Estudos sobre a personalidade autoritária | Theodor W. Adorno

Theodor W. Adorno Imagem DW
Theodor W. Adorno | Imagem: DW

A ascensão de movimentos de extrema-direita antidemocráticos pelo mundo trouxe consigo a edição e reedição de diversos livros sobre autoritarismo. Entre esses, o clássico de Theodor W. Adorno em conjunto com outros pesquisadores, Estudos sobre a personalidade autoritária, traduzido competentemente pela primeira vez para o português em edição da Editora UNESP. Apesar de seus mais de 50 anos, a edição em português veio em boa hora: o livro é peça essencial para se compreender fenômenos que não morreram em 1945, como o fascismo e o antissemitismo. Não sem motivo foi tema de mais de “2 mil estudos sobre autoritarismo entre os anos de 1950 e 1990”1.

Estudos sobre a personalidade autoritariaUm projeto que teve início ainda durante a Guerra, com um grupo em grande parte composto por exilados, Personalidade autoritária se baseia em duas premissas básicas: o fascismo não é exclusivo da Alemanha e existem aspectos sociais e psicológicos que favorecem sua ascensão. Para realizar isso, mescla vários campos do saber. Da mesma forma que o próprio Adorno o era, este livro trafega na interdisciplinaridade, de uma forma que seu conteúdo é útil e recomendável a qualquer pesquisador interessado no pensamento da direita/extrema-direita, seja um psicanalista, um cientista político, um sociólogo, entre outros. Leia Mais

Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder | Erivaldo Fagundes Neves (R)

Desde a superação da fase ensaísta do pensamento social brasileiro e sua substituição por uma fase acadêmica, disciplinar, aumentou muito a exigência para uma síntese de história do Brasil que fosse, ao mesmo tempo, interessante para o debate público e que contemplasse a produção crescente de especialidade de áreas e sub-áreas. Conhecimento de fontes de períodos distintos da história do Brasil, especialmente colônia e império, trânsito em diferentes campos de pesquisa como história econômica, história da escravidão, história cultural, história territorial e historiografia, são atendidos por Formação social do Brasil do historiador baiano Erivaldo Fagundes Neves, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.

Neves é uma referência em campos como história agrária, história da escravidão e história regional e local dos sertões da Bahia. Mobilizando sua experiência, produziu uma interpretação da história do Brasil à partir das categorias de etnia, cultura e poder. A obra serve ao estudioso, por seu embasamento teórico e empírico, ao mesmo tempo em que interessa ao debate público pois discute hierarquias raciais, desigualdade, estrutura do Estado e persistência de instituições de privilégio. Mesclando narrativa e análise objetiva, Neves defende a tese de que o Brasil conserva do antigo regime português comportamentos e relações de poder marcadas pelo regime de mercês e privilégios, ao mesmo tempo em que possuiria uma cultura popular exuberante marcada pela diversidade e autonomia. Essa resenha do livro Formação social do Brasil descreve seu conteúdo e destaca lacunas e pontos de força.

Nos quatro primeiros capítulos, o autor trata de temas que podem ser considerados os “antecedentes” do país. Trata de história pré-colonial do Brasil, faz uma ampla revisão das teses arqueológicas sobre povoamento do Brasil, relativizando a teoria de migração via estreito de Bering e afirmando a plausibilidade da hipótese das múltiplas migrações, via África, Polinésia e Extremo Oriente, para a América, bem como das grandes migrações internas no continente sul-americano. Trata de sambaquis litorâneos, aldeias de pescadores, ceramistas e agricultores ribeirinhos no interior do país. Analisa a formação das nações indígenas no período colonial. Discute a formação de Portugal, desde a hegemonia mourisca do território, do Estado português no medievo e do contexto de tensões políticas entre estados cristãos e muçulmanos no Mediterrâneo ocidental, analisa a presença de povos roms, chamados callí na península ibérica. Debate a história dos povos africanos que tinham relação mais próxima com a história do Brasil pelas mediações do tráfico humano e do comércio. Há estatísticas do tráfico e discussão das construção das nações coloniais africanas, como banto, haussá, nagô, jeje ou mina, a serviço do colonizador ibérico.

Não faltam os temas clássicos de presença francesa e flamenga na colônia, o pacto colonial-mercantil e as resistências indígenas e quilombolas. A novidade é a incorporação de uma tendência da historiografia colonial que destaca o caráter não-linear e efêmero da conquista, recuos e resistências, especialmente nos dois primeiros séculos. Neves destaca que a história do século XVII não é só da destruição de Palmares, mas também das 37 vitórias que o quilombo obteve frente às expedições da Coroa. Há uma análise densa dos dispositivos jurídicos-políticos e socioculturais da colonização, a adaptação no transplante para a América, descrições do aparato administrativo da colonização, as instâncias judiciárias e o aparelho militar. Um dos pontos fortes do livro que enriqueceria as atuais discussões públicas sobre direitos e privilégios no país é o tratamento da economia de mercês, com privilégios e suas hierarquizações complexas no modo de organizar a república no Antigo Regime e sua transplantação. Sobre a dimensão cultural, Neves debate o Barroco como um gênero que se apropriou das inovações técnicas do Renascimento e as extrapolou para criar alegorias à partir de signos, o papel da religião na vida cultural e artística da colônia, as academias literárias surgidas no século XVIII como expressão da ilustração colonial e a completa autonomia da música, que conservou o cantochão nos templos, não desenvolveu a música de câmara europeia e promoveu uma imensa riqueza em termos de música popular de rua. Também trata dos aspectos econômicos. Para Neves, é insuficiente compreender a colônia brasileira apenas como exportadora de gêneros para o comércio mundial, mas também perceber o mercado interno. Destaca o papel da pecuária na ocupação dos sertões, da mineração do adensamento demográfico do interior e na mudança de gravidade econômica da colônia e o mito do bandeirante é analisado em sua construção no final do século XIX. O autor destaca os aspectos ideológicos dos protestos anticoloniais, o iluminismo entre os grupos sociais abastados e médios e o haitianismo dos setores subalternos, além dos aspectos políticos da transferência da corte para o Brasil em 1808.

Entre os capítulos 10 e 13, o autor trata da formação do Estado pós-independente. Aborda o papel dos poderes oligárquicos regionais, as continuidades do absolutismo português no poder moderador da constituição outorgada, a formação da burocracia, das forças armadas e de uma elite aristocrática homogênea em torno de Pedro II como estratégia de governança. Para o autor houve duas grandes tendências nas tensões políticas do país, a de centralização do poder e o federalismo das oligarquias rurais, comerciantes e mineradoras regionais. Essa dualidade foi investigada no capítulo sobre as regências, com análise da configuração política partidária do país, dos conflitos federalistas e das guerras civis generalizadas, inclusive as de recorte social e racial. Com o golpe da maioridade, Neves narra a construção da estabilidade monárquica, o reformismo que perpetuava o escravismo e o projeto de embranquecimento do país com a imigração. O segundo reinado, para Neves, é marcado por conservadorismo, resquícios do absolutismo, reformas realizadas quando havia grande pressão, manutenção da estrutura de latifúndio e das características econômicas rurais do país.

Neves analisa a exclusão da quase totalidade da população do letramento e consequentemente uma minúscula elite letrada. Oito em cada 10 brasileiros eram analfabetos no século XIX. Os alfabetizados em geral possuíam rudimentos de leitura e escrita, as quatro operações básicas de aritmética e noção de juros simples e compostos, o suficiente para assinar documentos, não possuir o estigma de analfabeto, negociar, votar, talvez ler livros religiosos, livros agrícolas e, depois de 1890, folhetos com romances em versos. Isso se refletiu em uma literatura brasileira que mimetizava estilos europeus, como o neoclassicismo, o romantismo, o simbolismo e o parnasianismo. A ruptura ocorreu com a industrialização, urbanização e formação de uma sociedade dividida em classes. Neves também trata da formação de uma identidade nacional à partir da historiografia no século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil estabeleceu uma história pátria na qual a nação se desdobrava da história colonial, com protagonismo português, sendo indígenas e africanos coadjuvantes. As expressões dessa historiografia eram von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil e os volumes de Vanhargen.

Nos capítulos 13 e 14 Neves trata da transição para a modernidade nos aspectos econômicos, políticos e urbanos. A nova infraestrutura de transportes a vapor e a crescente urbanização, especialmente em Rio de Janeiro e São Paulo, se identificavam com um modelo de civilidade que excluía os mais pobres e pretos. Neves narra a exaustão do escravismo e o colapso da monarquia, derrubada por uma parada militar, após uma longa crise política, sucedida por uma ditadura de marechais até a transição para os governos civis que representavam as oligarquias regionais mais poderosas. A república foi seguida de decepção, manifesta furiosamente em lutas sociais como as revoltas da armada, da vacina e da chibata, o tenentismo, o cangaço e os movimentos milenaristas. Trata do processo de consolidação territorial e dos tratados sobre as fronteiras do país, destacando os conflitos com Paraguai e Bolívia. A seguir, o autor discute o colapso da república oligárquica e o processo de modernização pós-revolução de 30. Além da narrativa dos principais acontecimentos que levaram ao fim do regime liberal, destacando o colapso do modelo agroexportador e a recomposição política construída à partir do declínio da hegemonia ruralista, Neves analisa as condições mais estruturais da modernidade e a sua implantação no Brasil, uma sociedade herdeira do escravismo que continuava as formas mais perversas de racismo, exclusão sócio-racial, analfabetismo generalizado e permanência das estruturas de mercê e privilégios. Em que pesem as rupturas em termos de estética, moda e expressão cultural, a moderna sociedade conservava uma série de suas características e mazelas, nos sertões e nas capitais.

No capítulo 15, Neves apresenta vários pensadores do Brasil, desde Antonil, seguido por von Martius, Vanhargen, chegando a Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manoel Bomfim, Oliveira Lima, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire. Para Neves, o Brasil se caracterizaria por sua alegria, sociabilidade e generosidade, com aspectos do burlesco, do chistoso e do manhoso. Manifestos por uma minoria, haveria a astúcia, a vadiagem e a ilicitude, já destacadas por intérpretes do país como uma das características do brasileiro, mas segundo Neves, seriam aspectos marginais da população e expressão de suas estruturas perversas de concentração de terra, propriedade e poder. A escravidão, o genocídio, o latifúndio, a política baseada na mercê e nos privilégios, característica do antigo regime ibérico, teriam engendrado estruturas que persistem na organização do país. A história brasileira se caracterizaria, assim, por tendências opostas, como o centralismo e o federalismo, o latifúndio e a minifundização da propriedade, a opressão na forma de escravismo, jaguncismo, coronelismo e políticas excludentes dos oligarcas e a adaptação, burla, resistência e revolta permanentes.

Formação Social do Brasil mescla análise estrutural de longa duração, com destaque para aspectos econômicos, étnicos e políticos, mas há momentos narrativos, especialmente após a independência. O recorte cronológico vai até a revolução de 30. A ditadura civil-militar de 1964 está ausente, mas é tentador para o leitor pensar o período recente da história do país à partir das teses do autor de persistência de elementos do antigo regime na modernidade brasileira, como o sistema de mercês e privilégios e as reformas feitas sob pressão por regimes autocráticos. Algumas lacunas são as lutas sociais do movimento operário, já com destaque nas cidades nos anos 1910, e o banditismo rural, exceto por um tratamento mais atencioso ao cangaço. Como ficam os conflitos armados do império e da república de grande escala, como os que envolveram Militão Plácido da França Antunes nos anos 1840 e Horácio de Matos nos anos 1910, ainda ausentes em livros síntese de história do Brasil, dentro das das teses do autor sobre oligarquias fardadas? Formação é mais um livro de história econômica do que de história social, trata mais de estrutura que de conflito, embora destaque que a tensão e a revolta são permanentes.

O leitor que desejar conhecer com mais vagar os aspectos étnicos da formação do povo brasileiro, encontrará uma material amplo que trata de Portugal, África e América, pré-colonial e colonial, que permite uma visão panorâmica dos povos que formaram o Brasil. Além da diversidade étnica de indígenas e africanos traficados para a América, há destaque à diversidade étnica de Portugal, onde mouros, judeus e ciganos faziam parte da população que atravessou o Atlântico.

Uma última observação é que sua estruturação em capítulos pode ser desmontada e remontada. É possível fazer a leitura dos capítulos sobre etnia ou sobre economia, como também há capítulos de temas de cultura ou de política. Outras ordens podem ser feitas pelo leitor, sem prejuízo de sentido, devido à riqueza bibliográfica com qual cada tópico é construído. Nesse sentido, a profusão da bibliografia pode servir de guia de leituras para entender o Brasil. Em outros sentidos, o livro oferece ao leitor bastante autonomia, já que ele pode usá-lo como guia de leituras de aprofundamento, graças à bibliografia ampla e como cardápio de hipóteses extraídas do período colonial, imperial e primo-republicano para pensar questões recentes do país.

A novidade do livro é a proposta de uma história das estruturas econômicas e políticas do país que, não sendo concentrada no sudeste, seja territorialista. As obras escritas por Neves sobre os sertões baianos, tendo por objeto a conquista, o escravismo, a estrutura fundiária, a rede comercial e a cultura, permitiram que ele diferenciasse o território da sociedade, tentação em que caem muitos dos historiadores que pretendem se afastar de uma história dos centros administrativos do litoral. Não há “um sertão do Brasil”, mas sociedades, economias e oligarquias sertanejas, fundamentais para a estruturação do Estado e das hierarquias, políticas, sociais e raciais. Num momento em que a regionalização apressada vem ganhando espaço nas análises sobre política do país, onde abundam expressões como “o eleitor nordestino”, o “o voto dos grotões”, a “divisão regional”, é valiosa uma obra que não reifica o sertão, ao mesmo tempo em que não cai no caminho mais óbvio da historiografia brasileira de síntese que pensa o Brasil, para além de seus centros urbanos de expressão econômica ou administrativa, como território.

Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás e professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761.


NEVES, Erivaldo Fagundes. Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A persistência do privilégio: uma história das estruturas e das hierarquias do Brasil. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.508-513, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Crítica da Razão Negra | Achille Mbembe (R)

O camaronês Achille Mbembe obteve seu doutorado na Universidade de Sorbonne em 1989 e posteriormente obteve o DEA em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Atua como professor e pesquisador de História e Política no Instituto Wits para Pesquisa Social e Econômica em Joanesburgo, África do Sul, e no Departamento de Estudos Românticos do Instituto de Humanidades Franklin, Duke University. Ele também ocupou cargos na Columbia University, Berkeley, Yale University, na University of California e Harvard.

As obras de Mbembe publicadas no Brasil são: Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada (2019); Necropolítica (2018); Crítica da Razão Negra (2018) e Políticas da Inimizade (2017). A sua produção acadêmica ganhou destaque no campo de estudos pós-coloniais e contribuiu para a abertura de uma nova discussão epistemológica sobre a categoria negro.

Para além de sistematizar conceitos e categorias interpretativas, os estudos pós-coloniais, mas recentemente a decolonialidade, consiste também numa prática de oposição e intervenção contra os desígnios imperialistas. Esse projeto é aquele que, ao identificar a relação antagônica entre colonizador e colonizado, busca denunciar as diferentes formas de dominação e opressão dos povos.

De acordo com o antropólogo venezuelano Fernando Coronil1, é possível afirmar que o pós-colonialismo como termo apareceu nas discussões sobre a decolonização2 de colônias africanas e asiáticas depois da Segunda Guerra Mundial, tendo sido produzido, principalmente, por intelectuais do Terceiro Mundo que estavam radicados nos departamentos de estudos culturais, de língua inglesa, antropologia das universidades inglesas e posteriormente das universidades norte-americanas.

A professora Larissa Rosevics explica que a maior parte das pesquisas pós-coloniais seguiu a trajetória dos estudos literários e culturais, através da crítica a modernidade eurocentrada, da análise da construção discursiva e representacional do ocidente e do oriente, e das suas consequências para a construção das identidades pós-independência.

A preocupação dos estudos pós-coloniais esteve centrada nas décadas de 1970 e 1980 em entender como o mundo colonizado é construído discursivamente a partir do olhar do colonizador, e como o colonizado se constrói tendo por base o discurso do colonizador.3

Achille Mbembe considera urgente debater a razão negra e retomar o diálogo sobre o conjunto de disputas acerca das regras de definição do negro e da problemática da raça. Para o autor, não há colonialismo que não esteja vinculado a uma forte dose de racismo estrutural. Nesse sentido, interessa compreender que, como consequência direta desta lógica dominante, o negro e a raça viraram sinônimos no imaginário das sociedades europeias.

Seguindo o pensamento do psiquiatra martiniquense Frantz Fanon, Mbembe declara que a ideia de raça começa a ser construída a partir da modernidade burguesa com processos de colonização da América e o tráfico de pessoas escravizadas e arrancadas do continente africano. Essa construção da raça se consolida no século XIX, com a hegemonia do capitalismo, e está vigente com algumas transformações na contemporaneidade.

Fanon compreende que a ideia de raça esteve como uma das formas de legitimação das relações de poder e o racismo como um elemento que tem consequência direta na destruição dos valores culturais do grupo colonizado. O autor acredita na necessidade de destruir o signo do negro e do branco para construir uma sociedade onde a cor da pele, o fenótipo, não constituí marcador social estruturante das relações sociais.4

Entretanto, Mbembe tenta renovar e reinterpretar nossa compreensão de poder e subjetividade na África contemporânea e subverter alguns pressupostos dos estudos pós-coloniais. Ele afirma que a África não é mais a colônia que Frantz Fanon descreveu em sua obra Os condenados da Terra. O objetivo do seu trabalho é construir uma forma mais dinâmica de pensar que leve em consideração as complexidades dos povos africanos que emergiram recentemente da experiência da colonização e da violência.

Seguindo a linha de outros pensadores pós-coloniais, Mbembe dialoga com a o conceito de Négritude, de Aimé Césaire5 e de Movimento Pan-Africano de Marcus Garvey. Contudo, o autor acredita que, assim como Frantz Fanon, esses intelectuais resgatam o negro da subalternidade dando-lhe uma identidade própria, mas continuam a manter a raça enquanto conceito diferenciador.

Debater a razão negra é, portanto, retomar o conjunto de disputas acerca das regras de definição do negro na contemporaneidade. Para o historiador indiano Sanjay Seth, a própria ideia de razão se constituiu, em parte, por meio de uma série de exclusões. Assim como a modernidade europeia se consagrou como o futuro de todos, também as tradições intelectuais não-europeias se tornaram antecipações inferiores da Razão universal. O autor argumenta que:

Pluralizar a razão não significa abandonar o raciocínio; negar que existe um ponto arquimédico, a partir do qual é possível exercer a crítica, não é defender o fim da crítica. Mas é, sim, defender uma reconsideração daquilo que pensamos estar fazendo quando redescrevemos o(s) passado(s) dos povos em termos que lhes são alheios. Se o que existe é não a Razão, e sim tradições de raciocínio; não a História e suas representações na escrita da história, e sim muitos passados re-presentados de muitas formas, então não podemos escrever com qualquer presunção de privilégio epistêmico.6

Em defesa à razão negra, Mbembe demonstra a ligação que existe entre a razão kantiana e os conceitos de modernidade e de colonialidade. O autor declara que a razão universal supõe a existência de um sujeito igual, cuja universalidade é incorporada pela sua humanidade. Encontramos o mesmo projeto de universalização na colonização. Esta apresenta-se, pelo menos no plano retórico, como resultado do Iluminismo. Assim, segundo Mbembe, os negros tinham desenvolvido concepções da sociedade que não contribuíam para o poder dessa invenção da razão universal.

É também a razão que faz com que, desde o início, o discurso sobre a identidade negra esteja cativo de uma tensão, da qual tem ainda dificuldade de libertar-se. Daí o autor questionar se o negro faria parte da identidade humana em geral ou deveria antes, em nome da diferença e da singularidade, insistir na possibilidade de figuras culturais diversas de uma mesma humanidade, figuras culturais de vocação não autossuficiente, e cujo destino final é universal.

A formação das identidades africanas contemporâneas não se faz de todo em referência a um passado vivido como um destino lançado, mas a partir da capacidade de colocar o passado entre parênteses, condição de abertura ao presente e à vida em curso. Ao levar em consideração esse conceito, Mbembe menciona a identidade em devir, que se alimenta simultaneamente de diferenças entre os Negros, tanto do ponto de vista étnico, geográfico, como linguístico, e de tradições herdeiras do encontro com Todo o Mundo.

Dessa maneira, a identidade em devir é um processo dinâmico, contínuo e inacabado. Achille Mbembe refere-se a um “devir-negro do mundo”, em que toda a Humanidade subalterna corre o risco de se tornar negra, e em que as desigualdades em que todo o processo assenta correm o risco de se disseminarem rapidamente. O autor amplia a categoria de negro a uma condição universal a que todos estarão sujeitos pelo fato do neoliberalismo,7 na sequência dos novos modelos de exploração que o caracterizam, olhar para todos enquanto negros, com a consequente ideia de submissão associada.

Essa identidade não é fruto da consciência individual. Ela é uma relação social estruturante que transcende o nível do indivíduo. É construída historicamente e concretamente. A identidade parece construir-se no cruzamento entre este ritual de enraizamento e o ritmo de afastamento, na constante passagem do espacial ao temporal e do imaginário ao órfico. O segundo revela uma prática de fronteira determinante entre as identidades itinerantes, de circulação.

Historicamente, Mbembe menciona que a ligação ao território e ao solo em África sempre dependeu do contexto. Em alguns casos, as entidades políticas tinham como delimitação não as fronteiras, no sentido clássico do termo, mas uma imbricação de espaços múltiplos, constantemente feitos, desfeitos e refeitos tanto pelas guerras e conquistas como devido à mobilidade de bens e pessoas.

Escalas muito complexas permitem estabelecer correspondências produtivas entre as pessoas e as coisas, podendo ser convertidas umas nas outras, como aconteceu durante o tráfico de escravos. Poderíamos dizer que, operando por empurrões, destacamentos e cisões, a territorialidade pré-colonial é uma territorialidade itinerante. Da mesma maneira, esta era uma das modalidades de constituição de identidades.

Tudo começa, para Mbembe, por um ato de identificação: «Eu sou um negro». O ato de identificação constitui a resposta a uma pergunta que se faz: «Quem sou eu, portanto?»; ou que nos é feita: «Quem são vocês?». No segundo caso, trata-se de uma resposta a uma intimidação. Trata-se, em ambos os casos, de revelar a sua identidade, de a tornar pública. Mas revelar a sua identidade é também reconhecer- se, é saber quem se é e dizê-lo ou, melhor, proclamá-lo, ou também dizê-lo a si mesmo. O ato de identificação é igualmente uma afirmação de existência. «Eu sou» significa, desde logo, eu existo.

A própria raça é entendida como um conjunto de propriedades fisiológicas visíveis e de características morais discerníveis em Crítica da Razão Negra. São estas propriedades e características que, pensa-se, distinguem as espécies humanas entre si. As propriedades fisiológicas e as características morais permitem, por outro lado, classificar as espécies dentro de uma hierarquia na qual os efeitos da violência são ao mesmo tempo políticos e culturais. É esta negação de humanidade (ou este estatuto de inferioridade) que obriga o discurso dos Negros a inscrever-se, desde as suas origens, numa tautologia: também somos seres humanos.

Notas

1 CORONIL, Fernando. Elephants in the Americas? Latin American pós-colonial studies and global decolinization. In: MORAÑA, Mabel; DUSSEL, Enrique; JÁUREGUI, Carlos (Eds.). Coloniality at large: latin american and poscolonial debate, p. 396-416. Durhan; London: Duke University Press, 2008.

2 O uso do termo “decolonial” ao invés de “descolonial” é uma indicação de Walter Mignolo para diferenciar os propósitos do Grupo Modernidade/Colonialidade e da luta por descolonização do pós-Guerra Fria, bem como dos estudos pós-coloniais asiáticos. Cf.: MIGNOLO, Walter. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento: lógicas de la colonialidad y poscolonialidad imperial. Tabula Rasa, n.3, 2005, pp.47-72.

3 ROSEVICS, Larissa. Do pós-colonial à decolonialidade. In: CARVALHO, Glauber. ROSEVICS, Larissa (Orgs.). Diálogos internacionais: reflexões críticas do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Perse, 2017.

4 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

5 CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978.

6 SETH, Sanjay. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva? História da Historiografia, Ouro Preto, no. 11, abril 2013, p. 173-189.

7 Por neoliberalismo o autor entende como uma fase da história da Humanidade dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais. O neoliberalismo é a época ao longo da qual o tempo (curto) se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro. Tendo o capital atingido o seu ponto de fuga máximo, desencadeou-se um movimento de escalada. O neoliberalismo baseia-se na visão segundo a qual «todos os acontecimentos e todas as situações do mundo vivo (podem) deter um valor no mercado.

Ana Luiza Rios Martins – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora do curso de Licenciatura em História da Universidade Aberta do Brasil/ Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2627-5144


MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018. Resenha de: MARTINS, Ana Luiza Rios. Crítica da razão negra e a introdução ao pensamento decolonial. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.514-518, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz (R)

É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política da qual atravessamos, reveste o livro de importância, independentemente da relativa superficialidade com que aborda o tema. Tal superficialidade, no entanto, não deve ser encarada apenas como uma fragilidade argumentativa. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a escalada do autoritarismo bolsonarista, era urgente que algum historiador propusesse algumas respostas que dessem conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu público especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, sem, é claro, perder as especificidades da disciplina.

Uma importante reflexão do livro, quase chave explicativa para entendermos o principal público a que se destina a obra, trata-se de uma reflexão onde a autora encaminha uma diferenciação entre história e memória. Neste caso, a história seria um procedimento inconcluso, plural, composto em diversos debates, “incompreensões e lacunas”. Já a memória, um procedimento individual de atualização do passado no presente, uma produção. Se recupera “o presente do passado”, fazendo com que o passado também vire presente. Nesse sentido, o que pretende a autora é lembrar, ou seja, repensar o presente sob os auspícios do passado, ou seja, sem esquecê-lo, projetando ao mesmo tempo o futuro. Dessa maneira ela entende que não há como dominar totalmente o passado e que sua contribuição jamais se propõe a fazê-lo, se distanciando, agora, da história pois essa seria composta de uma diversidade de debates sem os quais ela pretende realizar. Com isso, podemos entrever que a obra busca uma maior amplitude de público que não somente o especializado, pois não se dedica a fazer história, mas, como bem quer a autora, a produzir memória, sendo esta produção, por fim, uma atitude individual, capaz de ser realizada por todos

Segundo nos conta sua introdução, um dos objetivos da obra é justamente tentar acalmar os ânimos daqueles que não encontram respostas para o crescimento acelerado da violência e da intolerância, questões que acompanham o Brasil da atualidade. Para tanto, a autora convida esse leitor a uma viagem pela História do Brasil, entendendo as bases de nossa desigualdade e conflito, o terreno fértil aos arranjos autoritários que acompanham a nossa política. Por completude, entende-se que esses regimes forjam sua legitimidade na construção narrativa da harmonia e paz social, mas funcionam de maneira a conservar suas práticas centralizadoras e segregacionistas.

É consenso que a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência é um momento inaugural na terceira república, rompendo o quadro democrático proposto na constituição de 1988. Para tanto, diz Schwarcz que essa ruptura foi orientada através de batalhas retóricas em torno de novas narrativas históricas, construindo uma verdadeira batalha entre modelos autênticos e falsos, causa e consequência da divisão política do Brasil atual.

Nessa batalha retórica, um dos argumentos encontrados na tradição autoritária brasileira é a constante reafirmação de um mito nacional, no qual lê-se o Brasil como um território onde os problemas nacionais são encarados de maneira harmoniosa e positiva. Esse argumento se estabelece numa leitura continuada da história do Brasil. Segundo a autora, o ponto original dessa elaboração é o naturalista Von Martius, um dos fundadores do IHGB, segundo ela o primeiro responsável por estabelecer a “metáfora das três raças”.

Na concepção da autora, a batalha retórica se materializa na prática governamental da seguinte maneira. O Estado, grande articulador da convivência social, busca sua própria versão da História, promovendo determinados acontecimentos político-militares e “suavizando” problemas que tem raízes históricas e que estão fincados no presente. Essa “história única” postulada pela retórica governamental de caráter autoritário, busca sobretudo naturalizar “estruturas de mando e obediência”, sem poupar esforços para exercer seu controle e violência institucional, abandonando, na prática e de certo modo, a leitura harmoniosa que embala a sua construção mítica.

Em sua viagem pela história do Brasil, na tentativa de estabelecer as bases onde se assentam a tradição autoritária brasileira, a autora começa pelo tópico “Escravidão e Racismo”. O argumento histórico é que a escravidão é uma instituição colonial aprofundada no Império e persistente na República, sendo “o racismo filho da liberdade”, pois perdura na organização social da contemporaneidade brasileira, uma vez que a população negra é a mais vitimizada do país. Outro ponto importante no trato do capítulo é a discussão que aponta para o vínculo dos projetos autoritários com a prática que remete ao legado colonial, onde tenta-se sistematicamente “recriar e obscurecer” o papel e a história das populações não europeias.

Dando sequência às temáticas, a autora propõe a investigação do “Mandonismo”, uma estrutura herdada da tradição colonial “assenhoriada” e aprofundada na sua forma coronelista. Para mim, esse é o principal ponto no qual gravita a tradição autoritária brasileira. Primeiro para entendermosas bases do mandonismo, é importante percebermos que segundo a autora, nossa aristocracia colonial foi meritória e não hereditária, onde o reconhecimento do privilégio era individual e tido como um favor do Estado. Nesse sentido, recorre a um importante argumento de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, qual seja, o uso de diminutivos e apelidos utilizadospelos subordinados para se direcionar a seu senhor, sendo uma maneira de confundir o público e o privado, ou melhor, uma prática que, ao aproximar as hierarquias distintas, confunde a dominação.

O terceiro tópico é o “Patrimonialismo” e este é mais uma vez apresentado segundo sua base colonialista. Desde o início da ocupação, os colonos centralizavam uma série de funções administrativas e de autoridade pública – marca administrativa da colônia brasileira. Nesse meio, cabe uma crítica na maneira com que a autora discute o conceito de patrimonialismo. Ela afirma que a prática atravessa diversos grupos ou estratos sociais e que está ligada ao sentido geral da propriedade. Porém, cabe discutir se no uso do conceito não seria melhor trabalha-lo a partir da perspectiva que entende o Estado como instrumento de uma classe, sendo mais eficiente para entendermos a tradição autoritária do Estado brasileiro.

Ao desembocar no tópico da Corrupção, me permitam uma pergunta com a qual indaguei a autora durante a leitura de seu livro. A corrupção é cultural ou estrutural? Nas suas análises Lilia Schwarcz aposta na tese da continuidade histórica e afirma ser a corrupção uma herança dos tempos coloniais, ao meu ver, portanto, estrutural. Num esforço de origem, ela retoma um relato fundante de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, onde o escrivão chega a apelar ao então rei português que facilite a vida de seu genro. Contudo, ao final, é apresentada a ideia, como encerramento da reflexão, de que a corrupção, nas palavras da autora, constitui um problema endêmico do Brasil, parte do caráter brasileiro e, portanto, fincada na cultura nacional. Ao menos assume não ser impossível de ser erradicada, sendo o grande desafio da atual República.

Ao se referir às práticas de corrupção no Império, é citado um dito popular utilizado para exemplifica-la naquele regime político: “Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é Barão, quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde”. Tal abordagem não sinaliza apenas uma “questão de preço”, como indicado no livro, mas uma questão de classe, argumento que ela evita enfrentar diretamente ao longo da publicação aqui resenhada.

A Desigualdade – novo tópico – por sua vezé conclamada a partir da escravidão. Na sequência de sua argumentação, o passado colonial é sempre posto como ponto originário do desequilíbrio social, através justamente da concentração de terras e renda e suas respectivas práticas culturais patrimonialistas. No entanto, entre continuidades e rupturas, a autora infere que aquele tempo não deu conta de esclarecer porque o processo de industrialização do século XX não foi capaz de romper esse ciclo vicioso do passado, dando uma certa independência histórica ao fenômeno de nossa modernidade e contradizendo a perspectiva de que ela é na verdade carente, fruto de nossa dependência colonial.

Já encaminhando o desfecho do livro, Lilia Schwarcz propõe a discussão da violência, onde aqui destaco os argumentos que pretendem circunscrever sua forma autoritária e institucional. Parte fundamental é a discussão de que, no momento presente, sendo a violência uma marca estrutural de nossa história, estaríamos diante de um perigo eminente, tendo em vista os incentivos governamentais à brutalidade, à redução da maioridade penal e ao armamento. Contudo, o recrudescimento autoritário entendido nessas medidas não é capaz de entender e enfrentar a violência como um grande problema nacional.

A violência no campo é pouco ou quase nada trabalhada pela autora, tratando exclusivamente da questão indígena. Um ponto importante da argumentação sobre o tema é o fato de que a partir do Império se criou a imagem de que os indígenas a serem valorizados seriam aqueles capturados pela cultura nacional única e indivisível, os que tendiam a valorizar e defender sua existência sem passarem pelo processo de aculturação, seriam, enfim, tidos como bárbaros. Nesse sentido, argumenta a autora que essa visão romântica se transforma num processo violento que se eterniza na história nacional.

Em Raça e Gênero, sem muito me alongar no debate, apesar de considerar uma discussão importante para o equilíbrio social na contemporaneidade, apresento o apelo da autora para a criação de política públicas afirmativas, uma constante do livro. Mais caro ao esforço intelectual para o entendimento do autoritarismo, é a constatação de que o país se constitui na base de desigualdades socioeconômicas atreladas a questão de raça e gênero, mas também de geração e região.

Um ponto ao mesmo tempo já desgastado, mas importante de ser apresentado é quando a autora comenta que existe um racismo dissimulado no país, reservando à polícia a principal performer da discriminação. A partir desse ponto ela começa a citar casos de corpos negros vulneráveis como exemplos da violência policial, dentre os quais se destaca o recente assassinato de Marielle Franco.

Outro ponto que remete a questão de raça e gênero é a cultura do estupro. Ela é, ou ao menos deveria ser, um dos grandes problemas a serem enfrentados pelos governos em suas diversas esferas. Para exemplificar a construção patriarcal que ao longo do tempo tem autorizado, naturalizado e legitimado o estupro, a autora recorre às imagens da colonização, empresa de caráter masculino, onde o território colonial americano foi insistentemente representado como um corpo feminino a ser dominado e explorado. Ao final, em Intolerância, parte fundamental da imposição em torno das políticas afirmativas das minorias reside no argumento de que o Brasil é “uma nação de passado violento, cujo lema nunca foi a inclusão de diferentes povos, mas sobretudo a sua submissão, mesmo que ao preço do apagamento de várias culturas”.

Em dado momento em que discute a intolerância, a autora propõe que a crise política que engendrou o recente autoritarismo deu-se por um desgaste democrático ao longo dos últimos trinta anos, o que dá brecha para uma interpretação naturalizada da emergência conservadora. É uma interpretação confusa, pois em certo nível justifica a escalada autoritária, seus discursos e suas práticas, estas incompatíveis com uma organização política democrática, como bem defende a autora.

É evidente que a história do país e todos os argumentos dela derivados para definir as raízes de nosso recente autoritarismo, ilumina a cena atual. Contudo, a particularidade da política dos últimos anos, ou seja, o acirramento pós manifestações de 2013, escanteou os mitos fundantes da nacionalidade, e a proposta de sociedade harmônica do novo discurso autoritário nasceu envolta em meio daqueles que a buscam negar.

Filipe Menezes Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará. Atualmente pesquisa sobre os seguintes temas: teoria e metodologia da história, ditadura militar no Brasil, conflitos agrários, Nordeste e Amazônia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2535-8538


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SOARES, Filipe Menezes. Muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.519-524, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Haunting History: for a deconstructive approach to the past | Ethan Kleinberg (R)

Haunting History, livro publicado recentemente pelo historiador estadunidense Ethan Kleinberg explora os desafios que o diálogo com a desconstrução derridiana impõe à prática da história. O autor propõe que historiadores e historiadoras enfrentem as questões suscitadas por esse incômodo encontro, a fim de promover a persistente desconstrução da lógica de pensamento da história [1]. O livro chama a atenção pelas figurações narrativas empregadas por Kleinberg, que demonstra significativa preocupação com a íntima relação estabelecida entre forma e conteúdo da obra.

Ao mobilizar estórias de fantasmas, entre elas A Christmas Carol, de Charles Dickens, e The Legend of Sleepy Hollow, de Washington Irving, o livro ressalta o caráter espectral, fantasmático, indomável, desordenado e incômodo do passado. Diferencia-se por recorrer à literatura para refletir sobre o passado; ou seja, a literatura não opera como fonte empírica que diz sobre a sociedade que a produziu, mas como recurso provocativo, teórico e imaginativo. Essa estratégia permite trazer à narrativa um passado capaz de assombrar o presente como um espectro.

Em diálogo com um conto de Franz Kafka que versa sobre a construção de estruturas como a Grande Muralha da China e a Torre de Babel, Kleinberg lança indagações sobre as condições de averiguação do próprio passado. No conto, a Grande Muralha não foi construída de maneira contínua; algumas sessões foram construídas à princípio, espaçadamente, ao passo que as brechas deixadas foram preenchidas ao longo de séculos, de modo desordenado. O autor, então, pergunta ao seu leitor:

E se, de fato, algumas sessões da muralha nunca foram sequer construídas? E se mais tarde, com o tempo, passou-se a acreditar que essas lacunas eram partes faltantes da muralha que haviam sido destruídas, deterioradas, ou perdidas? [2]

A estória de Kafka sobre a Grande Muralha é ponto de partida para construção de uma interessante metáfora acerca da história. Há aqui a crítica a uma produção historiográfica que busca a produção de um snapshot do passado, tomado como reprodução fiel, ontológica, real. O autor coloca em cheque a capacidade do historiador – enquanto único e privilegiado observador – em distinguir e percorrer as lacunas presentes na grande muralha da história. Afinal, como diferenciar as partes construídas e perdidas daquelas que nunca foram sequer construídas? É possível dotar os “fatos históricos” de um caráter ontológico e separá-los das formas como foram representados narrativamente? Nesse sentido, Ethan Kleinberg confere ao passado um senso de mutabilidade que, se não espanta e assombra, certamente desestabiliza os parâmetros que regem a disciplina.

O primeiro capítulo do livro consiste em uma história intelectual [geist-geschichte] e uma história de fantasmas [geistergeschichte]. O autor narra a recepção da desconstrução pela historiografia estadunidense como uma história assombrada, cujo personagem principal – a desconstrução – age como um espectro que insiste em assombrar a prática disciplinar. Para isso, combinam-se recursos literários ligados às estórias de fantasmas e estratégias caras à história intelectual, de modo que convivem na narrativa, com pouca ou nenhuma cerimônia, atos de assombramento, conjuração, esconjuração e exorcismo, ao lado de citações de artigos, livros, entrevistas, resenhas, réplicas, e tréplicas. Os personagens são revistas, livros, acadêmicos, fantasmas, espectros e poltergeists. Forma e conteúdo convergem para apresentar a desconstrução como um fantasma incômodo, aceito por poucos, esconjurado por muitos, tratado por tantos como objeto de espantado ceticismo e culpado fascínio. Entre os fantasmas do período – giro linguístico, pós-modernismo, pós-estruturalismo, etc – a mais temida, a desconstrução, precisava ser exorcizada.

Como um poltergheist, a desconstrução fez sentir seus efeitos. Assombra os historiadores(as) precisamente na medida em que evidencia segredos tão bem escondidos da história: desnuda as escolhas autorais que participam da elaboração narrativa e argumentativa da produção historiográfica, põe em destaque a necessidade da imaginação para a prática da disciplina, evidencia as peripécias envolvidas no tratamento com a linguagem.

Para que a história entregue “verdade” descomplicada esse segredo [o espectro da revisão, a possibilidade de desconstrução] precisa continuar escondido, mas cada vez que o relato histórico de um evento é revisado, o próprio ato de revisão revela a instabilidade da verdade histórica e da possibilidade de recontar o que “realmente aconteceu”. [3]

O caráter fantasmático e incômodo da desconstrução se agrava na medida em que essa se torna um termo do senso comum que agrupava supostos “pós-modernos”, “pós-estruturalistas”, “relativistas”, além dos “desconstrucionistas” e de quaisquer historiadores(as) que com esses dialogassem. Em sua acepção mais popular, a desconstrução passou a ser conhecida como a “desestabilização de pronunciamentos autoritários” [4] , assumindo na academia estadunidense “o peso de uma posição política ou ideológica” [5] . A simplificação do modelo teórico derridiano contribuiu para que, mais tarde, em meio às nuvens de medo e à busca por verdades estáveis que sucedeu os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, muitos se unissem para esconjurar o fantasma. A desconstrução foi associada à Heidegger, ao nazismo e até ao terrorismo, definido como expressão violenta do enfraquecimento de verdades universais como a liberdade e a vida. Será que isso foi suficiente para livrar-se de vez do fantasma?

A construção narrativa do primeiro capítulo evidencia a ausência de um número expressivo de historiadores(as) que utilizam a desconstrução como aporte teórico ou metodológico e, contraditoriamente, a presença de um “número desproporcionado de artigos atacando-a […] como perigosa para a prática da história” [6] . A abordagem desloca a oposição binária que enquadra presença e ausência como meros antônimos, enquanto a linguagem do conto assombrado subverte a forma como a história tem pensado e narrado as relações entre passado e presente. O passado está, presente e ausente, como um fantasma. Ou ainda, presenças e ausências operam juntas para assombrar o presente e a história.

Ethan Kleinberg emprega a desconstrução em uma crítica do “quadro epistemológico da história ortodoxa”, seu “próprio sistema ideológico, suas categorias de representação”[7] . Para isso, o terceiro capítulo examina autores como Chladenius, Dilthey e Droysen – ligados ao que se convencionou chamar historicismo – e demonstra que nem mesmo entre eles há consenso acerca da possibilidade de uma forma universal de acesso aos fatos históricos “tais como ocorreram”. O resultado é francamente irônico quando lido em contraste com o primeiro capítulo, que demonstra o quanto os historiadores contemporâneos – aqueles que afirmam ter superado os historicistas – continuam operando sob uma compreensão do passado embasada no que Ethan Kleinberg define como realismo ontológico.

Para o autor, a história disciplinar aborda eventos históricos como pontos fixados e imutáveis do espaço e do tempo. O passado é ontologicamente real, verdadeiro e ordenado, e mesmo que o acesso a ele seja sempre limitado, suas condições de verificabilidade estão condicionadas epistemologicamente. A revisão, portanto, é permitida porque compreendida como um aprimoramento epistemológico e metodológico que permitiria aproximar-se mais da verdade sobre o fato, mesmo quando há o reconhecimento de que o fato nunca será representado em sua totalidade. Ou seja, para o realismo ontológico, o passado segue sendo compreendido como algo que, “realmente”, “ontologicamente”, “é”.

