante séculos.

As restrições religiosas que bloqueavam o progresso científico são quebradas no século XVIII, até que no século XX, depois da Segunda Guerra Mundial, a Igreja passa por um processo de ‘esquerdização’, principalmente na América Latina, desaguando na Teoria da Libertação.

A industrialização e a modernidade tornaram a sociedade moderna extremamente vulnerável, e o socialismo aumentou ainda mais a centralização e a burocratização do Estado. Talvez, pensa o autor, as organizações não governamentais (ONGs) possam auxiliar na direção de uma nova política social.

Afinal, parece que nos encontramos numa situação angustiante e insolúvel, numa encruzilhada sem saída. De um lado, o mundo melhorou – hoje há muito menos pobres do que há dois ou três séculos. De outro, navegamos num agitado mar de violência destrutiva. Lamounier nos confronta com esse mundo paradoxal e pergunta: qual a saída?

Do moinho, da pobreza, da esmola, Lamounier passa para a moeda – e tece a mais curiosa história sobre sua origem e progresso. Durante séculos a escassez de moedas de pequeno valor dificultava as transações básicas da vida cotidiana e entravava o desenvolvimento do comércio. A moeda é uma criação recente – e seu desenvolvimento resultou de um processo lento que só se completou em estágio bem avançado do capitalismo. Como meio universal de troca, a moeda é um fenômeno do século XIX. Surgem então os patronímicos derivados da moeda.

Em se tratando de nomes, Lamounier lembra que há um mito corrente, de que os portugueses descendentes dos judeus, os cristãos-novos, traziam nomes de frutos e árvores, como, por exemplo, os Oliveira, Lima, Pereira, Carvalho. É verdade que esses nomes aparecem também entre os cristãos-velhos e em outros países, mas o que surpreende é a constância de alguns deles entre os cristãos-novos.

Sobre a mentalidade que na época predominava entre as elites dirigentes portuguesas, Lamounier nos mostra que estava conectada com a Contra-Reforma, a Inquisição e o Absolutismo. A falsa aparência de riqueza de Portugal coexistia com o seu obscurantismo – expresso numa instituição de terror, a Inquisição, cujos efeitos sobre a economia e a alma dos homens ainda não foram devidamente analisados.

No momento em que a Europa se reformula com o Iluminismo, quando filósofos expressam e criticam o mundo, a política, a religião, d. João V – chamado de “rei freirático”, porque todas as noites ia aos conventos dormir com as freiras – esbanja o ouro brasileiro para ostentar os famosos autos-de-fé, aos quais assistia com verdadeira paixão, rodeado de toda a nobreza.

Não creio que o furor inquisitorial tenha diminuído sob d. João V. Ao contrário, foi durante seu reinado que a Inquisição agiu com maior furor, prendendo e penitenciando centenas de luso-brasileiros, tanto em Portugal como no Brasil. Só fechou suas portas em 1821, continuando porém a existir no século XX, sob o nome de “Congregação para a Doutrina da Fé”, da qual foi diretor e ideólogo o atual papa Bento XVI.

Lamounier lembra-nos um aspecto sumamente interessante de nossa vida colonial no século XVII, o mandonismo de nossos fazendeiros de açúcar, que controlavam a Câmara e desacatavam os governantes enviados da Metrópole. Quem na realidade mandava no Brasil eram os senhores de engenho, que tinham verdadeiros exércitos, e os chamados “homens bons”, que controlavam todos os setores da vida – os preços, a construção de estradas e a Câmara.

Lamounier sugere uma resposta à questão formulada por Sérgio Buarque de Holanda e que permanece sem resposta até hoje: por que o Santo Oficio da Inquisição nunca estabeleceu um Tribunal no Brasil, se o tiveram México, Cartagena e Peru?

Depois da expulsão dos holandeses e durante a crise do açúcar, Portugal se ergue economicamente com o descobrimento do ouro, e, enquanto o Brasil manda toneladas do metal para Portugal, o povo morre de fome. A metrópole não permitia a livre iniciativa, a criação de uma universidade, nem a existência da imprensa, e proibia qualquer atividade que não fosse a extração do ouro.

O quadro de Minas Gerais que Lamounier nos pinta, revela o desastre da colonização – a Inglaterra enriquecia com o nosso ouro, e Portugal comprava luxo às custas do Brasil. O que impressiona é ler sobre a violência e as crueldades da sociedade mineira – que para o autor são conseqüência do regime absolutista.