No quarto capítulo, Ethan Kleinberg afirma que a abordagem do passado embasada no realismo ontológico está intimamente ligada às formas analógicas que conferiram bases materiais para a produção historiográfica, como o advento da escrita, da imprensa e da máquina de escrever. Essa história está ligada a um “teto analógico”, que percebe o passado como alcançável por meio do método e da atenção profunda. O rompimento com esse teto analógico pode abrir novas possibilidades à história. Nesse sentido, o autor sugere o advento da era digital e de uma nova forma de hiper-concentração em múltiplas mídias e plataformas guarda afinidades com a desconstrução. Essa nova forma de acessar, processar e interagir com a informação abre portas para que pesquisadores(as) possam se relacionar com o passado por meio de abordagens que presem pelo não-simultâneo, o contraditório, o múltiplo, o descontínuo e o instável, elementos fundamentais a uma abordagem desconstrucionista. Essa reconfiguração conclama a disciplina a um repensar do próprio tempo. No quadro delineado pelo autor, esse presente marcado por “heterogeneidade, emaranhamento, polissemia e contextos flutuantes” se relaciona diretamente com um passado que está também permeado destas características. As relações dos(as) historiadores(as) com o tempo passam a ser entendidas como uma posição iterativa, entrelaçada no tecido no passado a partir do presente. Essa última assertiva permitiria imaginar o estatuto do passado de outro modo, e posicionar a prática da história como um discurso/ato performativo, “uma interpretação que transforma a própria coisa que interpreta” [8].

Em suas últimas páginas, o autor argumenta sobre uma fantologia [hauntology] [9] do passado, a assombrar o ofício dos(as) historiadores(as), a tocar e afetar o presente independentemente das vontades daqueles que pretendem domá-lo ou expiá-lo. Se para Michel de Certeau [10], um dos objetivos da operação historiográfica era constituir túmulos escriturários capazes de enterrar os mortos e abrir espaço para os vivos, para Ethan Kleinberg, o passado não pode ser exorcizado por meio da escrita da história, mesmo pelo(a) mais exímio(a) historiador(a). O passado possui um “caráter fantológico” [hauntological], está, presente e ausente. Segundo o autor, esse só pode possuir qualquer status ontológico de forma latente e aporética, como uma contradição irresoluta, como um fantasma. Ainda, entre passado e presente há uma porosidade, caminhos possíveis a trilhar, que não podem ser encerrados por meio da história disciplinar e que delimitam – sempre de modo provisório – quais passados são imaginados como possíveis.

O livro torna-se mais provocativo quando lido em conjunto à atuação do coletivo #theoryrevolt, que no ano passado publicou o manifesto Theses on Theory and History. O texto assinado por Ethan Kleinberg, Joan Wallach Scott e Gary Wilder argumenta pela escrita de uma “história crítica” e pelo estabelecimento de uma nova relação entre teoria e história. Quando o livro é lido contra esse pano de fundo, ganham destaque as experimentações do autor ao longo da obra – que considero bem sucedidas –, sobretudo o modo como integram-se forma e conteúdo e o engajamento inovador com a literatura e a desconstrução. Afinal, nas palavras do #theoryrevolt,

A história crítica não aplica teoria à história, nem pede por maior integração da teoria nos trabalhos históricos como que vinda de fora. Ao contrário, ela busca produzir história teoricamente orientada e teoria historicamente fundamentada. [11] [grifo original]

Notas

1. Todas as traduções fornecidas ao longo do artigo são de responsabilidade da autora.

2. KLEINBERG, Ethan. Haunting History: for a deconstructive approach to the past. Stanford: Stanford University Press, 2017. p. 73.

3. KLEINBERG, Ethan. Haunting History: Deconstruction And The Spirit Of Revision. History and Theory. Theme Issue 46 (December 2007), 113-143. p. 143.

4. KLEINBERG, Ethan. Haunting History: for a deconstructive approach to the past. Stanford: Stanford University Press, 2017. p. 32.

5. Ibidem, p. 34.

6. Ibidem. p. 15.

7. JOAN SCOTT apud Ibidem. p. 36.

8. DERRIDA, Jacques. Specters of Marx. New York: Routlegde, 2006, p. 63.

9. Nesse caso, adotamos a tradução empregada por André Ramos e André Luan Macedo em entrevista com o autor publicada pela revista História da Historiografia. Cf: RAMOS, André. Ethan Kleinberg: Teoria da História como Fantologia [Entrevista]. História da historiografia, n. 25, dezembro. Ouro Preto: 2017. p. 193-211.

10. CERTEAU, Michel de. The writing of history. New York: Columbia University Press, 1988.

11. KLEINBERG, Ethan; SCOTT, Joan W.; WILDER, Gary. Teses sobre Teoria e História. Trad. Andre Freixo e João Ohara. p. 5. Disponível em: https://www.academia.edu/36775977/Teses_sobre_Teoria_e_Hist%C3%B3ria_TRADU%C3%87%C3%83O_. Acesso em 10/07/2018.

Lídia Maria de Abreu Generoso – Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente é doutoranda em História pela mesma Universidade com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8130-1950


KLEINBERG, Ethan. Haunting History: for a deconstructive approach to the past. Stanford: Stanford University Press, 2017. Resenha de: GENEROSO, Lídia Maria de Abreu. A história e o fantasma da desconstrução. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.38, n.1, p.548-553, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos (R)

 

Publicado pela editora Companhia das Letras, em 2018, o Dicionário da Escravidão e Liberdade conseguiu a façanha de reunir uma grande quantidade de especialistas para discutir um dos temas mais caros ao pensamento brasileiro: a escravidão. Embora o tema seja discutido em congressos e seminários, estes eventos nem sempre contam com esse quantitativo de especialistas. A reunião em torno do dicionário resultou em 50 textos críticos, escritos por 45 pesquisadores ligados a diversas instituições de ensino e pesquisa, que puderam conceituar a partir do assunto principal: a escravidão.

Os textos compõem um mosaico heterogêneo que apresenta o estado da arte produzido sobre a escravidão. O interessante é que o leitor pode apenas consultar os verbetes, como dicionário que é, ou poderá também relacionar os verbetes entre si, construindo pontes entre um assunto e outro, complementando-os. São possíveis algumas ligações. Logo de início, temos o verbete sobre o continente africano, que pode ser lido em conjunto com os verbetes sobre o tráfico e o transporte dos escravizados, temas que foram contemplados na escrita de Roquinaldo Ferreira, Luiz Felipe de Alencastro, Carlos Eduardo Moreira e Jaime Rodrigues. A caracterização dos africanos, contrariando a ideia de homogeneidade, teve atenção de Robert Slenes, Beatriz Mamigonian, Luiz Nicolau Parés, Eduard Alpers e Luciano Brito.

Lugares e espaços foram pensados por Marcus Carvalho, Flávio dos Santos Gomes e Carlos Eugênio Líbano Soares. A família escrava, o mundo materno, estão entre as temáticas discutidas por Isabel Cristina Reis, Lorena Féres da Silva, Maria Helena Pereira e Mariza Ariza. As leis que permearam a escravidão foram discutidas por Keila Grinberg, Hebe Mattos e Joseli Maria Nunes Mendonça. As teorias raciais, o associativismo negro e a imprensa negra foram o foco das informações de Petrônio Domingues e Lilia Moritz. Revoltas e movimentos foram verbetes escritos por João José Reis, Wlamyra Albuquerque e Angela Alonso, Jonas Moreira e Paulo Roberto. Amazônia e a escravização indígena, foram pensados por Flavio Gomes e Stuart Schwartz.

O trabalho escravo/livre e o pós-abolição foram verbetes escritos por Robson Luiz Machado, Walter Fraga, Marcelo Mac Macord e Robério Souza. Os aspectos da religiosidade foram destacados por Nicolau Parés e Lucilene Reginaldo. O processo educacional, as nuances culturais e a relação História e Literatura, foram escritas por Sidney Chaloub, Marta Abreu e Maria Cristina Cortez Wissenbach. Há ainda os ritos fúnebres que aqui foram escritos por Cláudia Rodrigues. São possibilidades que a leitura vai sugerindo. É um dicionário, não nos preocupemos com as teorias ou metodologias dos autores, essas se revelam nos verbetes.

Não é o primeiro dicionário a enfocar a escravidão. Em 2004, Clovis Moura, consagrado pesquisador e importante referência desse tema, publicou o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, com 800 verbetes. Foi, na verdade, a última contribuição do historiador e sociólogo que dedicou boa parte de sua vida a discutir a saga heroica do escravo em inúmeros trabalhos. Em 2018, catorze anos depois, o público passa a contar com um novo instrumento para estudos nesta mesma temática. A escravidão e os seus desdobramentos mantêm a vitalidade das discussões como caminho fundamental para entender as diferenças sociais que atingem milhões de afrodescendentes no país.

O período da escravidão no país fez com que esse tema passasse a se desenrolar em toda História do Brasil. Em qualquer assunto que possamos pensar o Brasil, em algum momento, a temática irá perpassar atravessando como uma flecha. O período Colonial e Império viram de perto esses desdobramentos, e na República as consequências continuam sendo brutais para milhões de brasileiros. “Esse sistema que pressupunha a posse de um homem por outro só podia construir um mundo de rotina que se misturava com muita violência e explosão social. ” (Pg. 28).

Há diferenças circunstanciais entre os dois dicionários, e essas diferenças marcam a trajetória dos estudos da escravidão no Brasil. Clovis Moura construiu sua vasta obra fora dos quadros acadêmicos, embora sempre estivesse em constante diálogo com a academia, e como já vimos, sua bibliografia está presente na estante dos pesquisadores do tema. É bem provável que o autor tenha sido o último grande baluarte de uma safra de intelectuais que construíram seus conceitos sem necessariamente estarem ligados a uma Universidade.

O Dicionário da Escravidão e Liberdade já traz no título um indicativo de que mudanças profundas entre uma publicação e outra ocorreram. A partir dos anos 1970, o Brasil irá contar com um crescimento dos programas de pós-graduação, ganhando mais intensidade nos anos finais da década, que ainda estava sob uma brutal Ditadura Militar.

A presença destes programas propondo novas pesquisas, revisando outras e colocando em xeque saberes há muito cristalizados, teve como base a mudança metodológica, que propunha uma História problema a partir de novas abordagens e novos objetos, consistindo de análises apuradas em rica documentação depositadas em diversos arquivos. O trabalho sistemático de inúmeros pesquisadores que em muitos casos enfrentaram as diversas dificuldades, como falta de incentivo às pesquisas, arquivos desorganizados, documentos comprometidos e a insistente incapacidade de uma sociedade dar o devido valor ao profissional da História, forjaram uma gama de trabalhos que passaram a ser fundamentais para discutir, entre outros problemas, a desigualdade social com a grande diferença para os afrodescendentes.

O resultado dessa reviravolta vem logo nos anos 1980, com a chamada Nova História da Escravidão, em que passa a ser valorizada a ação protagonista do negro escravizado que a todo instante passa a ser também responsável pela construção de sua liberdade, atento às dinâmicas da sociedade que estava inserido, contrariando a imagem do escravo heroico e coisificado. Essa nova historiografia é, portanto, a linha que une os autores dos textos coordenados por Lília M. Schwarcz e Flávio Gomes.

São vários os desdobramentos que a escravidão apresenta para o estudioso e, neste sentido, nada mais importante que esse instrumento de estudo, porque embora seja uma obra recentemente lançada, ela já se configura como fundamental tanto para o público leigo, como os acadêmicos de história e de outras ciências. Os textos críticos do livro abordam os momentos iniciais no continente africano; a travessia atlântica; o convívio social na América Portuguesa; a religião e seus rituais; a cultura; as formas de trabalho; a formação dos laços parentais e o nascer, viver e morrer de homens e mulheres que vieram do lado de lá da África mãe, uma verdadeira viagem a tempos e espaços de um Brasil que teima em não se enxergar. Um dos pontos mais interessantes desta obra é enxergar como homens e mulheres escravizados contribuíram de forma decisiva com saberes que influenciaram na formação do cotidiano brasileiro nos mais diversos aspetos.

Revoltas e resistências estão presentes para sepultar de vez os argumentos da historiografia tradicional que viam o negro como passivo durante toda escravidão. Neste sentido, para além da fórmula popularizada pelos livros didáticos que consagraram o ciclo do açúcar, o Dicionário propõe conceituar a escravidão em outras regiões, como o Rio Grande do Sul, Goiás e Amazonas; ampliando o entendimento da relação entre indígenas, imigrantes europeus e escravos, enfatizando que, “os manuais didáticos insistiram numa escravidão africana que começava com o açúcar, passava pelo ouro e terminava no café. Talvez por isso as áreas de plantation de algodão, arroz e fumo, foram pouco estudadas no Brasil. ” (p.25-26)

Ricamente ilustrado, o conjunto das imagens foi organizado em dois cadernos distintos e Lília Moritz, observa que “é importante, pois, que o leitor atente não apenas para os títulos deixados originalmente por seus autores e que aparecem como legenda técnica juntos das gravuras, telas e fotografias, mas também para os comentários que elaboramos, buscando “ler as imagens”” (Pg. 44). O que é bastante positivo pois didaticamente funciona bastante no auxílio aos professores, por exemplo.

São ao todo 154 imagens divididas em dois cadernos: o primeiro caderno está logo depois da página 192, e o segundo inicia na página 352. Colocados logo após o início do texto crítico, fica desconfortante, porque nos leva de certa forma a suspender a leitura e a divagar nas imagens. É possível que fique melhor ao final do verbete, cremos assim que contribuiria para a fluidez da leitura. A opção de organizar em cadernos ficou interessante, imagens distribuídas ao longo dos textos críticos criaria a sensação de livro didático ou dicionário ilustrado, o que nos parece não foi intenção dos autores aqui.

O Dicionário da Escravidão e Liberdade terá um papel fundamental para acadêmicos em todos os níveis e cursos. Durante a graduação por exemplo, período em que paira uma dúvida sobre o que pesquisar, entre outras informações encontrará o graduando, conceitos sobre família escrava, formas de resistência ou as doenças que acometiam os negros escravizados, além de tantos outros temas. Também será um referencial, um ponto de partida para novas investigações.

Cito como exemplo instigador para novas pesquisas, o texto Associativismo Negro (Pág. 113) e Frente Negra (pg. 237). Nos dois, o autor discorre sobre como os negros no Pós-Abolição intensificaram frentes intelectuais sendo protagonistas em diversos momentos da sociedade republicana, seja em São Paulo ou Santa Catarina. Instiga no momento em que nos perguntamos, o que sabemos desses movimentos nas outras cidades? Quais foram os protagonistas? Como os jornais de Pernambuco, ou Alagoas, por exemplo, noticiaram estas frentes negras?

Quando a Lei Áurea completou cem anos, o quantitativo de publicações chamou atenção, fato que não mais se repetiu. No entanto, agora já podemos contar com editoras que se dedicam à causa negra no país, e paralelo a isto, há diversos núcleos de Pós-Graduações que desenvolvem as mais diferentes pesquisas e estudos. Desta relação surge por exemplo, este Dicionário elegantemente com prefácio de Alberto da Costa e Silva e capa desenhada por Jaime Lauriano, nos convida ao prazer da leitura.

Referências

Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos/Organização: Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Orgs.) – 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras. 2018.

MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

SECRETO, María Verónica. Novas perspectivas na história da escravidão. Tempo, Niterói, v. 22, n. 41, p. 442-450, dezembro de 2016. Acesso em 23 de julho de 2020. https://doi.org/10.20509/tem1980-542x2016v224104

Vladimir Jose Dantas – Mestre em Geografia/Arqueologia pela Universidade Federal de Sergipe. Atualmente é Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0510-248X.


Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). São Paulo: Companhia das Letras. 2018. Resenha de: DANTAS, Vladimir Jose. Lendo o Dicionário da Escravidão e da Liberdade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.38, n.1, p.554-559, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970) | Elson Assis Rabelo (R)

O livro de Elson de Assis Rabelo, Visões em deslocamento, é um estudo sobre a produção de imagens, narrativas e espaços do rio São Francisco em contextos autoritários do Brasil do século XX. Produto de uma tese de doutoramento na Universidade Federal de Pernambuco, o livro analisa um conjunto de vestígios, reportagens, fotografias, periódicos, livros, revistas científicas, relatos de viagens, documentos oficiais, dialogando com teorias pós-estruturalistas, abordagens que investigam a história do campo científico da geografia, historicizam a tipificação das populações, a produção dos espaços, a construção de temporalidades arcaicas para esses tipos construídos e problematiza os interesses e conflitos envolvidos nessa realidade produzida. O objetivo dessa resenha é apresentar a obra e pensar, à partir de temas introduzidos pelo autor, sobre novas possibilidades de reflexão em torno do lugar-comum do rio da integração.

O livro se divide em duas partes, com dois capítulos cada, a primeira trata das paisagens e a segunda dos agentes sociais do espaço. No primeiro capítulo sobre a emergência de um novo espaço na geopolítica da integração, Rabelo reconstituiu a invenção do espaço regional são-franciscano desde a topografia dos engenheiros topógrafos nos anos 1930 até os geógrafos de influência estadunidense do final dos anos 1940, passando por importantes autores sobre o assunto como Geraldo Rocha, Jorge Zarur, Agenor Miranda, Orlando Carvalho, entre outros. O segundo capítulo investiga, partindo da análise de uma longa reportagem da revista Realidade, já nos anos 1960, as imagens de progresso e decadência da navegação, bem como a disputa de memórias da mesma, no contexto de desenvolvimento autoritário nacional. No terceiro capítulo, o autor investiga os processos de tipificação das populações do vale pela geografia e pela sociologia das comunidades, passando pela análise de fotografias. Essa área de imagem e história, na qual o autor se especializa desde então, domina o quarto e último capítulo, onde há uma análise de fotografias que contribuem para deslocar esses tipos e humanizá-los, desclassificá-los de uma taxonomia fixadora de caracteres folclorizantes.

Rabelo consegue muito bem analisar a produção espacial do Vale do São Francisco pelos saberes técnicos e pela imprensa. Sua análise das fotografias é perspicaz. Não é preocupação do autor, entretanto, lidar com a heterogeneidade dos discursos. Nesse sentido, o livro é muito útil para novos pesquisadores, pois estabelece um panorama de grandes linhas gerais da escrita sobre o São Francisco. Novas pesquisas permitirão preencher as lacunas deixadas pelo autor, tanto cronológicas, como o interregno entre o Estado Novo e a ditadura militar-empresarial iniciada em 1964, quanto bibliográficas, já que outros escritores se detiveram sobre a questão são-franciscana nesse período, não analisados pelo autor. Na ficção, especialmente, surgiram narrativas que, quando não contestavam diretamente as espacializações e tipificações descritas por Rabelo, desestabilizavam seus pressupostos. Os poucos trabalhos acadêmicos nessa linha são caracterizados ainda por um saudosismo romântico, que costuma reificar narrativas, tipificações e construir novas espacializações e memórias, sem problematizar a sua produção ou a artificialidade das mesmas. Rabelo consegue problematizar as tipificações e espacializações sem construir novas em seu lugar. Ele não disputa a definição do São Francisco e do sertanejo, não o romantiza ou o idealiza. Em algumas passagens, chega-se a duvidar que ele seja mesmo o objeto do trabalho do autor. A análise se concentra no discurso de tal modo que não há dúvida de que o autor trata dos vestígios, do arquivo e não da realidade dada a ver por eles.

A única lacuna que poderia ser destacada na análise é uma questão cara à história intelectual. Quanto Rabelo trata da espacialização do São Francisco pelos engenheiros e topógrafos dos anos 1930 e 1940, temos a impressão de que não há apropriação, reconfiguração e subversão interpretativa dos mesmos em relação às teses de João Ribeiro, Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso, mas uma continuidade e aplicação regional. A ideia de rio da unidade nacional e caminho da civilização, de João Ribeiro em seu livro História do Brasil no final do século XIX, retomada por Euclides da Cunha em Os Sertões no início do século XX, foi aprofundada e reformulada por Vicente Licínio Cardoso em conferências dos anos 1920, publicadas nos anos 1930 em edição póstuma, que serviram de referência básica para todos os escritores que lidaram com a questão são-franciscana até pelo menos os anos 1950, quando há um salto qualitativo em termos especializados e institucionalizados da produção do saber sobre o rio – muito bem documentado por Rabelo ao tratar do desenvolvimento de pesquisas de geografia regional científica e profissional sobre o Vale. Ocorre que aquilo que é apenas mencionado por João Ribeiro e citado em Cunha é aprofundado em Cardoso, transformado à luz de uma visão sobre o país e o papel da terra como sujeito, bastantes distintas daqueles dois autores. Por sua vez, Geraldo Rocha, Agenor Miranda e outros que se baseiam em Cardoso o fazem com uma reconfiguração ou mesmo o usam como recurso de autoridade para desenvolverem explicações outras, distintas das do engenheiro carioca. Rabelo destaca bastante a homogeneidade dos discursos sobre o rio São Francisco, sem se concentrar na heterogeneidade e nos conflitos e descontinuidades.

A força do livro está na análise da tipificação das populações e da espacialização das paisagens, mas também aponta a produção das temporalidades nesses texto. Trata-se da parte menos desenvolvida no campo de estudos sobre o assunto. Rabelo faz apenas alguns comentários breves sobre o tempo lento das populações rurais do Vale, característica das narrativas tanto dos topográfos, quanto da sociologia de comunidade de Pierson. Chega a tratar mesmo da falta dela, a tese de Licínio Cardoso do rio São Francisco ser um “rio sem história” escrita. Suas considerações limitam-se a apontar as narrativas como anacrônicas, naturalizadoras da história ou deterministas geográficas, sem entrar nos meandros das narrativas construídas e da intertextualidade dos autores com matrizes ou com outros textos dos próprios investigados. Além disso, há pouca ou nenhuma diversidade das temporalidades construídas pelos escritores investigados, dos aspectos híbridos entre técnica e memória na construção de narrativas e dos textos como produções identitárias. Alguns dos documentos analisados por Rabelo são verdadeiros discursos fundadores de regionalismos onde a abordagem técnica e produtora de espaços e tipos se mistura a relatos biográficos, narrativas épicas, memórias familiares e exaltação de personagens. A abordagem dada por alguns trabalhos acadêmicos que, como foi dito acima, reificam noções romantizadoras do rio e se não são capazes de artificializar essa produção discursiva, ao contrário, reforçam uma tradição que contribuem para produzir, é a continuação dessa produção de mitos. Rabelo trata bem dessa produção mítica em espaço e tipos, mas pouco trata do enredo. Isso se deve, possivelmente, pela sua busca por padrões discursivos, que podem ser construídos com espacializações e personagens comuns, mas é mais difícil de ser encontrada em um conjunto muito mais amplo de narrativas. É possível, aliás, que o único caminho viável seja uma taxonomia das temporalidades produzidas pelos mitos engendrados pelos escritores do São Francisco, especialmente em virtude de suas motivações ideológicas e dos projetos sociais aos quais se vinculam.

Sem dúvida, A visão em deslocamento é uma importante contribuição para um campo de estudos interdisciplinar muito vasto que tem o rio São Francisco como tema, cenário ou objeto. Ao contrário de outros trabalhos que buscam validar, quando na verdade instituem, uma tradição narrativa são-franciscana, o livro de Rabelo permite perceber a produção discursiva sobre esse tema, historiciza essa escrita e bagunça a tradição. Ironicamente, é possível que o livro venha a compô-la, ao refazê-la, abrindo novas possibilidades de estudos e desenvolvendo, verticalmente, discussões tratadas de forma panorâmica com fôlego. Bons estudos correlatos tem sido publicados, mas geralmente monográficos e bastante especializados. A vantagem do livro de Rabelo é que realiza uma síntese do campo, uma espécie de balanço da produção escrita, ainda que seja o livro tenha recorte de vestígios e cronologia muito bem definidos.

Numa época em que se matam rios que foram reificados discursivamente como espaços de progresso latente, uma obra que conta uma história desse “rio sem história” é muito bem-vinda.

Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761


RABELO, Elson Assis. A visão em deslocamento: uma história de palavras, figuras e paisagens do São Francisco (1930/1970). Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2016. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A invenção do Rio São Francisco: configurações do espaço e dos tipos em contextos autoritários. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.37, n.2, p.462-465, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

Uma Estrela Negra no teatro brasileiro. Relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952) | Julio Claudio da Silva (R)

O livro de Julio Claudio da Silva, Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro, é fruto da esmerada pesquisa para a tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Se insere nas discussões sobre o papel dos negros, e negras, na sociedade brasileira do pós-Abolição e as tensas relações raciais tão presentes no pensamento intelectual brasileiro das primeiras décadas do século XX.

Tomando como referencial a bem-sucedida carreira da atriz negra Ruth de Souza, o historiador problematiza as relações raciais, de gênero, a construção e reconstrução da memória da atriz, e as tensas dimensões vivenciadas por ela, pelo direito de inserir-se no complexo universo cultural brasileiro.

Esse exercício apurado de análise da memória pública de Ruth de Souza, de sua problemática, e da sua relação com as questões raciais e de gênero é o principal caminho trilhado por ele para dar destaque às lutas sociais e culturais de artistas negros entre as décadas de 1930 e 1950, e as profundas conexões dessas lutas com a vida política brasileira do período.

Professor da Universidade do Estado do Amazonas, Julio Claudio da Silva realizou sua formação como historiador na UFF. E ao longo de sua trajetória como pesquisador, tem se dedicado a investigar a questão racial no Brasil, e os desdobramentos correlatos a temática, como a História África e da Cultura Afrobrasileira, o Movimento Negro, e a memória e trajetória dos/as intelectuais negros/as.

Assim, algumas das inquietações do pesquisador podem ser percebidas no livro Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro, que em seu argumento central tem como proposta refletir sobre as relações raciais e de gênero no Brasil a partir da recuperação de alguns aspectos da memória e trajetória da atriz brasileira Ruth de Souza. Passando ainda pela história de umas das importantes associações negras do século XX, o Teatro Experimental do Negro.

Um dos esforços da narrativa do autor ao longo dos capítulos consiste em historicizar e refletir a temática do racismo no Brasil, visando contribuir com novas formulações e respostas para os estudos das relações raciais e de gênero (p. 21-23).[1] Desse modo, O trabalho insere-se no diálogo com a ampla produção historiográfica que analisa os processos de construção de conceitos como raça, relações raciais e da identidade negra na sociedade brasileira.[2] Especialmente na discussão que considera a identidade não somente como uma ideia, desligada da realidade concreta, mas que, antes de tudo, se manifesta na realidade social.[3]

Preocupado com as formas complexas dos processos ligados à cidadania nas sociedades pós-emancipação, as questões levantadas pelo autor ao longo de sua pesquisa buscaram evidenciar, a partir da trajetória artística da jovem Ruth de Souza, como a racismo se manifestou de forma muito particular para as mulheres negras. [4] Debruçando-se sobre a história da atriz, Silva procura observar “os processos de construção de memórias e os limites estabelecidos pelas relações raciais e de gênero, em uma sociedade pretensamente meritocrata fundada sobre o mito da democracia racial” (p. 25). Para tal, a figura de Ruth de Souza favorece a problematização das temáticas raciais e a generificação nos palcos brasileiros, uma vez que como mulher, afrodescendente, e proveniente das classes subalternas, ela conquistou reconhecimento, conseguindo se profissionalizar como uma das primeiras atrizes com esse perfil a fazer teatro erudito no nosso país.

O autor segue a tradição de estudos ligados à história social, fazendo uso da biografia de Ruth de Souza para compreender as dinâmicas da modernização do teatro brasileiro e como a questão racial e de gênero impactaram nesse processo. Como estratégia, Julio Claudio da Silva utiliza-se de depoimentos concedidos pela atriz em diversas décadas, assim como de relatos fornecidos por seus contemporâneos, e ainda da reunião de reportagens publicadas nos anos 1940 e 1950 selecionadas pela própria Ruth de Souza ao construir seu acervo pessoal.

Na primeira parte do seu livro, composta por dois capítulos, a analise do autor recai sobre os anos iniciais da carreira de Ruth de Souza como atriz no Teatro Experimental do Negro. Silva utiliza-se dos pressupostos metodológicos da História Oral, para problematizar a memória narrada dos entrevistados, demonstrando que a memória faz muito mais referencia ao presente que ao passado.

As tensões diante da recuperação da memória, os silêncios e esquecimentos foram analisadas pelo autor sem perder de vistas a dimensão política, que se mostrava marcadamente nas vivências de Ruth de Souza desde sua infância pobre, ao lado de sua mãe, viúva e empregada doméstica. Mas que, apaixonada pelas artes cênicas, ousou ser atriz.

Ao introduzir o leitor, logo no primeiro capítulo, na discussão dos conceitos memória, gênero e cultura afro-brasileira – os três pilares teóricos fundamentais para o desenvolvimento de sua argumentação nos capítulos seguintes, o autor pretende fundamentar os conceitos de sua pesquisa tendo como ponto de partida os depoimentos cedidos a ele pela própria Ruth de Souza. E com sensibilidade apurada e comprometida, Julio de Souza, além de dar visibilidade para os primeiros anos da trajetória da atriz, insere aos leitores e leitoras na bela história de homens e mulheres do Rio de Janeiro efervescente das décadas de 1930 e 1940.

A luta de Ruth de Souza, e de seus contemporâneos do Teatro Experimental do Negro, por maiores oportunidades na dramaturgia brasileira demonstram o quanto são racializadas as relações sociais no Brasil. Investigando os laços de amizade e as redes de solidariedade utilizadas pela atriz para conquistar seu espaço no cenário artístico brasileiro o autor nos conduz por um amplo universo de personagens engajados no combate às desigualdades e de lutas em meio à intensa exclusão do Rio de Janeiro de inícios do século XX.

Apesar dos entraves impostos pelo racismo cordial brasileiro, e pela suposta democracia racial, o autor realiza um cruzamento entre os depoimentos da atriz e recortes de jornais que apresentam muitas informações sobre o início da sua carreira, destacando a dimensão política de lutas e embates, por vezes “esquecida” nos relatos de Ruth de Souza, mas recuperada nos textos dos seus contemporâneos. Um exemplo disso é o depoimento de Raquel da Trindade sobre os primeiros anos de atuação do Teatro Experimental do Negro e das estratégias utilizadas por aqueles sujeitos na luta contra o racismo, especialmente as formas de racismo tão comuns nos palcos brasileiros daqueles anos.

As preocupações com novas questões que pudessem complexificar as narrativas elaboradas pela atriz Ruth de Souza nas entrevistas dadas ao autor, e a promoção do diálogo entre esses depoimentos com outras falas da atriz em gravações que estão sob guarda do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS RJ), constituem o segundo capítulo do livro. Nele, Julio Claudio da Silva dá particular atenção para as tensões, lacunas e contradições desses relatos, e como novas questões propostas por ele podem ampliar o campo de análise, permitindo compreendermos as estratégias utilizadas pela atriz na elaboração, e reelaboração, da memória sobre a ausência de oportunidades para uma jovem negra e pobre no campo teatral das décadas de 1930 e 1940.

A redação envolvente de Julio Claudio de Silva, e sua apurada análise apontam para ambiguidades nos depoimentos de Ruth de Souza, especialmente quanto a racialização do teatro, e como em alguns momentos a atriz atribui seu sucesso quase que unicamente a seu mérito, “desracializando” obstáculos de sua trajetória, e sublimando sua condição de artista afrodescendente, que viveu intensamente a realidade de exclusão imposta pelas artes cênicas no Brasil.

Na segunda parte do livro, o autor dedica-se a investigar o complexo processo de “arquivamento de si” e do Teatro Experimental Negro realizado pela própria Ruth de Souza. Para tal, Julio Claudio da Silva faz uso dos registros sobre a vida da atriz e da companhia de teatro reunidos no “Acervo Ruth de Souza”, do Laboratório de História Oral, da Universidade Federal Fluminense (LABHOI UFF). A intenção de Silva consiste em compreender os níveis de retroalimentação que os recortes de jornais reunidos pela própria Ruth de Souza tiveram sobre sua memória e, até certo modo, ancoraram o relato que a atriz fez de si.

Ao atentar para os silêncios presentes nos relatos da “Dama Negra do Teatro”, o autor recupera a organização de uma rede de alianças formadas em torno do grupo de artistas ligados ao Teatro Experimental do Negro, bem como a importância do grupo para o processo de modernização do teatro brasileiro, e das iniciativas de combate ao racismo no Rio de Janeiro do período. No capítulo 3, ao cotejar a documentação do Acervo Ruth de Souza, o historiador mergulha na problemática relativa às restrições impostas aos artistas afrodescendentes nos palcos, e como tais práticas, seja nos locais, ou mesmo na forma com que eram mostrados nos espetáculos teatrais, se materializavam frequentemente.

Desse modo, ao recuperar a memória sobre o papel da companhia Teatro Experimental do Negro, a narrativa de Silva nos apresenta “acirradas batalhas de memória entre Paschoal Carlos Magno e Abdias Nascimento” em torno da “paternidade da entidade” (p. 128), e como tais embates foram capazes de complexificar ainda mais a história de uma das mais importantes manifestações culturais do movimento negro brasileiro. Assim, o capítulo nos fornece amplamente uma riqueza considerável de informações sobre o panorama teatral brasileiro do período, especialmente quanto às dificuldades de funcionamento, e estratégias usadas pelos artistas do Teatro Experimental do Negro nas lutas contra “o complexo de inferioridade do negro e contra o preconceito de cor dos brancos”, como parafraseia o próprio autor (p. 134).

É especialmente bem sucedida a escolha de Silva ao investigar o grupo de artistas ligados ao Teatro Experimental do Negro, pois permite aos leitores a compreensão da importância da entidade para os artistas e para a cultura brasileira, justamente por criar e organizar uma “nova modalidade do teatro negro no Brasil” (p. 141). Mostrando o compromisso daqueles sujeitos em constituir espaços igualitários, que permitissem atuar plenamente como artistas, verem representados com justiça o seu universo étnico-racial e, portanto, contribuindo para a elevação cultural e dos valores individuais dos negros (p. 163).

No capítulo quatro, Julio Claudio da Silva busca investigar os limites e possibilidades para a construção de um teatro negro no Brasil da década de 1940 (p. 167). Para isso, o autor utiliza a cobertura dada pela imprensa sobre os espetáculos montados pelo Teatro Experimental do Negro, a partir dos recortes guardados pela atriz Ruth de Souza, tentando compreender como os críticos teatrais viam as adaptações de peças teatrais estrangeiros para o público brasileiro pelos artistas da entidade, e também as percepções racializadas sobre a atuação dos atores e atrizes da companhia de teatro.

Deslocando o foco de análise para os possíveis diálogos entre o palco e a platéia o autor analisa as montagens dos espetáculos estrangeiros O Imperador Jones, Todos os filhos de Deus têm asas e O Moleque sonhador, de autoria de Eugene O’Neill. Assim como os espetáculos escritos por brasileiros especialmente para o Teatro Experimental de Negros, como a peça O filho pródigo, de Lucio Cardoso, ou a Aruanda, escrita por Joaquim Ribeiro; e por fim a peça Filho de Santo, escrita por José Moraes Pinho. Dessa maneira, Silva nos auxilia a compreender como a montagem de espetáculos com temas ligados à realidade afrodescendente se constituiu elemento primordial para o crescimento das artes, e particularmente do teatro, no Brasil.

Montados entre os anos de 1945 e 1949, os textos iluminam “temáticas sócioculturais das populações e culturas afrodescendentes” (p. 168), e tal esforço de destaque da cultura negra é reconhecido pelos críticos como iniciativa fundamental no complexo cenário de lutas contra o racismo tão presente na sociedade brasileira. O olhar multifacetado do autor revelou um esforço de pesquisa que nos indica o quanto racialização cultural não passava somente pelos palcos, mas também pelo espaço destinado aos espectadores, e de como o grupo de artistas reunidos em torno do Teatro Experimental do Negro consolidava-se paulatinamente como uma espécie de oásis artístico em que era possível difundir textos e performances antirracistas, em que os artistas negros pudessem também apresentar sua arte e seu talento.

Por fim, no último capítulo, Silva dedica-se aos anos em que a atriz Ruth de Souza desliga-se do Teatro Experimental do Negro e vai para o exterior, onde tem a oportunidade de estudar artes cênicas nos Estados Unidos da América. O episódio, descrito pelo historiador como “um divisor de águas” na vida profissional da artista, revela o quão fundamental foi o apoio recebido pela atriz e o quanto a rede de solidariedades em que ela estava inserida foi primordial para o seu processo aprimoramento e profissionalização.

Essa temporada de estudos no exterior, de fato, abriu novas portas para a atriz, proporcionando a ela novos contratos, e uma carreira em ascensão nas principais companhias de cinema dos anos 1940 e 1950. Mesmo diante da tensão e do preconceito expressos na oferta de pequenos papeis para a atriz negra, seu talento e esforço foram reconhecidos em prêmios e indicações importantes pro seguimento, seja no Brasil ou ainda internacionalmente.

Ao se deparar com as questões metodológicas em torno da memória e do racismo na sociedade brasileira, o autor enfrenta o desafio de nos apresentar um texto rico teoricamente e que contribui amplamente com as discussões sobre os papéis da mulher negra no Brasil, especialmente no cenário cultural e político do pós Abolição, por meio da trajetória de uma mulher negra, que ousou ser artista, em uma sociedade que negou, e continua negligenciando, os direitos básicos aos afrodescendentes.

Notas

1. Optei em citar ao longo da resenha, entre aspas, palavras do próprio Julio Claudio da Silva, ou citações feitas por ele no livro.

2. Ver os trabalhos de GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, Raça e Democracia. São Paulo: Fapesp; Editora 34, 2002; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

3. NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003.

4. O debate tem sido feito em trabalhos como o de ALMADA, Sandra. Damas Negras: sucesso, lutas e discriminação: Xica Xavier, Lea Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta. Rio de Janeiro: Mauad, 1995; ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2000.

Vitor Leandro de Souza – Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Doutorando em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9869-8907 .


SILVA, Julio Claudio da. Uma Estrela Negra no teatro brasileiro. Relações raciais e de gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições, 2017. Resenha de: SOUZA, Vitor Leandro de. Memória, gênero e antirracismo: a trajetória de lutas da atriz Ruth de Souza. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.36, n.2, p.319-324, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes | António Manuel Hespanha (R)

O contexto e a intencionalidade da produção dos discursos devem ser levados em conta para que não haja interpretações que fujam das possibilidades apresentadas pela documentação. Mesmo uma leitura feita a contrapelo possui limites interpretativos. A sensibilidade do pesquisador costuma ser bom guia para evitar enganos, mas não pode ser o único. Associar um corpo teórico e metodológico à sensibilidade de pesquisa ajuda na execução de uma obra mais coesa.

Iniciamos o texto com essa reflexão por uma dupla razão. António Manuel Hespanha mesmo se propondo a fazer um livro mais focado na exposição das tradições jurídicas portuguesas e não na análise dessas tradições, não se permite escapar da teoria e do método que caracterizam o trabalho do historiador. A segunda razão é o próprio Hespanha quem introduz. Ele diz que os historiadores ainda esperam encontrar as coisas como elas realmente aconteceram, mesmo que duvidem das narrativas que lhes chegam como fontes. E duvidam ainda mais daquelas que “são muito senhoras de si”. Problema que se agrava quando as narrativas em questão são as jurídicas.

O autor resgata a ideia de “uma sociedade construída sobre o direito”, consoante o medievalista russo Aaron Gurevič, para demonstrar o nível de abrangência desses textos. Bem como fica expresso no título do livro, “direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes”, eram todos campos cobertos pela Justiça. E, para cada um desses campos, havia subdivisões. A intenção dos juristas letrados era produzir uma legislação que pudesse dar conta de aspectos muito gerais e, ao mesmo tempo, capaz de arbitrar sobre casos extremamente específicos. A literatura jurídica tendia a fazer uma exposição pormenorizada da organização e do funcionamento social. “Ou seja, os juristas descrevem muito detalhadamente o mundo e muito exaustivamente as razões que movem o mundo; o seu mundo, claro, e as suas razões para o movimento do mundo” (posição 79-81). O que, por vezes, pode conduzir o historiador ao engano de pensar na sociedade portuguesa de Antigo Regime como um corpo homogêneo e seguidor das leis. Mas, havia nuances como a tradição, o prestígio dos sujeitos, as regionalidades, as distâncias, entre outros aspectos que interferiam na forma de dispensar a Justiça. E como bem apontou António Manuel Hespanha no trecho acima citado, o texto jurídico recaia na intencionalidade dos homens responsáveis pela sua produção.

O direito das mulheres pode nos servir de modelo para mostrar como a lei buscava circunscrever do quadro mais geral aos mais específicos. O Antigo Regime português apresenta as mulheres como seres frágeis e facilmente coagidos. O feminino era considerado praticamente inexistente diante do masculino. No entanto,

[…] quando a imagem da sua particular natureza o faz irromper no direito, o próprio direito explicita os traços da sua pré-compreensão da mulher, traços que o saber jurídico amplifica e projeta socialmente em instituições, regras, brocardos e exemplos – fraqueza, debilidade intelectual, olvido, indignidade (posição 7471- 7473).

Essa avaliação tornava as mulheres juridicamente menos responsáveis pelos seus atos. Elas não poderiam, assim como os rústicos e idiotas, responder pelo crime de falso testemunho, pois lhes seria difícil distinguir a verdade do erro. Porém, em determinados casos a “imprudência” e “fragilidade” feminina eram desconsideradas. As mulheres comerciantes são bons exemplos disso. A prática do comércio seria suficiente para garantir faculdades mais amplas para as mulheres, ainda que não comparáveis às masculinas. A legislação, como é possível notar, não apenas inferiorizava as mulheres como também lhes fechava qualquer possibilidade de obter um posto de mando. Preceito que apenas o monarca tinha poder para constranger.

Conforme alerta Hespanha, o conteúdo do texto jurídico sobre as mulheres no Antigo Regime é dos mais suscetíveis a avaliações feitas de acordo com o entendimento que temos hoje do Direito (e, principalmente, do feminino). A estranheza provocada é normal. Reflete as diferenças entre o presente e o universo social do tempo estudado. Atualmente, no mínimo nos pareceria risível – para citar outro detalhe dentro de atribuições mais amplas – incluir entre as cláusulas de um contrato de locação de imóvel a previsão de realocar o inquilino caso a propriedade fosse assombrada por almas penadas. Não obstante, para uma sociedade imersa no pensamento religioso, esta era uma prática possível. Resguardar as diferenças entre os períodos, ou melhor, localizar no tempo determinadas práticas jurídicas é um dos pontos fortes de “Como os juristas viam o mundo (1550-1750)”.

Outro ponto forte da obra é não ter preocupações quanto à extensão dos capítulos e muito menos do livro como um todo. O que permite descrições longas sobre os campos cobertos pelo saber jurídico. Isso foi possível porque, ao contrário das suas obras anteriores, o pesquisador realizou a publicação de forma independente. É provável que uma editora aconselhasse o autor a retirar algumas partes para tornar o livro mais “enxuto”. Sem essas barreiras, o trabalho surge como uma leitura que também pode ser feita em forma de consulta. Por duas razões. Primeiro devido ao fato de apenas a introdução (capítulo 1) e o epílogo (capítulo 9) adiantarem e reforçarem as ideias apresentadas nos demais capítulos. Os outros sete capítulos são independentes entre si. E, quando a argumentação exige questões já trabalhadas, Hespanha as repete. As argumentações e conceitos só não são repetidos quando um tópico é exatamente igual ao outro em termos interpretativos.

A segunda razão diz respeito à corriqueira dificuldade que os historiadores têm com o universo de escrita dos oficiais da justiça, comumente, carregados de termos técnicos. E, quando os historiadores tentam sanar seus déficits de informação auxiliados por livros de direito atual, “é o pior dos remédios, pois os leva a aprisionar o passado nas categorias do direito de hoje” (posição 131-132). Hespanha prefere o “desconforto” da leitura dos textos clássicos, ao usar compreensões jurídicas que atualmente estão superadas, do que cair no anacronismo. Esse tipo de resguardo metodológico, ele diz ser positivo tanto para os historiadores que lerem a obra, como também para os juristas. Afinal, a aproximação que se busca é com o universo dos magistrados de então.

Para evitar enganos, Hespanha aconselha a leitura de alguns interpretes das leis portuguesas. Sugere aos seus leitores o mesmo que sugere aos seus alunos, a leitura de “Institutiones iuris civilis lusitani”, de Pascoal José de Melo Freire dos Reis, publicado em finais do século XVIII, e a obra de Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, “Notas de uso practico, e criticas, addições, illustrações e remissões”, datada do início do século XIX. Mas o conselho é seguido por uma ressalva. Por ter sido Pascoal de Melo um reformista e Lobão um conservador, as interpretações de um podem ser facilmente balanceadas pelas do outro. O que não exclui o compromisso que deve ter o profissional da História com a leitura de interpretações feitas para reforçar, reconstruir ou até mesmo extinguir conceitos.

Se com os autores mencionados no parágrafo anterior é possível ter melhores explicações sobre leis pontuais, o que o livro de António Manuel Hespanha oferece é uma visão melhor sobre a tradição jurídica portuguesa. Dito de outra forma, o livro pode ser consultado para tirar dúvidas sobre as formas de pensar e executar o Direito entre 1550 e 1750. As peças jurídicas eram “uma sofisticada construção de juristas letrados, a partir da qual se estabeleciam regras para a vida de todos os dias. Mas também de uma imagem consistente do homem e da sociedade” (posição 34-35).

Como forma de reprodução social a cultura letrada ajudava a aprofundar as categorias sociais. Os letrados, por dominarem o código de escrita e leitura, não poderiam ser vistos, socialmente, como os que não dominavam o mesmo código. Ainda que o objetivo final da legislação fosse conhecido pela maior parte da população, segundo Hespanha, conhecer as especificidades da lei e ter poder para executá-las era o grande diferencial.

Seja como for, qualquer ato de jurisdição implicava algum poder de dar ordens ou de constranger, quanto mais não fosse a autoridade mínima (modica coertio) que faz com que os atos judiciais sejam reconhecidos e obedecidos pelas partes. Daí que, se podia haver ordens que não estavam precedidas de uma averiguação jurídica (merum imperium), não podia, em contrapartida, haver atos judiciais sem que o magistrado não tivesse algum poder de mandar (imperium qui inest iurisdictioni) (posição 1148- 1153).

A manutenção dos textos jurídicos em latim ou com expressões latinas, por exemplo, ainda que a maior parte estivesse em vernáculo, aparece como “projeto de poder”. Não apenas por afastar das pessoas o entendimento fino do texto, como dito acima, mas ajudava igualmente a associar as peças jurídicas do mundo sacro (dos saberes religiosos). Servia ainda para a manutenção das hierarquias profissionais no campo do Direito. Os juízes não letrados seguiam mais o direito natural e comum do que os compêndios universitários. E por isso, eram tratados pelos juízes letrados como executores do “direito dos rústicos” ou dos “direitos próprios” (consuetudinário).

Apesar disso, os livros de direito tinham boa circulação. Eram encontrados nas periferias do Reino e do Império, garantindo assim, “o conhecimento da tradição jurídica letrada nos confins mais afastados, mesmo independentemente de aí existirem juristas” (posição 365-366). Nos centros urbanos eram ainda mais comuns. O que não significa dizer que os juristas dispunham de grandes bibliotecas pessoais. Hespanha diz que a lista de livros referência para o trabalho dos juristas e juízes era curta e, ainda menor era o número de títulos de fato utilizados. Na maioria das vezes, o acesso a essas obras só era possível em instituições com boas bibliotecas. A posse pessoal passava pelas dificuldades do valor, transporte e fragilidade das obras.

Ao passar a tradição jurídica portuguesa em revista António Manuel Hespanha explora os campos civil e eclesiástico; o que era válido e inválido para nobres e não nobres; versa sobre os compromissos dos reis com a execução da Justiça e etc. Inclusive, de como as penalidades foram se tornando mais brandas com o passar do tempo. Discorre ainda sobre as gentes e as coisas. Aqueles que não gozavam de nenhuma personalidade ou status, como os escravos, não eram considerados como pessoas, senão como coisas. E, objetos inanimados poderiam aparecer como titulares de direitos, ou seja, personificados. Por exemplo, “um prédio podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios (servidões reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a ‘adscrição’, vinculação de certas pessoas a trabalhar certa terra)” (posição 6391-6393). Havia então, sob a avaliação contemporânea, coisas tratadas como gentes e gentes tratadas como coisas. Ainda assim, ambos poderiam ser requalificados, a depender da situação, e enquadrados em outros campos do Direito

Além do que já foi mencionado e de tantos outros temas que ficaram de fora desse comentário, há uma ideia central que perpassa toda a obra. Neste trabalho, António Manuel Hespanha não apenas reforça a sua famosa tese sobre a distribuição dos poderes por diversos polos, como também introduz uma nova tese (ou provocação historiográfica). Trata a visão jurídica exposta como típica da Europa “latina”. O autor reconhece a ousadia da sua afirmação e trata de apresentar algumas razões que o conduzem a tal pensamento. Diz não acreditar em um “espírito latino” ou em uma “cultura latina”. Tampouco considera que esse fenômeno possa ser atribuído aos diferentes panoramas religiosos entre “Sul” e “Norte” da Europa após a reforma protestante.

Para Hespanha, o cerne da questão estava de fato no uso e comunicação do corpus literário. Mesmo antes da cisão religiosa, os juristas do “Sul” discutiam entre si, enquanto os do “Norte” (leia-se alemães, holandeses e ingleses) não tinham uma literatura jurídica muito expressiva. Sendo assim, havia um corpus literário comum entre os juristas ibéricos, italianos e até mesmo franceses, na primeira época moderna. “A identidade ‘do Sul’ é antes uma identidade induzida por um círculo de comunicação” (posição 19801). O que facilita para que parte da historiografia as classifique como corporativas e repletas de falhas de rigor na aplicação das leis. Quem sabe até possa o “sabor latino” do direito comum entre essas sociedades revelar as raízes de parte daquilo que somos hoje.

Notas

1 A obra é vendida exclusivamente pela Amazon. No site da empresa é possível ter acesso ao livro em dois formatos: o físico, com 732 páginas e impresso pela CreateSpace; e digital, com 36.362 posições.

Paulo Fillipy de Souza Conti – Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (PPGH – UFPE). E-mail: [email protected]


HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa: CreateSpace Independent Publishing Platform (Amazon), 2015.1 Resenha de: CONTI, Paulo Fillipy de Souza. O mundo dos juristas pelos olhos do historiador. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.36, n.1, p.296-300, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual | Faramerz Dabhoiwala

Pode ser contraditório intitular um livro como As Origens do Sexo quando, na verdade, seu recorte espaço-temporal abarca a Grã-Bretanha do período 1600-1800. De qualquer forma, FaramerzDabhoiwala – professor e pesquisador de História da Universityof Oxford – não deseja apresentar uma história linear e “total” da sexualidade, mas descrever as transformações das experiências sexuais do Ocidente, relacionando-as com as grandes propensões políticas, intelectuais e sociais da época. Três elementos estruturais estão na base da composição da obra: o espaço, ou seja, a casa, o bordel, a rua, etc.; os personagens, isto é, os homens e as mulheres; e o elemento unificador: o sexo. Da trama sutil desses fatores, surge uma história enquanto realidade axiomática. A arte de Dabhoiwala consiste, sobretudo, na habilidade com que conseguiu arranjar esses elementos, salvaguardando o caráter multifacetado de análises que não permite o esgotamento das possibilidades interpretativas. O resultado é a conclusão de que as atitudes em relação ao sexo oscilaram, na Inglaterra dos séculos XVII-XIX, entre a censura tirânica e a relativa liberdade.

O livro é, sobretudo, um grande mosaico crítico de uma cultura que intentava disciplinar a sexualidade, mas que, com o tempo, viu emergir em seu próprio meio ideias relacionadas a uma maior tolerância e liberdade sexual. Texto nascido a partir da análise das mais variadas fontes históricas – Literatura, Tratados Morais, Processos-crime e Legislação encontram-se ajustadas. O discurso continuamente se entrelaça a uma linguagem poética, em Criminal -, compõe-se de um complexo tecido no qual História, Literatura e Jurisprudência uma investigação histórica sem precedentes. Dabhoiwala propõe uma História da Sexualidade que é, no seu conjunto, uma narrativa sempre reencetada. Por isso, os mais variados assuntos são trazidos à tona – casamento, prostituição, libertinagem, individualismo, ascensão da opinião pública, urbanização, tolerância religiosa, crescimento da cultura de massa, propagação da impressão e filantropia –, constituindo, todos eles, um verdadeiro amálgama de elementos que permitem, cada um a seu modo, que a sexualidade passasse a ser entendida como uma questão privada, de moral pessoal, sujeita apenas ao controle individual. Esta seria, segundo o autor, “a primeira revolução sexual”.

O capítulo 1, Declínio e queda da punição pública, explica que até fins do século XVI o policiamento das condutas sexuais era exercido não somente pelo poder da Igreja e do Estado, mas também pela participação popular – vigias, agentes de polícia, pais de família. Tratava-se de um enorme sistema que defendia padrões coletivos de comportamentos sexuais e que por trás dessa vigilância incessante buscava inculcar os ideais de monogamia e castidade, além de condenar práticas como luxúria, fornicação, adultério e prostituição. Fundamenta o autor que prostitutas, adúlteros e sodomitas foram, por muito tempo, ridicularizados, estigmatizados e até mesmo mortos por seus vizinhos e pela comunidade em geral. Essas tentativas de criar uma sociedade livre do pecado – característica da sociedade inglesa puritana – fizeram surgir leis mais rígidas para impor a disciplina sexual. Todavia, deve-se levar em consideração que os padrões exigidos tornavam muitos julgamentos puras ocasiões de formalidade. O autor considera essa questão uma notável ironia: o poder político e religioso buscava o apelo popular, todavia, a campanha anti-imoralidade surtia o efeito contrário. Isso porque sua retórica dependia de grupos de delatores regulares e oficiais, coisa rara naquele período. Além disso, o crescente tamanho e a complexidade da vida na Inglaterra Industrial minaram a eficácia desse sistema de policiamento sexual. O movimento da população do campo para as cidades, onde havia mais lugares e ocasiões para o ato sexual, acabou por tornar a comunidade em geral menos vigilante em relação aos transgressores. O anonimato das grandes cidades conseguiu enfraquecer a perseguição a práticas sexuais mais heterodoxas. O resultado foi exatamente um declínio e uma queda da punição pública quando comparados a períodos anteriores.

No capítulo 2, A ascensão da liberdade sexual, o autor explica que a mudança que mais abalou a sociedade entre fins dos séculos XVI e início do XVII foi a cisão religiosa, fato que acabou por legalizar a pluralidade moral inglesa. Na verdade, Dabhoiwala quer deixar bem claro ao leitor que a tolerância sexual somente cresceu e se difundiu a partir de uma maior tolerância religiosa. Esta tolerância foi, de fato, uma das características centrais do Iluminismo europeu. Com base nos escritos de variados pensadores, como John Locke, John Milton, David Hume, William Walwyn, Thomas Hobbes, Pierre Bayle, Richard Fiddes, Joseph Priestley e Robert Malthus, o autor elucida como tais filósofos ajudaram a expandir o escopo da liberdade pessoal. Buscavam, com isso, viver em um clima muito mais pluralista. O efeito das discussões filosóficas foi colocar as normas morais numa posição mais liberal, fazendo surgir, já na década de 1750, uma doutrina considerada bem desenvolvida de liberdade sexual. Sexo era, a partir desse período, uma questão privada. Criou-se um modelo civilizacional baseado nos princípios da “privacidade, igualdade e liberdade”, princípios que foram fundamentais para a criação de um novo modelo de cultura sexual e que o Ocidente continua a sentir seus reflexos.

O culto à sedução constitui o capítulo 3. Busca situar o leitor nas novas maneiras de observar o sexo feminino. Antes de 1800, afirma Dabhoiwala, as mulheres eram consideradas o sexo mais lascivo. Argumentos misóginos eram tão difundidos que era ideia comum entre a sociedade de que elas eram mental, moral e corporalmente mais fracas do que os homens. No século XIX ocorre uma mudança radical em relação a essa visão. A partir desse período, a ideia era exatamente oposta: passou-se a acreditar que na verdade eram os homens os seres mais libidinosos por natureza. No caso deles, isso era uma espécie de “impulso elementar”. O sexo feminino passará a ser considerado como “delicado”, “passivo”, “frágil”. Segundo o autor, tal mudança estava extremamente avançada na metade do século XVIII, pois já era expressa de forma notória em grandes romances em língua inglesa que surgiram entre as décadas de 1740 e 1750. O interessante é que essa nova visão da premissa da lascívia masculina foi, em grande parte, herdada da crescente proeminência cultural de mulheres artistas. Houve, por exemplo, uma enorme ascensão de atrizes profissionais no teatro inglês após 1660. As peças elisabetanas e jacobinas encenavam a vulnerabilidade feminina sempre contrastada com a lascívia masculina. A violência masculina tornou-se o tema central de vários enredos trágicos. Peças de comédia como Rei Lear, escrita por Nahum Tate, VertueBetray’d, de John Banks, The Orphan, de Thomas Otway, e The Fair Penitent, de Nicholas Rowe, apenas para citar algumas, colocavam o sofrimento feminino no centro da história. Eram claras admoestações contra as artimanhas dos homens que colocavam em cena, quase sempre, estupros, raptos, enganações e mortes. O romance foi outro meio utilizado para divulgar essa imagem de “sexo frágil” em relação à mulher. Conquista e sedução eram assuntos primordiais no romance, como o comprovam as obras de Jane Austen, AphraBehn, DelarivierManley e Eliza Haywood, PenelopeAubin, Jane Barker e Mary Davys. Essas autoras ajudaram, cada uma a seu próprio modo, a estabelecer o romance como a forma mais difundida de literatura inglesa, sendo a sedução – e questões como o amor, conquista e desejo carnal – seu enredo mais fundamental. Dabhoiwala acredita que o romance teve, nesse contexto, um papel fundamental na mudança para uma moralidade mais tolerante.

Em O novo mundo de homens e mulheres, quarto capítulo da obra, o autor explica que a imagem do homem voraz sexualmente fez emergir uma outra imagem: a das mulheres que, do século XIX em diante, deveriam se resignar, se fechar, se enclausurar cada vez mais para proteger-se das investidas masculinas. O que estava em causa, após as primeiras décadas do século XIX, era como domar a imprudência e a aparente promiscuidade “natural” do macho. Essa ideia de que as mulheres eram superioras moralmente tinha uma força gigante. Isso acabou por dividir a suposta natureza sexual dos homens e das mulheres, legitimando e acentuando preconceitos sociais e sexuais, preconceitos estes que ainda hoje se fazem presentes. Diante disso, a questão posta aos homens do período foi a seguinte: como canalizar a lascívia masculina de modo a preservar a “pureza” feminina? A resposta a essa pergunta estava, entre outras coisas, na aceitação social da prostituição. Entendia-se que melhor seria reservar uma classe de mulheres “inferiores” do que sacrificar as “respeitáveis”.

Diante disso, o quinto capítulo, As origens da escravidão branca, dedica-se a explicitar a posição social das prostitutas no seio da sociedade britânica no século XIX. Segundo o autor, foram realizados diversos esforços no intuito de criar abrigos, workhouses e instituições de caridade (como a MagdalenHousee a LamberthAsylum) para as mulheres “decaídas” e garotas em risco de sedução ou vítimas potenciais da lascívia dos homens. Por trás da configuração filantrópica pública em prol das meretrizes havia, porém, diversos interesses egoístas. Crescia a visão de que o encarceramento rotineiro e a exploração econômica dessas mulheres não passavam de meios para transformá-las em membros economicamente produtivos da sociedade.

O sexto e último capítulo, Os meios e a mensagem, narra como a revolução midiática do Iluminismo – exemplificada pelo crescimento da cultura de massa, da pornografia, de publicações biográficas de prostitutas e cafetinas, de xilogravuras baratas e de gravuras das “damas de prazer” – foi central para as mudanças comportamentais em relação ao sexo no século XIX. O crescimento da mídia, a disseminação dos livreiros, o aumento do número de alfabetizados, a ascensão da imprensa periódica como os jornais e o maior uso de panfletos na sociedade fizeram emergir uma cultura midiática que ajudou a criar um novo modelo de vivências erótico-sexuais no Ocidente. Criaram-se, por exemplo, diversos clubes especiais masculinos como o Beggar’sBeninson, em que seus membros reuniam-se para beberem, conversarem acerca de sexo e, em alguns momentos, ejacularem coletivamente lendo pornografia. O prazer sexual passou a ser celebrado em fins do século XIX. Houve, segundo o autor, uma espécie de colapso do policiamento sexual. Desenvolveu-se uma enorme indústria material dedicada ao sexo. A prostituição tornou-se mais visível. Pinturas, desenhos e livros eróticos eram sensação quase instantânea, popularizando-se no mundo anglófono. Amplamente relidos, tais imagens e textos ajudaram a apressar o desenvolvimento da vida privada. O resultado foi o aumento de um público ávido por leituras desse tipo, muito mais amplo do que nos séculos precedentes, refletindo uma nova apreciação do homem moderno com o ato sexual.

No epílogo, Culturas modernas do sexo – dos Vitorianos até século XXI, Dabhoiwala destaca os temas e recortes que utilizou para explicar as origens das atitudes modernas ocidentais em relação ao sexo. Afirma que não se pode estudar a História da sexualidade sem compreender as revoluções sociais que abalaram o Ocidente, especialmente as do século XVIII.

O livro, portanto, não é autotélico: volta-se para alvos definidos, com existência própria. De modo geral, em toda a obra verifica-se uma vinculação íntima entre o passado legível e o presente oculto. Sem dúvida, os historiadores estão diante de uma obra que ainda tem muito a revelar. O que surge ao longo das páginas é o homem moderno, moldado pela cultura em corte profundo. Dabhoiwala realizou um notável trabalho, tendo que trilhar por um caminho difícil, pois enveredou por um campo de pesquisa mais ou menos ilimitado. Para seu crédito, o autor abraça as complexidades dos estudos históricos, escrevendo de maneira clara e sucinta. A escrita dessa obra pôs em relevo a transgressão sexual, à margem das grandes cidades inglesas entre os séculos XVIII e XIX, resgatando o sentido do caráter infrator do sexo que prefigurou, a seu modo, a maneira como a sexualidade é vivida na contemporaneidade.

Wallas Jefferson de Lima – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, vinculado a Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

DABHOIWALA, Faramerz. As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual. Trad. Rafael Mantovani. São Paulo: Globo, 2013. Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Puritanos e revolucionários: as origens da primeira revolução sexual. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.2, p.260-264, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

A águia e o Dragão – Portugueses e Espanhóis na globalização do século XVI | Serge Gruzinski

Velho conhecido dos estudiosos que se dedicam às investigações no campo das mentalidades, o historiador Serge Gruzinski, ratifica o seu interesse pelas sociedades coloniais da América e pelo intenso encontro de culturas que têm lugar neste cenário, e traz à público mais uma instigante análise na qual se debruça sobre as dinâmicas sociais e culturais que se engendraram no contexto da colonização ibérica na América com o seu novo livro, lançado no Brasil em 2015, intitulado A águia e o dragão – ambições europeias e mundialização no século XVI. O historiador francês, caudatário da Escola do Annales, tem alinhado suas pesquisas à uma perspectiva multidisciplinar da História, trabalhando em conjunto com outros campos das ciências humanas, como por exemplo a Antropologia, e incorporando à sua análise não só as fontes escritas, mas também as iconográficas, como podemos constatar em seus últimos volumes publicados, tais como: Les Quatre parties du monde. Histoire d’une mondialisation; Quelle heure est-il là-bas ? Amérique et islam à l’orée des temps modernes; L’Histoire, pour quoi faire ?.

Devemos ainda ressaltar que o seu trabalho critica a concepção eurocêntrica da historiografia tradicional e se ancora na perspectiva da Conected Histories [1], rechaçando qualquer tipo de comparação simplista que se apegue ao local em detrimento do total. Sua tentativa, portanto, seria a de demonstrar a convivência entre as múltiplas realidades sócio-culturais e suas mais variadas dinâmicas de interação, sem perder de vista a relação entre micro e macro. Diante disso, A águia e o dragão, se propõe a entender a inserção dos ibéricos no processo de mundialização, através da análise comparativa entre a atuação do embaixador de Portugal na China do imperador Zhengde e a atuação de Hernan Cortés no México-Tenochtitlan, junto à Montezuma e, portanto, pode ser considerada uma obra vinculada à perspectiva da História Global, já que tenta “juntar as peças do jogo mundial desmembradas pelas historiografias nacionais ou pulverizadas por uma micro-história mal dominada” (p.354).

O livro desvenda os caminhos de portugueses e espanhóis naquilo que o autor chama de “globalização do século XVI”, perscrutando as dinâmicas internas da China e do México no alvorecer do século e analisando como se deu o contato desses povos com os ibéricos. Com efeito, o autor defende que a maneira como os acontecimentos se desencadearam contribuiu, decisivamente, para que fosse fundado o “ocidente euroamericano”, e afirma que embora a presença dos ibéricos nos territórios referidos não tenha sido de fato programada, também não foi ao acaso e deve ser vista como fruto de uma dinâmica comum ao contexto da época, que inseria os reinos na lógica da expansão marítima com vistas na exploração das “molucas”, as conhecidas ilhas de especiarias. Além disso, o autor desmistifica a ideia de que os pioneiros no processo da expansão marítima europeia tenham se lançado rumo ao desconhecido e afirma que, embora houvesse grande confusão nas noções de Ocidente e Oriente, já havia, nessas sociedades, uma certa percepção do espaço marítimo, tanto devido à experiência acumulada com as navegações desde o final do século XV, quanto devido ao conhecimento dos escritos de Marco Polo.

Posto isto, podemos dizer que a tese do autor é a de que o comportamento e as atitudes políticas de Tomé Pires junto ao império de Zenghde, bem como de Hernan Cortés junto ao império de Montezuma, simultaneamente ao posicionamento e contexto das autoridades locais da China e do México, foram determinantes para que o primeiro empreendimento incorresse em fracasso e o segundo tivesse sucesso. Assim, essa conjuntura teria traçado o destino da China e, nesse caso, a falência do projeto colonizador português na área, bem como teria delineado a sorte do Méxicotenochtitlan, que seria dominado e colonizado pelos espanhóis. Portanto, o autor defende que a interação entre esses povos acabou sendo responsável pelo destino que lhes aguardava e que as condições locais que se engendraram a partir desse contato foram responsáveis pelo triunfo ou derrota dos objetivos dominantes, objetivos estes, vale ressaltar, amplamente voltados para o comércio de especiarias. Nesse sentido, para Gruzinski, essas teriam sido as circunstâncias fulcrais que levaram ao processo de interligação dessas partes do mundo – Ásia, América e Europa – através de circuitos comercias que as ligariam intensamente e que marcariam a viragem dos europeus para o Oeste e a fundação do que ele chama de “ocidente euroamericano”.

Nessa perspectiva, o livro em questão se trata de um profundo e estimulante estudo a respeito das características das sociedades chinesa e mexicana do século XVI e da interação do mundo ibério com estas populações. O autor consegue, à medida que vai demonstrando a sua tese, explorar a forma de organização e administração da China e do México, explicando como o contato inicial desses povos com portugueses e espanhóis, respectivamente, foi pacífico e logo descambou para o conflito e o que ele chama de “choque de civilizações”, resultando no domínio e colonização no caso dos mexicas e na resistência e expulsão, no caso dos chineses. Ao percorrer este caminho, o autor consegue esclarecer o processo de decodificação do outro nesse espaço de convivência, afirmando que enquanto os chineses não tinham nenhum interesse em identificar o intruso que para eles se tratava de mais um bando de piratas de nacionalidade desconhecida, os mexicas, por outro lado, tinham urgência em compreender o seu agressor, pois disso dependia, em certa medida, a sua capacidade de resistir.

Em contrapartida, os ibéricos tentavam distinguir o outro para melhor concretizar seus anseios de conquista e, segundo o autor, comprovaram que a falta de conhecimento inicial não se constituía como uma barreira intransponível e, nesse sentido, se esforçavam para se adaptar à língua, ao clima, à alimentação e etc, na tentativa de construir atalhos que facilitassem a compreensão da lógica social e cultural daquelas sociedades. Uma vez que esses aspectos foram mapeados e resultaram na consciência das fraturas políticas do adversário, os ibéricos se aproveitaram deles na tentativa de concretizar o domínio. No México, a identificação das intensas rivalidades entre as cidades devido à falta de unidade política foi decisiva para que o domínio e colonização tivesse sucesso, já na China, o diagnóstico do descontentamento local devido à rigidez do sistema imperial não foi suficiente para que a empreitada ibérica tivesse êxito.

Obviamente, este diagnóstico não se resumia às questões políticas, econômicas e sociais, havia também o espantoso encontro de culturas completamente distintas, que a partir dali iriam se misturar e se modificar simultaneamente. Esse encontro deu margem para que os estranhos mundos se representassem concomitantemente, daí uma série de conhecimentos serão difundidos na Europa acerca dessas civilizações, tanto a chinesa, quanto a mexicana. O autor, ressalta, porém, que enquanto as informações sobre o México são divulgadas desde o início do processo de colonização, aquelas referentes à China só irão se propagar pela Europa a partir de meados do século XVI. Segundo o autor, esse fenômeno poderia ser atribuído, entre outras coisas, ao fato de que a China não era completamente desconhecida por parte dos ibéricos, devido às relações comerciais existentes naquela região, já o México é um mundo completamente novo a se descortinar e causou grande reboliço ao ser descoberto, acabando por motivar imenso fascínio. Os documentos escritos que cumprem o papel de nos dar um retrato daquilo que seriam a China e o México no limiar do século XVI são: a Suma Oriental de Tomé Pires e as cartas de Hernan Cortés.

Segundo o autor, os ibéricos ficaram espantados ao perceberem que, tanto na China quanto no México, os povos contavam com a existência do livro, e isso teria sido determinante para que se moldasse uma imagem positiva na Europa sobre esses povos, já que o livro, para as culturas letradas, é um marcador de civilização. Do outro lado, porém, existe uma notável dificuldade para invocar representações da Europa feitas por estes povos, em primeiro lugar, no caso da China, devido à sua pouca abertura, pela falta de interesse em conhecer o seu inimigo, considerado apenas como um forasteiro. Já no caso do México, mesmo com o grande interesse e curiosidade pelos europeus, por não haver testemunhos escritos de uma visão pessoal do ameríndio, estes, se um dia existiram, não sobreviveram ao tempo.

Dessa maneira, se constituíram as imagens que se firmariam ao longo do tempo como fundadoras daquilo que viriam a ser as civilizações mexica e chinesa. As cartas de Cortés seriam amplamente divulgadas e, segundo o autor, familiarizariam a cristandade com os esplendores do México e com a representação das glórias da conquista, estas serão eternizadas no imaginário universal. Em contrapartida, embora não tenham sido alvo de larga divulgação, a descrição feita por Tomé Pires acerca da China, traz uma visão, de acordo com Gruzinski, mais assertiva a respeito das características dessa sociedade, pois seria um diagnóstico feito do interior dessa sociedade, enquanto que o relato de Cortés seria uma visão panorâmica e, portanto, superficial. Ainda assim, o fato é que mesmo diante de todas estas questões “a epopeia dos conquistadores e o destino fatal do império Asteca continuariam a fascinar, enquanto a descoberta da China dos Ming e o fracasso de Tomé Pires nunca interessaram muita gente” (p.106).

Acreditamos que a obra ultrapassa os limites de sua tese central e acaba por se transformar num manual de história do México e da China, ao qual se pode recorrer para sanar dúvidas pontuais a respeito da organização e administração política, social e cultural dessas sociedades. Nesse sentido, acreditamos que o livro não só cumpre com o seu objetivo precípuo, como também transborda erudição. Para aqueles leitores que não têm grande formação a respeito do Oriente, a quantidade de informações novas pode representar alguma dificuldade, mas com o desenrolar das páginas o leitor passa a se familiarizar com os nomes e os acontecimentos analisados no texto e, ao final da leitura, percebe-se o ganho de uma noção panorâmica acerca das civilizações em questão. O livro consegue ir além da temática do choque cultural entre portugueses/chineses e espanhóis/mexicas e nos leva por outros caminhos dessa história, pelos meandros da organização interna dessas sociedades.

Como não poderia deixar de ser, a obra traz uma discussão bem fundamentada, ancorada, como já afirmamos aqui, nas perspectivas da Connected Histories e da História Global e, assim sendo, rejeita a historiografia tradicional que concebe a Europa como centro do mundo, procurando demonstrar que esse papel protagonista no processo de globalização do século XVI – embora, paradoxalmente, não possa ser negado, visto que foram os ibéricos os atores principais – não se deu simplesmente devido à graça e talento destes homens, mas foi sim, em grande medida, impulsionado e delimitado pelos contextos e dinâmicas que se apresentavam na época. Diante disso ao autor afirma que “a imagem de um avanço inevitável dos europeus, quer se enalteça as suas virtudes heroicas e civilizadoras, quer o votemos ao desprezo, é uma ilusão que teima em persistir. Decorre de uma visão linear e teleológica da História, que continua associada à pena do historiador e ao olhar do seu leitor” (p.40).

Isto posto, vale salientar ainda que, o autor trava diálogo com a historiografia clássica e a mais atualizada, tradicionalmente competente e de referência na temática pertinente à Expansão Ultramarina europeia. Entre os autores com os quais dialoga estão Francisco Bethencourt, Sanjay Subrahmanyam e Charles Boxer. As fontes elencadas permitem demonstrar a sua tese. Ele recorre às cartas e aos relatos de viagem de homens como Cristovão Colombo, Pietro Martire d’Anghiera, Bernal Diaz del Castillo e, obviamente, Hernan Cortés e Tomé Pires, entre outros. Contudo, ao longo do texto, o próprio Gruzinski, deixa claro a deficiência de sua obra no que diz respeito às questões da representação europeia feita pelos indígenas e/ou chineses, afirmando que para tal estudo não existem fontes, pois estas, quando existem, são limitadas pela influência direta do domínio europeu e até da conversão ao cristianismo e, portanto, não exprimem uma visão pessoal a respeito dos ibéricos. Ou, nos demais casos, sequer existem, pois não resistiram ao tempo. Esse obstáculo não prejudica o trabalho, visto que o seu debate central não está circunscrito a esta temática especificamente.

Com efeito, uma outra característica que contribui efetivamente para o alcance dos objetivos do livro, é, sem dúvida a organização de sua estrutura. O autor, opta por uma estrutura que não separe as análises referentes à China, daquelas referentes ao México, pelo contrário, ele dispõe as discussões de maneira a fazer com que o leitor perceba que elas são complementares e a sua visão em separado acarretaria em prejuízo no entendimento total da obra. Os capítulos, por sua vez, são dispostos de modo a guiar o leitor através dos labirintos dessa história, dando-lhe, de maneira impecável, não só a nítida compreensão do argumento defendido pelo autor, mas também um excelente panorama sobre história das culturas chinesa e mexicana. Nesse sentido, não utiliza a conclusão de seu texto para expor sua tese – esta fica evidente ao longo das 373 páginas escritas – mas apenas para ratificar o seu argumento. Dessa maneira, facilita o trabalho do leitor e não abre margens para confusões.

Por último, cumpre dizer que a obra em discussão não está desconectada do tempo e do espaço e encontra lugar na produção historiográfica atual. Sua perspectiva de análise, já discutida aqui, tem notável eco na História que vem sendo desenvolvida desde finais do século passado. Nesse sentido, o autor demonstra sua capacidade de aclimatação e desenvolve um estudo que fortalece seu elo com a História da América Latina, numa análise comparada profunda e densa sobre os aspectos culturais, econômicos e sociais da China imperial e do México-Tenochtitlan, nos dando uma verdadeira lição de como se faz História em tempos de prateleiras abarrotadas de romances históricos acríticos e fantasiosos.

Nota

1. SUBRAHMANYAM, Sanjay. “Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia”, Modern Asian Studies, v. 31, n. 3, 1997, pp. 735-762.

Duarte Izabel Maria dos Santos – Mestre em História da Arte, Património e Turismo Cultural pela Universidade de Coimbra. Atualmente é doutoranda em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.


GRUZINSKI, Serge. A águia e o Dragão – Portugueses e Espanhóis na globalização do século XVI. Trad. Pedro Elói. Lisboa: Edições 70, 2015. Resenha de: SANTOS, Duarte Izabel Maria dos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.1, p.296-301, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]

 

A Trajetória Política de Francisco Heráclito do Rego | Márcio Ananias Ferreira Vilela

Fruto da pesquisa para alcançar o grau de mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco, orientado pelo professor Dr. Antônio Torres Montenegro, Márcio Vilela nos apresenta um interessante trabalho, em escrita leve, sem o pedantismo que quase caracteriza as produções acadêmicas, a respeito de um dos últimos coronéis que atuaram e marcaram, durante bastante tempo, a vida social e política do Brasil e, com maior longevidade no Nordeste. O livro nos entregue dividido em seis partes, sendo as duas últimas dedicadas à bibliografia e aos anexos. A primeira parte, formada por dois capítulos encarregados de nos atualizar sobre as bases teóricas utilizadas na análise dos documentos e depoimentos recolhidos, mas, principalmente para nos oferecer uma recensão crítica dos estudos clássicos sobre o coronelismo no Brasil como os de Victor Nunes Leal [1] , Raymundo Faoro [2] , Maria Isaura de Queiroz [3] , mas detendo-se com maior cuidado nos casos de Pernambuco, Sergipe e Ceará, estudos por Marcos Venicios Vilaça/ Roberto Cavalcanti [4] , Iberê Dantas [5] , Maria Auxiliadora Lamenhe [6] , além de um estudo mais acurado sobre o Mandonismo, seguindo as trilhas abertas por José Murilo Carvalho.[7]

A segunda parte, composta de cinco capítulos dedica-se a desvelar o Mecanismo de construção de um líder político. Mas, quando lemos o escrito, vemos que nosso autor nos leva também ao processo de manutenção dessa liderança, que veio a esbarrar no processo modernizador da modernidade da qual ela é parte.

Francisco Heráclito do Rego, referendado popularmente como Chico Heráclito, foi uma força política que se firmou após os anos de 1930 na região Agreste de Pernambuco, na senda do Partido Social Democrático, fundado após a ditadura do Estado Novo, encabeçada por Getúlio Vargas e, em Pernambuco, capitaneada pelo sertanejo Agamenon Magalhães. Analfabeto, Francisco Heráclito soube usar as nuances da literatura, manejando a mão de Antônio Vilaça, pai de Marcos Venicios Vilaça [8], para comunicar-se com os alfabetizados e os analfabetos que viviam nas cidades e povoados que cresceram sob a sua proteção e cuidado.

Cinco capítulos formam a segunda parte deste estudo e eles estão voltados para nos auxiliar a entender como se forjou e se construiu uma liderança política, ora apelando para o encontro direto e pessoal com os agentes social, ora usando indisfarçadamente a produção literária, nos jornais, em boletins, em cordéis lidos e proclamados nas feiras livres da região e nas praças do Recife, onde também tinha eleitores que voltavam a cada eleição para sufragar aqueles indicados pelo Senhor das Varjadas. Márcio Vilela nos apresenta aspectos interessantes como a utilização do patriarca, João Heráclito do Rego, morto em 1934, que evitou uma participação politica ostensiva, cabendo essa atividade ao seu filho, que teria sido ungido, ainda no seio materno, (p 109ss) para liderar a família e a região. Aqui uma observação. Márcio Vilela, que nos recorda que a escolha do nome, Francisco, homenagem ao Santo de Assis, celebrado um dia antes do nascimento, a cinco de outubro – que há uma indicação de que ele nasceu para servir aos pobres.

Mas ainda há outro estranhamento, de que nos dias seguintes ao nascimento de Francisco Heráclito, seu pai já está a postos, no roçado e não obedecendo ao ritual de dedicar os dias seguintes ao nascimento do herdeiro em comemorações, o que, na região denomina-se „cachimbo‟. …quebrava uma tradição muito comum e de algumas regiões do Brasil serem os primeiros cinco dias após o nascimento de uma criança reservado às comemorações do ao acontecido. Na nota 32, nosso autor lembra que o cachimbo é uma bebida composta de cachaça, água e mel. Lembra ainda que esta bebida é apreciada após o nascimento. Aqui, creio que uma visita à tradição europeia que enaltece São Francisco de Assis e o esforço para colocar esse coronel na sua tradição, uma tradição de civilização, educação e própria da formação tradicional e culturalmente dominante, há outra preocupação: a de afastar o nascituro, futuro líder político da organização e modernização da cidade do Limoeiro das tradições indígenas.

Sabemos da prática da couvade entre nossos antepassados indígenas e, nela o repouso pós-parto era próprio para o pai da criança que, dessa forma, anunciava socialmente a paternidade social da criança. A bebida com mel é ofertada, ainda hoje nos cultos da Jurema Sagrada, religião de cunho e raízes profundamente brasileiras, mas que à época era praticada por poucos, e nas matas, distante dos olhares dos civilizados. Esses acontecimentos – o pai trabalhando no dia seguinte ao nascimento do filho e não utilização do cachimbo, é o esforço de afastar aquela família dos “caboclos do mato”, dos índios que naquele período eram conceituados bem negativamente. Assim São muitos os cuidados no processo de criação de um mito ou liderança.

A terceira parte do livro nos remete às práticas deste e de outros coronéis que atuaram no período da chamada Democracia Liberal, entre os anos de 1945 e 1964. São cinco capítulos, dois deles dedicados a analisar a situação econômica, social e política de Limoeiro e o lugar que o líder ocupa naquele momento da vida local e nacional e dois capítulos dedicados a compreender como agia este líder para manter seu prestígio e respeito social, as suas práticas diárias, o seu comportamento no período eleitoral e sua reação àqueles que não seguiram as suas ordenações e ordenamentos. E essa era uma situação nova, a prática democrática começava a por em dívida o poder de mando. É um período de ruptura com outros agentes da cúpula do PSD, e por isso é o início de um novo tempo, que não está na preocupação de Márcio Vilela, mas que ele tangencia, sem chamar a atenção necessária, que o processo de formação de novos coronéis, novos senhores dos votos que assimilam algumas práticas e introduzirão novas.

Nas eleições de 1954, pensando em sentar-se na cadeira presidencial, Etelvino Lins faz emergir a candidatura do General Cordeiro de Farias, em uma aliança que envolve o PSD, o PL, PRT, PSP e dissidentes udenistas. Dizia Etelvino que era uma chapa para unir Pernambuco, como lembrado por Cordeiro de Farias, em depoimento ao CPDOC, e provocou a divisão do PSD que apoio Neto Campelo, com outros partidos, entre eles o PST. Neste partido estava Miguel Arraes de Alencar que, mais tarde veio a ser eleito governador de Pernambuco apoiado por essa dissidência do PSD, uma aliança com os coronéis. Embora não fosse esse o objetivo da dissertação de Marcio Vilela, teria sido interessante uma nota de pé de página no sentido de apontar como as relações políticas e pessoais orientam os caminhos dos homens na história.

Notas

1. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. Riod e Janeiro Nova Fronteira, 1997.

2. FAORO, Raymundo. Os donos do Poder. São Paulo: Globo, 2001.

3. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

4. VILAÇA, Marcos Venicios; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de.

5. DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, PROEX/CECAC/ PROGRAMA EDITORAL,1987.

6. LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família Tradição e Poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo, ANNALUBE/Edições, 1995. Coronel, coronéis: apogeu e declínio dos coronéis no Nordeste. Riod e Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

7. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

8. O poeta é hoje membro da Academia Brasileira de Letras.

Severino Vicente da Silva – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor associado do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]


VILELA, Márcio Ananias Ferreira. A Trajetória Política de Francisco Heráclito do Rego. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2014. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. Um Coronel em revista. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.1, p.302-305, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]

O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem | Gilbert Durand

Gilbert Durand, professor titular e emérito de filosofia, sociologia e antropologia da Universidade de Grenonle II e fundador do Centro de Pesquisa do Imaginário – centro que possuí sedes em inúmeros países, incluindo o Centro de Estudos do Imaginário, Culturanálise de Grupos e Educação (CICE), pertencente a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – é um conhecido pesquisador na área das ciências humanas e autor de diversas obras publicados no Brasil. Dentre elas destacam-se A Imaginação Simbólica, As Estruturas sociológicas do Imaginário e Campos do Imaginário.

Em O Imaginário: Ensaios acerca das ciências e da filosofia da imagem, seu mais recente livro publicado pela editora Difel em 2011, Durand faz uma síntese da história do imaginário no Ocidente. O autor traça um panorama das diferentes posições e papéis ocupados pela imagem na filofia, na religião e na formação do imaginário coletivo.

Gilbert Durand dialoga com filósofos clássicos como Sócrates, Platão, com filósofos da história como Marx, Weber e Hegel e também com autores contemporâneos como o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o sociólogo Michel Mefesolli – do qual Durand foi professor – demonstrando grande domínio acerca do tema e uma enorme erudição ao lidar de forma particular e bem articulada com autores de diferentes períodos e campos do conhecimento.

O livro está dividido em três capítulos principais que se desdobram em vários subcapítulos. O denominador comum dos capítulos reside em um antigo paradoxo: a civilização ocidental, por um lado, proporcionou técnicas de expansão das imagens e, por outro, criou uma crescente desconfiança iconoclasta.