Segundo certos autores, quando o ouro acabou, a população de Ouro Preto ficou reduzida – a economia murchou, a população empobreceu, as terras das minas foram abandonadas e surgiu outro tipo de sociedade. Mas Lamounier discorda de Celso Furtado sobre a atrofia econômica de Minas depois da extinção do ouro, e analisa opiniões controversas de diversos autores.

Através da busca curiosa de si próprio, Lamounier se lança na investigação crítica da história, atravessando campos diversos das ciências humanas. Parte da singularidade para chegar ao todo. Às vezes parece esperançoso, às vezes cético.

Como evoluiu a vida material do homem, como progrediu a sociedade, com seus desastres e suas vitórias, com suas cruezas e suas generosidades – e para onde partimos?

Lamounier nos mostra os paradoxos da trajetória humana. De um lado, a luta para preservar o que já está estruturado, de outro a ânsia de mudança. Se de um lado decaímos – pois à medida que evoluímos, evolui a crueldade, a violência, a anti-ética –, de outro, materialmente, quanto progresso e quanta inovação!

Depois de percorrer o mundo, reconstituir o cotidiano, refletir sobre a violência e a crueldade dos homens, os meios de subsistência, os alimentos, a casa, o mobiliário, os costumes, os talheres, as baixelas, as políticas reais e a mentalidade, depois de nos conduzir ao moinho ao século XX, Lamounier volta às suas memórias e origens. Retorna ao século XVIII, quando vivia seu antepassado Afonso Lamounier, que aos 20 anos chega sozinho de Lisboa para a Comarca do Rio das Mortes. O que o trouxe para as Minas? Aventura, ascensão social, dinheiro? Ou talvez, quem sabe, o estigma de sua ascendência na sociedade racista de Portugal?

No Brasil, Afonso Lamounier recebe terras e sesmarias, e seu bisneto Lamounier Godofredo faz parte do primeiro Congresso Republicano. Bacharel em Direito, deputado do Império, pronuncia-se enfaticamente sobre a separação entre Estado e Igreja, sobre a liberdade de culto e liberdade de consciência; luta pelo direito do voto feminino, pela reforma salarial e pelo anti-militarismo, participando da Constituinte de 1891.

E ainda outro Lamounier, Gastão Marques Lamounier, cujo talento o levou para a carreira de músico, e o curioso Levindo Lamounier, trineto daquele primeiro jovem que chegou ao Brasil e foi viver no sertão.

É interessante que a ‘obra aberta’ de Bolívar Lamounier nos mostra diversos caminhos – e nos sugere as mais diversas idéias e considerações. A mais sugestiva que perpassa o pensamento do leitor é, talvez, a sua identificação com a Sobornost, palavra que designa os princípios fundamentais do ‘viver russo’, pelos quais cada ser humano é visto como uma singularizarão da vida de muitos.

Compreender o ser humano como a singularização de muitos, como nos ensina Gilberto Safra, significa que cada ser humano é a singularização da vida de seus ancestrais, assim como o pressentimento daqueles que ainda virão. Quando estamos frente a alguém, estamos frente à singularização dos ancestrais. Cada indivíduo é único – e é também múltiplo. Não é possível abdicar à condição humana sem pensar o homem através da história. Porque o homem não é só ser natural. É também histórico. A vida de cada um de nós só pode ser percebida na estrutura e forma da nossa própria família. Ao mesmo tempo em que o homem é filho da natureza, é fruto de seus ancestrais.

A obra de Bolívar Lamounier identifica-se com essa concepção de forma magistral. Deu-nos uma lição para repensar quem somos. Escreveu um livro sobre história do Brasil e encontrou o seu próprio lugar nessa história, compartilhando seu destino com os que estão, com os que foram e com os que virão.

Anita Waingort Novinsky – Laboratório de Estudos sobre a Intolerância – Universidade de São Paulo (USP). Av. Prof. Lineu Prestes, 159 (prédio da Casa de Cultura Japonesa, subsolo), Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, Butantã. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected]

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História & Natureza – DUARTE (VH)

DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Resenha de: ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A sabedoria vegetal. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.35, p. 240-243, jan./jun., 2006.

Retiro semelhanças de pessoas com árvores

de pessoas com rãs

de pessoas com pedras

etc etc

Retiro semelhanças de árvores comigo.

Não tenho habilidade pra clarezas.

Preciso obter sabedoria vegetal.