O Paradoxo do imaginário no ocidente é a primeira parte do livro e está dividida em três subcapítulos à saber: Um iconoclasta endêmico, As resistências do Imaginário e o Efeito perverso e a explosão do vídeo. Nela, o autor discorre sobre duas principais estéticas da imagem no ocidente, a do Império Bizantino e a da cristandade de Roma. Durand afirma que elas se desenvolveram de forma antagônica. Enquanto a primeira concentrou-se na figuração e contemplação da imagem humana transfigurada por Jesus Cristo, a Roma pontifícia introduziu o culto e a representação da natureza nas pinturas religiosas. Esse foco imagético promoveu um duplo efeito. O primeiro relacionou-se a diminuição da presença humana nas imagens, o segundo, diz respeito a facilitação do retorno de divindades elementais e antropomórficas dos antigos paganismo – visto que países de origem celta, como a França e Bélgica, adotaram a representação da natureza nas imagens religiosas, além de já possuírem uma herança e um imaginário permeado por divindades da natureza.

Resistências do Imaginário discorre sobre a circulação e a propagação de imagens que resistiram a perseguição e as proibições de suas manifestações. Os franciscanos, monges não enclausurados, foram um dos propagadores de uma nova sensibilidade religiosa, iniciada com a estética da imagem santa que a arte bizantina perpetuaria por vários séculos. Os franciscanos instauraram a devotio moderna, ou seja, a devoção e transposição de imagens para os ministérios da fé.

O efeito perverso e a explosão do vídeo, problematiza a importância do vídeo e da explosão de imagens no desenvolvimento cognitivo. Na civilização da imagem temos o fim da galáxia de Gutenberg que deu lugar ao reino da informação e da imagem visual. Coloca o problema da onipresença da imagem, presente desde o berço até o túmulo e a influencia exercida na vida social, promovendo uma espécie de manipulação icônica através das mídias e propagandas.

A segunda parte do livro As ciências do imaginário está dividida em seis subcapítulos: As psicologias das profundezas, as confirmações anatomofisiológicas e etológicas, as sociologias do selvagem e do comum, As novas crítica: da mitocrítica à mitoanálise, o imaginário da ciência e Os confins da imagem e do absoluto do símbolo: homo religiosus.

No contexto do cientificismo racionalista do século XIX, o Romantismo, o Simbolismo e o Surrealismo foram os bastiões da resistência dos valores do imaginário., Destaca-se também a descoberta do inconsciente por Freud, que passou a tratar a imagem como sintoma. Tal atribuição contribuiu para que a imagem perdesse a desvalorização que a acompanhava desde o período clássico.

Ainda no campo da psicanálise, o suíço Carl Jung foi importante para a normalização do papel da imagem ao desenvolver o conceito de inconsciente coletivo estruturado pelos arquétipos, ou seja, por disposições hereditárias para reagir. Os arquétipos se expressariam em imagens simbólicas coletivas e o símbolo seria a explicitação da estrutura do arquétipo.

Durand afirma que o imaginário constitui-se em um conector obrigatório pelo qual se forma qualquer representação humana, ou seja, para ele o pensamento forma-se pelo imaginário. A partir desta afirmação Durand dialoga com outros autores contemporâneos, como Mafesolli, ao entender o imaginário como uma realidade e não apena parte do onírico.

Durand situa alguns autores clássicos e sua relação com a categoria imaginário. Os trabalhos de Marx e Comte, por situarem-se a margem da civilização, provocariam uma recusa dos processos de consciência. Para não realizar este recuo percebeu-se o valor do imaginário e a ciência do homem social passou a abordar todas as declinações do pensamento. Autores como Gramsci dão ênfase as crenças folclóricas, relacionadas a subversão da ordem, este autor desmistifica a ideia de que a religião seria o ópio do povo, como colocou Marx. Ele abre o pensamento de Marx para o campo do simbólico, pois para Gramsci o domínio de classe não poderia ocorrer sem o domínio do simbólico.

Quais seriam as diferenças entre o papel desempenhado pela imagem no imaginário moderno e pós moderno? A partir da leitura da obra de Durand podemos elencar algumas considerações sobre esta problematização. No período moderno o imaginário se baseava na razão e no progresso. Um imaginário profético baseado na crença e na moral. Na pós modernidade a imagem não é mais associada a filosofia profética, a projeção assegurada do futuro já não funciona mais. Na pós modernidade as imagens do presente são acentuadas, ocorre a abolição das distâncias objetivas e emerge uma nova relação com o tempo e o espaço, de simultaneidade. As relações entre as pessoas se transformam.

Durand apresenta as novas críticas em relação ao imaginário. A mitocrítica, entendida como um sistema de interpretação da cultura, anteriormente discutido na obra As estruturas antropológicas do imaginário, publicada em 1960, propõe a compreensão das estruturas do imaginário a partir dos significados simbólicos e da reconstrução do trajeto antropológico em constante intercambio com as pulsões subjetivas e objetivas inseridas também no meio social.

Durand se desvincula em parte do estruturalismo de Levis Strauss, reconhecendo que para compreender o mito é necessária a reconstrução de suas estruturas, no plural. Se diferencia de Levis Strauss pela criação de um terceiro nível de leitura que ultrapassa o sincrônico e o diacrônico culminando no arquetípico e simbólico.

A mitocrítica estaria centrada na análise dos mitos de textos culturais (oral, escrito) e a mitoanálise seria mais abrangente, se estendendo para o contexto social no sentido de apreender os mitos vigentes de uma dada sociedade. A mitoanálise requer o exame do aparato social como arte, comportamento, produção institucional etc.

A concepção de imaginário de Durand pode ser vista como um leque, dialoga com diversos autores e estruturas de pensamento. Para ele, o imaginário é o museu de todas as imagens passadas e aquelas possíveis de serem produzidas. Seu projeto é desenvolver um estudo sobre o modo de produção destas imagens, como elas são transmitidas e como ocorre sua recepção. Durand insere as imagens em um trajeto antropológico que perpassa vários níveis, o neurológico, o social e o cultural.

Sabrina Fernandes Melo – Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH – UFSC), integrante da linha de pesquisa Arte, Memória e Patrimônio e bolsista CNPQ. E-mail: [email protected]


DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2011. Resenha de: MELO, Sabrina Fernandes. Imaginário e filosofia da imagem. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.33, n.1, p.225-229, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

 

Labirintos da Modernidade: memória/ narrativa e sociabilidades | Antônio Jorge Siqueira

Antônio Jorge Siqueira tem formação acadêmica no campo da Filosofia, Teologia, Ciências Sociais e da História, o que, em grande medida, reflete em seus escritos. No seu olhar sobre os problemas do Brasil, e em particular do Nordeste, podemos identificar essas várias facetas que compõe o intelectual e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Não é por acaso que em suas obras e artigos aparece insistentemente um Jorge multidisciplinar. É essa heterogeneidade intelectual que torna a sua narrativa densa e complexa, e ao mesmo tempo instigante, pois apresenta para o leitor outras possibilidades de analises sobre a nossa contemporaneidade.

Começo explicando o real interesse pela obra de Jorge Siqueira, ou seja, o que me motivou a elaborar estas considerações. Devo mencionar que sua escrita contempla questões complexas do campo das ciências humanas, aspectos que devem, sem dúvida, fazer parte das discussões e de nossa formação enquanto intelectuais. É de fato um livro denso, recheado de questões atuais e pertinentes ao oficio do historiador. Trata-se de uma coletânea produzida ao longo de quase vinte anos, com muitos de seus textos já com ampla circulação, mas que de alguma maneira foram agora organizados mantendo uma conexão entre si, há um fio condutor. Dito isto, o passo inicial para construir um entendimento sobre o conjunto dessa obra é procurar se aproximar – daquilo que poderia ter sido – do exercício de escrita agenciado por Jorge Siqueira. Com este objetivo, procurei em Orhan Pamuk, no livro A maleta do meu pai, imaginar o que poderia significar o ato de escrever para Jorge.

Afirma Pamuk:

Quando o escritor passa anos recolhido para aprimorar seu domínio do ofício – para criar um mundo –, se ele usa as suas feridas secretas como ponto de partida, consciente disso ou não, está depositando uma grande fé na humanidade. Minha confiança vem da convicção de que todos os seres humanos são parecidos, que os outros carregam feridas como as minhas – e que portanto haverão de entender. Toda a verdadeira literatura vem dessa certeza infantil e otimista de que todas as pessoas são parecidas. Quando um escritor se recolhe por anos a fio, com esse gesto ele sugere uma humanidade única, um mundo sem centro (pp. 27-28).

Este fragmento me fez pensar melhor no esforço que exige o ofício do escritor. Muito provavelmente o autor recorreu ao isolamento, ao silêncio, e assim foi capaz de construir, com sua narrativa, outras imagens do mundo para cada um de nós. E, levando em consideração o volume de sua obra, foram longos períodos de trabalho intenso, de solidão com seus autores de referência. Seus textos e conferências organizados neste livro são provas desse trabalho. E, como afirma Pamuk, posso pensar que Jorge tem a convicção de que sua escrita irá inquietar outros, que as questões por ele problematizadas ao longo das quase 400 páginas de alguma maneira irão atingir inúmeros leitores. Isso significa que em Jorge, de fato, ainda permanece uma certeza infantil e otimista na humanidade.

Sua escrita apresenta temas extremamente densos, mas o faz de maneira suave. Questões diversas como modernidade, pós-modernidade, ciência, humanidade, historiografia, Nordeste, sertão, catolicismo popular, Brasil e América Latina, entre outras tantas, foram tecidas obedecendo a um estilo e estética capaz de bem envolver o leitor. Apenas para ilustrar, reproduzimos aqui um pequeno fragmento sobre a crise da modernidade, temática recorrente na obra:

Resultado dessa consciência de crise e de desamparo humano é que terminou por se falar no esgotamento da modernidade racionalista e cientificista, cedendo lugar a um novo período nebuloso – a pós-modernidade, que, também pode ser concebida como Contemporaneidade ou mesmo Modernidade Tardia. Mas importante do que a nomenclatura – e ela é muito complexa e sem unanimidade – são os questionamentos que essa contemporaneidade faz à razão modernista. Está posto em dúvida o conhecimento da realidade como algo constante, estável e imutável; ou seja, critica-se o domínio positivista da razão. Coloca-se sob suspeita a aceitação unânime do conceito de progresso como substantividade, duvidando-se de que ele seja o garantidor de uma vida melhor para a humanidade. Suspeita-se, de igual modo, das grandes narrativas que seriam subjacentes às crenças num futuro cada vez perfeito (pp. 38-39).

O fragmento projeta uma concepção de modernidade a partir de suas experiências, de alguém que conhece os dramas e as tramas dos grupos sociais aos quais se refere. A modernidade é analisada considerando-se as particularidades inerentes ao Brasil e ao Nordeste. As questões postas e seus personagens são de alguma maneira conhecidos, versam sobre coisas comuns aos nossos sentidos. Aliado a tudo isso, não há uma simples transposição ou acomodação de perspectivas teóricas. Entendo que o autor é um observador das questões culturais, sociais, políticas e econômicas da contemporaneidade, e a concepção teórica adquire significado porque se encontra articulada a sua condição de crítico de seu tempo, possibilitando, assim, maior identificação do leitor, pois seus textos tratam de questões complexas, significativas, mas que são próximas, permitindo-nos identificar a modernidade como um tempo conhecido para nós.

Ainda dentro dessa gama de questões muito me sensibilizou um aspecto recorrente ao longo do livro: as relações entre tempo e memória. A narrativa apresenta uma memória inconsciente – memória que entendo como experiência de vida, de aprendizagem. Ressalto aqui o momento em que o autor narra sobre a obra de Graciliano Ramos, São Bernardo, que se encontra no capítulo treze. São vários mundos e temporalidades que se entrelaçam naquele São Bernardo: o caos, a desordem, a doença, a morte, a traição, enfim:

Percebe-se que em São Bernardo é o espaço ficcional que permite figurar tudo isso, a um só tempo, fundindo e confundindo temporalidades históricas. Seu Ribeiro, Paulo Honório, Madalena e Padilha são personagens, racionalidades, tempos, narrativas, memórias e linguagens simultâneas, afins e diferentes. Até porque a viagem narrativa de Seu Ribeiro em direção a um tempo pretérito de felicidades pode significar um simbólico recuo de Paulo Honório… (pp. 207-208).

Sua concepção de tempo e a forma como foi articulada na narrativa fez-me recordar uma experiência que acredito em muito assemelhar-se ao que o autor entende por tempos múltiplos. A imagem que chega aos sentidos é a da travessia de um rio, em particular do rio Ipanema, que corta o município de Águas Belas/PE, onde nasci e vivi até atingir a maioridade. Em determinada época do ano (claro que com mais regularidade que em anos recentes) seu leito era coberto pelas águas e sua travessia exigia certas habilidades. Suas águas escuras não nos permitiam ver onde estávamos pisando, de modo que cada passo precisava ser dado com cautela, sendo necessário examinar a segurança do passo seguinte. A depender da força de suas águas, era praticamente impossível realizar a travessia em linha reta, mas sempre em diagonal, acompanhando o curso de sua correnteza. E não significava que uma vez feito o traslado havíamos descoberto uma passagem segura para as novas travessias, isso porque nunca sabemos como se comportam as correntezas, visto que em determinados momentos mudam de direção, fazendo surgir naquele caminho outrora seguro inúmeras armadilhas, depressões. As correntezas não necessariamente têm o mesmo sentido, há uma dinâmica imprevisível, em dado momento poderão nos levar para o fundo do leito, ou projetar uma força capaz de fazer flutuar sobre as águas o aventureiro, ou mesmo o conduzir em movimentos circulatórios, enfim, poderá ainda nos levar rio abaixo ou rio acima.

Essa obra é também uma travessia, uma passagem. O tempo no livro Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, em minha leitura, não se apresenta seguindo uma linearidade, pelo contrário, ele é curvo, cheio de surpresas, de idas e vindas como são os trajetos que percorremos em um labirinto. A construção dos vários textos que compõem este livro teve seu tempo, e eles apresentam marcas da nossa contemporaneidade.

Márcio Ananias Ferreira Vilela – Universidade Federal de Pernambuco.


SIQUEIRA, Antônio Jorge. Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades. Resenha de: VILELA, Márcio Ananias Ferreira. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.32, n.1, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

 

Neocolonial/ Modernismo e Preservação do Patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil | Maria Lúcia Bressan Pinheiro

A noção de patrimônio histórico foi construída, ao longo do século XIX, paralelamente ao processo de formulação ideológica e política do Estado-Nação. Essa nova forma de conceber o Estado estava preocupada com a construção de uma identidade nacional pautada na elaboração da ideia de passado compartilhado.

Tal qual na Europa, houve no Brasil, desde o século XIX, uma preocupação com a definição de uma identidade nacional. O patrimônio nacional, nesse contexto, devia remeter-se a um passado relacionado a eventos, símbolos e personagens representados materialmente e referentes a uma história considerada remota. A história remota considerada conveniente à reescritura do passado dentro do projeto de constituição da identidade nacional brasileira foi a do período colonial.

Parte significativa do debate acerca dos elementos que deviam constituir essa tradição nacional deu-se no campo da arquitetura. Entre o final do século XIX e o começo do XX, defensores da arquitetura colonial entenderam que os edifícios construídos entre os séculos XVI a XVIII reuniam os elementos necessários para que fossem eleitos os melhores representantes dessa tradição artístico-arquitetônica nacional. Caberia, assim, aos arquitetos contemporâneos dar continuidade a tal tradição através da formulação de novas propostas arquitetônicas de caráter vernáculo, a partir das bases estilísticas lançadas pelos edifícios coloniais. Foi com tal intuito que durante as primeiras décadas do século XX surgiram duas novas vertentes arquitetônicas: a do estilo Neocolonial e a do Modernismo. Em Neocolonial, Modernismo e Preservação do Patrimônio no Debate Cultural dos anos 1920 no Brasil, na contramão de uma tradição historiografia que vê estas duas propostas como antagônicas, a historiadora Maria Lúcia Bressan Pinheiro, busca as conexões e as correspondências entre elas por meio do exame dos discursos proferidos pelos seus respectivos patronos.

O livro, fruto da tese de Livre-Docência da autora pela USP, traz uma análise dos debates em torno da formulação e da difusão dessas novas modalidades arquitetônicas na década de 20. Segundo a autora, a emergência do estilo Neocolonial e da Arquitetura Modernista foi fruto da necessidade de perpetuar o caráter tradicional da arquitetura brasileira através de novas práticas que se colocavam como legítimas representantes da tradição artístico-arquitetônica nacional.

Nos cinco primeiros capítulos, a autora tenta reconstituir o percurso de formação e difusão do Neocolonial através dos escritos de diversos personagens que atribuíram ao estilo a função de dar continuidade à tradição arquitetural brasileira. Para tanto, estabelece conexões entre figuras de opiniões aparentemente opostas: de um lado, Ricardo Severo e José Mariano Filho – defensores do Neocolonial; do outro, Mário de Andrade e Lúcio Costa, que consideravam a arquitetura Modernista a legítima herdeira das tradições arquitetônicas coloniais.

Segundo a autora, o contato de Mário de Andrade e Lúcio Costa com os discursos formulados por Ricardo Severo e José Mariano foi importante para que os modernistas formulassem seu próprio conceito de arquitetura tradicional. Estabelecendo tais conexões entre opiniões aparentemente divergentes, a autora pretende mostrar que a defesa da arquitetura tradicional promovida pelos agentes do Modernismo deriva, em grande parte, do diálogo estabelecido com os patronos do Neocolonial.

A relação entre o discurso dos defensores do Neocolonial e do Modernismo analisada pela autora vai, porém, muito além da interação entre Severo, Mariano, Mário e Lúcio. Outros tantos personagens serão mencionados pela autora como pertencentes à rede de agentes envolvidos no debate arquitetônico na década de 20, entre os quais podemos destacar: Jean-Baptiste Debret, Fernando de Azevedo, Heitor de Mello, Araújo Vianna, José Washt Rodrigues, Raul Lino, Alexandre de Albuquerque, Gastão Bahiana, Victor Dubugras, Gregory Warchavchik.

O primeiro capítulo do livro começa por uma breve explanação sobre a contribuição de Debret para a valorização da arquitetura colonial. Segundo a autora, o conjunto de gravuras de edificações coloniais realizadas pelo artista no século XIX pode ser considerado fundamental para a compreensão daquilo que foi definido como o caráter formal da arquitetura brasileira, uma vez que parte dos elementos decorativos e ornamentais ilustrados por Debret na sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil seria posteriormente adotada como referência para os projetos arquitetônicos que tomavam por base a arquitetura colonial.

Ainda nesse capítulo, a autora prossegue sua argumentação avaliando o impacto das gravuras de Debret na concepção da ideia de arquitetura tradicional expressa por Ricardo Severo nas Conferências que realizou em 1914 e 1917: teria sido baseado nas ilustrações do pintor que o arquiteto português haveria definido os atributos formais da tradição arquitetônica – de caráter predominantemente português – que deveriam ser tomados como padrão para uma moderna concepção arquitetônica, o Neocolonial. Em seguida, pondera sobre os efeitos que as Conferências tiveram na série de artigos publicada por Mário de Andrade na Revista do Brasil, em 1920. Nesses escritos, Maria Lúcia identifica aspectos minuciosos da influência que Severo exerceu na concepção de arquitetura tradicional do autor de Macunaíma.

Nos segundo e terceiro capítulos, a autora investiga a repercussão do estilo defendido por Ricardo Severo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Ao comparar a difusão do Neocolonial nas duas capitais, conclui que a propagação do estilo foi muito mais rápida em São Paulo – capital que naquele momento acrescia sua importância no cenário político-econômico nacional – onde foi maior a popularidade dessa vertente junto aos arquitetos. Nomes como Ricardo Severo, Victor Dubugras e José Washt Rodrigues teriam assim contribuído para o “enriquecimento” arquitetônico de São Paulo, atendendo as exigências de uma elite que, segundo a autora, queria se diferenciar dos “estrangeirismos” arquitetônicos dos palacetes cariocas.

Os “estrangeirismos” arquitetônicos da então capital federal se deviam, na verdade, ao fato de que na cidade do Rio de Janeiro predominava uma arquitetura em estilo academicista, herdada do século XIX. Os estilos Neoclássico e Eclético preponderavam no panorama arquitetônico carioca durante a primeira década do século XX. De acordo com Maria Lúcia, somente a partir da Exposição de 1922, o Neocolonial começou a ser inserido no contexto carioca.

Contudo, no Rio de Janeiro os arquitetos do Neocolonial adotaram variantes ornamentais e decorativas da arquitetura tradicional que fugiam ao padrão encontrado em São Paulo. Fazendo uma análise dos projetos expostos no evento, a autora concluiu que neles predominavam elementos formais inspirados no estilo hispânico colonial. Essa peculiaridade do estilo Neocolonial edificado no Rio de Janeiro levou alguns dos defensores da “tradição colonial portuguesa” a criticarem a festividade, a superficialidade e a falsidade no uso dos ornamentos coloniais inspirados no estilo hispânico.

Um dos maiores críticos do uso dessa vertente hispânica foi o já mencionado José Mariano Filho. Considerado pela autora o paladino do Neocolonial no Rio de Janeiro, o pernambucano defendia que o caráter dos ornamentos tradicionais era eminentemente português – sinal de sua estreita relação com Ricardo Severo. Ambos, de fato, rechaçavam a prática comum entre os arquitetos de apenas imitar a decoração e os ornamentos dos edifícios coloniais, especialmente aqueles de tipo hispânico. Para eles, a verdadeira essência do Neocolonial devia ser a readaptação das formas tradicionais – ornamentos e decoração – às condições técnicas e materiais próprios do mundo “moderno”.

Assim, a autora sinaliza que dentre os projetos definidos como Neocoloniais havia divergências em relação ao emprego das formas tradicionais: enquanto para uns bastava reproduzir esses ornamentos para que as edificações fossem caracterizadas como Neocoloniais; outros, como Severo e Mariano, entendiam que o emprego correto das formas tradicionais dependia de uma “modernização” das mesmas a partir da realização de um estudo prévio, preferencialmente in loco.

No quarto capítulo (p. 155), a autora traz essas divergências em torno do emprego das formas tradicionais para o âmbito acadêmico, avaliando, também, como se deu a inserção e repercussão do estilo Neocolonial nas Escolas de Arquitetura de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Segundo Maria Lúcia, um dos maiores responsáveis pela inserção do Neocolonial no contexto acadêmico foi José Mariano Filho. Atuando na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, promoveu uma série de prêmios e excursões que, segundo a autora, intencionavam impulsionar os alunos a se dedicarem ao estudo da tradição artístico-arquitetônica nacional.

Um dos alunos beneficiados pelos prêmios e excursões promovidos por Mariano foi o futuro arquiteto modernista Lúcio Costa. De acordo com a autora, a amizade entre os dois se desenvolveu desde esse período, quando o jovem arquiteto ainda estava em início de carreira. A relação entre esses grandes estudiosos da arquitetura tradicional brasileira foi marcada por um diálogo inicialmente afetuoso, que, segundo a autora, pode explicar o flerte que Lúcio teve com o Neocolonial (p. 181). Todavia, ainda mais notória que a amizade de ambos foi o seu rompimento, que resultou numa inimizade publicamente admitida, cuja razão, segundo Maria Lúcia, nunca foi muito bem esclarecida.

A autora afirma que o rompimento com Mariano não significou necessariamente que Lúcio Costa deixasse de levar em consideração alguns dos princípios formais da arquitetura tradicional formulados pelos patronos do Neocolonial. Na realidade, para Maria Lúcia, não há dúvidas de que o contato com Mariano e o Neocolonial foi fundamental para que Lúcio formulasse seu próprio conceito de arquitetura tradicional. Essa influência que o Neocolonial exerceu sobre Lúcio Costa, segundo a autora, é suficiente para desmistificar a ideia de abismo entre Neocolonial e Modernismo.

Nos dois últimos capítulos (p. 229 em diante), a autora trata das discussões que se deram, nesse mesmo período, em torno da preservação do patrimônio no país, procurando perceber a influência que esse debate em torno do Neocolonial e do Modernismo teve sobre a trajetória de criação de políticas de tutela e salvaguarda do patrimônio edificado brasileiro.

Nesse percurso, Maria Lúcia destaca a atuação de Manuel Bandeira como um dos primeiros intelectuais a promoverem o debate sobre a salvaguarda do patrimônio em defesa da arquitetura tradicional. A autora ressalta, ainda, o papel que o colecionismo desempenhou para proteção dos bens compreendidos como elementos da tradição artística brasileira.

Em seguida, em sua conclusão, a autora faz uma ponte entre o debate preservacionista dos anos 20 e as iniciativas governamentais em prol do patrimônio promovidas nos anos 30, cujo maior exemplo é a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Sphan. Nesse contexto, sinaliza o quão importante são as concepções de arquitetura tradicional debatidas na década de 20 para definição dos critérios de preservação e tombamento estipulados pelo órgão federal.

No entanto, nessa relação que a autora estabelece entre o debate arquitetônico nos anos 20 e os critérios adotados pelo Sphan para definição de patrimônio, não faz qualquer referência às recentes contribuições da historiografia acerca das discussões em torno da elaboração das políticas de patrimônio do Serviço, a exemplo das pesquisas realizadas por Márcia Chuva e Antônio Gilberto Ramos Nogueira.

Além disso, a autora restringe a análise das influências teóricas estrangeiras no debate entre Neocolonial e Modernismo aos escritos de William Morris e, principalmente, de John Ruskin. No que tange, por exemplo, à definição estilística das edificações coloniais, não há menções à produção historiográfica profícua em torno do estilo “barroco” na Europa, estilo que vem a ser considerado símbolo da arquitetura tradicional a partir dos anos 20.

De resto, o livro ainda que acompanhado por um grande número de citações e fotografias extraídas de fontes primárias, tais como as revistas Illustração Brasileira e Architectura no Brasil – documentos riquíssimos para compreensão do debate arquitetônico nas primeiras décadas do século XX – peca por não dar alguma indicação sobre os arquivos nos quais foram localizadas essas fontes, tão pouco trabalhadas pelos historiadores, que podem ser cruciais à continuidade dessa análise da dialética entre o Neocolonial e Modernismo.

Marília de Azambuja Ribeiro – Universidade Federal de Pernambuco

Angélica Cristina de Paula Botelho – Bolsista PIBIC (FACEPE) do Projeto Espaço urbano, arquitetura eclesiástica e cultura tridentina da Profa. Dra. Marília de Azambuja Ribeiro (Departamento de História, UFPE).


PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do Patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Edusp, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja; BOTELHO, Angélica Cristina de Paula. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.31, n.1, jan./jun. 2013. Acessar publicação original [DR]

 

O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853) | João José Reis e Flávio dos Santos Gomes

Nas últimas páginas de Alufá Rufino os autores ressalvam, talvez tardiamente, sobre as impressões que os leitores possam ter a respeito de uma inversão na imagem da escravidão atlântica, na verdade não uma inversão, mas outra versão, em que o binômio bom/mau se torna difuso. Tradicionalmente, a idéia de maldade para o catolicismo, o pecado (o mau) como oposição às coisas de Deus, como pensava São Tomás de Aquino, poderia ser aplicada para opor a religiosidade de Rufino, um Alufá – um mestre de sabedoria para uma corrente do islamismo – a sociedade branca oitocentista brasileira, mas não é o que acontece nas entrelinhas de sua história.

A religiosidade de Rufino não é vista neste livro como um fardo para o africano Rufino, ao contrário, tornar-se Alufá faz parte de uma série de escolhas que fizeram ímpar sua trajetória. Outros ex-escravos, vindos também da África e com uma vida dissonante da grande maioria, amealharam dinheiro, algumas vezes originário do tráfico negreiro, ou gozaram de certa relação privilegiada na comunidade, geralmente da relação com os cultos adivinhatórios, como mostrou João José dos Reis, um dos autores aqui, em seu livro sobre Domingos Sodré.

É preciso lembrar que os leitores referidos não são necessariamente historiadores ou aqueles que já leram as obras mais recentes que tratam da complexa rede que estruturou a escravidão, textos que discutem o fato de que não só na África houve comércio de escravos por negros. No Brasil, alguns libertos conseguiram adentrar, em pequeno volume, neste negócio.

Como o livro parece ter sido escrito para um público leitor maior do que o alvo de obras acadêmicas, as explicações sobre as nuanças mostradas sobre a vida de Rufino podem ter uma intencionalidade, talvez uma escrita que queira ser mais próxima de uma narrativa romanceada, com um personagem multifacetado que vai se modificando ao passar das páginas. Claro que Rufino não se transforma num personagem caricato aos moldes dos folhetins, suas experiências em diversas partes do Brasil e depois em navegações atlânticas o conduzem a uma série de oportunidades, como possivelmente ter aprendido o preparo de ungüentos com seu senhor, um boticário; ter se tornado um pequeno comerciante transatlântico e talvez de escravos; e ainda ter estudado em escolas islâmicas, aprendendo inclusive a ler e escrever árabe, o que provavelmente possibilitou sua condição de “mestre” em Pernambuco.

Estas oportunidades que levam Rufino a uma condição singular na história do tráfico negreiro do século XIX, também possibilita que os autores do livro o utilizem como um guia para diversos assuntos, como a empresa marítima do tráfico ilegal, a diversidade étnica e religiosa dos escravos e a sociedade branca brasileira, esta última através das páginas de jornal que noticiaram o caso da prisão de Rufino.

Algumas questões chamam a atenção neste livro, primeiro à alforria de Rufino, que além de inusual em sua forma, um documento que mais se aproxima de um alvará, o que podia ser uma forma também diferente dos padrões para um acordo com seu senhor, nos mostra sua desenvoltura na sociedade escravista, já que parece ter conseguido arrecadar o valor que se pagaria por um escravo no Rio Grande do Sul e assim comprar sua alforria. Segundo, a maneira que ele transitava no universo mercantil atlântico, com certas regalias, como a de levar caixas de goiabada numa embarcação, possivelmente de tráfico, para serem comercializadas na costa africana. E depois, continuar pleiteando os direitos a reparação de sua carga apreendida no Ermelinda, detida por acusação de tráfico de escravos.

Também é curiosa a certa tolerância de uma sociedade dominante cristã a religião do Islã praticada pelos africanos, sendo eles ladinos, mais experientes nas relações com os brancos, ou boçais, que deveria trazer suas convicções religiosas mais firmes, pelo menos com as práticas mais frescas na memória.

A curiosidade sobre a alforria de Rufino é que ele pode ter negociado sua liberdade através de um acordo muito particular, o que talvez justifique um documento que normalmente não serviria para este fim. Sendo Peçanha, senhor de Rufino, uma autoridade jurídica, atuando nesta peça como juiz e senhor, o documento tem até um peso maior, dando plenos direitos à liberdade, sem citar o valor de contrato. Isto mostra que havia um dinamismo na relação senhor-escravo2 que permitia certos acordos, os autores levantam a possibilidade que Rufino tenha pagado ao senhor 600 mil-réis, mas este dado não está incluído no documento por ser este um ato jurídico, como já dito, de uma atuação dupla, de autoridade e interessado ao mesmo tempo. Acredito que esta negociação pode ainda ter outros ingredientes que não foi possível demonstrar na pesquisa.

Se então Rufino pagou a importância declarada por ele, mostra que sua ladinização fora frutífera, talvez, como mostram os autores, ele já tivesse amealhado alguma importância ainda nas ruas da Bahia. A atividade comercial, feita por escravos de ganho, tornou-se tão disseminadas em algumas cidades brasileiras que gerou pressões de comerciantes sobre as autoridades. Em Salvador uma medida tentou regularizar a atividade comercial de rua, em 1835 a câmara da cidade editou lei que obrigava a fazer uma matrícula com nome, nome do senhor (caso fosse escravo), tipo de venda, tendo que ser atualizada mensalmente (Reis, p18, 1993).3

Sobre a capacidade de Rufino de utilizar as brechas existentes na sociedade escravagista brasileira é interessante também sua história atlântica, depois de ter vindo agrilhoado nos porões insalubres dos tumbeiros, alguns anos depois, já liberto, comandava a cozinha de embarcações que provavelmente alternavam sua carga entre mercadorias e escravos. A cozinha, como os autores destacam incisivamente, seria muito importante para o negócio ultramarino de cargas vivas, principalmente porque estar em alto-mar não permitia que as pessoas tivessem boas chances de permanecer vivas ante alguma doença violenta, as condições de transporte eram as piores possíveis. Uma provável condição de conhecedor das práticas de um boticário aumentaria o cartaz de Rufino, controlar a qualidade mínima dos alimentos e ainda ter algum tipo de conhecimento para aliviar um mal que pudesse ser tratado ali deveria fazer dele um profissional desejado pelas companhias atlânticas.

Decerto esta importância facilitou com que Rufino tivesse a oportunidade dele mesmo fazer um comércio atlântico, se ele conseguiu mesmo os 600 mil-réis que disse ter pagado por sua alforria, o preço médio de um escravo, não seria estranho pensar que ele tivesse certo traquejo para a negociação. O que também chama a atenção é que, de volta ao Brasil, seus contatos com os donos do Ermelinda não cessaram, provavelmente pelo interesse mútuo, se Rufino queria ser ressarcido por suas goiabadas estragadas, também seu nome constava como papel importante no processo de apreensão da embarcação.

Na última viagem de Rufino à África, ele continuou se aperfeiçoando nos estudos, desta vez o tempo que passou na escola de Fourah Bay parece ter sido suficiente para lhe preparar para ser um mestre islâmico, um Alufá, quando voltara para o Brasil. Apesar dos documentos que foram utilizados na pesquisa do livro se tratar de uma prisão e sua repercussão na imprensa, parece que em certa medida a religião de Maomé era mais tolerada que os cultos dos orixás. O que era estranho em vários sentidos, pois também praticavam adivinhações e uso de objetos rituais simbólicos em suas práticas.

Rufino, por exemplo, sobrevivia de curar males, prever o futuro e até mesmo retirar feitiço. E se a imprensa chamava quem praticavam tais atos de velhacos e oportunistas, é de se estranhar que Rufino tenha sido tratado diversas vezes por mestre ou por homem de sabedoria. Talvez a sua capacidade de escrever e ler árabe o colocasse numa posição diferente dos demais cultos, ou mesmo a sua clientela fosse a responsável por esta diferenciação. Ou seja, alguns brancos também acreditavam na capacidade espiritual do Alufá, não se sabendo quantos ou se os mesmo eram influentes.

Rufino dá margem para pensarmos que a relação entre negros e a sociedade branca brasileira, pelo menos nos subterrâneos, era permeável e que possibilitava até mesmo uma inversão de lugares, o Alufá era o mestre que propiciava conhecimento a quem o procurava, como podemos imaginar pelo relato de Rufino não eram somente os negros.

O livro termina deixando claro que Rufino foi um personagem da história brasileira, ou de uma história atlântica, que soube utilizar as fissuras da sociedade para sobreviver à violência da escravidão. Alguém que reconstruiu seu espaço, se colocando num outro lugar da embarcação negreira, os autores mostram que ele literalmente mudou de lado em relação à caldeira.

Esta reconstrução do espaço, dentro de possibilidades, é claro, se deu não só na relação econômica, mas em sua atividade social, reafirmando sua crença islâmica, ser Alufá o colocou numa posição de destaque numa pequena comunidade de escravos e libertos malês, e em certa medida, também o destacava na sociedade dominante. Rufino foi um guia dos autores para revelar relações que ocorriam na penumbra, que não são percebidas num rápido passar de olhos, mas que são importantes para entendermos a formação da sociedade brasileira, que se pensarmos em Gilberto Freyre, se tornaria cada vez mais matizada.

Notas

2. Para compreender mais sobre essa relação ver CHALLOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

3. João José Reis. A Greve Negra de 1857 na Bahia. Revista USP, 18, 1993.

Tissiano da Silveira1 – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CNPq. E-mail: [email protected]


REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim de. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.Resenha de: SILVEIRA, Tissiano da. A trajetória singular de Rufino. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.30, n.2, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

 

Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô | Peter Schröder

Quando se trata dos “índios”, no geral e mesmo ainda no meio acadêmico, após alguns anos de pesquisas e de convivência nesse ambiente com colegas de diferentes áreas do conhecimento, constatamos que um dos maiores desafios é a superação de visões exóticas para abordagens críticas, aprofundadas sobre a história, as sociodiversidades indígenas e as relações dos povos indígenas com e na nossa sociedade. E além do mais, quando diz respeito a povos como os Fulni-ô, falantes do Yaathe e do Português, sendo o único povo bilíngue no Nordeste (excetuando o Maranhão), habitando em Águas Belas no Agreste pernambucano a cerca de 300 km do Recife.

Sobre as sociodiversidades indígenas em nosso país o índio Gersem Baniwa (os Baniwa habitam as margens do Rio Içana, em aldeias no Alto Rio Negro e nos centros urbanos de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos/AM), que é Mestre e recém-Doutor em Antropologia pela UnB, publicou o livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, onde escreveu:

A sua diversidade, a história de cada um e o contexto em que vivem criam dificuldades para enquadrá-los em uma definição única. Eles mesmos, em geral, não aceitam as tentativas exteriores de retratá-los e defendem como um principio fundamental o direito de se autodefinirem. (BANIWA, 2006, p.47).

Após discorrer sobre as complexidades das organizações sociopolíticas dos diferentes povos indígenas nas Américas, questionando as visões etnocêntricas dos colonizadores europeus o pesquisador indígena ainda afirmou:

Desta constatação histórica importa destacar que, quando falamos de diversidade cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de organizações sociais, econômicas e politicas construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras civilizações dos demais continentes europeu, asiático, africano e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas diferentes. (BANIWA, 2006, p.49).

Na Introdução do livro aqui resenhado, o organizador da coletânea Peter Schröder de forma bastante emblemática e provocativa afirmou: “É fácil escrever alguma coisa sobre os Fulni-ô” sendo o bastante recorrer a uma bibliografia existente. Mas, no parágrafo seguinte Schröder enfatizou o quanto é difícil escrever sobre aquele povo indígena, diante do desconhecimento resultante de barreiras impostas pelos Fulniô que impedem o acesso ao conhecimento da sua organização sociopolítica e expressões socioculturais, notadamente a língua e o ritual religioso do Ouricuri. E ainda as contestações e questionamentos dos índios aos escritos a seu respeito, elaborado por pesquisadores, mais especificamente pelos antropólogos.

Após o texto onde o organizador da coletânea procurou situar de forma resumida a história territorial Fulni-ô, segue-se o texto de Miguel Foti que resultou da Dissertação de Mestrado na UnB em 1991, onde o antropólogo procurou descrever e refletir a partir do cotidiano durante seu trabalho de campo, o universo simbólico Fulni-ô baseado na resistência do segredo das expressões socioculturais daquele povo indígena.

O texto seguinte de Eliana Quirino, que teve sua promissora trajetória de pesquisadora interrompida com o seu falecimento repentino em outubro de 2011, é uma discussão baseada principalmente na sua Dissertação de Mestrado em Antropologia/UFRN. Tendo como base as memórias Fulni-ô, a exemplo do aparecimento da imagem de N. Sra. da Conceição, a participação indígena na Guerra do Paraguai, a marcante e sempre remorada atuação do Pe. Alfredo Dâmaso em defesa dos índios em Águas Belas, a autora discutiu como essas narrativas são fundamentais para afirmação da identidade indígena e os direitos territoriais reivindicados.

Um exercício de discussão sobre a identidade étnica a partir do próprio ponto de vista indígena foi realizado no texto seguinte por Wilke Torres de Melo, indígena Fulniô formado em Ciências Sociais pela UFRPE e atualmente realizando pesquisa de mestrado sobre o sistema político daquele povo indígena. Em seu texto, Wilke procurou evidenciar as imbricações entre identidade étnica e reciprocidade, discutindo as relações endógenas e exógenas de poder vistas a partir do princípio da união, do respeito e da reciprocidade baseados na expressão Fulni-ô Safenkia Fortheke que segundo o autor caracteriza e unifica aquele povo indígena.

A participação de Wilker na coletânea é bastante significativa por se tratar de uma reflexão “nativa” e, além disso, como informou o organizador na Introdução do livro, numa iniciativa inédita e antes da publicação todos os artigos foram enviados ao pesquisador indígena para serem discutidos entre os Fulni-ô, como forma de apresentarem sugestões e as “visões Indígenas” sobre conteúdos dos textos.

Uma contribuição com uma abordagem diferenciada é o artigo de Carla Siqueira Campos, resultado de sua Dissertação em Antropologia/UFPE onde a autora discute a organização e produção econômica Fulni-ô, fundada no acesso aos recursos ambientais no Semiárido, nas diferentes formas de aquisição de recursos econômicos por meios de salários, aposentadorias e os tão conhecidos “projetos” (aportes externos de recursos financeiros) e as suas influências na qualidade de vida dos indígenas.

O artigo seguinte da coletânea de autoria de Áurea Fabiana A. de Albuquerque Gerum uma economista, e Werner Doppler estudioso alemão de sistemas agrícolas rurais nos trópicos, a primeira vista parece muito técnico devido às várias tabelas e gráficos. Seus autores discutiram com base em dados empíricos as relações ente a disponibilidade de terras, a renda das famílias a o uso dos recursos produtivos entre os Fulni-ô.

No último artigo da coletânea, Sérgio Neves Dantas abordou como as músicas Fulni-ô expressam aspectos das memorias identitárias e mística daquele povo indígena. O autor procurou também evidenciar a dimensão poética e sagrada dessa musicalidade. Sua análise baseia-se, sobretudo, na produção musical contemporânea gravada por grupos de índios Fulni-ô, como forma de afirmação da identidade étnica daquele povo.

Publicado como primeiro volume da Série Antropologia e Etnicidade, sob os auspícios do NEPE (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade), um dos núcleos de pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFPE, o livro é composto por sete artigos é complementado com uma relação bibliográfica comentada sobre os Fulni-ô, trazendo ainda em anexo vários documentos relativos às terras daquele povo indígena.

A publicação dessa coletânea é muito oportuna pelo fato de reunir um conjunto de textos, com diferentes olhares e abordagens que procuram fugir do exotismo, como também do simplismo em tratar sobre um povo tão singular, situado no contexto sociohistorico do que se convencionou chamar-se o Semiárido no Nordeste brasileiro, onde a presença indígena foi em muito ignorada pelos estudos acadêmicos e deliberadamente negada seja pelas autoridades constituídas, seja também pelo senso comum.

Diante exíguo conhecimento que se tem sobre os Fulni-ô e da dispersão dos poucos estudos publicados a respeito daquele povo indígena, provavelmente a primeira edição dessa importante coletânea será brevemente esgotada. Pensando em uma segunda edição seguem algumas sugestões. A primeira diz respeito ao próprio titulo do livro, pois da forma com estar ao ser referenciado os Fulni-ô aparecem como última parte do título: Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô. Para um efeito prático da referenciação bibliográfica propomos então uma inversão no título para: os Fulni-ô: cultura, identidade e território no Nordeste indígena.

Sugerimos também a inclusão de mapas de localização de compreenda o Nordeste, Pernambuco, o Agreste e Águas Belas onde habitam os Fulni-ô. A nosso ver tais mapas são imprescindíveis, pois possibilitarão a visualizar o povo indígena em questão e contexto das relações históricas e socioespaciais onde o grupo estar inserido. Sabemos que imagens de uma forma em geral encarecem a produção bibliográfica, todavia a inclusão de fotografias, ao menos em preto e branco, também enriqueceria e muito as abordagens dos textos.

Por fim, uma pergunta: para enriquecer mais ainda a coletânea, porque não acrescentar na Introdução de uma reedição comentários sobre quais foram às argumentações dos Fulni-ô a respeito das leituras prévias dos textos antes da publicação e como ocorreu a recepção daquele povo ao receber o livro publicado?

Lamentamos a ausência na coletânea de artigos na área História. Infelizmente frente ainda ao pouco interesse de historiadores sobre a temática, colegas de outras áreas, principalmente da Antropologia, cada vez procuram suprir essa lacuna, realizando pesquisas em fontes históricas para embasarem seus estudos e reflexões a respeito dos povos indígenas.

Ainda para uma segunda edição ou um possível e merecido segundo volume da coletânea, lembramos o estudo A extinção do Aldeamento do Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da imagem dos “índios misturados” no século XIX, apresentado em 2006 por Mariana Albuqquerque Dantas como Monografia de Conclusão do Curso de Bacharelado em História/UFPE.

A mesma autora defendeu na UFF/RJ em 2010 a Dissertação de Mestrado intitulada História dinâmica social e estratégias indígenas: disputas e alianças no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas, Pernambuco. (1860-1920). São duas pesquisas amplamente baseadas em fontes históricas disponíveis no Arquivo Público Estadual de Pernambuco e nas discussões da produção bibliográfica atualizada sobre os povos indígenas no Nordeste.

No momento em que a sociedade civil no Brasil, por meio dos movimentos sociais principalmente na Educação, questiona os discursos sobre uma suposta identidade cultural nacional, a publicação dessa coletânea reveste-se, portanto, de um grande significado. A afirmação das sociodiversidades no país, questionando a mestiçagem como ideia de uma cultura e identidade nacional, significa o reconhecimento dos povos indígenas (Silva, 2012), a exemplo dos Fulni-ô, em suas diferentes expressões socioculturais.

Buscando compreender as possibilidades de coexistência socioculturais, fundamentada nos princípios da interculturalidade,

a interculturalidade é uma prática de vida que pressupõe a possibilidade de convivência e coexistência entre culturas e identidades. Sua base é o diálogo entre diferentes, que se faz presente por meio de diversas linguagens e expressões culturais, visando à superação de intolerância e da violência entre indivíduos e grupos sociais culturalmente distintos. (BANIWA, 2006, p.51).

Essa coletânea é uma excelente referência tanto para pesquisadores especializados no estudo da temática indígena, como para as demais pessoas interessadas sobre o assunto e principalmente professores indígenas e não-indígenas que terão em mãos uma fonte de estudos sobre o tema, mais precisamente ainda na fragrante ausência de subsídios, objetivando atender as exigências da Lei 11.645/2008 que determinou a inclusão no ensino da história e culturas afro-brasileira e dos povos indígenas nas escolas públicas e privadas no Brasil.

Referências

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, MEC/Secad; Museu Nacional/UFRJ, 2006.

DANTAS, Mariana Albuqquerque. A extinção do Aldeamento do Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da imagem dos “índios misturados” no século XIX. Recife, UFPE, 2006. (Monografia de Bacharelado em História)

_______. História dinâmica social e estratégias indígenas: disputas e alianças no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas, Pernambuco. (1860-1920). Rio de Janeiro, UFF, 2010. (Dissertação Mestrado em História).

SILVA, Edson. História e diversidades: os direitos às diferenças. Questionando Chico Buarque, Tom Zé, Lenine… In: MOREIRA, Harley Abrantes. (Org.). Africanidades: repensando identidades, discursos e ensino de História da África. Recife, Livro Rápido/UPE, 2012, p. 11-37.

Edson Silva – Doutor em História Social pela UNICAMP. Leciona no Programa de Pós-Graduação em História/UFCG (Campina Grande-PB) e no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena na UFPE/Campus Caruaru, destinado a formação de professores/as indígenas. É professor de História no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE/Campus Recife E-mail: [email protected]


SCHRÖDER, Peter. (Org.). Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. Resenha de: SILVA, Edson. Os Fulni-ô: múltiplos olhares em uma contribuição para o reconhecimento das sociodiversidades indígenas no Brasil. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.30, n.2, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

La cambiante memoria de la dictadura: discursos públicos, movimientos sociales y legitimidad democrática | Daniel Lvovich e Jaquelina Biquert

Andreas Huyssen, em seu texto Resistência à memória: os usos e abusos do esquecimento público (2004), afirma que a sociedade contemporânea permanece obcecada com a memória e com os traumas provocados pelo genocídio e pelo terror de Estado. Tendo em vista este quadro, o esquecimento teria se tornado sinônimo de fracasso ou, como considera Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 54), o elemento final de tudo aquilo que pesa “sobre a possibilidade da narração, sobre a possibilidade da experiência comum, enfim, sobre a possibilidade da transmissão” da lembrança e da construção histórica. Nesta perspectiva, do culto às memórias sensíveis e do gradativo aumento da produção historiográfica sobre esta temática, está a análise proposta no livro La cambiante memoria de la dictadura: discursos públicos, movimientos sociales y legitimidad democrática, dos pesquisadores argentinos Daniel Lvovich e Jaquelina Bisquert, ambos docentes da Universidad Nacional General Sarmiento.

Em pouco mais de cem páginas, os autores propõem algumas reflexões tanto dos usos políticos da memória sobre a ditadura militar, como sobre as mudanças das representações e dos discursos sobre o período na Argentina. Para tanto, o livro foi dividido em seis capítulos, que abordam períodos distintos, que se iniciam no ano do golpe, em 1976, e terminam no ano de 2007, quando se encerra um ciclo de importantes investimentos por parte do Estado na construção de políticas de memória.

Já na introdução do livro, os autores propõem uma problematização do papel que a memória ocupa na sociedade argentina e que, em seu uso cotidiano, tornou-se uma bandeira que preenche um espaço singular na reivindicação de grupos distintos que clamam por “memória e justiça”. Outro aspecto relevante nesta parte do texto é a importante distinção entre as duas tradicionais formas de representação do passado: a história e a memória.

Na visão de Lvovich e Bisquert, a história tem como função abordar o passado em conformidade com exigências disciplinares, aplicando procedimentos críticos para tentar explicá-lo, compreendê-lo e interpretá-lo da melhor maneira possível. Já a memória está ligada às necessidades de legitimar, honrar e condenar (p. 07). Como parece consensual no debate sobre o tema, a memória tem sua importância na coesão e na formação identitária dos povos, ainda que se deva considerar o quanto operam sobre ela as subjetividades individuais, e como distintos grupos representam o passado de formas – não raras vezes – contraditórias. O que significa dizer que, se o passado é único, imutável, é preciso considerar que os seus sentidos e significados não o são.

À medida que novas demandas sociais ou novos grupos de poder emergem, podem ocorrer substantivas mudanças na construção discursiva do passado. Os autores chamam, assim, a atenção para o fato de que, já há algumas décadas, a memória tornou-se uma preocupação central na cultura e na política, movimento assinalado pela criação de museus, monumentos e comemorações – muito em função da internacionalização das memórias das vítimas da Segunda Guerra Mundial (p. 09).

O primeiro capítulo El discurso militar y sus impugnadores (1976-1982) é dedicado ao estudo da formação do discurso militar sobre sua chegada ao poder e das justificativas construídas para as suas ações violentas. A diferença do golpe militar de 1976 frente aos outros desencadeados naquele país estaria, sem dúvida, no papel adotado pelas Forças Armadas, que assumiram para si a responsabilidade de ser “salvadora” e “revolucionária”, com propostas de mudanças na sociedade argentina, após o caótico governo de Maria Estela Martinez.

O Proceso de Reorganización Nacional tinha por objetivo reestabelecer a “vigência dos valores da moral cristã, da tradição nacional e da dignidade de ser argentino”, bem como, assegurar “a segurança nacional, erradicando a subversão e as causas que favorecem sua existência” (p. 17). De forma semelhante ao que aconteceu em outros países da América Latina, o discurso construído em cima da figura do inimigo do regime recai no subversivo, no antiargentino que, além de praticar o terrorismo, através de suas ideias ofende a moral. Não só mata militares, como também é o que incita a briga familiar, joga pais contra filhos, leva a contestação até as escolas e as fábricas. É contra este indivíduo que o Estado entrou em “guerra interna”, justificando suas violações aos Direitos Humanos.

Outra noção de guerra, agora externa, foi também utilizada pelos militares para justificar a entrada na Guerra das Malvinas (1982), a fim de gerar um consenso na sociedade sobre a necessidade de tal aventura. Abordando tais temas, os autores apontam nesta primeira parte para as formas com que as Forças Armadas conduziram o discurso sobre sua atuação.

O segundo capítulo La transición democrática y la teoria dos demonios (1983- 1986) analisa a primeira mudança na construção do discurso sobre o período. Com a derrota na Guerra das Malvinas (que levou o regime ao colapso), a atuação cada vez mais significativa das organizações de Direitos Humanos e com o julgamento da Junta Militar o discurso do Estado caiu paulatinamente em descrédito. A versão que vem à baila é a trazida pelo Informe Nunca Más, em que aparece a clássica teoria “dos demônios”.

Esta teoria diz que a Argentina esteve durante anos sob a violência política praticada por dois extremos ideológicos: o Estado e a guerrilha. Todavia, a sociedade, sob este prisma, está alheia a tudo isto, e mais, ela é vítima da ação dos demonios e é isentada de qualquer responsabilidade na eclosão do golpe de 1976. No prólogo do Informe se condena abertamente a violência terrorista, independente de sua origem ideológica, e se assume uma perspectiva baseada tão somente na dicotomia entre ditadura e democracia, o que silencia as responsabilidades de civis e militares na repressão surgida ainda no governo de Maria Estela Martinez (p. 35). Outro cambio de interpretação se deu na visão sobre a guerra das Malvinas. Com a derrota da Argentina, os soldados entraram para a história como vítimas, inocentes e inexperientes, que “foram enviados para morrer e não para matar” (p. 40).

O terceiro capítulo, Un pasado que no pasa (1987-1995) trata, principalmente da fragilidade de se abordar essa memória recente da ditadura em um período de reconstrução democrática. Após o período de turbulência durante o governo de Raul Alfonsín veio o governo de “pacificação nacional”, de Carlos Menem. Ou seja, as agitações causadas pelas polêmicas acerca das leis de obediência devida e punto final e pelo ataque ao quartel de La Tablada, o país mergulha em uma tentativa institucional de abrandar essas questões. Tal política, que incluía indultos a militares sublevados, relativizou a questão do terror de Estado. Para o presidente, somente com o passado reconciliado se poderia “abrir as portas para um futuro promissor”. Segundo os autores, Menem incitou a nação a construir uma memória baseada no esquecimento (p. 53), o que, contudo, teve efeito contrário, já que a memória sobre a repressão continuava cada vez mais viva e a sociedade cada vez mais sectarizada.

El boom de la memória (1995-2003) é o quarto capítulo, que trata do período em que a memória sobre a repressão veio à cena pública de modo mais impactante – seja na sociedade, seja nos ambientes acadêmicos. O fator responsável por este fenômeno foi a confissão de Adolfo Scilingo sobre sua participação nos chamados vôos da morte. O acontecimento teve o efeito de desencadear uma série de “autocríticas” entre os militares, que se diziam arrependidos de sua atuação na repressão. Somado a isto, novas organizações de Direitos Humanos, como os H.I.J.O.S (Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio) passaram também a inovar no método de pedir justiça, sob a forma de escrache.

Essa nova forma de protestar (o escrache) consistia em uma marcha até a residência de algum repressor a fim de grafitar o local e avisar à comunidade que seu vizinho foi um colaborador ou repressor. O avanço dos meios de comunicação, sem dúvida, auxiliou nessa fase de boom, com a divulgação de fotografias, vídeos e filmes, fazendo com que surgisse uma demanda social que clamava pela abertura dos arquivos da repressão. A academia não ficou alheia a este debate e a memória sobre o período e seus desdobramentos tornou-se um objeto de reflexão bastante visitado nas universidades.

A partir do ano de 2001, começaram a surgir os “lugares de memória”, lugares de homenagem às vítimas da repressão. Esta “hipermemória”, como escrevem os autores, converteu as vitimas em heróis revolucionários, estabelecendo uma nova divisão social – ainda simples e maniqueísta, entre bons e maus (p. 74).

Las políticas de memoria del Estado (2003-2007) é o capítulo que encerra o livro, descrevendo e analisando a importância dada à questão dos Direitos Humanos e à questão dos julgamentos durante o governo de Néstor Kirchner. Com a declaração da inconstitucionalidade das leis Punto final e obediência devida, dezenas de processos tiveram que ser revistos e novos julgamentos voltaram a ocorrer. A centralidade deste capítulo está na discussão sobre como a memória das vítimas do regime tornou-se forte, eliminando quase que por completo a versão militar dos fatos.

Outros pontos importantes discutidos dizem respeito à proliferação dos centros de memória, em especial, da Escuela Superior de Mecanica de la Armada (com todo o debate sobre como utilizar este espaço, para transformá-lo em museu) e à importância das manifestações de rua nas comemorações do 24 de março, aniversário do golpe, sobretudo, na comemoração dos seus 30 anos, em que o presidente chamou a atenção para o fato que “não só as forças armadas tiveram responsabilidade do golpe. Setores da sociedade tiveram sua parte: a imprensa, a igreja e a classe política” (p. 87).

Com um texto simples em sua linguagem, mas repleto de importantes referências historiográficas e de fontes jornalísticas acerca do tema, os autores ilustram todo o processo pelo qual a “história da memória” sobre a ditadura e o terror de Estado passou ao longo de aproximadamente trinta anos na Argentina.

O livro lança luzes sobre os debates que aconteceram na sociedade durante este período, mostrando que, mesmo quando uma ou outra visão prevalecia, ela não aparecia sem que houvesse vozes dissonantes no interior dos muitos grupos sociais e políticos. Sendo assim, trata-se de um livro importante para quem quer compreender o estágio atual da sociedade argentina, que levou muito recentemente grandes repressores ao banco dos réus, colocando aquele país como o mais adiantado entre seus vizinhos no que diz respeito à justiça de transição. La cambiante memoria de la dictadura desperta a curiosidade sobre este tema, que ainda rende – e renderá entre os argentinos e entre os brasileiros – apaixonadas e calorosas discussões.

Referências

GABNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

HUYSSEN, Andreas. Resistência à memória: os usos e abusos do esquecimento público. In: BRAGANÇA, Aníbal e MOREIRA, Sonia Virginia. Comunicação, Acontecimento e Memória. São Paulo: Intercom, 2005.

LVOVICH, Daniel y BISQUERT, Jaquelina. La cambiante memoria de la dictadura: discursos públicos, movimientos sociales y legitimidad democrática. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2009.

Diego Omar da Silveira – Universidade Federal de Minas Gerais.

Isabel Cristina Leite – Universidade Federal do Rio de Janeiro.


LVOVICH, Daniel; BISQUERT, Jaquelina. La cambiante memoria de la dictadura: discursos públicos, movimientos sociales y legitimidad democrática. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2009. Resenha de: SILVEIRA, Diego Omar da; Leite, Isabel Cristina. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.30, n.1, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]

O Mundo em 2050: como a Demografia, a Demanda de Recursos Naturais, a Globalização, a Mudança Climática e a Tecnologia Moldarão o Futuro | Laurence Smith

Editado recentemente pela Editora Elsevier, o livro do geocientista americano, especialista em impactos geofísicos da mudança climática e consultor do governo dos Estados Unidos Laurence C. Smith, com o título em português O Mundo em 2050. O Futuro de Nossa Civilização, a partir do próprio título deixa o leitor curioso a respeito do seu conteúdo.

Smith não se concentra somente em um setor, como o crescimento populacional, ou mesmo, o futuro das fontes energéticas. Ele procura mostrar, com a ajuda da Geografia e da História, como as condições atuais de tratamento da Natureza, deixarão marcas duradouras no futuro.

Para isso, se utiliza de modelos computacionais altamente sofisticados, pois, como se sabe, essas forças – demografia, demanda de recursos, globalização e mudança climática – estão intimamente interligadas, tendo o poder de moldar o nosso futuro. Daí, com a ajuda desses modelos, o cientista acredita ter condições de analisar tendências, convergências e possíveis paralelos entre elas. Pretende, através de uma base científica, formalizar uma ideia do que poderá ocorrer nos próximos 40 anos, a partir das tendências atuais, uma vez que estas poderão ser previstas e extrapoladas para o futuro.

Nas suas pesquisas, Smith chegou à conclusão que o aquecimento ampliado do clima começou no Norte, daí, faz as seguintes perguntas: qual o significado disso para os povos e ecossistemas da região? Quais as suas tendências políticas e demográficas? O que isso representaria no que diz respeito aos vastos depósitos de combustíveis fósseis que se acredita haver abaixo do leito dos seus oceanos? De que maneira se transformaria, por pressões ainda maiores que vem se acumulando ao redor do mundo? Que aconteceria se, como sugerem muitos modelos climáticos, nosso planeta for assolado por ondas de calor insuportáveis, secas e a consequente queda da produção agrícola? Será que haveria a possibilidade de surgir novas sociedades humanas em lugares que, hoje, nos parecem inóspitos?

São essas as questões que o autor tenta responder ao longo da discussão que, como vemos pelo próprio título da obra, trata do futuro do planeta. No diagnóstico desse futuro, o autor analisa, por exemplo, os gases do efeito estufa e a oferta de recursos naturais. O autor tem, ainda, a preocupação de projetar quarenta anos no futuro, estudando de perto o que se passa hoje na natureza e o porquê dos fatos.

Para discutir o futuro é preciso entender o passado. Assim, em ordem histórica de importância, o autor analisa as quatro forças globais que há séculos vem, em processo, contribuindo para moldar o nosso mundo em 2050: a demografia, a demanda por recursos naturais, a globalização e a mudança climática.

Ao tratar da primeira força, a demografia, o autor traz uma série de números a respeito do crescimento populacional, desde o advento da agricultura, quando “havia talvez um milhão de pessoas no mundo”, até os dias de hoje, quando a população mundial chegou aos “sete bilhões em 2011” (p.9). A crescente demanda por recursos naturais e serviços, resultante de uma população mundial que não para de crescer também é motivo de sua análise. O fenômeno da globalização é visto pelo autor, como um conjunto de processos econômicos, sociais e tecnológicos, que está tornando o mundo mais interconectado e interdependente – aí ele percebe implícita uma política cultural e ideológica.

No que tange às mudanças climáticas, faz um histórico do desenvolvimento do efeito estufa que, já em 1820, teve sua existência deduzida pelo matemático francês Joseph Fourier (que deduziu que a terra estava muito mais quente que costumava ser, dada a sua distância em relação ao sol). Smith não deixa de citar, neste sentido, o papel da tecnologia, considerada por ele a quinta força, que pode servir de capacitador ou freio para as quatro forças globais, na medida em que tem condições de corrigir problemas.

A partir desta introdução o autor passa a fornecer ao leitor dados e tendências essenciais que ajudam a entender a dinâmica do desenvolvimento que engendrará a imagem do ano 2050. Para isso, recorre ao debate que os cientistas vêm fazendo em nível mundial e que diz respeito à substituição de combustíveis fósseis por tipos de energias renováveis, assim como a possibilidade de reciclagem e poupança dos citados materiais. Abalizando os prós e contras da utilização de diferentes tipos de energia e matérias primas, Smith não descarta o grande potencial de conflito que poderá se desenvolver na exploração de recursos naturais, como água, petróleo e gás natural.

Nesse sentido, de onde viriam essas novas fontes de energia, em 2050? Através do hidrogênio como nos filmes de ficção científica? Dos biocombustíveis (etanol, a partir da cana ou da beterraba)? Da energia nuclear com seus riscos a saúde pública? Da energia hidrelétrica que gera atualmente 16% da eletricidade do mundo? Da energia eólica ou solar, setores em crescimento, sobretudo em países de altitudes médias e altas?

O autor é conclusivo no que diz respeito ao aumento de fenômenos climáticos extremos ou a elevação do nível do mar, mostrando como a mudança climática conduz a tempestades devastadoras.

Nesta perspectiva, cita a catástrofe que se abateu em 2008 sobre o estado de Iowa, que se destacou como a segunda maior em 136 anos. Em maio do mesmo ano, um tornado de categoria f5 atingiu o estado, além de outros 48 menores, todos eles com vítimas fatais. Enquanto isso, em 4 de junho do mesmo ano, o governado Arnold Schwarzneger anunciou uma grande seca no estado da Califórnia, grande produtor de produtos agrícolas dos EUA. Assim, de repente, a Califórnia se viu em meio a uma crise econômica histórica que atingiu o setor da habitação e os mercados de crédito globais, na eminência de perder mais de 80 mil empregos e U$$ 3 bilhões em receitas agrícolas.

Secas excepcionais castigaram países no mundo inteiro, ameaçando a agricultura e provocando incêndios (p.70), como os que alcançaram a Austrália, matando 200 pessoas. Em Chattisgarh, na Índia, 1.500 agricultores cometeram suicídio porque, com a seca, tiveram suas terras confiscadas pelo não pagamento das dívidas.

Para Smith, o problema central no futuro é que uma parcela crescente da população mundial viverá em locais onde a água, sem dúvida, será escassa. Na página 75, o autor comenta que,

enquanto 8 em cada 10 pessoas tem acesso a algum tipo de água melhorada, essa media global mascara intensas discrepâncias geográficas. Alguns países como Canadá, Japão e Estônia fornecem água potável a todos os seus cidadãos. Outros, especialmente na África, oferecem água potável a menos da metade da sua população. (SMITH, 2011, p. 75)

Outro fato aterrorizante, discutido pelo autor, é que já se pode constatar que cada vez mais multinacionais estão privatizando e consolidando os sistemas de abastecimento de água. Cita três exemplos destas: Suez Veolia Enviromental Services (ex- Vivendi) e Thames Water, que, expandindo-se, transformaram-se em empresas de comercialização de água em todo o mundo em desenvolvimento. Em 2009 a Siemens pagou um U$$ bilhão pela U.S Filter, maior fornecedor de produtos e serviços para tratamento da água da América do Norte. A General Eletric e a Dow Chemical também estão entrando no ramo da água (p.77) ao lado da Nalco, ITT e Danaher Corporation.

Contrariando o senso comum, o crescimento populacional e a industrialização representam, para o suprimento de água global, um desafio ainda maior que a mudança climática. O fornecimento de uma quantidade adequada de água para essa produção, a expansão dos parques industriais e, paralelamente, a necessidade de manter a água limpa nesse processo, será, para o autor, o grande desafio do século.

Ao considerar as mudanças climáticas o autor se concentra na análise da elevação das temperaturas no Norte, fato que está ocorrendo mesmo no período do inverno e em altíssimas altitudes. Ele afirma que qualquer processo de mudança climática “é errático ao longo do tempo” (p.104). A mudança climática apresenta ainda um segundo fato: a sua geografia nem sempre é global e nem sempre tende ao aquecimento. A mudança climática não é apenas errática no que diz respeito ao tempo, mas também em termos geográficos. Outro fato é que a mudanças climáticas ocorrerão diferentemente no globo, assim como as situações a elas ligadas: quando existe um aumento de temperatura em um local, não significa que em todos os lugares do globo ela sofra o mesmo aumento. Em alguns locais poderá ocorrer um aumento mais acentuado e em outros poderá ocorrer até mesmo um resfriamento.

O segundo cenário considera igualmente uma população mundial estabilizada e uma pronta adoção de novas técnicas de produção de energia, advindas tanto dos combustíveis fósseis como de combustíveis não fósseis. O terceiro cenário pressupõe um mundo heterogêneo, com forte crescimento populacional, um lento desenvolvimento econômico e uma lenta transição para novas tecnologias que produzam energia.

Smith mostra, ainda, de forma clara, que a mudança climática será bem mais pronunciada na região Norte. Em 2007 foi comprovado que 40% da calota polar derreteu, desaparecendo em questão de meses. Os modelos climáticos existentes não haviam previsto um fenômeno como esse, até pelo menos em 2035. Tais modelos não acompanharam a rapidez que o fenômeno se deu de fato. A fauna e a flora também sofreram o impacto dessa mudança de temperatura.

O autor mostra a mudança de comportamento do urso polar cujo lar é o gelo flutuante, onde caça, dorme e se acasala. O urso polar não hiberna no inverno. No verão, quando o gelo se desintegra e diminui, eles são forçados a migrar para a terra, por conseguinte sendo forçados a jejuar até a volta do gelo. Com isso, em 2004, foram confirmadas pelos biólogos três ocorrências em que ursos polares caçaram e comeram uns aos outros. O que significa dizer que a cadeia alimentar como um todo – do microscópico fitoplâncton ao urso polar –, que está intrinsecamente associada à presença do gelo oceânico está sendo prejudicada.

Não se pode esquecer que seres humanos também dependem do gelo, como os esquimós que vivem no litoral do Oceano Ártico, caçando focas, ursos polares, baleias, e outros peixes, onde já se vê uma mudança de hábitos. Milhares de quilômetros de distancia, nem por isso se entregam ao desespero. Toda essa discussão precedente levará o autor ao ponto principal, ou seja, as consequências dessa situação de aquecimento global e esgotamentos das fontes de energia tradicionais para os oito países que estão na zona do ártico: Rússia, EUA, Canadá, Islândia, Noruega, Finlândia, Dinamarca e Suécia, que terão possibilidades de se beneficiar, haja vista as riquezas do subsolo da região e outros valiosos recursos naturais. A partir dessas novas previsões, esses países estão, pelo menos, avaliando a implementação de novos esquemas na região.

Ampliando suas análises a respeito de 2050 o autor calcula que: a) a população mundial terá aumentado neste ano quase 50%, formando aglomerados urbanos próximos as latitudes mais baixas e quentes do planeta; b) estão surgindo países com grande potencial econômico como China, Índia e Brasil; c) grande parte da população viverá nas cidades e estará mais velha e mais rica; d) a água em muitos locais se tornará escassa; e) cidades sofrerão com a elevação do nível do mar; f) a agricultura irrigada praticamente não existirá.

Comprovadamente, o livro de Laurence C. Smith vale a pena ser lido. Escrito de modo fascinante o livro mostra metodologicamente as consequências socioeconômicas que derivam das mega-tendências do desenvolvimento mundial até o ano 2050, se valendo, para tanto, de dados respaldados em estudos econômicos, sociológicos, ecológicos e geológicos. O livro impressiona ainda pela abundancia de dados apresentados de forma clara e inteligente, numa leitura leve que não cansa o leitor (apesar das interligações feitas entre passado, presente e futuro). É leitura obrigatória para aqueles que se preocupam com a história ambiental e o futuro do planeta.

Ana Maria Barros dos Santos – Doutora pela Universidade Friedrich Alexander Erlangen-Nurnberg (Alemanha). Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. AMBS/UFPE.


SMITH, Laurence C. O Mundo em 2050: como a Demografia, a Demanda de Recursos Naturais, a Globalização, a Mudança Climática e a Tecnologia Moldarão o Futuro. Trad. Ana Beatriz Rodrigues. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Resenha de: SANTOS, Ana Maria Barros dos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.30, n.1, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]

Naciones de rebeldes. Las revoluciones de independência latinoamericanas. | Manuel Lucena Giraldo

Em seu mais recente livro, o historiador espanhol Manuel Lucena Giraldo (Centro Superior de Investigaciones Científicas CSIC Madri) nos apresenta com sua narrativa envolvente uma visão politizante da história das independências americanas por nos conduzir a uma reflexão fundamental acerca da experiência política que ali foi levada a campo. No vigor de uma renovação historiográfica que incorpora a nova história política, as redes de relações de poder, a história cultural, da ciência e da técnica, as singularidades antropológicas e espaciais dos mundos americanos, o novo interesse pelas instituições e constituições, e da qual ele é um representante de primeira hora, o autor coloca em perspectiva atlântica a compreensão dos impérios e inclui as periferias no âmbito de uma compreensão global.

A historiografia das revoluções de independência americanas ainda segue em muitas medidas o modelo providencialista, presente na imagem do cativeiro do povo de Israel no Egito, difundindo uma história pátria que exalta as virtudes republicanas de uma elite branca e criolla que, cansados da humilhação de espanhóis maus, rancorosos e avaros, revoltam-se. Além disso, elas fazem parte de um ciclo geral de fundação da modernidade política no mundo atlântico, no qual não apenas elas, mas todas as revoluções são subsidiárias da Revolução Francesa de 1789, tornando a experiência da liberdade uma fundação unicamente européia. Manuel Lucena nos adverte que essa simplificação da realidade obscurece as evidências sobre um processo politicamente muito mais rico para a América Latina.

Com a recusa em seguir pensando as independências como “coisa de branco apenas”, e sim que amerindios e afroamericanos tiveram um papel central no processo de independência, quer demonstrar, partindo de uma rigorosa compulsão de documentos e argumentos, a força criadora de uma experiência constitucional e institucional que sustentou de forma proteica os movimentos de independência; quer entender as lógicas que fundamentaram tradições democráticas ou eleitorais, que sustentaram esse desejo de república, que propiciaram a substituição de autoridades dos saberes, que parte da compreensão de que a dinâmica das periferias é tão complexa quanto a dos centros.

O olhar compreensivo sobre a história americana revolucionária se realiza com a promoção do encontro dos diversos horizontes envolvidos no processo. A perspectiva da política metropolitana na passagem do reinado de Carlos III a Fernando VII nos envolve nas políticas reformistas levadas então à cabo e no seu grande impacto, ainda que não desejado ou esperado, nos processos políticos americanos. Do mesmo modo, devolve a seu conjunto a “prodigiosa revolução haitiana, estranhamente marginalizada na historiografia libertadora” e a do Brasil, em geral ignorados nas análises de conjunto.

Esse constante diálogo entre mundos atlânticos e a necessidade de articular as política espanhola e americana é o que talvez tenha impedido um maior desenvolvimento do processo luso-brasileiro, que embora sintético, é correto, especialmente por evocar a similitude entre o ocorrido à raiz da luta por representações de americanos nas Cortes de 1820; pena não receber as cargas de complexidade aplicadas na realidade hispano-americana.

Oportunamente chegando aos leitores no momento das comemorações do bicentenário das independências, nos oferece um estudo que já deixa evidente ao leitor o desejo de compreender a história latino-americana levantando o véu do mito – uma perfeita aléteia, a consideração de uma verdade sempre encoberta, mas que se desvela apenas ao olhar compreensivo sobre a realidade e que admite frontalmente a complexidade dos processos. Há ressonâncias garciamarquianas no livro, que estão tanto no nome do capitão de milícia de índios guajiros, Clemente Iguarán, advertida pelo autor, como nos ataques a Riohacha ou nas aventuras e desventuras de mercenários escoceses e povos desafortunados nos ataques a povoados regalistas. A epígrafe evoca, com Borges, a relação delicada envolvida no processo de dizer a pátria para América Latina. De qualquer modo, não são os monumentos que traduzem esse sentimento, pois eles pertencem a umas memórias específicas: suas imagens românticas, seus mortos, seus heróis, poetas e aventureiros que entraram na construção dos mitos da independência latino-americana- não sintetizam o que seria a pátria. Mas se isso existe, vem de concretudes.

Toda a trama inicial de sua narrativa nos envia a um cenário caribenho em Cartagena das Índias, na Colômbia, onde todos os anos, após a temporada de furacões ocorre o evento mais popular de seu calendário, que é a comemoração da independência em 11 de novembro de 1811, levada por seus orgulhosos habitantes afrodescendentes, ao lado da cidade regalista de Santa Marta. O cenário funciona retoricamente para colocar em perspectiva o problema das diferenças políticas internas no cenário americano e na variável força com que a política metropolitana era recebida e processada.

Sempre procurando a perspectiva atlântica em que o processo se ambienta com o fim de restabelecer seus marcos comuns ele trata o problema em quatro momentos. No primeiro capítulo, intitulado Últimas oportunidades para los reyes. Del reformismo al instante fatal, ele trata da uma lógica que está agindo até 1808 e que explica uma relação entre as reformas borbônicas e as independências. Para isso somos remetidos ao ambiente da cultura espanhola de então, tendo com marco a figura de Carlos III – aparentemente ilustrado, mas ainda conectado às formas de apresentação do poder hasbsburgas-, ou seja, ainda consolidando uma nova imagem ao mesmo tempo em que deve afirmar uma política imperial em uma conjuntura difícil que nos leva a um conjunto de reflexões sobre o atraso da Monarquia espanhola; é dessa circunstância que devém a imagem de Espanha com as Indias da Europa. No marco dessa consciência de crise resgatam com força a idéia de Restauração das passadas glórias de Espanha e aplicam a propaganda patriótica em tom de economia moral. A experiência que se dá a partir de 1750 (há uma relação importante entre os Tratados de limitess, as reformas ilustradas e as independências, ainda que de conseqüências imprevistas e indesejáveis para o Império espanhol, algo que Manuel Lucena apresenta de forma brilhante em outro de seus trabalhos, Laboratório tropical, Monte Ávila Ed.Latinoamericana/CSIC, Madrid, 1993) representa já um campo de vivências americanas, tornando o lugar comum de umas independências provocadas pela arrogância do visitador de Nova Espanha e ministro das Indias José de Galvéz algo ingênuo ou relativo. As autoridades se adaptaram à tendência pactista e negociadora do contexto americano e ao contrário da reação inconseqüente apontada por alguns autores, procuraram recuperar um sentimento de comunidade atlântica, e daí devém uma série de medidas de inclusão de pardos, negros livres e castas nas instituições espanholas. Parecem cheias de possibilidades de diálogo com a historiografia brasileira duas de suas reflexões: a percepção do americano para essa dimensão atlântica na qual estava efetivamente integrado, apesar da imagem monolítica de gente preocupada apenas com seus problemas e a consideração de que a extrema impopularidade entre as elites americanas de tais medidas os levaram a atitudes hostis contra pessoas de cor, algo que se consolidou durante e depois da independência, tese defendida por Ann Twinam.

Em seguida, com “Patrias bobas y viejas. La apertura de la caja de pandora”, vai até 1814 e trata da dificuldade em fazer coincidir soberania e representação no Novo Mundo. A conjuntura de entusiasmo diante da resistência às invasões napoleônicas e sua primeira derrota na Batalha de Bailén mantém a lealdade à Coroa em ambos lados do Atlântico, mas nos marcos de um desejo de participar de um processo constitucional com legitimidade, situação que se esclarece mais ao constatar o importante papel americano no sustento da Guerra de Independência espanhola. A idéia é que nos diferentes processos vividos ao longo de 1810 na Venezuela, Rio da Prata, Nova Granada, Nova Espanha, Chile e Quito, existiu uma consciência política acumulada que teria possibilitado a criação de novas autoridades políticas fundadas na tradição, tentando uma recomposição constitucional atlântica da Monarquia espanhola. Isso contrasta com o “lugar comum” da historiografia/mitologia nacional, que vai afirmar uma consciência que não deixa de ser política, mas é bem mais golpista, ao entender que a invocação da figura de Fernando VII nas Juntas, se davam em seu nome, mas escondiam outra finalidade, a independência, fazendo com que o estabelecimento de juntas americanas e a declaração de independência, que foram coisas distintas, fossem tomadas em uma só relação causal.

Seu terceiro capítulo, “La emergencia definitiva de las repúblicas americanas”, explica não apenas a falta de sintonia entre metrópole e Novo Mundo, mas a formalização definitiva das independências de Buenos Aires e Chile. A conjuntura é de renovação do absolutismo de Fernando VII em 1814, que conforme Manuel Lucena sugere, foi bem mais uma novidade, ainda que arcaizante, e não uma tradição que se reacendia. A historiografia nacional explicou de forma simples que as independências foram resultado desse enfrentamento de liberais peninsulares e americanos ao leviatã fernandino. Manuel Lucena nos propõe complexidades nos enviando ao ocorrido entre 1814 e 1820, à raíz da Constituição de Cadiz, que no campo de experiências que abriu, revelou a existência de uma comunidade política atlântica, e em cujo âmbito se manifestou o primeiro liberalismo hispânico. Os maiores enfrentamentos se deram quanto ao problema da parcialidade da representação americana e a falta de sensibilidade da Monarquia a esse respeito, o que acabou levando a uma massiva e súbita incorporação de setores populares ao corpo político: “En Ciudad de México votaram en 1812 españoles, índios, mulatos, libertos, esclavos, artesanos y sirvientes domésticos. En Guayaquil lo hicieron ‘originarios del Africa’ y algunos de ellos salieron elegidos” (p. 147). Esse debate constitucional gerou a possibilidade de uma Monarquia espanhola européia triunfante em 1825 a que se mantiveram fiéis Cuba, Porto Rico e Filipinas, mas também gerou todo o resto: as novas repúblicas americanas.

O quarto capítulo, “Una guerra que ya no quiere nadie”, coloca-se no âmbito de restabelecimento da Constituição de Cadiz em 1820 por Fernando VII com um forte matiz constitucionalista e abandono das soluções liberais em nível imperial, ao lado da consolidação de uma consciência americana de repúdio ao absolutismo fernandino. Isso se revela tanto na radicalização de alguns deputados americanos que pediram em 1820 a deposição dos funcionários absolutistas “anti-constitucionais, brutais e antiamericanos”, como no esvaziamento prático das Cortes como fórum de decisões sobre a “questão americana” ao não considerarem suas propostas de novas reformas.

No Epílogo, Materias de libertad, o autor retoma os mitos derivados da obra de Alexis de Tocqueville, A democracia na América, publicado entre 1835 e 1840. O aparato comparativo que ali se apresenta sustenta a idéia da debilidade histórica de América Latina para comportamentos democráticos, evidentes nas experiências de caudilhismo, guerras civis, barbáries e tendências nobiliárquicas que se produziam no sul do continente, diante do excepcionalismo da independência estadounidense, construtora de um espaço social e político no qual prevaleciam os desejos da maioria, ditando os ritmos da vida nacional virtuoso, agregador e anti-militarista. Identifica assim a criação da América como um não-lugar por parte da Ilustração européia, na linha de um continente vazio, hegelianamente exposto na idéia de que América é espaço de porvir, juventude e sonho, mas que ainda está fora da história humana, em espera. Diante disso, Manuel Lucena sugere que se contemple a história da América Latina no horizonte desses “múltiplos espaços de experiência e horizontes de expectativas”, algo que seu livro nos oferece.

Maria Emília Monteiro Porto – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

GIRALDO, Manuel Lucena. Naciones de rebeldes. Las revoluciones de independência latinoamericanas. Madrid: Taurus, 2010. Resenha de: PORTO, Maria Emília Monteiro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860) | Valéria Zanetti

Em nossa formação como nação, como povo e como Estado a colonização e a escravidão foram fundamentais e sob muitos aspectos ainda estão presentes em seus prolongamentos. A escravidão permanecendo bem além da constituição do Estado nacional e do surgimento de um novo ente político, cultural, social e econômico: a Nação brasileira.

Sob as mais diversas visões interpretativas e com maior ou menor solidez de pesquisa documental, ambas – colonização e escravidão – foram desde logo objeto de estudos históricos muitos dos quais se tornaram referências obrigatórias na historiografia brasileira. Não podia ser diferente, mesmo de um ponto de vista teoricamente pouco ambicioso, devido, entre outros fatores, a união intrínseca entre colonização e escravidão e a longa duração de ambas por mais de quatro séculos para a primeira e quase cinco séculos para a segunda. A escravidão sobreviveu ao fim do Antigo Sistema Colonial e continuou sendo o fundamento das relações sociais de produção do Império do Brasil. Todas as tentativas iniciais feitas para desvincular a nova Nação da escravidão fracassaram sob a força avassaladora da herança colonial escravista. Assim o Império do Brasil assentou sua modernidade na manutenção de uma estrutura econômica e social arcaica. Conheceu uma nova inserção na economia internacional absorvendo várias das inovações tecnológicas oriundas da revolução industrial: navegação a vapor, estradas de ferro, cabo submarino para a comunicação com a Europa e a América do Norte, fotografia, telefone, imprensa de massa. No plano político nasceu como uma nação constitucional, com divisão de poderes, limitações ao poder imperial, declaração de direitos de cidadania, liberdade de imprensa, vida social e cultural burguesa. Mas, convivendo com tudo isto no plano das estruturas materiais e das estruturas da política e da cultura, lá estava presente a escravidão. Não é, naturalmente, fortuito, que o final do Império tenha se dado pouco depois do fim da escravidão, embora esta quase coincidência não possa e não deva ser vista como uma causalidade mecânica. A relação entre os dois acontecimentos é mais profunda e, sob muitos aspectos, não deve ser tomada em desfavor das realizações reformistas do Império. Mas esta questão nos levaria longe do objeto e do objetivo desta resenha: a escravidão urbana em Porto Alegre e, por extensão no Brasil, a partir do livro de Valéria Zanetti, aqui examinado.

A grande teia das relações escravistas que cobriu, com intensidade diversa, todo o território colonial e nacional até sua extinção tinha duas grandes expressões espaciais: a rural e a urbana. A primeira numericamente mais importante propiciou a inserção da colônia e depois do Império independente, na economia mundial. Foi, em sua fase colonial, essencial para o enriquecimento da metrópole e de suas camadas mercantis, burocráticas clericais e fradescas e do Estado monárquico português. Foi, ainda, fundamental no processo de acumulação primitiva que está na base da formação do capitalismo e da eclosão da revolução industrial do século XVIII. A escravidão urbana, mais voltada para a acumulação interna, foi, sobretudo, a escravidão dos indispensáveis serviços domésticos quando a tecnologia do cotidiano dependia em larga medida da força física: abastecimento de água e lenha, limpeza dos excrementos humanos, limpeza do lixo, transporte de alimentos, de diversas mercadorias, de móveis e mesmo de pessoas. Mas ela esteve, também, presente, no comércio urbano de miudezas, de alimentos, de bebidas. No transporte costeiro e fluvial. Produtores de renda para seus senhores, escravos e escravas urbanos foram utilizados sob a dupla forma de escravos de aluguel e de escravos de ganho. Vista no longo prazo percebemos que, ao contrário de arrefecer com a Independência e com o crescimento de uma vida urbana de recorte mais burguês, ela se intensificou. O auge da escravidão urbana no Brasil corresponde justamente aos anos de consolidação do Império e ao seu apogeu.