(BARROS, Manoel Desejar ser. In: Livro sobre nada, p. 51)

Aprendi com Manoel de Barros que a ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos. Talvez seja esse o desafio lançado para a História Ambiental, do qual o livro de Regina Horta Duarte, História & Natureza, é um belo exemplo: menos classificar e nomear e mais medir os encantos, falar dos sentidos, dos sentimentos, das imagens, que cada sociedade humana atribuiu ao que se chama de natureza. Encantos é que não falta autora, dona de olhos azuis de céu e bochechas de rosa. Ao ler seu livro, páreo estar escutando a sua voz doce e carinhosa, quase um canto de sabiá laranjeira, a dizer com simplicidade e firmeza que não concorda com tal leitura feita sobre a nossa relação com a natureza. Como sempre, fazendo uma crítica equilibrada, percuciente, atentando para o que há de pertinente em cada uma das formulações, comumente conseguindo encontrar um caminho próprio, uma forma própria de ver. Quase a escuto dizendo, sussurrando, a fórmula mágica e quase impossível de resistir, a interjeição que sempre nos faz aderir  sua posição, expressão do que seria um jeito bem mineiro de ser: “né”!

O livro é composto de três capítulos. No primeiro, Os historiadores em diálogo com seu tempo, a autora vai se dirigir aos jovens, a quem, como confessa na apresentação, seu discurso é dirigido, na tentativa de modificar a visão sobre a disciplina histórica que parece prevalecer entre eles, ou seja, a de que a história trata de coisas velhas, de trastes, de restos do passado, não tendo nada a dizer ao tempo presente. A história seria uma matéria maçante, chata, exigindo a memorização de uma montanha de eventos que não serviria para nada, que nada significariam para esta juventude que vive preocupada com o futuro e habita um mundo radicalmente distinto daquele sobre o qual a história costuma falar. Ao tomar a natureza como tema de análise histórica, ao tratar das formas como o homem pensou e praticou a natureza, como nela interferiu e com ela se constituiu, a história estaria tratando de um tema dos mais candentes do nosso tempo. A questão de nossa relação com o meio ambiente é, hoje, um problema que se coloca como prioritário para esta juventude. Ela deve procurar encontrar soluções, ou seja, inventar formas novas de se relacionar com o meio ambiente, o que implica rever as próprias concepções acerca da natureza e do homem presentes em nossa cultura. A história tem um papel importante a desempenhar neste processo de revisão de práticas e valores,  medida que pode contribuir para desnaturalizar a nossa forma de lidar com o ambiente, nos ajudando a entender como chegamos ao estado atual de degradação, de poluição e de modificação dos ecossistemas.

No segundo capítulo, Sociedade, natureza e história, a obra faz uma incursão pela história da relação entre homem e natureza, nas várias sociedades humanas, procurando deixar claro que não é apenas a sociedade moderna ou contemporânea que devastou ou devasta a natureza ou que explorou ou explora os recursos naturais, muitas vezes, acima da sua capacidade de renovação; mas que isso ocorreu desde as formas de organização mais simples dos grupos humanos, sendo esta intervenção no meio ambiente e seu poder transformador, quase sempre, relativo ao grau de desenvolvimento técnico destas sociedades. Fugindo de qualquer mirada romântica, que contamina muitas discussões e muitas práticas em torno da questão ambiental, o livro nos fala de que o homem nunca viveu em completa harmonia com a natureza, nem com a sua própria, justamente por ser um animal cultural, o que implica de saída em negar, de certa forma a natureza, inclusive a sua própria. O texto coloca-se, claramente, em oposição a certo discurso ecológico que faz dos índios, por exemplo, seres como que pertencentes  natureza, como se fossem elementos da paisagem, o que implica na animalização destes e a defesa, muitas vezes explicita, de que não devem ter acesso aos benefícios, que afinal também foram trazidos pelo processo civilizatório. Discorda, ainda, do sonho edênico de uma natureza intocada, de um retorno a uma vida natural, presente em muitos discursos ecológicos, mostrando, como, paradoxalmente, a vida natural tornou-se uma das principais mercadorias vendida, hoje, no mercado capitalista. Lendo o livro de Regina Horta, levei o susto de quem aprende algo que nunca havia parado para sequer imaginar, quando ela narra a devastação ambiental feita pelos gregos antigos ou pelo Império romano. Neste momento me perguntei como é possível que a terra e seus recursos tenham aguentado tanta devastação, por tanto tempo. Acostumado aos massacres humanos que formam a história, me dei conta, lendo este livro, de outros tantos massacres que também vieram constituir o que chamamos de história; não apenas o massacre dos gatos, tema do texto de Robert Darnton, com sua gloriosa função de forma de resistência da classe trabalhadora, mas dos pássaros, dos leões, dos ursos, das raposas, dos carvalhos, dos mognos, etc . Cheguei a me perguntar, lendo o número de animais abatidos nas arenas romanas, em uma só ocasião festiva, como ainda temos tal biodiversidade espalhada pelo planeta.