Durante anos, mais ou menos ignorada pela historiografia ou mitificada como mais suave, a escravidão urbana no Brasil tem sido objeto de novos e importantes estudos, que tem promovido uma verdadeira renovação do conhecimento da história brasileira em seu conjunto. Neste processo de renovação muitos são os autores e livros a serem citados. Para não cometer injustiças e omissões deixamos de mencioná-los aqui, mas o leitor encontrará boa parte deles nas referências presentes no livro de Valéria Zanetti. Que passaremos agora a examinar mais detidamente. Situando-se com originalidade na renovadora historiografia da escravidão no Brasil Valéria Zanetti nos deu um livro vigoroso, solidamente fundamentado em pesquisas de ricas fontes primárias e utilizando o melhor das referências então disponíveis. Com pleno domínio da boa escrita histórica. O que significa que a leitura é feita com agrado, além de proveito, tanto por especialistas quanto por não especialistas, o que não é pouco.

Com este livro tomamos conhecimento da escravidão urbana na Porto Alegre e arredores entre os anos 1840-1860. A autora reforça a revisão de um equívoco por vezes ainda corrente: a da pouca presença do escravo no Rio Grande do Sul. Para tanto os dados quantitativos são, naturalmente, essenciais. Ficamos assim sabendo que mesmo após o fim do tráfico a partir de 1850, o número de escravos no Rio Grande do Sul aumentou. Informação importante que significa a existência de um dinamismo econômico que necessitava do aporte de mão de obra escrava através do comércio interprovincial de escravos. Mas, os essenciais dados quantitativos são aqui a base de uma trama qualitativa de grande riqueza. Para tanto contribui em muito o uso de depoimentos de viajantes e observadores locais, do noticiário dos jornais e dos processos judiciais. As ilustrações foram escolhidas com critério, enriquecem o texto, complementando-o.

Acomodação, negociação, alimentação, vestuário, doenças, folguedos, ofícios e ocupações de escravos e escravas, feitiçarias, estupros prostituição, devoção, controle, traições, atração erótica da mulher negra, assassinatos, conflito violência, criminalidade, roubos, suicídios, resistência, sob as mais diversas formas, (in) justiça senhorial, são algumas expressões e temas estudados ao longo do livro e que registram com acuidade a presença e o modo da presença de escravos e escravas no meio urbano de Porto Alegre de meados do século XIX. Expressões e temas que podem ser aplicados às principais cidades brasileiras do período, o que situa este livro não apenas como uma valiosa contribuição para a história de Porto Alegre, mas para a história do Brasil. A enunciação dos títulos dos seus vários capítulos dará ao leitor uma idéia dos diversos aspectos da escravidão em Porto Alegre no período estudado por Valéria Zanetti: 1. O gado, a terra e o homem, 2. Porto Alegre: origem e povoamento, 3. Violência no passado, amenidades no presente: as visões da historiografia acerca do escravo urbano, 4. Crimes de escravos e libertos em Porto Alegre, 5. Vivendo em conflito e em solidariedade, 6. Vida amorosa, familiar e manifestações culturais de escravos e libertos em Porto Alegre, 7. Poder e contrapoder: resistência do escravo urbano.

Finalizemos esta breve resenha com um trecho do livro para que o leitor tenha a vontade, da qual não se arrependerá, de conhecer o livro em sua inteireza:

“A visão de que os cativos urbanos eram bem alimentados, vestiam-se adequadamente e viviam em harmonia com os senhores não combina com a informação documental. Involuntariamente, os anúncios sobre fugas na imprensa denunciam a verdadeira condição de existência civil. Arsène Isabelle esteve na província e não partilhou da visão otimista, registrando em seu diário as violências cometidas pelos senhores. Segundo Isabelle, os senhores gaúchos tratavam seus cativos como se tratavam os cães: ‘Começam por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora […] ou ainda um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo. Se resmungam, são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vêm com grande alegria no coração, para ver como são flagelados, até verterem sangue aqueles que não têm, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões’.

Ao percorrer as páginas deste livro, sob muitos aspectos fascinantes, não podemos deixar de pensar que muitos dos antigos males da escravidão não compõe apenas o nosso passado. Renovam-se cotidianamente em nossa (in) justiça de classe, ainda senhorial, na precariedade das diversas formas de trabalho nas áreas rurais e urbanas, na precariedade dos direitos, nas discriminações de gênero, na exploração do trabalho infantil, em renovadas formas de trabalho escravo, na violência a que está submetida a população pobre do campo e das cidades, especialmente dos descendentes diretos dos antigos escravos, nos privilégios incrustados no Estado, na sua captura pelos interesses privados.

Livros como este mostram como a boa história é sempre libertadora e não faz uma limitada e equivocada separação entre o passado e o presente. Por isso a grande mídia conservadora a ignora, promovendo best sellers que veiculam uma visão pitoresca e caricatural do nosso passado. Visão que serve apenas para acomodar os leitores na visão de que nada mudou e nada mudará.

Nota

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Denis Antônio de Mendonça Bernardes – Universidade Federal de Pernambuco.


ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860). Apresentação de Mário Maestri. Passo Fundo: Editora Universitária; Universidade de Passo Fundo1, 2002. (Coleção Malungo, 6). Resenha de: BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica, giuristi e legislazione (1822 – 1935) | Marcela da Silva Varejão

A geração de 1870 é um dos temas de grande interesse e relevância para muitos dos intelectuais que se propõem ou propuseram a estudar a história das idéias no Brasil. A essa geração deve-se, parafraseando Sílvio Romero, o “surto de idéias novas” que passou a contestar as estruturas do Estado monárquico brasileiro. A chamada Escola do Recife, muito contribuiu, de acordo com essa mesma historiografia das idéias, para a recepção do positivismo e evolucionismo europeus e suas manifestações críticas em campos diversos como filosofia, direito, política e sociologia.

Essa autoproclamada escola, pois foi nomeada por um de seus membros, Sílvio Romero, e outros a perpetuaram, definia-se como uma orientação filosófica progressiva e que permitia a cada um ter suas idéias e investigações. Seus membros se formaram na mesma Faculdade, a de Direito do Recife, e compartilharam o mesmo ambiente acadêmico.

Entretanto, não existe unanimidade entre aqueles que enveredaram pelo estudo desse grupo de intelectuais quanto à formação de uma escola de pensamento, nem tão pouco dos membros que faziam parte desse grupo. Por outro lado, mesmo que se questione a existência de uma escola ou quem são seus membros, é inegável que eles tiveram um papel importante nos diversos campos pelos quais a chamada Escola enveredou.

O livro de Marcela Varejão, Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia Del diritto, giuristi e legislazione (1822 – 1935), tem como tema mais circunscrito a relação entre os membros da Escola do Recife e os intelectuais italianos através da recepção, por parte dos primeiros, do pensamento positivista elaborado pelos segundos. O livro é o resultado da pesquisa de doutorado da autora, defendida no ano de 1999 em Milão, mas foi publicado em forma de livro apenas em 2005. A distância entre a conclusão da escrita e a publicação do livro pode deixar o leitor com a sensação de que a bibliografia utilizada é desatualizada, mas, com essa distância em mente, a leitura se torna mais indulgente nesse quesito.

O trabalho da autora consiste em rastrear a recepção do positivismo no Brasil focando na Escola do Recife através, principalmente, de sua faceta jurídica. Nesse sentido, o trabalho de Varejão se preocupa em fazer uma história das idéias sóciojurídicas com pouco ou quase nenhum contato destas com o ambiente político-social no qual elas, as idéias, e aqueles que as recepcionam e reelaboram, os intelectuais, estão inseridos.

O livro, por ser escrito e publicado na Itália e por ter os italianos como público alvo, procura nos dois primeiros capítulos inserir o leitor no contexto da recepção das idéias positivistas na América do Sul. A primeira parte do livro é dedicada a todas as nações sul-americanas. A Argentina é tomada como principal receptora e divulgadora, já os demais países, com exceção do Brasil, são tratados em separado e com pouca atenção. Nesse momento a autora se utilizou de uma bibliografia da história das idéias para a América Latina pouco atual (o livro mais recente é de 1987) e poucos trabalhos da historiografia dos países por ela trabalhados.

Já no Brasil são destacados os intelectuais que tiveram contato com o positivismo dedicando-se atenção especial ao positivismo ortodoxo capitaneado pela Igreja Positivista sediada no Rio de janeiro. A primeira parte funciona apenas como uma introdução confusa ao pensamento positivista sul-americano, o que, de qualquer maneira, se aproxima do que pareceu ser a intenção da autora.

A partir da segunda parte do livro, após mais de um terço do mesmo, Varejão inicia a sua pesquisa com profundidade. É nesse momento que ela passa a trabalhar com os membros da Escola do Recife como Tobias Barreto, Silvio Romero, Clóvis Beviláqua, Artur Orlando e João Vieira de Araújo, além de dedicar um capítulo especial à relação entre Nina Rodrigues, a Antropologia Criminal, Lombroso e sua filha, Gina Lombroso.

Daí em diante o trabalho ganha em riqueza com a análise das discussões, apropriações e rejeições das idéias de um sem número de intelectuais, principalmente os italianos. A análise da autora começa de uma dimensão mais ampla, ou seja, a introdução das idéias positivistas na Escola do Recife, em especial com Tobias Barreto, passando pelo nascimento de uma sociologia jurídica no Brasil, onde além de Barreto Varejão inclui Silvio Romero e Artur Orlando, terminando em Vieira de Araújo e sua relação entre as reformas da legislação penal de 1890 e o pensamento jurídico penal positivista italiano.

O trabalho de pesquisa de fontes realizado por Varejão é muito bem feito, entendendo-se como fontes aquelas que têm relevância dentro de uma história do pensamento jurídico-penal feita por uma jurista. Em capítulos como o último que trata de João Vieira de Araújo, por exemplo, encontra-se o ante projecto de nova edição do código criminal e o parecer de Assis Martins, exemplar raro, e até os estudos italianos do mesmo autor, também raríssimo. Entretanto, fontes de outros tipos, como jornais ou opúsculos, por exemplo, apesar de figurarem no texto são pouco explorados.

Não é à toa que a autora não se preocupa muito com esse tipo de fonte. As leituras que Varejão fez estão ligadas a uma tradição de história das idéias no Brasil associada a filósofos e juristas de renome que já trabalharam com a mesma temática, como Antônio Paim, Machado Neto, Vamireh Chacon, Nelson Saldanha, entre outros. A proposta e interesse da autora se alinham com os deles.

É a partir dessa tradição que na segunda parte ao trabalhar com Tobias Barreto é mostrado ao leitor como o próprio Barreto concebia o direito: como uma luta da humanidade contra a natureza que produziria a cultura na qual o direito estaria incluso. Essa visão de direito, por sua vez, seria derivada da leitura e refutação ou aceitação do pensamento de intelectuais italianos. Um exemplo disso foi a negação da teoria do atavismo de Lombroso por ser biologizante demais e negar a luta humana pela cultura.

Exemplos dessa relação não faltam durante todo o trabalho. Na quarta parte, quando Varejão passa a se dedicar a Artur Orlando, a autora mostrará que a concepção de direito dele estava intimamente ligada à sua percepção da sociedade. Para Orlando a Antropologia era a ciência por excelência para conhecer o homem, e o direito seria uma espécie de antropo-técnica que não poderia prescindir da Antropologia. Criticava Lombroso pelos seus exageros de querer submeter uma, o direito, à outra, a Antropologia.

O que fica claro na tese da autora é que a visão de sociedade de cada um dos membros da Escola do Recife influenciou profundamente na forma como recepcionaram as idéias positivistas italianas. Estas, por sua vez, eram em sua maioria ligadas às novas discussões jurídico-penais presentes em terreno europeu, como a Antropologia Criminal, a Sociologia Criminal e a Terceira Escola de Direito Penal. Mas não há explicação do porquê destas teorias terem despertado tanto interesse a ponto de serem abordadas por vários dos intelectuais mais importantes daquele período ligados ao direito no Brasil. É certo que a autora assinala o pertencimento destes intelectuais a uma linha evolucionista positivista em pelo menos algum momento de suas vidas, mas fora do mundo das idéias não há explicação para tal fenômeno na pesquisa proposta.

O trabalho de Marcela Varejão possui todos os méritos por se propor a fazer uma pesquisa inovadora de rastrear a recepção das idéias sócio-jurídicas nos integrantes da Escola do Recife e por dar continuidade à tradição de pesquisa de autores importantes como Antonio Paim e Miguel Reale. Acredito que cumpre muito bem com seu objetivo, como a própria banca da sua tese registrou. A autora deixou, no entanto, para outro pesquisador a tarefa de enveredar pelos caminhos ainda pouco explorados da recepção das idéias sócio-jurídicas e suas relações com o mundo social ou político.

Laércio Albuquerque Dantas – Universidade Federal de Pernambuco.


VAREJÃO, Marcela da Silva. Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica, giuristi e legislazione (1822 – 1935). Milão: Giuffrè, 2005. Resenha de: DANTAS, Laércio Albuquerque. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

La América de los Habsburgo (1517-1700) | Ramón María Serrera

Reseñar un libro no en pocas ocasiones puede llegar a ser una labor aburrida y tediosa, sobre todo cuando no es el fruto de una decisión personal sino de una obligación editorial, un compromiso o cualquier otra de las componendas propias de la vida académica. La tarea puede complicarse aun más si la obra no es del gusto del reseñador; o su temática no cuadra con sus aficiones y preocupaciones científicas, ni su calidad alcanza un mínimo de solvencia. Bien saben los implicados en estas lides los sinsabores e ingratitudes que puede plantear la redacción de una crítica negativa, aunque fuere constructiva, sobre trabajos en los que, en el peor de los casos, siquiera se ha vertido tiempo, alguna ilusión y esfuerzo. Por ello soy de la opinión, como Cervantes, de que todo libro merece respeto, pues algo bueno siempre guardan. No en vano don Miguel leía hasta los papeles tirados en las calles.

No es éste el pleito del que ahora me ocupa, todo un alarde de reposado saber, rigor y sutileza historiográfica. Resultado de muchos y calmos años de investigación y reflexión; de una vida dada al empeño de comprender y hacer saber a los demás acerca del impacto de América en el devenir histórico de la España, y Europa en general, del Antiguo Régimen. Ya decía Erasmo que es el mejor sabio-profesor quien se da con fruición al estudio para a la postre regalar el provecho a sus alumnos y a todo aquel con deseos de aprender. Créanme si les digo que semejante cometido siempre ha sido la meta de don Ramón María Serrera, catedrático de Historia de América de la Universidad de Sevilla. Basta con interrogar al numeroso y premiado alumnado que ha tenido la suerte de disfrutar de su minerva durante su ya dilatada carrera profesional. A ellos va dedicado el libro al que ahora doy la bienvenida y enhorabuena; ¿quieren mejor refrendo de lo dicho, mayor prueba de generosidad docente y personal? Alguno, resuelto en desconfianza y recelos, podría atribuir mi juicio, por interesado y subjetivo, a la admiración y amistad que, desde hace largo tiempo, profeso al autor. Cierto es, pero les aseguro que ambos estados anímicos son una agradecida consecuencia de lo mucho y bueno que me ha enseñado de viva voz o en letra impresa; no solo de historia, también de arte y música, de ética y honradez, humana e intelectual. De la cultura en definitiva. Decían los clásicos que el cariño, el trato, la conversación y los hechos conservan las amistades.

Pues bien, el libro en cierne, La América de los Habsburgo (1517-1700) –título acertado por lo inusual de Habsburgo en otros de cariz similar-, está concebido como un manual universitario, un útil de consulta para el estudio de una de las asignaturas que el Profesor Serrera viene impartiendo desde tiempo atrás (América en la Edad Moderna). De ahí que para la dilatada elaboración del texto se haya servido de las fuentes documentales, manuscritas e impresas, antiguas y modernas, actualizadas y repensadas, que distinguen su diverso cúmulo de saberes, maná indispensable al adecuado conocimiento de una materia tratada e interpretada con rigurosos criterios científicoacadémicos. Por ello no es uno más de los manuales al uso que suelen exhibir una suma informativa sin apenas introspección del historiador, es decir, la casi simple secuencia de los hechos y personajes, de variopinta naturaleza, correspondientes a la época de referencia, con frecuencia realizada a partir de los manuales precedentes. No olvidemos que estas iniciativas suelen tener su origen en propuestas editoriales, cuyas miras con frecuencia giran en torno a la oportunidad de un determinado producto en el mercado. Así, los autores se ven apremiados por una ajustada programación empresarial, la que, a su vez, delimita de forma precisa la ejecución de la obra en la forma prevista y en un tiempo determinado.

La de don Ramón, en cambio, fue una decisión personal, tomada, hace 20 años, sin otro ánimo crematístico que poner a prueba sus conocimientos y capacidad comunicativa –de sobra magistral- en la confección de un texto, a modo de guía de estudio y alta divulgación, capaz de ofertar a propios y extraños un panorama analítico de la América Española en los siglos XVI y XVII, desde una perspectiva total e integradora, o sea, afrontando cada una de las manifestaciones que definen una época y su humanidad (geografía, economía, sociedad, política, cultura y civilización). Porque abomina la actual especialización de la historiografía en temáticas acotadas y exclusivistas fuera de las cuales no se sabe nada: el virus mortal de las humanidades. De ahí la importancia que concede, entre otras muchas variables, al arte, y a la cultura en última instancia; parámetros que le ayudan a definir mejor sus objetos de estudio, exquisitamente plasmados en las cuantiosas imágenes que ilustran las páginas del libro. Una especie de treta afortunada con la que nos quiere delatar la importancia de la imagen como documento histórico, vestigios del pasado en el presente, no mudos sino elocuentes, a la par que los escritos, dotados de una preciosa información esencial para la mejor comprensión de la época en la que surgen y se expresan.

El cometido del libro, por tanto, requirió atención esmerada y trabajo pausado; no menos, audacia, ingenio y, sobre todo, sapiencia acrecentada. A la larga, como se ha demostrado, llegaría la hora de la cuestión editorial. Esta manera de proceder y de buen hacer ha dado a luz una magnífica síntesis interpretativa en la que quedan virtuosamente equilibradas la información factual y la reflexión crítica, la profundidad y la difusión; al mejor estilo de don Antonio Domínguez Ortiz y don Guillermo Céspedes, próvidos historiadores a los que nuestro autor profesa una inteligente consideración. Si a ello le unimos el alarde de exquisitez plasmado en su prosa, sencilla y elegante a la vez, colorista y expresiva sin necesidad de artificios retóricos, las mercedes del libro están servidas por doquier en el texto.

Una de sus mejores cualidades, sin duda, es la pericia historiográfica del autor, arraigada en la mesura y el sentido común, el tiento y la prudencia. Garantes de una aproximación a los procesos históricos tratados al margen de juicios y evaluaciones éticos, una manera de ejercer el oficio que él mismo estima antihistórica y propensa a descontextualizar los fenómenos en estudio, o lo que es igual, a abordarlos fuera de las coordenadas culturales y mentales dentro de las cuales se desarrollan. No por casualidad su relato se distancia de aquella historiografía, en tiempos dominante, presa de una concepción eurocéntrica, y chovinista por defecto, en la que adquiere un exagerado protagonismo el hombre blanco a costa de las civilizaciones autóctonas. La de don Ramón en cambio enfatiza en el desarrollo de una trayectoria histórica resultado de las grandes migraciones atlánticas y del contacto multicultural entre europeos, indígenas y africanos, dentro de un orden colonial -un sistema de dominio- desplegado a través de una red intercontinental de circuitos comerciales, intelectuales, culturales y políticos. Ello tampoco le impide ignorar la diversidad ni las grandes diferencias de estructura y experiencia histórica entre Europa y el Mundo Atlántico, o admitir que la cultura americana no fue una réplica exacta de la europea. Del mismo modo huye de teorías totalizadoras en la interpretación del pasado, consciente del determinismo y relativismo que propician, dejando escaso margen de acción a la irracionalidad y libertad del hombre, factores en nada incompatibles con los estructurales.

La forma de hacer historia del profesor Serrera, obvio es, facilita la reflexión y el debate mediante el despliegue de problemas y líneas de investigación de cara a los posibles interesados en este menester. Más aun cuando aborda cuestiones controvertidas o desfiguradas por tópicos carentes de escrúpulos científicos, sea el caso de los distintos episodios que tienen que ver con la leyenda negra todavía vigente y, lo que es peor, a menudo encorsetados en discursos oficiales a este y el otro lado del Atlántico. Cuita que, a la par, no le predispone hacia una leyenda rosa o dorada, sino hacia otra gris claro, el color que nos ayude a asumir nuestra historia tal como fue, sin complejos de madrastra ni sentimientos de culpa descontextualizados y al albur de quienes los manipulan depositando en ellos fines espurios e interesados.

Este gran libro en todos los órdenes, como fuere, transita por una silva de conocimientos -auxiliada de un encomiable y auxiliar piélago de gráficos y mapas-, entre 1517, año de la llegada al trono de Carlos I, y 1700, fecha del óbito de Carlos II sin herederos y del fin de la dinastía de los Austrias en España. He aquí una cronología que precipita la razón principal del título de una obra cuyo argumento se divide en tres grandes apartados. El primero cubre una etapa crucial de la historia de las Indias españolas (1517-1542), correspondiente al ciclo de la conquista de aquel Nuevo Mundo, en el que se dirimen con maestría cuestiones tan trascendentes como el “choque cultural”, concepto que, dados los efectos desestructuradores de la acción conquistadora, el autor aprecia más coherente que los de “aculturación”, “occidentalización” o “transculturación”. También el proceso de dominación militar y su justificación teológica, la resistencia, activa y pasiva, de la población indígena, para terminar con un precioso capítulo de historia cultural imbuido en las novedades, y su asimilación por los europeos, que empezaron a exhibir unas tierras demasiado lejanas y extrañas: la dietética, la flora, la fauna, el medio ambiente y un sinfín de otras albricias que empezaron a transmitir las plumas de los primeros pobladores españoles. Gentes a la ventura que, conforme a su utillaje mental y referente simbólico, solían ver lo que escriben y no al contrario.

El segundo bloque temático afronta el periodo coincidente con la reorganización del sistema colonial, que nuestro historiador extiende de 1542 a 1598. Casi medio siglo en el que América va dejando de ser el espacio ideal del conquistador, el fraile y el encomendero para convertirse en el ecumene del colono, el funcionario y el cura. Porque es la época del nacimiento de una población multicultural y, como consecuencia inmediata, del impacto de los mestizajes a causa de un continuo tránsito, además de humano, de conocimientos, prácticas e imaginarios, germen del enfrentamiento de modos de vida, tradiciones y sistemas de pensamientos diferentes que la apertura de los nuevos mundos provocó. Son los años de la emergencia de un nuevo orden social, de un método de explotación de los recursos, con los metales preciosos y la Carrera de Indias como ejes, catalizador de una economía-mundo que algunos ven cual principios de la globalización actual; del despliegue del poder real y su centralizadora maquinaria burocrática-institucional. Atrás no queda, en medio de la Contrarreforma, la formación de la Iglesia Indiana, expresión de un catolicismo militante que tendrá en la misión y el control de las conciencias (la Inquisición y la extirpación de idolatrías) una de sus principales señas de identidad, patente de igual manera en un arte y una cultura concebidos como retórica cristiana.

Llegamos así a la última de las partes del libro, dedicada a poner de relieve la consolidación de la personalidad continental de América durante el Seiscientos, un siglo de crisis en Europa que exhala una coyuntura opuesta, o diferente (reajustes, cambios, transformaciones), en unas Indias atlánticas que empiezan a afianzar su autoidentidad. Es por ello que el profesor Serrera nos aperciba aquí, con esmero y agudeza, de los riesgos que conlleva ensayar la historia de América desde una perspectiva exclusivamente metropolitana; pues podemos caer en una visión reduccionista, alejada de la realidad y, peor aun, muy cercana a los postulados ideológicos del gobernante peninsular del XVII. Con este presupuesto metodológico se incide en la autonomía y autosuficiencia, en parte consecuencia de la postración de la Metrópoli, que irá desarrollando el Nuevo Continente. El fenómeno, como bien pone de manifiesto el autor, se dejará sentir en las diferentes facetas de la vida colonial, ya sea a través del progresivo protagonismo de la economía rural (la hacienda) frente a la minería y el tráfico oceánico; de las tensiones de una sociedad multiétnica, del auge de la Iglesia Nacional (la expansión conventual), del incremento del poder criollo y las lacras de la política colonial (corrupción, clientelismo, venalidad). Todo ello enmarcado en una cultura barroca cuya criollización le presta un perfil sincrético y sui generis.

En fin, creo que no es poco el abismo de sugerentes ideas, hechos y especulaciones que el libro sometido a mi opinión nos ofrece. Confío que en poco tiempo nos referiremos a él como “el Serrera”, cual se alude al “Elliott” o al “Domínguez Ortiz”, una simbiosis entre autor y título que sin más denota calidad, fama, familiaridad y asiduidad de uso. Pero hora ya va siendo de dar la palabra, escrita o hablada, a los posibles y agraciados lectores, a quienes don Ramón les ha dado en breve la cosecha que ha sudado en muchos años. Espero que sus opiniones mejoren la mía, según dije, quizás sesgada por el afecto y la admiración. En cualquier caso nadie quedará defraudado de internarse en semejante copia de aciertos y bonanzas. Si falta hallaren, súplanla con discreción, porque ha de ser leve y sobre asunto muy dudoso, más dadas las muchas generalidades y particularidades, de tan varios sucesos, labradas. O traigan a la memoria al Inca Garcilaso, quien en uno de sus prefacios pide al lector el aprecio de una su traducción haciéndole saber, que hasta que no tuviere hijos de esta talla y no supiere lo que cuesta criarlos y ponerlos en tal estado, no desdeñase su trabajo. A buen seguro no caeremos en trampa tan ingrata delante de un historiador, don Ramón María Serrera, en el que coinciden grandeza de persona, ingenio y saber. Arte es saber buscar a estos hombres, y suerte topar con ellos.

Carlos Alberto González Sánchez – Universidad de Sevilla.


SERRERA, Ramón María. La América de los Habsburgo (1517-1700). Sevilla: Universidad de Sevilla; Fundación Real Maestranza de Caballería de Sevilla, 2011. Resenha de: SÁNCHEZ, Carlos Alberto González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil | Marcus Marciano Gonçalves da Silveira

Desde a independência política do Brasil, já durante o período monárquico, surgiu a preocupação com a criação de uma identidade artístico-arquitetônica para o novo estado em vias de formação. Foi no contexto da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, por exemplo, que Manuel José Araújo de Porto Alegre encetou os primeiros debates acerca de um estilo arquitetônico nacional.

Entretanto, é somente a partir do movimento modernista e da institucionalização de uma política patrimonial para o país, com a criação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), durante o Estado Novo, que estratégias mais incisivas em torno da criação de um modelo artístico identitário nacional começaram a ser colocadas em prática.

Na verdade, seriam os mesmos arquitetos promotores do movimento modernista aqueles que a parir do final da década de 1930, ajudariam o governo Vargas a forjar a política patrimonial do Sphan e a elaborar a “versão oficial” da memória patrimonial e artística do Brasil.

O paradoxo que caracterizou a trajetória desse grupo de arquitetos-intelectuais, marcada pelo seu envolvimento direto tanto nas políticas de preservação do “Barroco Colonial” – em especial o “Barroco Mineiro” – elevado por eles à condição de símbolo da identidade artística nacional, quanto no projeto de criação de novo “estilo brasileiro”, o moderno, também por eles legitimado, é o ponto de partida do estudo de Marcus Marciano Gonçalves da Silveira.

O livro consiste na publicação da Dissertação de Mestrado em História e Culturas Políticas do autor, junto a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nele, a partir do caso da cidade de Ferros (MG) – cuja Igreja Matriz dedicada a Santa Ana, originariamente em estilo colonial, foi demolida, na década de 1960, para a construção de um edifício em estilo modernista –, o autor procura estabelecer relações entre o processo de difusão da arquitetura religiosa modernista no Brasil, nas décadas de 1940 a 1960, com uma ideologia estatal de cunho desenvolvimentista e a escolha de políticas “modernizantes” por parte de determinados setores da Igreja Católica.

Diante do silêncio das principais narrativas sobre a história da arquitetura modernista no Brasil que, centradas na arquitetura civil, geralmente, só mencionam duas obras de arquitetura eclesiástica: a Capela da Pampulha e a Catedral de Brasília de Oscar Niemeyer, o autor se propõe a tirar da obscuridade outros projetos arquitetônicos modernistas para edifícios religiosos.

Para tanto, faz um levantamento dos projetos de igrejas em estilo modernista publicados nas principais revistas brasileiras de arquitetura entre as décadas de 40 e 60 (leia-se: Acrópole; Habitat; Arquitetura e Engenharia; Arquitetura; e, Arquitetura, Engenharia e Belas Artes).

Todavia, apesar do título do primeiro capítulo “A trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil” somente ao seu final (pp. 88-97) encontraremos uma lista e algumas imagens de projetos e de igrejas efetivamente construídas. Mesmo somando-se a esses, os projetos colocados – sem razão evidente – no Anexo A, o autor está longe de fazer um levantamento sistemático sobre o assunto: os exemplos mencionados, praticamente, só dizem respeito ao sudeste e, em número menor, ao sul do país e, além disso, o autor não se preocupa em destacar quais projetos efetivamente saíram do papel.

A primeira parte do livro, na verdade, se ocupa muito mais dos fatores ideológicos e políticos que legitimaram a destruição dos edifícios antigos e sua substituição por templos modernos.

O autor procura investigar de que forma o modernismo conseguiu fomentar a associação entre passado e atraso, e entre modernidade e progresso. O modernismo coloca-se como alternativa a um passado atrasado, não pelo seu valor histórico e estilístico, mas por ser carregado de estrangeirismos.

Neste sentido, “o projeto modernista” vincularia a idéia de retrógrado, de ultrapassado, sobretudo, aos chamados “estilos históricos”, a partir de uma construção discursiva que também reverberaria na política do próprio Sphan, uma vez que houve pouquíssimos tombamentos de edifícios em estilo eclético neste período.

Segue-se uma reconstrução da rede de interesses que uniu os arquitetos modernistas e alguns setores da Igreja. A Igreja buscava fugir de sua “identidade museológica”, a partir da retirada dos elementos decorativos que preenchiam todo o corpo do templo, tirando a atenção do altar. Assim, a ânsia de alguns setores do clero por uma renovação litúrgica que adequasse os templos à sua funcionalidade ajudou nessa aproximação.

No que tange, por exemplo, o caso da Matriz de Ferros, segundo o autor, a preocupação com o estado deplorável do templo era muito mais centrada na sua falta de funcionalidade do que no seu valor enquanto patrimônio histórico.

Neste sentido, a ausência de posicionamento do Sphan em relação à proposta de demolição da Matriz de Sant’Ana, ratifica a afirmação do autor de que o estilo “Barroco Nacional” legitimado pelos modernistas, foi praticamente o único padrão artístico que despertava o interesse da instituição, a qual deixava na mão da Igreja a responsabilidade absoluta sobre aqueles templos que “fugiam da norma”, incluídos aqueles em estilo colonial tardio.

Desta forma, a aproximação entre religiosos e arquitetos e a inércia/desinteresse dos órgãos institucionais, segundo o autor, teriam ajudado o modernismo a se colocar como a possibilidade arquitetônica capaz de atender aos desejos do clero por novas formas litúrgicas, mais adequadas ao espírito desenvolvimentista no qual o país estava mergulhado.

Na segunda parte do livro, o autor desenvolve seu estudo de caso, reconstruindo, com rica documentação, todo o processo que conduziu a demolição da antiga e a ereção da nova Matriz.

Ele destrincha toda a polêmica acerca da demolição, o Movimento Verde – pró- modernismo –, seus antagonistas, os pontos de vista, os discursos, o papel da imprensa, a decisão por meio de plebiscito, a atuação da Igreja – mais especificamente do Movimento Litúrgico –, o desinteresse dos órgãos de salvaguarda do Estado, etc.. As imagens colocadas no Anexo B muito enriquecem a percepção do leitor acerca da importância e do impacto que todo o processo teve para a cidade.

Assim, partindo de um plano mais geral, o da consolidação do modernismo como proposta mais conveniente a um Estado cujo programa político estava voltado para a “modernização” do país, o autor chega às conseqüências – a seu ver, nefastas – que a colocação em prática desta política de renovação teve para a pequena cidade de Ferros, no interior de Minas Gerais.

Destaca-se, nesta parte, a força narrativa com a qual o autor constrói seu discurso acerca da falência do projeto “modernizador” dos modernistas. Tocante é seu relato acerca de como o contraste entre o fórum – em estilo colonial – e a nova igreja representavam a memória de um arrependimento coletivo.

A imagem da estrutura arquitetônica modernista – hoje já não mais “moderna” – transformou-se assim no vestígio vivo de uma “modernidade” que não veio. A crença na eficácia da inferência arquitetônica como propulsora do progresso mostrou-se vã.

O estudo da dissolução da “paisagem tradicional mineira” na cidade de Ferros, deste modo, torna-se uma importante reflexão sobre a ausência de preocupação com o restante da paisagem urbana que caracterizou o “projeto modernista”, bem como uma lição para aqueles que fazem e implantam políticas patrimoniais neste país.

A eleição de uma ou outra forma patrimonial como mais “legítima”, em detrimento de outras, consideradas retrógradas, via de regra, acaba por retirar das gerações vindouras o direito de conhecer o seu próprio passado.

Marília de Azambuja Ribeiro – Departamento de História, UFPE.

Angélica Cristina de Paula Botelho – Bolsista PIBIC (Propesq/UFPE) do Projeto Espaço urbano, arquitetura eclesiástica e cultura tridentina da Professora Doutora Marília de Azambuja Ribeiro (Departamento de História, UFPE).


SILVEIRA, Marcus Marciano Gonçalves da. Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja; BOTELHO, Angélica Cristina de Paula. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630) | Rodrigo Ricupero

Os momentos iniciais da efetiva conquista e ocupação dos territórios americanos do império português são de fundamental importância para todo o posterior desenvolvimento histórico do Brasil. Durante estes anos se desenharam os traços básicos da distribuição espacial da América portuguesa, traços que repercutem até hoje nas dinâmicas do país. Vem dessa época também algumas das principais feições sociais do país, bem como uma parcela importante do caldo sociológico que compõe suas culturas políticas. Apesar de sua importância, poucos são os historiadores que ousam mergulhar nestas águas profundas, nesta fase ao mesmo tempo tão longínqua e tão presente de nossa história. As razões para isso em geral giram em torno do problema das fontes. Essa é uma questão que se repete para outros objetos do período colonial, o que faz desta fase a menos conhecida de nossa história, pese seu caráter fundante.

A obra em tela enfrenta estas limitações e ousa incursionar no primeiro século de colonização. Sua baliza cronológica inicial é 1530, momento em que a política da coroa em relação às terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas “dá um salto de qualidade, com a iniciativa do povoamento das terras da costa do Brasil”. O fechamento do período do estudo é a invasão de Pernambuco pela West Indische Compagnie, em 1630, fase em que a conjuntura externa foi sacudida pela entrada em cena de novas potências e pela crise geral do século XVII. Do ponto de vista geográfico, o estudo abrange toda a área costeira da colônia, salientando o autor, que a repartição do estado do Maranhão somente se efetivou a partir de 1626. Leia Mais

Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773) | Manoel Marzal e Luis Bacigalupo

Desde a renovação historiográfica de que a Companhia de Jesus foi objeto − agora há mais de vinte anos −, sua história esteve especialmente relacionada à questão da modernidade. Isso porque o movimento que consistiu no désenclavement [1] da história da Ordem (até então controlada quase exclusivamente por seus membros e limitada a um enquadramento nacional de cunho apologético) resultou em sua apropriação por historiadores leigos, na qualidade de um “observatório” do período moderno. O que se procura, desde então, não é mensurar a contribuição dos jesuítas, mas antes questionar a modernidade por meio da história da Companhia de Jesus. Instituição essa que, de fato, se apresenta como campo privilegiado de observação, por uma dupla razão: seu apostolado universalista, e a sua organização institucional responsável pela formação de um corpus documental contínuo, capaz de trazer elementos de resposta a muitas das questões sobre o período moderno [2].

Esse renovamento atendeu em parte ao anseio de abordar a história moderna da Europa a partir de um espaço supranacional, correspondendo à identidade e forma de operação da Ordem inaciana [3]. Contudo, se teve ares programáticos primordialmente na França e Itália, rapidamente o debate adquiriu uma dimensão internacional e, dos vários campos em que se desenvolveu, sem dúvida o da história da ciência e educação e o das missões e evangelização confirmaram-se os mais dinâmicos [4].

Assim, a pergunta que de imediato se coloca a respeito de uma publicação que leva o nome de “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica” é a de saber qual a sua relação com esse contexto de renovação historiográfica. O livro foi publicado em 2007, e traz a lume as atas de um colóquio internacional de mesmo nome realizado no Peru, em 2003. A proposta dos organizadores − um dos quais ele próprio jesuíta [5] − aos participantes do encontro era a de avaliar a contribuição da Companhia de Jesus para o desenvolvimento da modernidade na América. Em outras palavras, solicitou-se aos colaboradores a tarefa de delinear algumas características da modernidade na tradição cultural americana, a partir dos diferentes âmbitos em que atuaram os jesuítas, partindo da hipótese inicial segundo a qual a produção intelectual e a atividade educacional e missionária de “alguns padres” da Companhia de Jesus teriam representado o “primeiro e decisivo resplendor da cultura moderna no mundo católico” [6]. Colocada nesses termos, a questão de fato não parece atender ao novo delineamento metodológico acima referido. Porém, como se explicita na própria introdução, ela foi superada pelas contribuições que, em muitos casos, fizeram realmente valer os ganhos da, ainda recente, renovação. Optou-se então por uma organização da publicação em função das questões levantadas no encontro, e é justamente esse o aspecto mais interessante do livro a se observar.

A obra tem dois volumes: o primeiro, um impresso de portentosas dimensões (pouco mais de quinhentas páginas), conta com uma introdução e vinte e dois artigos. O segundo, em suporte eletrônico (mini-cd) que acompanha o volume impresso, conta com dezessete artigos, além de um apêndice onde foram publicados dois documentos de interesse para os estudiosos da Companhia de Jesus na América Latina: uma apresentação do projeto de reconstituição do acervo histórico da Universidade Javeriana de Bogotá e uma extensa bibliografia sobre os jesuítas na história do Peru. Em ambos os tomos, os artigos foram distribuídos em três seções. A primeira pretende ser uma relação dos textos que tratam dos aspectos teológicos e filosóficos da contribuição jesuíta à construção da modernidade (Los jesuitas y la razón moderna). A segunda reúne os artigos que tratam, em seus múltiplos âmbitos de atuação − ciências naturais e humanas, educação, missão, tecnologia, economia, arte, arquitetura etc. −, a inserção “multifacetada” dos jesuítas no contexto histórico e cultural das colônias americanas (Los jesuitas y la patria criolla). Por fim, a terceira seção agrupa artigos que abordam temas relacionados à expulsão dos jesuítas das colônias americanas, englobando aspectos econômicos, políticos e culturais (Los jesuitas y la crisis de la expulsión).

É compreensível que numa obra que traz a contribuição de quase quarenta autores, de várias áreas e relações diversas com a instituição objeto do debate, as visões sobre a mesma questão sejam defasadas, e revelem a presença tanto de autores que se vêem diretamente engajados nessa renovação historiográfica quanto de outros que lhe são visivelmente alheios. Com efeito, é difícil encontrar nesse livro um eixo que dê realmente conta de todas as contribuições. Mas o fato é que, independentemente da qualidade desigual dos artigos, essa publicação permite-nos esboçar algumas tendências na maneira como a história da Companhia de Jesus vem sendo emprestada pelos pesquisadores interessados na modernidade, especificamente ibero-americana.

Modernidade é, pois, o conceito-chave deste livro. A partir daí, dois problemas de definição se apresentam: um relativo à sua cronologia, e outro, ao delineamento dos seus principais traços característicos. Cada autor opera com uma concepção distinta da modernidade, ora associando-a ao Renascimento, ora à Ilustração, e às vezes ao século XVII. Alguns não consideram o problema, outros o colocam claramente, explicitando seu posicionamento, outros, ainda, o tomam como principal objeto de reflexão. Porém, para Luis Bacigalupo, autor da introdução, o termo moderno abarca menos o sentido do período que se inicia no fim da Idade Média e termina com a Revolução Francesa do que aquilo que representa o pensamento questionador do consuetudinário, sendo que a modernidade se caracteriza, então, como uma era da “cultura em crise” (p. 24). Ainda segundo o organizador, um dos seus principais traços característicos é o fato de ser expansiva, isto é, de tender a aplicar os êxitos da razão a todos os campos do conhecimento e das atividades humanas; a ciência e a educação revelando-se, pois, âmbitos importantes de sua definição e veiculação. Assim, o eixo escolhido no livro para caracterizá-la é o da tensa relação entre princípios de ações divergentes: se por um lado, a razão moderna impele o homem a se emancipar das irracionalidades que o “escravizavam”, por outro, estimula o Estado a ações que visam o seu fortalecimento, pela expansão comercial, industrial e burocrática, gerando forças paradoxais entre a liberdade do indivíduo e a soberania do Estado.

Nessa encruzilhada, a Companhia de Jesus que, justamente por conta do seu apostolado universal, sempre ocupou um lugar central, do ponto de vista social, político e cultural, no processo de expansão do velho mundo e de formação das novas sociedades americanas [7], desempenhou um papel importante, tanto na sistematização de estruturas do colonialismo quanto na formação dos quadros que posteriormente foram responsáveis pela emancipação das colônias. Entendida nesses termos, a atuação da Companhia de Jesus na América revela uma contradição crucial para a modernidade americana, na sua relação com a Europa, e parece ser esse paradoxismo do sistema colonial o eixo em torno do qual se reúnem as questões colocadas pelas diversas, e heterogêneas, contribuições.

Em uma apreciação alheia à distribuição dos artigos nas seções definidas pelos organizadores, é possível notar a presença marcante de duas classes de contribuições: artigos que aproximam o tema da modernidade ao da formação das sociedades coloniais, e outros que determinam ênfase na construção da “pátria criolla”. Quanto a esta última, duas questões são nomeadamente abordadas: a responsabilidade dos jesuítas na educação da elite nativa e seu papel na construção de uma identidade nacional.

Assim, o debate teológico-jurídico, que por uma reavaliação do aristotelismo, procurou justificar moralmente a escravidão, é explorado nos artigos de Josep Ignasi Saranyana e de Francisco Moreno Rejón. No que concerne à formulação de um modelo e aos aspectos relacionados à empresa missionária propriamente dita há que se conferir, por exemplo, as contribuições de Jeffrey Klaiber, S.J., Javier Baptista, S.J., Ignacio del Río e Norberto Levinton. Já o texto de Antonella Romano − que se destaca por chamar a atenção para a missão como espaço de produção de ciência, por conta da mobilização de técnicas e saberes que visavam ao domínio territorial − submete a relação entre centro e periferia a uma perspectiva mais ampla, mostrando que a América não somente importou e mestiçou, mas também foi protagonista na construção da cultura moderna. Nesse mesmo sentido vai o argumento de Carmen Salazar-Soler, em seu artigo sobre o desenvolvimento de técnicas mineradoras no Peru nos séculos XVI e XVII.

O tema das atividades educativas dos colégios administrados pelos jesuítas é especialmente mobilizado pelos autores desse livro, e responde a interrogações de enquadramento nacional, desde a abordagem da educação dos caciques, por Monique Alaperrine-Bouyer, até a organização e consolidação de uma estrutura de ensino e formação dos espanhóis e filhos de espanhóis. Nesse sentido, para Maria Cristina Torales Pacheco, os jesuítas teriam assentado na Nova Espanha as bases de uma “esfera pública burguesa” [8], na qual se teria formado a geração que posteriormente foi responsável pela emancipação política “e construção do México como país independente” (p. 158).

Porém, adverte Pacheco, não foi apenas na formação de uma classe social que a Companhia de Jesus desempenhou um papel importante: os jesuítas também se implicaram diretamente na construção da identidade nacional. É o que procuram revelar, por exemplo, os estudos sobre os conflitos no seio da própria Ordem, entre os jesuítas nativos e aqueles oriundos da Europa. Bernard Lavallé demonstra que, embora tenha tentado, a cúria generalícia romana não conseguiu coibir a entrada, na instituição, de membros americanos, que acabaram se impondo: pouco tempo depois da chegada dos jesuítas, conclui o autor, os criollos instruídos em seus colégios chegaram a dominar os postos do clero secular em suas respectivas dioceses, gerando conflitos. Pedro Guibovich Pérez identifica no Poema hispano-latino, do jesuíta peruano Rodrigo de Valdés (1619-1682), uma exaltação nacionalista: evidenciando as disputas entre nativos e estrangeiros dentro da própria Companhia, segundo o autor, Valdés mostrava erudição como estratégia de defesa da capacidade intelectual dos criollos, e fazia uso do gênero corográfico como instrumento de exaltação da “pátria chica”.

Também Clavijero (1731-1787) é apresentado, por Beatriz Domingues, como um dos construtores do “patriotismo” mexicano. Como ele, outros jesuítas exilados na Itália, após as expulsões de 1767, contribuíram à construção de uma identidade nacional ao contradizer as teorias de Buffon e De Pauw sobre a degenerescência da natureza americana. Este mesmo assunto passa por vários outros artigos, um dos quais trata especificamente do jesuíta Juan de Velasco, com relação à história equatoriana (Carmen-José Alejos Grau). Quanto a isso, é de se notar as referências obrigatórias aos estudos de Antonello Gerbi e Miguel Batlori [9].

A questão dos nacionalismos levantada pela análise da “literatura de exílio” aproxima-nos então de outro importante tema tratado em artigos que também lhe fazem referência, e que acabou originando uma seção à parte: os contextos das expulsões (José del Rey Fajardo, S.J., Francisco de Borja Medina, S.J., Manuel Marzal, S.J., Sandra Negro). Porém, não só essa literatura do exílio, como igualmente aspectos econômicos da expulsão (Guillermo Bravo Acevedo e Kendall W. Brown), relativos aos conflitos no Paraguai (Martín Maria Morales, S.J. e Barbara Ganso) e à definição das fronteiras amazônicas (Fernando Rosas Moscoso) são assuntos levantados, deixando patente a predominância da questão nacional no tratamento da história da Companhia de Jesus na América.

Ora, a correspondência dos marcos cronológicos da história do período moderno e da colonização da América com os da história dos jesuítas (1540-1773) não é fruto de mera coincidência. Se a história da Companhia de Jesus nos momentos de sua fundação e consolidação institucional possibilita questionar o período moderno por um enquadramento supranacional, entretanto, no contexto da sua supressão, a história da Ordem proporciona fecundo campo de análise da questão nacional. E, se o debate franco-italiano privilegiou os séculos XVI e XVII − de construção da identidade jesuíta e definição do apostolado universalista e missionário −, abrindo espaço para a análise da atuação dos padres no âmbito das ciências e das missões, nos meios acadêmicos hispano-americanos (onde aliás a presença de jesuítas historiadores se faz notar de maneira mais evidente), os temas permanecem associados sobretudo ao século XVIII, contexto em que se encadeou uma série de fenômenos que desembocaram na expulsão dos jesuítas dos domínios imperiais europeus e, por fim, na supressão da Ordem. Sob o aspecto historiográfico, então, o livro “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica”, parece confirmar uma tendência própria ao debate hispânico, em que as circunstâncias, causas e conseqüências das expulsões constituem objetos privilegiados de estudo [10].

Não é de pouco interesse notar, quanto a isso, um desequilíbrio na publicação que, se reúne na sua maior parte textos referentes à história do México e Peru, conta apenas com a colaboração de Rafael Chambouleyron no que diz respeito aos jesuítas na América portuguesa (embora a baliza cronológica da publicação se inicie em 1549, ano da fundação, no Brasil, da primeira missão jesuíta americana). Se incorporasse a vertente brasileira desse debate, o livro talvez apresentasse um outro tom − contudo ainda em vias de se delinear [11].

Notas

1. Termo que, em francês, significa desenclausuração; foi cunhado por Luce Giard, curadora de um volume considerado marco desse novo significado conferido aos estudos jesuítas. Les jésuites à la Renaissance. Système éducatif et production du savoir, dir. Luce GIARD, Paris: Presses universitaires de France, 1995.

2. ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, Présentation, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, pp. 247-260.

3. CANTÚ, Francesca. I gesuiti tra vecchio e nuovo mondo. Note sulla recente storiografia, in Carlo OSSOLA, Marcello VERGA & Maria Antonietta VISCEGLIA (eds.), Religione cultura e política nell’Europa dell’età moderna. Studi offerti a Mario Rosa dagli amici, Firenze: Leo S. Olschki, 2003, pp.173-187.

4. FABRE, Pierre-Antoine. L’histoire des jésuites hors les murs. L’état de la recherche em France. Annali di storia dell’esegesi. Anatomia di un corpo religioso: l’identità dei gesuiti in età moderna, 19/2, 2002, pp. 357-367. Citamos apenas algumas das publicações coletivas mais recentes sobre missão, ensino e ciência: CAROLINO, Luis Miguel & CAMENIETZKI, Carlos Ziller (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência. Séculos XVI-XVIII, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. CHINCHILLA, Perla & ROMANO, Antonella (coord.), Escrituras de la modernidad. Los jesuitas entre cultura retórica y cultura científica, Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2008; FABRE, Pierre-Antoine & VINCENT, Bernard (comp.), Missions religieuses modernes. “Notre lieu est le monde”, Roma: École française de Rome, 2007. Não se pode deixar de mencionar a contribuição dos Estados Unidos a esse renovamento historiográfico, da qual podemos citar, ainda restringindo-nos a publicações coletivas, O’MALLEY, J., BAUILEY, G.A., HARRIS, S.J. & KENNEDY, T.F. (eds.), The Jesuits: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 1999 e, dos mesmos organizadores, The Jesuits II: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2006. Também na relação entre poder e religião, a Companhia de Jesus inspirou sólidas pesquisas, como se pode conferir em MOLINIÉ, Annie, MERLE, Alexandra & GUILLAUMEALONSO, Aracelo (dir.), Les jésuites en Espagne et en Amérique. Jeux et enjeux du pouvoir (XVIe-XVIIIe siècles), Paris: PUPS, 2007.

5. Esse colóquio foi organizado pela Universidade Católica do Peru, por Luis Bacigalupo e Manuel Marzal Fuentes, S.J. († 2005).

6. “La hipótesis general que motivó la convocatoria a este coloquio es que la producción intelectual y la obra educativa y misionera de algunos padres da Compañía de Jesús habrían sido el primer y decisivo resplandor de la cultura moderna en el mundo católico. Para explorar esa hipótesis, la comisión organizadora del coloquio invitó a académicos de prestigio, quienes aceptaron delinear algunas características de la modernidad en la tradición cultural iberoamericana, partiendo de los diferentes ámbitos en que actuaron los jesuitas entre 1549 y1773”, BACIGALUPO, Luis E. Introducción, in Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica. 1549 y 1773, p.15.

7. ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, “Présentation”, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, p. 255.

8. No seu artigo intitulado “Los jesuítas novohispanos, la modernidad y el espacio público ilustrado”, a autora se diz tributária dos estudos de Roger Chartier e Jürgen Habermas.

9. BATLORI, Miguel. La cultura hispano-italiana de los jesuítas expulsos, Madrid: Biblioteca Românica Hispánica 1966. GERBI, Antonello. La disputa del Nuovo Mondo. Storia de una polemica. 1750-1900, Milano-Napoli, Ricciardi, 1955.

10. De fato, os organizadores do livro Les jésuites en Espagne et en Amérique (cf. supra n. 4) notam que temas relacionados ao destino dos jesuítas no século XVIII ou as missões do Paraguai constituem uma parte importante dos estudos referentes à influência da Companhia de Jesus no mundo ibero-americano. Alguns trabalhos recentemente têm procurado outros caminhos: além do livro em questão, ver, por exemplo, Julian J. LOZANO NAVARRO. La Compañía de Jesús y el poder en la España de los Austrias, Madrid: Cátedra, 2005.

11. Embora pesquisadores brasileiros se dediquem aos estudos jesuítas há vários anos, os empreendimentos coletivos são bastante recentes. Em 2007, também foram publicadas no Brasil as atas de um colóquio referente à Companhia de Jesus, por iniciativa dos próprios jesuítas: BINGEMER, M. C. L., MAC DOWEL, J. A. & NEUTZLING, I. (orgs.), A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos. Anais do Seminário Internacional realizado entre 25 e 29 de setembro de 2006 na PUC-RJ, Unisinos-RS e na Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia (FAGE), de Belo Horizonte, São Paulo: Loyola, 2007. Apesar de o próprio título da publicação expressar uma diferença importante com relação ao debate hispano-americano, não é suficiente para definir o tom das discussões brasileiras. Acompanhado deste presente volume e da edição, que deve sair em breve, das atas do colóquio internacional realizado em 2007 na Universidade de São Paulo, “Contextos missionários: religião e poder no Império português”, seus contornos se tornarão mais claros. Este último colóquio, embora não estivesse centrado especificamente nos jesuítas, contou com a colaboração de alguns importantes especialistas em história da Companhia de Jesus. De todo modo, importa aqui salientar o recorte imperial atribuído ao objeto, como indicado no próprio título do encontro.

Camila Loureiro Dias – Doutoranda EHESS, Paris.


MARZAL, Manuel; BACIGALUPO, Luis (Eds.) Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773). Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú; Universidad del Pacífico; Instituto Francés de Estudios Andinos (IFEA), 2007. Resenha de: DIAS, Camila Loureiro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.1, p. 417-425, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]

Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica | Edvânia Torres Aguiar Gomes

Este trabalho produzido originariamente sob a forma de tese em 1997 pode ser considerado de vanguarda em diversas acepções, analisando o seu conteúdo e suas advertências no plano das novidades que cercam a discussão contemporânea sobre Paisagem. Pode-se argumentar que se trata de um trabalho clássico na revisão dos conceitos mais primevos dos primeiros entendimentos sobre paisagem, desde a escola alemã, passando por alguns desdobramentos disciplinares inclusive para além da Geografia. Por outro lado, pode ser considerado crítico na perspectiva sócio-ambiental, ao se utilizar este trabalho no âmbito do urbanismo. Verifica-se o efeito denúncia que marca os embates entre o idealizado e o realizado, entre a cidade e o meio. A voz de distintos segmentos da sociedade se expressa através dos 600 questionários trabalhados, capturando as vertentes da representação da cidade no final do século passado. Através dessas falas são reveladas as idealizações e representações da cidade, podendo subsidiar o urbanismo e a gestão dos espaços públicos na metrópole recifense. Essa mescla guarda nexos marcados pelo esforço transversal, enunciando que não existe novidade na feitura das práticas e interesses – principalmente quando se trata de um mundo confeccionado colonialmente, que se busca num jogo de espelhos – e sim, que o mundo é permanentemente (re)criado. Este trabalho é uma excelente maneira de afirmar que não é por natureza que se compreendem e se estabelecem múltiplas aproximações ao objeto do saber. É preciso sentir, estar apaixonado, em conexão com referentes que historicamente constituem elos estruturadores da cidade, mas, e, principalmente, priorizar na escolha por tornar visíveis experiências vividas, na fala de seus usuários, identificando sentimentos profundos do povo na relação com trechos da cidade, para descobrir neles os elementos, mesmo confusos, que podem impulsionar relações de respeito por representações culturais fundamentais que reflitam, na paisagem, as necessidades humanas que a reproduzem. Trata-se de uma pesquisa instigante, qualitativa, e quantitativa de corte teórico e empírico, que passando pela apropriação fenomenológica, subsidiada por um rico elenco de fotografias, mapas, gráficos e gravuras conseguiu preservar a coerência entre o método de pesquisa e a apresentação da realidade estudada. A autora partindo das contribuições da geografia alemã leva-nos de passeio, pela trajetória da paisagem, aproveitando aportes de diversas disciplinas, em legados de historiadores, psicólogos, antropólogos, poetas, filósofos para analisar a composição da paisagem: o meio físico e o meio social, em estreito nexo com as percepções, o imaginário, a atividade humana constituída por atos, com os quais visa algo. A pesquisa tem como campo empírico o dilema na perspectiva das coexistências do planejador, do artista, do político, do cientista, do simples habitantes em uma cidade anfíbia, marcada por atributos da natureza e engenharia humana. As águas dos rios e dos manguezais que configuram o sítio da cidade são enfatizadas a luz desses diferentes segmentos da sociedade em suas práticas. No contemporâneo, até olhares menos atentos registram evidentes provas de agressão como negação a presença das águas na cidade, subestimando a sua morfologia genuína. Através de uma linguagem simples e dialogando com imagens, letras de músicas, poesias, o trabalho nos ajuda a entender que em função da subordinação à lógica da acumulação de riqueza, este processo de construir os espaços vividos se faz à custa de uma decadente condição da sociedade, singularizando alguns resultados que impactam os modos vida dos seus habitantes. Nesse campo, a autora dialoga com reflexões realizadas por renomados geógrafos como Josué de Castro, Milton Santos, Manoel Correia de Andrade, Rachel Caldas Lins e Jan Bitoun, bem como com poetas como Bento Teixeira, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, Chico Science, consegue ilustrar faces desses impactos no sítio urbano natural do Recife. Os historiadores, urbanistas, engenheiros pesquisados em suas obras propiciam apoio para firmar a posição da autora em suas críticas aos processos de planejamentos da cidade, com a adoção de mudanças que priorizam a técnica aplicada a demandas pseudo uníssonas, tornadas homogeneizantes na leitura de escala global. Como através de um painel, passando pelos primeiros esboços da cidade Mauricia até os dias atuais, com base nos trabalhos comparativos, Edvânia propicia uma revisão da concepção da paisagem idealizada para a cidade e refletida na estrutura do planejamento e suas práticas ao longo da história. O trabalho utiliza três eixos espaciais como referências para cotejar Recife à luz de algumas questões urbanas significativas e que dizem respeito ao cotidiano daqueles que animam a cidade do Recife. As variáveis eleitas espelham a história do presente e do futuro, revelando aproximações entre as representações das paisagens instituídas e divulgadas do Recife e as representações contidas nas falas e depoimentos de alguns usuários de seus espaços. As inquietações da autora são marcas indeléveis que saltam nas páginas deste livro realizando um arco interdisciplinar no sentido acadêmico, mas também no sentido da vivência. De um lado essas inquietações remontam as vivências cotidianas de lembranças primordiais de vida familiar percorrendo a cidade, mas também as interpelações da vida profissional na passagem como técnica em Órgãos de Planejamento Urbano Ambiental na cidade do Recife e, continuando como intelectual, no ideário Gramsciano que inspira as conexões entre intelectuais e o povo-nação. Evidencia-se, assim, a novidade do trabalho, no movimento que incorpora e o inspira, como uma importante contribuição da autora, que se tornará cada vez mais necessária para nos ajudar a recolocar na ordem do dia a agenda do meio físico e do meio ambiental nos espaços da vida urbana, numa cidade de referência histórica para a reprodução das culturas. Edvânia o manifesta nas inquietações finais: “Afinal o que é natureza? Esta pergunta aparentemente tão simples de responder não encontra eco plausível na história da confecção de Paisagens de nossas cidades. Os pilares sobre os quais foram edificados os espaços urbanos não contemplam entendimentos nítidos acerca da existência da natureza possível. No “mundo da engenharia e da técnica” ideologicamente os elementos físico-naturais são convertidos em acessórios subliminares até o surgimento de protótipos que os substituam”. A obra finaliza como se estivesse iniciando pela carga de provocações que evoca e pelas inquietações que ultrapassam a leitura e fazem vagar o pensamento. Nesse sentido, cabe concluir essa resenha retomando mais um importante atributo desse trabalho que é a forma como ele se encontra estruturado em seqüência ascendente partindo da teoria, história e a parte empírica. Dividido em blocos que podem ser lidos de forma solta, enfim degustados, o livro é uma referência sem dúvidas para aqueles que querem aprender a paisagem e apreender as paisagens e a história da cidade do Recife enquanto registro e nova metodologia.

Aura González Serna – Doutora em Serviço Social pela UFPE, (2005). Docente Pesquisadora, na direção do Grupo Território na “Universidad Pontificia Bolivarianam-UPB”. Campus de Laureles. Medellín, Colômbia. E-mail: [email protected]


GOMES, Edvânia Torres Aguiar. Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica. Recife: Massangana, 2007. Resenha de: SERNA, Aura González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p.375-378, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]

 

Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830) | John H. Elliott

Ao longo de muitas décadas de minuciosa pesquisa, John Elliott, autor de El Conde-Duque de Olivares e La España Imperial, entre outras importantes obras, se destacou como um dos mais renomados especialistas na história da Espanha. Mais recentemente seu interesse deslocou-se também para os cenários coloniais da monarquia hispânica. O leitor brasileiro em geral conhece de John Elliot apenas os excelentes textos presentes na monumental História da América Latina da Universidade de Cambridge, organizada por Leslie Bethell e publicada no Brasil no final da década de 90. No seu último livro, Imperios del Mundo Atlántico, que como o restante da obra de Elliott ainda não teve tradução brasileira, realiza uma abordagem comparativa da história do continente americano.

O método comparativo em história não é prática inédita no Brasil, mas devido a sua alta complexidade, infelizmente não logrou reunir muitos adeptos. O exemplo mais conhecido é o da obra clássica de Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil), na qual ele ensaiou algumas comparações entre os diferentes colonizadores do continente americano, concretamente entre portugueses, espanhóis e holandeses, atribuindo de forma um tanto intuitiva, características de fundo psicológico a cada um deles. Em 1939, Herbert Bolton lançava a questão: as Américas têm um história comum? A pergunta, proposta a modo de desafio, provocou reações, embora as dificuldades subjacentes a este tipo de análise tenham desanimado os historiadores. Realizar estudos comparativos expõe o historiador ao duro dilema de ter que escolher entre trabalhar dados secundários para ampliar o universo de análise ou reduzi-lo a patamares bastante limitados, se deseja trabalhar com fontes primárias. Uma obra clássica na qual se utilizou o método comparativo surgiu nos anos 70, quando James Lang advogava em Conquest and Commerce que a principal diferença entre os dois impérios seria o perfil de conquista do colonizador espanhol, ao passo que o inglês se inclinaria, sobretudo, pela tentativa de estabelecer redes comerciais em suas novas possessões.

Em Impérios del Mundo Atlántico, Elliot empreende a difícil tarefa de estabelecer comparações entre os impérios espanhol e inglês na América. O hispanista inglês consegue em seu trabalho (fruto de anos de experiência como pesquisador e professor em várias universidades européias), equacionar bem o problema da abordagem comparativa, embora tenha que esquivar o desafio de incluir também o Império Português. Este aparece apenas em algumas passagens específicas, quando a menção às suas características ajuda a esclarecer aspectos concretos, como por exemplo, o da utilização da mão-de-obra escrava africana. O autor reconhece que incluir a América portuguesa no espectro de análise agigantaria a tarefa de forma a torná-la por demais ampla para os limites de um volume. Não obstante, a opção por centrar-se nas áreas de colonização espanhola e britânica não desmerece a obra. O livro foi estruturado em três partes (La ocupación, La consolidación e La emancipación) formadas por quatro capítulos cada. Ao longo de suas mais de 800 páginas, o autor trabalha com uma ampla gama de eixos temáticos. Sua abordagem se interessa pelos aspectos relacionados com a adaptação do colonizador aos recursos alimentícios disponíveis no novo mundo, a postura do europeu frente aos nativos, os posicionamentos frente à mestiçagem em suas várias facetas, as variantes na organização da produção e da utilização da mão-de-obra, as práticas político-administrativas e os processos de desagregação dos vínculos coloniais. Elliott, graças aos seus amplos conhecimentos de história moderna, transcende os aspectos propriamente locais na sua abordagem, conectando as manifestações da experiência colonial no novo mundo com as estruturas mentais e as práticas políticas e culturais de origem dos colonizadores. Na opinião do autor, são as experiências européias destes colonizadores que fizeram com que os espanhóis recorressem freqüentemente à figura do mouro para caracterizar os indígenas (sobretudo os das áreas de maior desenvolvimento civilizacional) ao passo que ingleses os relacionassem com os irlandeses. É através deste olhar mais amplo, que o autor pode, por exemplo, tecer esclarecedores comentários acerca das formas como colonizadores britânicos e espanhóis entendiam a questão da cristianização dos nativos. No caso britânico, o esforço missionário, tão característico da colonização espanhola no Novo Mundo, se viu embaraçado seja pela falta de uma política estatal de catequese pungente, seja pela concepção da predestinação que regia a cultura religiosa de muitos dos colonos puritanos. Entre os colonizadores espanhóis, Elliott detecta o envolvimento direto da coroa no mister de cristianizar os nativos. A instituição do padroado régio, se por um lado dava ao monarca espanhol amplos poderes em matéria eclesiástica no Novo Mundo, por outro o obrigava a empenhar-se na salvação das almas dos indígenas, sob pena de ter sua consciência maculada. Também nesse caso o cenário europeu interfere diretamente nas realidades construídas no além-mar: os missionários católicos chegados ao continente depois das reformas tridentinas entendiam o objeto de sua atuação de forma bastante diferente dos primeiros missionários da “fase heróica” da catequese. Em relação aos aspectos políticos, Elliott esquadrinha inteligentemente de que formas os conflitos políticos seiscentistas da Inglaterra influenciaram a cultura política dos colonos britânicos, traçando um interessante paralelo entre estes e os colonos espanhóis durante o processo de desagregação dos respectivos vínculos coloniais.

A mais recente obra de Elliott disponibiliza ainda uma longa lista de bibliografia que inclui contribuições monográficas sobre a história da América colonial publicadas após o ano 2000. O primoroso estilo do autor e a excelente tradução (monitorada pelo próprio Elliott, profundo conhecedor do idioma castelhano) garantem uma leitura agradável, ao passo que um bem elaborado índice analítico facilita as consultas mais pontuais. A tradução ao português desta e de outras obras suas representaria inegavelmente um poderoso estímulo aos estudiosos do período colonial da América portuguesa para romper as tradicionais barreiras que atualmente setorizam o estudo das experiências coloniais no Novo Mundo.

George F. Cabral de Souza – Professor no Departamento de História da UFPE. Pesquisador financiado pela FACEPE. Membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.


ELLIOTT, John H. Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830). Madrid: Taurus, 2006. Resenha de: SOUZA, George F. Cabral de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p. 379-382, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]

 

Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais | Christine Rufino Dabat

O objetivo de uma resenha é despertar o desejo de ler uma obra, destacando seus aspectos principais e traços originais que possam propiciar aos leitores descoberta, enriquecimento, reflexão, revisão das idéias já consolidadas, num processo de diálogo com o (a) autor (a), possibilitando utilidade e prazer intelectual associados. Tratando-se de “Moradores de Engenho”, de Christine Rufino Dabat, lançado pela Editora Universitária da UFPE em 2007, o principal desafio a ser superado reside na dimensão do livro (800 páginas) numa época cibernética durante a qual se acostumou os leitores a breves e sucessivas leituras de materiais eletrônicos consoantes com a aceleração e a fragmentação do tempo; por se tratar de uma tese de doutoramento em História, pode enfrentar também uma desconfiança face ao caráter especializado e técnico-acadêmico da obra, dificultando a ampla divulgação do livro. Em face desses dois freios iniciais, proponho-me mostrar que o leitor, que superar esse costume e essa desconfiança, terá a fruição do prazer e da utilidade ao ler a muito bem cuidada edição da tese de doutoramento de Christine Rufino Dabat: Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais.

Inicialmente, destaco algumas facilidades que a qualidade da edição propicia ao leitor: o sumário é extremamente detalhado, permitindo acompanhar o encadeamento e o conteúdo de cada um dos oito capítulos distribuídos em três partes. No texto, encontram-se notas de rodapé referenciais, explicativas e complementares que permitem uma leitura fluente do conteúdo central enriquecido aqui, acolá por quadros. A bibliografia estende-se sobre 40 laudas e constitui-se num acervo extraordinário para estudiosos da sociedade da cana-de-açúcar.

O autor dessa resenha não é historiador, mas geógrafo; participou como examinador externo da banca de Doutorado, que, sob a presidência da Profª Maria do Socorro Ferraz Barbosa – orientadora, examinou o trabalho acadêmico e foi unânime em destacar a originalidade e a contribuição que essa tese trouxe para a reinterpretação radical da zona canavieira de Pernambuco, objeto de inúmeros estudos anteriores. Para historiadores há muitas possibilidades de abordar as múltiplas técnicas de fazer história presentes na obra: relações com fontes literárias, organização e tratamento da historiografia, uso de arquivos, incursões no campo da antropologia, coleta e repasse da memória viva dos trabalhadores rurais, cada um desses diversos passos sendo objeto de muitas e debatidas polêmicas metodológicas no âmbito da História. Nada disso, portanto, será tema dessa resenha, pelo simples fato da identidade disciplinar do seu autor.

Mas, além das tecnicalidades disciplinares, a autora propõe uma tese: destaca um evento, “um episódio identificado como singular na evolução das relações de trabalho no campo”, isto é, a saída dos moradores dos engenhos para as “pontas de rua” das cidades da zona canavieira de Pernambuco, para afirmar que se trata de uma inflexão na longa história da exploração dos trabalhadores da cana-de-açúcar, inflexão que foi interpretada pelos setores dominantes da sociedade, através da literatura e da produção acadêmica, como uma mudança dificultando a identificação do “continuum” da incrível exploração do trabalho, desde a escravidão até nossos dias, que caracteriza a zona canavieira de Pernambuco entre as poucas regiões do mundo sem rupturas. É na memória viva das vitimas dessa exploração, que a autora encontra uma interpretação histórica capaz de recuperar esse “continuum”, e de situar o evento na longa duração da exploração e nas lutas políticas, sindicais e culturais do presente. A quais interesses afinal servem os recortes históricos e a afirmação da sucessão de mudanças senão àqueles que se beneficiaram dessa exploração contínua?

A obra de Christine Rufino Dabat não é de um pesquisador iniciante, como o é, hoje em dia, comum, tratando-se de tese de doutoramento. Longamente amadurecida, resulta de um itinerário afetivo, intelectual e militante de cerca de trinta anos. Entre idas e vindas na problemática das relações de trabalho vinculadas à “plantation” canavieira destaca-se a descoberta da obra de Sidney W. Mintz, disponibilizada em português numa coletânea organizada pela autora e publicada em 2003 pela Editora Universitária da UFPE, sob o título “O poder amargo do açúcar. Produtores escravizados, consumidores proletarizados.” Nesse autor, “involuntário farol intelectual de uma jornada acadêmica em forma de labirinto”, Christine Rufino Dabat encontrou o fio de Ariadne para debater e superar os entendimentos consagrados na historiografia nacional acerca da “Morada”; em “Moradores de Engenho” reinsere essa condição no contexto da “economia mundo” de Immanuel Wallerstein e mostra como as relações de trabalho e produção de açúcar são desde o início marcadas pela “modernidade precoce” (p. 388 a 434) relativizando e interpretando, à luz do eurocentrismo, o longo percurso historiográfico nacional do feudal ao capitalismo mercantil e ao capitalismo industrial.

Essa análise historiográfica desenvolvida no capítulo 5 constitui, junto com o capítulo anterior, a 2ª parte do livro. Em “Interpretações da morada”, a autora, após ter situado numa 1ª parte o contexto histórico do episódio que é objeto do trabalho, reserva cerca de 110 páginas a um estudo das visões da morada em José Lins do Rego e Gilberto Freyre, mostrando como a produção cultural foi capaz de criar representações duráveis e fundas, além dos debates acadêmicos norteados pelo evolucionismo cultural. Ao jovem leitor, além da releitura das obras de Lins do Rego e Freyre guiada pela desconstrução empreendida por Christine Rufino Dabat, aconselha-se assistir ao filme de Cláudio Assis “O Baixio das Bestas” que, filmado na zona canavieira de Pernambuco, assume também um caráter universal ao representar a total e brutal desumanização e instrumentalização das relações no período atual da “economia mundo”.

A 3ª parte de “Moradores de Engenho”, estende-se sobre mais da metade do livro e propõe uma reconstrução da história sob o título “A morada na experiência dos moradores”. São abordadas sucessivamente, as condições de vida dos trabalhadores rurais na época da morada, as condições de trabalho e as condições políticas denominadas “violência e cidadania”. Os textos resgatam falas dos trabalhadores e interpretações da autora remetendo sempre a outros estudiosos que se dedicaram ao estudo da vida, das relações de trabalho e da política na zona canavieira. Trata-se de uma minuciosa reconstituição, ficando claro o intuito da autora de dar prioridade à memória viva dos trabalhadores de modo a romper com a “lei do silêncio”, que afeta essa parte dos agentes da região em contraste com a abundância das produções culturais e acadêmicas recuperadas na parte anterior. Christine Rufino Dabat constrói respeitosamente, com os trabalhadores, uma história renovada pela empatia que sustenta a longa militância com os entrevistados, que revelam não ter saudade do passado mesmo se o presente continua marcado pela exploração. Reexamina assim, junto com eles, “a interpretação dada ao desenvolvimento histórico da região”.

Ao ler essa parte, lembrei de um texto do escritor nascido na Martinica, também terra de plantações criadas na “modernidade precoce”, Edouard Glissant, que procuro traduzir aqui:

O significado (a “história”) da paisagem ou da Natureza é a clareza revelada do processo através do qual uma comunidade cortada dos seus laços ou de suas raízes (e, talvez mesmo desde o início, de quaisquer possibilidades de enraizamento) pouco a pouco vem sofrendo a paisagem, merecendo sua natureza e conhecendo seu país” (…) ”Aprofundar esse significado é levar essa clareza à consciência. O esforço teimoso em direção à terra é um esforço para a história. (GLISSANT E., L’intention poétique. Paris: Gallimard, 1997).

Tradução livre de:

La signification (l’”histoire”) du paysage ou de La Nature, c’est La clarté révelée du processus par quoi une communauté coupée de ses liens et de see racines (et, peut-être même au départ, de toutes possibilités d’enracinement) peu à peu souffre le paysage, merite sa nature, connaît son pays. » (…) Approfondir la signification c’est porter cette clarté à la consciência. L’effort ardu vers la terre est un effort vers l’histoire. »

Jan Bitoun – Professor do Departamento de Ciências Geográficas da UFPE.


DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. Resenha de: BITOUN, Jan. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p.257-261, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

Um historiador fala de teoria e metodologia, ensaios | Ciro Flamarion Cardoso

São poucos os historiadores brasileiros que podem apresentar uma produção tão rica e diversificada quanto o professor Ciro Flamarion Cardoso. Parte de sua vida foi vivida fora do Brasil, à época da ditadura militar e, contudo a sua presença foi marcante na formação de uma geração que leu e refletiu o Métodos da História, seus escritos sobre o trabalho escravo na antiguidade e Uma Teoria da História. Em suas obras nota-se uma constante critica à pequena importância que o estudo da filosofia tem recebido na formação dos historiadores no Brasil. Essa preocupação teórica o levou a refletir, com outros autores, em Caminhos da História.

Após os eventos do final dos anos oitenta, ocorreu a debandada dos historiadores para fora dos caminhos da interpretação marxista da história. Ciro Flamarion é um dos raros que mantém a sua adesão àquele método de estudo, àquela filosofia explicativa da história. Assim, não surpreende a edição desses ensaios, produzido ao longo de doze anos, resultado de suas reflexões e perplexidades, advindas de sua prática docente.

Pouco avesso aos salameques e ao culto das novidades por serem novidades, o autor de Um Historiador fala de teoria e metodologia, continua fiel ao viés fundamental de sua obra. Ciro nos mostra como ele continua capaz de dialogar com o mundo e apresenta o marxismo como ainda capaz de dar conta da complexidade que estudos setoriais não conseguem, segundo ele, enfrentar plenamente.

Dividido em quatro partes, o livro organiza didaticamente os grandes temas que estudos históricos enfrentam atualmente. Na primeira parte, composta por dois capítulos, o Autor dedica-se a debater as novas perspectivas e compreensão do Tempo e do Espaço para a História, dedicando um capítulo para o debate sobre a construção do espaço, nesses novos tempos em que as realidades parecem estar cada vez compressas e em que os limites geográficos, definidos matemática e geometricamente no final do século XIX, mostram-se ineficazes para a compreensão das políticas atuais dos países e estados.

A segunda parte é dedicada ao acompanhamento do debate epistemológico atual, com destaque especial ao anti-realismo do pensamento histórico contemporâneo e sobre a influência negativa que o Autor entende que as teorias do conhecimento exercem na atual produção histórica no Brasil. Talvez seja a sua adesão incondicional ao marxismo que o impeça de olhar com maior simpatia a atual produção vinda dos programas de pós-graduação das universidades, talvez muito ávidas por aceitar as novidades conseqüentes das contradições européias, aceitas sem o respaldo de um estudo filosófico que seja capaz de assumir as novas tendências sem superar simples macaqueação própria do novidadeirismo.

A terceira parte é dedicada à reflexão do pensamento histórico e ao debate historiográfico contemporâneo. Embora instigante, essa parte pode ser apontada como frustrante por limitar esse debate apenas até os anos trinta. Esperava-se mais, na reflexão sobre a atual produção, essa que vem desde a segunda metade do século. Mas, talvez, com esse enorme hiato, o autor queira nos dizer que não ocorreu ainda uma real e nova interpretação da história brasileira, nem universal, além daquelas que foram apresentadas nas primeiras décadas do século XX, pouco importando que seja uma história produzida nos limites do Brasil ou além deles. Seria isso produzido pela quebra dos paradigmas, pela queda física, antes da metáfora, do muro que separavam as duas maiores experiências políticas ideológicas do século findo há quase uma década, ou a duas décadas, como quer um outro historiador marxista, Eric Hobsbawm. Interessante capítulo, desta parte, é quando nosso Autor quase se transforma em perscrutador do futuro ao discorrer sobre “que história convirá ao século 21” e reflete sobre como a crise dos paradigmas, o cultivo quase niilista da dúvida permanente e da certeza de que só a dúvida existe pode levar os historiadores a perder a perspectiva, atolando-se nos mais diversos solipsismos.

A parte quarta desse livro é dedicada a debater questões mais setorizadas tanto quanto à teoria quanto ao método histórico. No nono capítulo estão abordadas questões atuais no debate sociológico, político e histórico, referindo-se mais diretamente às questões étnicas, tão pungentes e atraentes numa globalização na qual para não se tornarem massas liquidas, voltam-se a paradigmas pré-modernos vestidos em vistosas roupagens pós-modernosas, escondendo nas colorações cintilantes, ranços de racismos que podem fazer retornar com mais tragicidade situações aparentemente vencidas em meados do século XIX. Capítulo muito interessante é o dedicado à chamada História das Religiões, uma quase ciência e uma quase teologia, ou uma teologia que não quer dizer-se como tal. Para ele muitos dos que se dizem historiadores das religiões, deixaram-se seduzir pelos mistérios que atraem os crentes, esquecendo-se dos problemas que são os verdadeiros interesses do historiador, do cientista. Ao crente basta a admiração e contemplação da verdade religiosa, ao historiador a admiração serve apenas de pretexto para iniciar a busca do entendimento de porque homens e mulheres, em determinados tempos e lugares, criaram sistemas e necessitaram afirmar que esses sistemas foram doados gratuitamente por alguma entidade não humana, mas superior aos homens e mulheres Tais adesões à pseudociência História das religiões só é possível pela negativa em abordar os problemas humanos a partir de sua materialidade.

A leitura dos Ensaios contidos em Um historiador fala de teoria e metodologia é interessante àquele que já se encontra na militância da história, seja como professor apenas, seja como professor, pesquisador e historiador. Para os que estão iniciando-se nos afazeres do historiador, essa é uma leitura obrigatória. Nela ocorrerá o encontro com um permanente estudioso da história, e um constante enamorado pelas criações dos homens que vivem as contradições das sociedades que criam e na qual vivem.

Severino Vicente da Silva – Professor adjunto, atuante no programa de pós-graduação do Departamento de História da UFPE.


CARDOSO, Ciro Flamario. Um historiador fala de teoria e metodologia, Ensaios. Bauru, SP: Edusp, 2005. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 262-265, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

 

Dictionnaire de la colonisation française | Claude LIauzu

Entre as muitas obras recentes que tratam do passado colonial da França, o Dicionário da colonização francesa destaca-se pela abrangência das temáticas e análises, numa época de grandes debates no campo desta história. Falecido no ano da publicação deste dicionário, o grande historiador Claude Liauzu o organizou com a preocupação central de valorizar a seriedade na determinação dos fatos e respeitar a pluralidade das interpretações. Ele introduz o volume « A colonização em questões » (p. 9-25) expondo suas ambições e limites.

Os grandes embates que ocupam a fábrica da história colonial na França dos séculos XIX e XX, e sua eventual instrumentalização pelos poderes políticos, torna o assunto atual. Claude Liauzu e sua equipe de dezenas de colaboradores (entre os quais pesquisadores oriundos dos países antigamentes colonizados) decidiram encarar o desafio, afirmando a necessidade de oferecer aos leitores pontos de referência seguros a partir dos quais eles possam definir uma opinião informada no fogo cruzado das « guerras de memória ». Daí a forma de dicionário. São setecentos e setenta e cinco entradas que dizem respeito a pessoas, eventos, mas também categorias de análise histórica. « Tempos fortes », que antecedem sequência alfabética, estabelecem a periodização do assunto. Dezoito mapas e uma bibliografia (dividida tematicamente), no fim da obra, além de diversos índices (de pessoas, lugares e temas, disponíveis na internet) ajudam o leitor a se situar. Os nomes que, nos textos, remetem a artigos próprios são assinalados por asterisco e setas associam outros relacionados.

São tratados aspectos variados, destacando-se a definição do próprio título « colonização » com vários desdobramentos: etimológicos (« colônia », p. 200-201, e « colônia penal » p. 201) ; sociais e políticos como o dossiê « colonos – brancos pobres e ´franceses majorados » (p. 202-210) com várias seções, inclusive o « colono visto pelo colonizado » ; geográficos, mostrando as dimensões políticas, em cada região em que atuou, América, África, Ásia, Próximo Oriente ; culturais, revelando os diversos olhares sobre o fenômeno, « escola colonial » (p. 258), « a escola do colonizado » (p. 259-263), « professores primários » (p. 381), « estudantes colonizados » (p. 280), e mesmo as prestigiosas instituições acadêmicas como a « Escola francesa do Extremo Oriente » (p. 263), focada em aspectos tocando diretamente à historiografia. « As colônias na escola » (p. 265) complementada pelo dossiê « criança e propaganda colonial – Convencer os jovens da metrópole » (p. 269) e o artigo « Propaganda colonial oficial » (p. 538-539), expõe a maneira como a colonização foi ensinada pelos manuais e outros meios de divulgação, desde a criação da escola pública, laica, gratuita e obrigatória, pelos próprios governos da IIIa. República, que promoviam ambas.

« Escritores e colonização » trata da literatura acerca deste fenômeno, seguindo uma entrada rápida sobre o papel de editoras como as Éditions de Minuit, que publicaram grandes textos de combate contra a colonização, em particular A questão, de Henri Alleg, denunciando a tortura utilizada pelo exército francês durante a guerra – que não dizia seu nome – da Argélia. Enfim, « palavras e colonização », (p. 482), « migrações e colonização » (p. 470). « República e colonização – Relações ambíguas » (p. 552-557), faz objeto de um dos numerosos dossiês analíticos que pontuam a obra, com um subtítulo « colonização e civilização », onde são tratados os grandes traços do discurso dominante a respeito do assunto. Outro dossiê, « Capitalismo e colonização. Um debate » (p. 168-172), mostra como se articulam império e prosperidade na metrópole, ao longo dos séculos. « Cristianismo, missões e colonização » (p. 185-191) seguido de « Cristianismo e descolonização » (p. 191-193) focam no papel dos religiosos, numa empresa estatal cuja fase republicana foi marcada pelo anti-clericalismo.

Outros conjuntos de artigos poderiam assim ser singularizados, particularmente em torno dos artigos-dossiês que propõem uma síntese sobre dado assunto, tentando equilibrar o tratamento dos diversos espaços geográficos que, através de quatro continentes, sofreram a marca da empresa colonial francesa : por exemplo, a Nova Caledônia (p. 501-505), complementada por outros artigos como « religiões da Oceânia », (p. 551) « Oceânia » (p. 506-507) « Novas Hébridas Vanuatu » (p. 505) e assuntos, às vezes esquecidos, como o de Moruroa, atol onde os franceses efetuaram seus experimentos nucleares (p. 481).

Em « Raça » incluindo « a política das raças », « racismo » (p. 545-548), Liauzu, autor do maior número de entradas, evoca um campo que detalhou no seu notável estudo Raça e civilização. O outro na civilização ocidental (Paris: Syros, 1992). Ao lado dos artigos esperados sobre a « escravidão – quatro séculos de história da colonização » (p.272-277) e sua abrogação, com a figura emblemática de Victor Schoelcher (p. 579), os autores não se furtam a mencionar eventos recentes, como a Lei Taubira (2001), que confere ao tráfico negreiro o estatuto de crime contra a humanidade (« Comitê para a memória da escravidão » p. 210) e a mal afamada lei de 2005, posteriormente abrogada sob pressão dos meios acadêmicos e mais amplamente cidadãos, que pretendia obrigar ao ensino dos « aspectos positivos » da colonização francesa (p. 533).