Entendemos um pouco como isso foi possível  medida que a história feita pela autora não é uma história maniqueísta, uma história feita por mocinhos e vilões, mas uma história que busca tratar o tema que se propõe a estudar com muito equilíbrio, vendo-o por vários ângulos e em toda a sua complexidade, explorando, inclusive suas ambiguidades. Aqui Regina revela um dos seus melhores traços como pessoa: ela não é uma pessoa arrogante e autoritária, e isso aparece em sua maneira de escrever a história. Ela escreve uma história que não arrota verdades definitivas, nem posições inquestionáveis. Em um outro percurso pelas várias sociedades humanas, a obra vai mostrar todas as práticas e discursos daqueles que denunciaram a devastação da natureza, que colocaram as suas vidas em defesa dos animais e das plantas. Vai mostrar, inclusive, como um fenômeno histórico, que normalmente é tratado hoje com muitas reservas, o processo de expansão comercial e política européia, foi um fator de disseminação de variedades diversas de plantas e animais, iniciando o que poderíamos chamar de processo de globalização da natureza, do qual a criação dos vários jardins botânicos e zoológicos é um fenômeno importante. Contraditoriamente, a mesma colonização que aumenta a biodiversidade por onde passa, trazendo plantas e animais que seriam a base da alimentação das novas sociedades em construção, aumenta, também, a diversidade de microrganismos letais á saúde de populações nativas que não carregam em seus corpos defesas imunológicas contra os efeitos destes vírus ou bactérias alienígenas.

No terceiro capítulo, História e História Ambiental, o livro vai contar a história da emergência da história ambiental, procurando mostrar os problemas que levaram  sua emergência, as discussões conceituais que a atravessa, as correntes em que se subdivide. Ensaia também uma sumária e incompleta arqueologia da história ambiental entre nós, onde a falta de referência ao livro Nordeste, de Gilberto Freyre, Ø uma lacuna a ser revista numa próxima edição, já que sem dúvida, mais do que os textos citados de Capistrano de Abreu, de Caio Prado Jr. e de Sérgio Buarque de Holanda, onde a abordagem ecológica está presente, mas é tangencial, o livro de Freyre Ø explicitamente estruturado em torno da relação entre homem e natureza, e se coloca como um ensaio de eco sociologia. Este capítulo mostra como a autora está a par das discussões mais contemporâneas no campo da história ambiental, sendo uma especialista reconhecida, nacional e internacionalmente, neste campo historiográfico.

O livro História & Natureza, é de leitura obrigatória, não só por seu conteúdo, pelas informações valiosas que traz acerca da história da relação entre homem e meio ambiente, ao longo do tempo, mas também por ser leitura agradável, leitura bem informada, leitura crítica e problematizadora de nosso lugar na história e na natureza. Ler este livro, mais do que saber acadêmico, me trouxe saber vegetal, que é, segundo Manoel de Barros, receber com naturalidade uma rã no talo. E ler este texto é como receber uma rã no talo, pois sua leitura provoca a sensação de choque e de desconforto, nossa sensibilidade fica eriçada, ele é um convite a gesto instintivo e necessário, sua leitura provoca surpresa e angústia. A leitura nos faz experimentar o sobressalto que provoca, em doutores formados, a escritura daquilo que, de certa forma, já sabíamos, mas possivelmente tínhamos medo de sequer dizer. Coisas que, durante muito tempo, foram imprestáveis e impensáveis para a palavra do historiador, tinham existência só coisal, agora ditas nos levam a boquiabrir. Espero que elas passem a dar germânios, depois que Regina regou a horta dos historiadores e nela fez brotar coisas que abasteciam o abandono, coisas esquecidas na terra, e que agora urgem em falar ou ser faladas. A história está aprendendo, talvez, que mais do que desencantar ela precisa encantar seus leitores e aqueles que a fazem. Talvez, com este livro aprendamos que precisamos escrever história com passarinhos fazendo poleiro na cabeça.

Durval Muniz de Albuquerque Junior – Departamento de História/ Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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