Os autores utilizam conceitos atuais como os « lugares de memória » (p. 409-413), complementado em « imaginário e espaços » (p. 364-366), e lugares, simplesmente, inclusive presídios famosos (« Poulo Condor », no Vietnam, p. 536) ou manifestações físicas importantes como o « Mediterrâneo » (p. 460), ou ainda espaços situados no tempo como o artigo « O Magreb na véspera da colonização – Blocagens e tentativas de reforma ». (p. 437-440), ou « o grande deserto do Sahara » (p. 568).

Entre os assuntos tratados em si podem ser citados como exemplos as grandes temáticas do « povoamento » (p. 527), « campesinato » (p. 524), « industrialização » (p. 379), assim como conceitos: « negritude » (p. 495), « nacionalismos » (p. 488). As posições das grandes forças políticas são detalhadas (« Internacional Comunista » (p. 383); « OAS » (p. 506) « FLN » (p. 299) com seus desdobramentos: « chefes históricos », « Federação de França do FLN »; « Pan-africanismo » (p. 514). Personalidades de destaque como Ahmed Messali Hadj, nacionalista argelino do século XX, Ho Chi Minh (p. 359) ou Solitude (p. 586) heroina da resistência ao restabelecimento da escravidão nas Antilhas são tratados com particular cuidado assim como as « resistências à conquista » (p. 557) e grandes rebeliões, como a Kanak, em 1878 (p. 393) ou a insurreição em Madagascar de 1947 (p. 435) e as diversas organizações (partidos e movimentos armados, mas também confrarias e outras) de resistência dos povos colonizados pela França. Entre os personagens mencionados, pode-se destacar os resistentes à colonização, inclusive franceses como Camille Pelletan que denunciava no seu jornal, A justiça, a maneira como as autoridades republicanas francesas impunham sua civilização « por meio de canhões » (p. 526). Em obra póstuma de Claude Liauzu, História do anti-colonialismo na França do século XVI a nossos dias (Paris: Colin, 2007), este aspecto ganha vulto.

Obviamente, aspectos econômicos da empresa colonial estão presentes : as companhias que recebiam concessões da potência colonial (p. 213-216), « cultura de seringueira na Indochina » (p. 358) etc. Também é tratada a dimensão propriamente militar, os métodos de conquista e administração – « governo colonial » (p. 315-319) ; « ministério das colônias » (p. 472-473) – de vastos espaços e populações numerosas em âmbitos geográficos diversos e longínquos, embora nenhuma predominância seja dedicada a estes assuntos clássicos. No entanto, menciona-se aspectos peculiares como, sob o título « Marinha, Marinheiros – o seu papel na expansão colonial » (p. 444), evocando a situação difícil destes, muitas vezes oriundos de territórios colonizados. O maior destaque é dedicado aos conflitos de descolonização, sobretudo na Argélia, que se desdobra em dois dossiês: « guerra de Argélia – Uma guerra que não diz seu nome » (p. 321-335) e « guerra de Argélia e liberdades – Estado de sítio e poderes especiais » (p. 340); para garantir o equilíbrio no tratamento, há também : « Guerra de Indochina – A primeira guerra de descolonização» (p. 341-350).

Aspectos culturais têm, em compensação, muito destaque, desde « festas » (p. 297), « canção » (p. 179), como testemunho da cultura popular, refletindo preconceitos sob os apetrechos do exotismo, mas também nas dimensões de resistência como o anti-militarismo. Famosos artistas são retratados, como Josephine Baker (p. 130-131), cujo sucesso revelou visões metropolitanas da coisa tropical, por assim dizer, e influenciou numa mudança, surpreendentemente recente, nas mentalidades. « Fotografia – a colocação em imagens das colônias » (p. 529), « pintura orientalista » (p. 510) e « Cinema » (p. 194-200), tratam tanto de documentos fotografados encenados ou não, documentários e ficções, mostrando também os esforços de alguns autores para romper com os clichês coloniais, como o premiado « Indígenas », de Rachid Bouchareb (Cannes 2006). A literatura abrange as representações, inclusive populares, como a personagem bretã « Bécassine e suas aventuras coloniais » (p. 140) mas também as produções de criadores de horizontes diversos : literatura da África negra, magrebina, da Nova Caledônia, da Polinésia, « Indochina : edição e literatura » (p. 374) e enfim, « literatura e colonização » (p. 421), seguida de um artigo curioso : « literatura, romance policial e descolonização » (p. 422), mencionando sobretudo obras recentes que tratam de episódios de repressão na própria metrópole contra pessoas oriundas das (ex)colônias.

Muitos atores da descolonização, em várias áreas, literatura e política em particular, fazem parte do elenco biografado: como Leopoldo Sedar Senghor (p. 584), Albert Memmi (p. 461-462), Aimé Césaire (p. 176), desaparecido recentemente. Eles dividem páginas com autores franceses cuja obra e engajamento lhes estão ligados ou opostos: SaintJohn Perse (p. 572), Jean Paul Sartre (p. 578), Céline (p. 174), Camus (p. 163-164), André Malraux (p. 441). Outros autores, cuja obra fez evoluir consideravelmente os instrumentos do pensar da coisa colonial, são mencionados, por exemplo, Marcel Mauss (p. 458), Jean Dresch (251), Cheikh Anta Diop (p. 183), Frantz Fanon (286) e Maxime Rodinson (p. 565), além de revistas como « Presença africana », que marcou as gerações da descolonização fazendo « a ligação com os intelectuais franceses » (p. 538), bem como editores como François Maspéro (p. 455) que abasteceu os militantes anti-colonialistas com obras de Castro, Ho Chi Minh, Basil Davidson e tantos outros.

Entre as dimensões culturais, poderia se singularizar a questão das línguas criadas pela própria colonização « pidgin » (p. 532), « petit nègre » (p. 527) , « pataouète » (p. 523) e « sabir » (p. 568), assim como seu impacto sobre o francês : termos próprios à história colonial ou por ela gerados como « força negra » (p. 302) « spahis » (p. 587) « méharistes », os policiais do deserto (p. 461); ou ainda « bled » palavra oriunda do árabe falado na Argélia que passsou na língua francesa para designar o campo ; « bidonville » (clássica tradução de favela), cuja origem é marroquina ; « béké », termo das Antilhas, até hoje empregado para os descendentes de plantadores ; « cafre » termo utilizado na ilha da Réunion para designar as populações mestiças (p. 160).

O artigo « folie et psychiatrie » (p. 302) evoca a obra pioneira de Frantz Fanon e a recém formada sociedade franco-argelina de psiquiatria, cujo primeiro congresso (2003) consagrou o reconhecimento científico dos traumas resultantes da colonização e guerras de libertação. O dossiê « Saúde » (p. 575-577) trata da epidemiologia, mas sobretudo do imaginário e da justificação da exploração colonial apresentada como compensada pela assistência primária à saúde das populações colonizadas:« Institutos Pasteur » (p. 381) ; « Médicos » (p. 459) « quinine » (p. 544). Os autores do Dicionário não hesitam em abordar assuntos difíceis como o dossiê sobre « mestiçagens e uniões mistas – Da marginalidade à pluralidade incontornável » (p. 465-470); « homossexualidade » (p. 361); « corpos – realidades e imaginários » (p. 223-227) « prostitutas » (p. 539), ao qual corresponde o artigo «masculinidade colonial » (p. 454-455). Embora haja um dossiê importante « mulheres – elas também têm uma história » (p. 287- 295) associado ao artigo « moças – Um novo tipo social nascido da colonização » (p. 387-389), sua presença, esparsa em outras entradas, inclusive biográficas (poucas), é discreta.

Em suma, Dicionário da colonização francesa é uma obra que prima pela coragem dos autores, abrangência e atualidade dos assuntos e sobriedade benvinda no tratamento.

Christine Rufino Dabat – Professora do Departamento de História da UFPE.


LIAUZU, Claude (Dir.). Dictionnaire de la colonisation française. Conselho científico: Hélène d’Almeida Topor, Pierre Brocheux, Myriam Cottias, Jean-Marc Regnault. Paris: Larousse, 2007. Resenha de: DABAT, Christine Rufino. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 266-271, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937 | Tarcísio Marcos de Alves

ALVES, Tarcísio Marcos de. A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937. Recife: Néctar, 2008. Resenha de: SILVA, Edson. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.25, n.2, p.349-354, jul./dez. 2007.

Acesso apenas pelo link original [DR]

La Mer, la france et l´Amérique Latine | Christian Buchet

BUCHET, Christian; VERGÉ-FRANCESCHI, Michel (Dir.). La Mer, la france et l´Amérique Latine. Paris: PUPS, 2006. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.2, p.333-336, jul./dez. 2006.

Acesso apenas pelo link original [DR]

A misteriosa chama da Rainha Loana. Romance ilustrado | Umberto Eco

ECO, Umberto. A misteriosa chama da Rainha Loana. Romance ilustrado. Rio de Janeiro: Record, 2005. Resenha de: NEVES, Lucilia de Almeida. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.1, p.307-311, jan./jun. 2006.

Acesso apenas pelo link original [DR]

João Goulart: entre a memória e a história | Marieta de Moraes Ferreira

FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Resenha de: MONTENEGRO, Antônio Torres. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.1, p. 313-317, jan./jun. 2006.

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O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados | Sidney W. Mintz

MINTZ, Sidney W. O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2003. Resenha de: MACIEL, Caio Augusto Amorim. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.22, n.1, p.363-366, jan./dez. 2004.

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A Utopia Arpada – rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real (1832-1850) | Dirceu Lindoso

LINDOSO, Dirceu. A Utopia Arpada – rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real (1832-1850). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Resenha de: FERRAZ, Maria do Socorro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.21, n.1, p. 333-336, jan./dez. 2003.

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Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI | Cornelius Castoriadis

CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.21, n.1, p.327-331, jan./dez. 2003.

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A Slaves Place, a Master’s World: Fashioning Dependency in Rural Brazil | Nancy Priscilla Naro

NARO, Nancy Priscilla. A Slaves Place, a Master’s World: Fashioning Dependency in Rural Brazil. London: Continuum, 2000. Resenha de: HOFFNAGEL, Marc Jay. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.20, n.1, p.301-304, jan./dez. 2002.

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Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. | Ivone Gebara

Quero em primeiro lugar saudar Ivone Gebara por sua coragem de Romper o Silêncio sobre a história social das mulheres e, sobretudo, destacar a inovação de uma teóloga mulher que se contrapõe de forma contundente às injustiças e às desigualdades. Quero destacar, sobretudo, o papel político desta obra.

Ao situar as mulheres no mundo da história da teologia, a autora estabelece uma relação fundamental entre a teologia e a vida social, na medida em que a teologia reflete as contradições do mundo social, onde a malignidade, muitas vezes, aparece, como coloca Gebara, como destino, desígnio de Deus, ou castigo pelos pecados ocultos, ou ainda, pelos pecados não purgados.

A fenomenologia do mal feminino aparece na dialética das malignidades identificadas pela autora como quatro formas do mal: o mal de não ter, não poder, não saber, não valer. Estes males atingem as mulheres e se manifestam com maior ou menor intensidade de acordo com suas inserções sociais.

O feminino como mal de não ter. Como satisfazer às suas necessidades e, sobretudo, efetivar as atividades de produção e reprodução da vida; como gerar e criar os filhos e filhas, administrar a vida doméstica e familiar em toda sua complexidade, papéis estes designados às mulheres. Como diz Gebara: “A vida das mulheres parece estar ligada a este aspecto primordial ou primário da manutenção da vida. Por conseguinte, o mal de não ter ou a falta do essencial para viver as atinge de modo particular”(p. 49).

O feminino como mal do não poder. Representado através da experiência de Violeta Parra, (p.60) que vivencia o seu não poder ao se filiar a um partido político de esquerda para participar do movimento de libertação do seu país e, paradoxalmente, vivencia sua luta pela liberdade às custas de sua própria liberdade. Isto nos remete a refletir sobre a saída das mulheres do mundo privado (do doméstico) para o mundo público (da política) que, no caso de Violeta Parra e de grande parte das mulheres que fazem este percurso via partidos políticos ou movimentos sociais, não experimentam uma mudança significativa no exercício dos papéis designados a elas, o que faz com que passem a exercer nesses novos espaços as mesmas atividades caracterizadas como femininas – de organização, manutenção entre outras – não conseguindo, na maioria das vezes, uma posição de igualdade na distribuição dos poderes com seus companheiros homens. Sendo reproduzidas no espaço público as situações de desigualdades e subordinações das mulheres nos espaços privados.

O feminino como mal de não saber. Gebara ilustra muito bem esse mal apoiando-se no exemplo da Irmã Joana Inês da Cruz, (p.62) do convento de São Jerônimo, no México, no século XVII. Qual o grande pecado dessa freira? Imiscuir-se no mundo das letras, querer provar das fontes do conhecimento – lugar eminentemente masculino, dirigido pela eclesiástica patriarcal romana, cuja divisão social do trabalho, sempre colocou para a mulher, o servir, a abnegação e a renuncia à capacidade de pensar. Pois bem, a Irmã Joana Inês da Cruz obteve como redenção o exílio do estudo e do conhecimento, com a sua adequação ao papel de serva, cuidando das atividades domésticas e das irmãs enfermas atingidas pela peste.

O feminino como mal de não valer. O valor é um lugar de dor para as mulheres. Mulheres valem como objetos, de prazer ou de ódio. A sociedade hierarquiza os seres humanos e multiplamente pune as mulheres, e as pune por sua condição de gênero, por sua condição de classe e pela cor de sua pele. As mulheres interiorizam esta hierarquização, onde elas estão em uma posição inferior, e purgam o seu sofrimento na malignidade de suas condições. É necessário que se leve em conta a extensão destas desigualdades entre os seres humanos e também as diferenças existentes entre as mulheres em suas vivências cotidianas. Deste modo, em diferentes classes sociais, em diferentes lugares e situações geracionais e étnicas, vivenciam-se diferentes situações de exploração da mulher.

Da realidade que coloca Gebara, existe uma tensão dialética que perpassa a construção da humanidade. Uma construção que decorre da consciência que cada ser tem do seu valor. Nos termos da autora “Quando o valor faz falta, as pessoas vivem um mal. “(p. 81) Existe uma confusão permanente entre as pessoas quanto à extensão e às possibilidades de afirmação do seu valor. Os carecimentos, as debilidades quanto ao acesso ao poder, o desconhecimento, a falta de reconhecimento e de pertencimento, fazem com que o mal se confunda com o bem e, como a autora coloca: ”No cotidiano de sua vida, o mal para elas parece ser a ausência de possibilidades de vida, a violência com a qual elas são tratadas, a insegurança à qual estão sujeitas, as faltas de calor e de afeição que caracterizam sua existência”. (p. 81/82)

Desde esta realidade, é necessário compreender o lugar das mulheres e as incompreensões que povoam o seu pensar e o seu agir, que dizem respeito ao bem e ao mal. Neste sentido, esta obra de Gebara é uma grata surpresa, pois só o olhar de uma teóloga feminista é capaz de discernir o mal travestido de bem, porque o mal de que Gebara nos fala, é um mal que anula as mulheres, impossibilitando a sua plenitude enquanto ser, quando nos deixa sem poder em nome do poder, quando nos deixa sem saber em nome do conhecimento, quando nos desvaloriza para gerar valor.

Esta leitura teológica feminista, considerando a mediação de gênero, revela o lugar subordinado das mulheres numa hierarquia social produzida por preconceitos que mesmo num discurso de igualdade de princípios como é o caso das teologias, mantiveram uma visão que desqualifica as mulheres.

Gebara cita, entre outras teóricas feministas, Joan Scott. A definição de gênero que faz Scott, constitui-se de duas partes e várias sub-partes, cujo núcleo essencial da definição baseia-se na conexão de duas proposições: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de significar as relações de poder”.[1] Prosseguindo a definição de Scott, o gênero se constitui num contexto simbólico de múltiplas representações, tem efeitos normativos, fixa relações binárias e produz noções de subjetividade.

Neste sentido o homem e a mulher são construídos socialmente, desde uma cultura historicamente situada no tempo e dentro das circunstâncias possíveis, determinadas por essa temporalidade. Sujeitos de seu tempo, imersos em um conjunto específico de relações sociais historicamente situadas, cada ser mulher e homem, tem um grupo originário e está submetido às regras de comportamento que se firmam desde a ética hegemônica. Se em geral é assim, desde o ponto de vista da construção de sua especificidade de homem e mulher, são determinantes sua classe, raça, religião e a forma de inserção social na sociedade. Deste modo, a partir dessas variáveis fundamentais, constroem-se o ser mulher e o ser homem.

Na história do feminismo, principalmente a partir dos anos 60, houve uma busca sistemática de uma identidade coletiva das mulheres, tentando forçar sua legitimidade política. Neste curso, a busca por uma identidade coletiva única não respondia às cismas e dissidências dentro do movimento. Assim, as especificidades que transversalizaram a vida cotidiana das mulheres (por exemplo, etnia, classe, gênero, sexualidade, religião, etc.,) colocaram em dúvida a possibilidade de um sujeito universal desprovido de suas vivências específicas. Coube ao movimento repensar o novo sujeito contextualizado historicamente e, portando, diferenciado internamente.

Essa situação suscitou polêmicas no seio do feminismo. Sem embargo, em nossa compreensão, unir as mulheres em uma identidade de gênero única, crendo que todas as mulheres vivem as mesmas situações é ocultar a existência de distintas formas de vivenciar a opressão e, ao mesmo tempo, negar a existência de hierarquias existentes nas relações de poder entre mulheres que pertencem a diferentes classes sociais, grupos étnicos distintos e culturas diversas.

Um acontecimento importante dos anos oitenta, no nível da teorização, foi a constatação de que categorias como mulher, homem, masculino, feminino, possuem conteúdos históricos específicos e se toma analiticamente problemático tentar aplicar a estas categorias uma universalidade, sob pena de cometermos os mesmos erros que temos criticado. Estas preocupações são as mesmas trazidas por Gebara e suscitam o debate que se encontra na ordem dia do pensar feminista.

Considerando estas preocupações, nas quais a autora chama a atenção quanto ao uso da categoria gênero, que é não absolutizar a opressão das mulheres e o receio de se cair em construções utópicas universalizantes, que se mostraram incapazes de dar conta desta múltipla realidade, levando-nos a uma revisão de práticas e teorias.

Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do mal é uma leitura instigante do início ao fim, possibilitando novas reflexões sobre o mal humano, particularmente o mal que atinge as mulheres.

Nota

1. SCOTI, Joan, Gênero: uma categoria útil para a análise histórica, Tradução: Christine Rufino Dabat, Maria Betânia Ávila, Recife, SOS Corpo, 1996, p. 11.

Maria de Fátima Guimarães – Professora Visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE.


GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes, 2000. Resenha de: GUIMARÃES, Maria de Fátima. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p.221-224, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]

Sobre o Tempo | Nobert Elias

A concepção de tempo acompanha, sempre, a reflexão do historiador. No cotidiano, muitas vezes, não percebemos o quanto ela é valiosa, para que se possa organizar a vida e estruturar as possíveis identidades culturais da sociedade. O livro de Nobert Elias é um ensaio que traz subsídios importantes para se pensar o tempo como uma construção social. A dimensão simbólica do tempo é ressaltada o que ajuda a ver os objetos da cultura permeados pelas mudanças e permanências que marcam a construção da história. Elias critica a perspectiva newtoniana, mostrando que o tempo não é dado objetivo, mas também não embarca na perspectiva kantiana que vê o tempo como uma estrutura a priori do espírito. Seus encaminhamentos teórico-metodológicos levam a estabelecer um rico diálogo da história com a sociologia do conhecimento.

Nobert Elias tem uma obra vasta. Muitos dos seus livros já foram publicados no Brasil, entre eles A Sociedade dos Indivíduos, Os Alemães e dois volumes do consagrado O Processo Civilizador. É inegável a erudição de Elias e suas contribuições para se compreender a modernidade. Suas reflexões têm esse propósito básico de investigar os rumos históricos da cultura, nas suas buscas por um sentido que a entrelaçasse. Nesse livro, ele não foge dessa perspectiva, destacando a complexidade social e lógica que está conectada com a invenção da concepção de tempo, predominante na sociedade contemporânea. Para isso, traça comparações com culturas de formações diferentes, inclusive de sociedades indígenas da América. Seu foco privilegiado é a cultura ocidental.

Pensar o tempo como uma relação social permite relativizar o discurso que estimulou a apologia do progresso, empobrecendo as interpretações do iluminismo, preocupado em demonstrar a riqueza social a partir da produção de mercadorias. A concepção de tempo não está dissociada das relações de poder que, inclusive, procuram naturalizá-Ia. As conquistas culturais não são feitas sem conflitos e têm fortes ligações com os interesses de cada grupo. Elias ressalta que o conceito tempo pressupõe um nível elevado de síntese e capacidade criadora dos indivíduos. Ele não é o resultado, apenas, da imaginação genial de algum pensador, mas resultado de um patrimônio cultural sofisticado, sobretudo se o relacionamos com a modernização ocorrida na chamada civilização ocidental.

“Todo indivíduo, por maior que seja sua contribuição criadora constrói a partir de um patrimônio de saber já adquirido, o qual ele contribui para aumentar”, essa é uma afirmativa que sustenta o alicerce do ensaio de Elias. Mas ele não deixa de destacar a importância da coerção social. Diz ele: ” A transformação da coerção exerci da de fora para dentro pela instituição social do tempo num sistema de autodisciplina que abarque toda existência do indivíduo ilustra, explicitamente, a maneira como processo civilizador para formar os hábitos sociais que são partes integrantes de qualquer estrutura de personalidade”. É inegável que Elias dialoga com maestria com a obra de Freud. A cultura não é o território exclusivo da construção do prazer, do fluxo contínuo do desejo. Sem repressão, sem controle e regra social seria impossível se pensar a convivência entre os seres humanos. Eles buscam um equilíbrio que nunca alcançam na sua plenitude.

Mesmo com o projeto vitorioso da modernidade ocidental, as temporalidades continuam existindo na multiplicidade. Quem lê O Labirinto da Solidão, do escritor Octavio Paz, verifica como as diversas as maneiras de conceber o tempo são importantes para construção de identidade social de um povo. As marcas da magia e da religiosidade estarão, sempre, presentes no cotidiano, por mais que se racionalizem as práticas sociais. Elias mostra, com vários exemplos, como o conflito entre a objetividade e a subjetividade deve ser compreendido para que as estruturas temporais de uma sociedade possam ser interpretadas. Dentro da sua perspectiva evolucionista, as instituições vão ganhando complexidade e a concepção de tempo hegemônica, na sociedade ocidental, é resultado dessa relação dinâmica.

A rica análise de Elias apresenta, porém, já no seu final, um comentário interessante. Diz o autor: ”Nada é mais freqüente do que ver historiadores erigirem-se em juízes dos homens do passado, que já não têm como se defender, tomando por norma os valores de sua própria época”(p. 148). Realmente, não se pode negar a existência dos julgamentos, dos juízos de valor presente em obras de historiadores. Não são apenas os historiadores que cometem esse tipo de pecado. Elias, no seu argumento mais geral, fortalece a idéia que sua análise está mais próxima da verdade, pois consegue captar as mudanças e permanências, percebendo com mais clareza o desenvolvimento das instituições sociais. Acrescenta: “Em suma a história dos historiadores é a história a curto prazo” (p.148). Sua afirmação é equivocada. Nem todos os historiadores dedicam-se a estudos localizados e privilegiam a curta duração. Esquece de toda contribuição trazida pela Escola dos Annales e das reflexões teóricas de Braudel e sua obra centrada na longa duração.

As conclusões críticas de Elias parecem retomar a polêmica entre Sociologia e História. A questão da produção da verdade ainda está presente na elaboração das pesquisas. Ela continua fundamental, mas não podemos isolá-Ia em determinados campos do saber. Cabe ao historiador não abandonar o diálogo entre passado e presente, com critérios definidos. Não há verdades definitivas. Ela é sempre relativa, mas isso não impede que se indiquem os caminhos da sua formulação e seus limites. As críticas ao positivismo não significam o fim dos critérios científicos, mas uma maneira diferente de se pensar a ciência.

Há, atualmente, uma troca de informações e teorias nas diversas áreas de produção do conhecimento, sem a adoção de hierarquias. O próprio ensaio de Elias revela essa dimensão, como também toda a trajetória da pesquisa história mais recente. Tanto o sociólogo quanto o historiador vivem dificuldades na articulação dos seus saberes. Não há como nomeá-Ios de maneira homogênea, pois as trilhas de cada um exigem também invenção e criatividade. Na História, a Escola dos Annales ressaltou a necessidade de procurar diálogo com os outros saberes para poder desvendar a complexidade do social.

Existe muita generalização, por parte de Elias, quando enfatiza: “Que a maioria dos historiadores, até o momento, deixe de levar em conta os processos sociais a longo prazo parece-me decorrer, em parte, de uma falta de reflexão sistemática sobre os problemas com que grupos humanos se confrontaram no passado e continuam a se confrontar no presente”(p.157). Mesmo quando se preocupa com a curta duração ou a micro-história, o trabalho do historiador não perde de vista uma reflexão sobre o tempo, as diferenças entre as suas dimensões. O perigo de uniformizar as experiências não é só do historiador mas de qualquer intérprete do social. O historiador não é apenas um sistematizador de fontes. Sua reflexão sobre a experiência humana está presente na construção da metodologia e nas conclusões da sua pesquisa.

É importante assinalar que “Sobre o Tempo” é melhor entendido quando o atrelamos a uma compreensão da modernidade, enquanto projeto civilizatório. Não podemos esquecer, porém, que esse projeto é construído sob o signo de confrontos. Existe um projeto que conseguiu se tornar vencedor, mas as resistências continuam, apesar da presença da cultura de massas. Outros projetos também buscam seus espaços, defendem a liberdade e autonomia, não desprezam a crítica e a dúvida como bases para fundação do conhecimento, no entanto se recusam a aceitar o mundo instalado pelo capitalismo, também ele herdeiro das aventuras da modernidade. A concepção de tempo hegemônica diz muito desses choques e dessas diferenças e nos leva a refletir sobre algumas conclusões otimistas de Elias, dentro de uma perspectiva evolucionista, de aperfeiçoamento das instituições sociais. Uma delas merece, com certeza, que o leitor retome suas peregrinações pela história, sem desprezar a complexidade que a envolve. Diz Elias: “Passo a passo, ao longo de uma evolução milenar, o problema do calendário, outrora irritante, foi mais ou menos resolvido. E como atualmente, os calendários já não criam muitas dificuldades, as pessoas esvaziam da memória as antigas épocas em que ainda causavam problemas”. Nem tudo está tão resolvido com parece entender Elias.

Os tempos históricos terminam por se condensar no presente, segundo reflexões de Santo Agostinho. O presente é síntese, mas também memória, utopia, sonho, resistência. As leituras do contemporâneo nos permitem constatar a diversidade de vivências temporais. Não é apenas o tempo dos calendários que nos domina. Lembramos, outra vez, o ensaio O Labirinto da Solidão que faz uma construção preciosa sobre as aventuras da modernidade, a partir da sociedade mexicana, trazendo também uma reflexão sobre tempo e sua dimensão mítica ainda presente. Se a linearidade dos calendários ajuda a modernizar as relações sociais, ela também revela toda uma estruturação de poder, que silencia as diferenças e busca o homogêneo. Esse tempo da produção das mercadorias, da eficiência técnica se confronta com outras maneiras de querer viver a vida e desfazer o peso de cultura tecnicista. O próprio exemplo dado por Elias de um ritual dos Índios americanos acena para a força das singularidades de cada cultura. O projeto civilizador continua sem esmagar todas as diferenças. Ainda bem, pois garante a possibilidade de reinventar a história e traçar travessias não muito previsíveis.

Antônio Paulo Rezende – Professor do Departamento de História da UFPE.


ELIAS, Nobert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p. 225-228, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]

Brasil de Getúlio a Itamar: quatro décadas de história vivida | Heinz F. Dressel

DRESSEL, Heinz F. Brasil de Getúlio a Itamar: quatro décadas de história vivida. Ijuí: Editora Unijuí, 1997. Resenha de: SANTOS, Ana Maria Barros dos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.17, n.1, p.201-202, jan./dez. 1998.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Liberais e Liberais: guerras civis em Pernambuco no século XIX | Socorro Ferraz

FERRAZ, Socorro. Liberais e Liberais: guerras civis em Pernambuco no século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1996. Resenha de: ALVES, Tarcísio Marcos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.18, n.1, p.195-199, jan./dez. 1998.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial | Vera Lúcia Costa Acioli

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial. Resenha de: ASSIS, Virgínia Maria Almoêdo de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.18, n.1, p.201-203, jan./dez. 1998.

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Memória, cidade, cultura | Cléia Schiavo Weyrauch

WEYRAUCH, Cléia Schiavo; ZETTEL, Jaime. Organização e introdução. Memória, cidade, cultura. Resenha de: WEYRAUCH, Cléia Schiavo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p.159-165, jan./dez. 1996.

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Engenheiros do tempo e as visões de Agamenon: História e Memória

Engenheiros do tempo e as visões de Agamenon: História e Memória. Resenha de: VANDERLEI, Kalina. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p. 167-173, jan./dez. 1996.

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Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos | Pedro Paulo A. Funari

FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. Resenha de: MARTIN, Gabriela. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p. 175-176, jan./dez. 1996.

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O Marquês de Paraná: inícios de uma carreira política num momento crítico da história da nacionalidade | Aldo Janotti

JANOTTI, Aldo. O Marquês de Paraná: inícios de uma carreira política num momento crítico da história da nacionalidade. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990. Coleção reconquista do Brasil. 2.série, v.159. Resenha de: BARBOSA, Bartira Ferraz. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.15, n.1, p.225-227, jan./dez. 1994.

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Visões da liberdade, uma história das últimas décadas da escravidão na Corte | Sidney Chalhoub

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade, uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Resenha de: MONTEIRO, Marília Pessoa. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.14, n.1, p.245-246, jan./dez. 1993.

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In pursuit of honor and power, Noblemen of the southern in Nineteenth-Century Brazil | Eul-Soo Pang

PANG, Eul-Soo. In pursuit of honor and power, Noblemen of the southern in Nineteenth-Century Brazil. Tuscalooza and London Press: University of Alabama Press, 1988. Resenha de: CARVALHO, Marcus J.M. de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.13, n.1, p.151-152, jan./dez. 1990.

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Engenheiros do tempo e as visões de Agamenon: História e Memória (T), VANDERLEI Kalina (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Agamenon Magalhães, Engenheiros, Memórias, Estado de Pernambuco, América – Brasil, Séc. 20

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DRESSEL, Heinz F. Brasil de Getúlio a Itamar: quatro décadas de história vivida. Ijuí: Editora Unijuí, 1997. Resenha de: SANTOS, Ana Maria Barros dos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.17, n.1, p.201-202, jan./dez. 1998.

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FERRAZ Socorro (Aut), Liberais e Liberais: guerras civis em Pernambuco no século XIX (T), Editora Universitária da UFPE (E), ALVES Tarcísio Marcos (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Liberais, Guerras Civis, Província de Pernambuco, Séc. 19, América – Brasil

FERRAZ, Socorro. Liberais e Liberais: guerras civis em Pernambuco no século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1996. Resenha de: ALVES, Tarcísio Marcos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.18, n.1, p.195-199, jan./dez. 1998.

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ACIOLI Vera Lúcia Costa (Aut), Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial (T), ASSIS Virgínia Maria Almoêdo de (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Administração Colonial, América – Brasil, Séc. 16-18

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial. Resenha de: ASSIS, Virgínia Maria Almoêdo de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.18, n.1, p.201-203, jan./dez. 1998.

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GEBARA Ivone (Aut), Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal (T), Vozes (E), GUIMARÃES Maria de Fátima (Res), Clio – UFPE (CRPHr), História Social das Mulheres, Feminismo, Teologia, América – México, América – Brasil, Séc. 17, Séc. 20

Quero em primeiro lugar saudar Ivone Gebara por sua coragem de Romper o Silêncio sobre a história social das mulheres e, sobretudo, destacar a inovação de uma teóloga mulher que se contrapõe de forma contundente às injustiças e às desigualdades. Quero destacar, sobretudo, o papel político desta obra.

Ao situar as mulheres no mundo da história da teologia, a autora estabelece uma relação fundamental entre a teologia e a vida social, na medida em que a teologia reflete as contradições do mundo social, onde a malignidade, muitas vezes, aparece, como coloca Gebara, como destino, desígnio de Deus, ou castigo pelos pecados ocultos, ou ainda, pelos pecados não purgados.

A fenomenologia do mal feminino aparece na dialética das malignidades identificadas pela autora como quatro formas do mal: o mal de não ter, não poder, não saber, não valer. Estes males atingem as mulheres e se manifestam com maior ou menor intensidade de acordo com suas inserções sociais.

O feminino como mal de não ter. Como satisfazer às suas necessidades e, sobretudo, efetivar as atividades de produção e reprodução da vida; como gerar e criar os filhos e filhas, administrar a vida doméstica e familiar em toda sua complexidade, papéis estes designados às mulheres. Como diz Gebara: “A vida das mulheres parece estar ligada a este aspecto primordial ou primário da manutenção da vida. Por conseguinte, o mal de não ter ou a falta do essencial para viver as atinge de modo particular”(p. 49).

O feminino como mal do não poder. Representado através da experiência de Violeta Parra, (p.60) que vivencia o seu não poder ao se filiar a um partido político de esquerda para participar do movimento de libertação do seu país e, paradoxalmente, vivencia sua luta pela liberdade às custas de sua própria liberdade. Isto nos remete a refletir sobre a saída das mulheres do mundo privado (do doméstico) para o mundo público (da política) que, no caso de Violeta Parra e de grande parte das mulheres que fazem este percurso via partidos políticos ou movimentos sociais, não experimentam uma mudança significativa no exercício dos papéis designados a elas, o que faz com que passem a exercer nesses novos espaços as mesmas atividades caracterizadas como femininas – de organização, manutenção entre outras – não conseguindo, na maioria das vezes, uma posição de igualdade na distribuição dos poderes com seus companheiros homens. Sendo reproduzidas no espaço público as situações de desigualdades e subordinações das mulheres nos espaços privados.

O feminino como mal de não saber. Gebara ilustra muito bem esse mal apoiando-se no exemplo da Irmã Joana Inês da Cruz, (p.62) do convento de São Jerônimo, no México, no século XVII. Qual o grande pecado dessa freira? Imiscuir-se no mundo das letras, querer provar das fontes do conhecimento – lugar eminentemente masculino, dirigido pela eclesiástica patriarcal romana, cuja divisão social do trabalho, sempre colocou para a mulher, o servir, a abnegação e a renuncia à capacidade de pensar. Pois bem, a Irmã Joana Inês da Cruz obteve como redenção o exílio do estudo e do conhecimento, com a sua adequação ao papel de serva, cuidando das atividades domésticas e das irmãs enfermas atingidas pela peste.

O feminino como mal de não valer. O valor é um lugar de dor para as mulheres. Mulheres valem como objetos, de prazer ou de ódio. A sociedade hierarquiza os seres humanos e multiplamente pune as mulheres, e as pune por sua condição de gênero, por sua condição de classe e pela cor de sua pele. As mulheres interiorizam esta hierarquização, onde elas estão em uma posição inferior, e purgam o seu sofrimento na malignidade de suas condições. É necessário que se leve em conta a extensão destas desigualdades entre os seres humanos e também as diferenças existentes entre as mulheres em suas vivências cotidianas. Deste modo, em diferentes classes sociais, em diferentes lugares e situações geracionais e étnicas, vivenciam-se diferentes situações de exploração da mulher.

Da realidade que coloca Gebara, existe uma tensão dialética que perpassa a construção da humanidade. Uma construção que decorre da consciência que cada ser tem do seu valor. Nos termos da autora “Quando o valor faz falta, as pessoas vivem um mal. “(p. 81) Existe uma confusão permanente entre as pessoas quanto à extensão e às possibilidades de afirmação do seu valor. Os carecimentos, as debilidades quanto ao acesso ao poder, o desconhecimento, a falta de reconhecimento e de pertencimento, fazem com que o mal se confunda com o bem e, como a autora coloca: ”No cotidiano de sua vida, o mal para elas parece ser a ausência de possibilidades de vida, a violência com a qual elas são tratadas, a insegurança à qual estão sujeitas, as faltas de calor e de afeição que caracterizam sua existência”. (p. 81/82)

Desde esta realidade, é necessário compreender o lugar das mulheres e as incompreensões que povoam o seu pensar e o seu agir, que dizem respeito ao bem e ao mal. Neste sentido, esta obra de Gebara é uma grata surpresa, pois só o olhar de uma teóloga feminista é capaz de discernir o mal travestido de bem, porque o mal de que Gebara nos fala, é um mal que anula as mulheres, impossibilitando a sua plenitude enquanto ser, quando nos deixa sem poder em nome do poder, quando nos deixa sem saber em nome do conhecimento, quando nos desvaloriza para gerar valor.

Esta leitura teológica feminista, considerando a mediação de gênero, revela o lugar subordinado das mulheres numa hierarquia social produzida por preconceitos que mesmo num discurso de igualdade de princípios como é o caso das teologias, mantiveram uma visão que desqualifica as mulheres.

Gebara cita, entre outras teóricas feministas, Joan Scott. A definição de gênero que faz Scott, constitui-se de duas partes e várias sub-partes, cujo núcleo essencial da definição baseia-se na conexão de duas proposições: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de significar as relações de poder”.1 Prosseguindo a definição de Scott, o gênero se constitui num contexto simbólico de múltiplas representações, tem efeitos normativos, fixa relações binárias e produz noções de subjetividade.

Neste sentido o homem e a mulher são construídos socialmente, desde uma cultura historicamente situada no tempo e dentro das circunstâncias possíveis, determinadas por essa temporalidade. Sujeitos de seu tempo, imersos em um conjunto específico de relações sociais historicamente situadas, cada ser mulher e homem, tem um grupo originário e está submetido às regras de comportamento que se firmam desde a ética hegemônica. Se em geral é assim, desde o ponto de vista da construção de sua especificidade de homem e mulher, são determinantes sua classe, raça, religião e a forma de inserção social na sociedade. Deste modo, a partir dessas variáveis fundamentais, constroem-se o ser mulher e o ser homem.

Na história do feminismo, principalmente a partir dos anos 60, houve uma busca sistemática de uma identidade coletiva das mulheres, tentando forçar sua legitimidade política. Neste curso, a busca por uma identidade coletiva única não respondia às cismas e dissidências dentro do movimento. Assim, as especificidades que transversalizaram a vida cotidiana das mulheres (por exemplo, etnia, classe, gênero, sexualidade, religião, etc.,) colocaram em dúvida a possibilidade de um sujeito universal desprovido de suas vivências específicas. Coube ao movimento repensar o novo sujeito contextualizado historicamente e, portando, diferenciado internamente.

Essa situação suscitou polêmicas no seio do feminismo. Sem embargo, em nossa compreensão, unir as mulheres em uma identidade de gênero única, crendo que todas as mulheres vivem as mesmas situações é ocultar a existência de distintas formas de vivenciar a opressão e, ao mesmo tempo, negar a existência de hierarquias existentes nas relações de poder entre mulheres que pertencem a diferentes classes sociais, grupos étnicos distintos e culturas diversas.

Um acontecimento importante dos anos oitenta, no nível da teorização, foi a constatação de que categorias como mulher, homem, masculino, feminino, possuem conteúdos históricos específicos e se toma analiticamente problemático tentar aplicar a estas categorias uma universalidade, sob pena de cometermos os mesmos erros que temos criticado. Estas preocupações são as mesmas trazidas por Gebara e suscitam o debate que se encontra na ordem dia do pensar feminista.

Considerando estas preocupações, nas quais a autora chama a atenção quanto ao uso da categoria gênero, que é não absolutizar a opressão das mulheres e o receio de se cair em construções utópicas universalizantes, que se mostraram incapazes de dar conta desta múltipla realidade, levando-nos a uma revisão de práticas e teorias.

Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do mal é uma leitura instigante do início ao fim, possibilitando novas reflexões sobre o mal humano, particularmente o mal que atinge as mulheres.

Nota

1SCOTI, Joan, Gênero: uma categoria útil para a análise histórica, Tradução: Christine Rufino Dabat, Maria Betânia Ávila, Recife, SOS Corpo, 1996, p. 11.

Maria de Fátima Guimarães – Professora Visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE.

GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes, 2000. Resenha de: GUIMARÃES, Maria de Fátima. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p.221-224, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]

ELIAS Nobert (Aut), Sobre o Tempo (T), Jorge Zahar Editora (E), REZENDE Antônio Paulo (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Tempo, Duração, Passado

A concepção de tempo acompanha, sempre, a reflexão do historiador. No cotidiano, muitas vezes, não percebemos o quanto ela é valiosa, para que se possa organizar a vida e estruturar as possíveis identidades culturais da sociedade. O livro de Nobert Elias é um ensaio que traz subsídios importantes para se pensar o tempo como uma construção social. A dimensão simbólica do tempo é ressaltada o que ajuda a ver os objetos da cultura permeados pelas mudanças e permanências que marcam a construção da história. Elias critica a perspectiva newtoniana, mostrando que o tempo não é dado objetivo, mas também não embarca na perspectiva kantiana que vê o tempo como uma estrutura a priori do espírito. Seus encaminhamentos teórico-metodológicos levam a estabelecer um rico diálogo da história com a sociologia do conhecimento.

Nobert Elias tem uma obra vasta. Muitos dos seus livros já foram publicados no Brasil, entre eles A Sociedade dos Indivíduos, Os Alemães e dois volumes do consagrado O Processo Civilizador. É inegável a erudição de Elias e suas contribuições para se compreender a modernidade. Suas reflexões têm esse propósito básico de investigar os rumos históricos da cultura, nas suas buscas por um sentido que a entrelaçasse. Nesse livro, ele não foge dessa perspectiva, destacando a complexidade social e lógica que está conectada com a invenção da concepção de tempo, predominante na sociedade contemporânea. Para isso, traça comparações com culturas de formações diferentes, inclusive de sociedades indígenas da América. Seu foco privilegiado é a cultura ocidental.

Pensar o tempo como uma relação social permite relativizar o discurso que estimulou a apologia do progresso, empobrecendo as interpretações do iluminismo, preocupado em demonstrar a riqueza social a partir da produção de mercadorias. A concepção de tempo não está dissociada das relações de poder que, inclusive, procuram naturalizá-Ia. As conquistas culturais não são feitas sem conflitos e têm fortes ligações com os interesses de cada grupo. Elias ressalta que o conceito tempo pressupõe um nível elevado de síntese e capacidade criadora dos indivíduos. Ele não é o resultado, apenas, da imaginação genial de algum pensador, mas resultado de um patrimônio cultural sofisticado, sobretudo se o relacionamos com a modernização ocorrida na chamada civilização ocidental.

“Todo indivíduo, por maior que seja sua contribuição criadora constrói a partir de um patrimônio de saber já adquirido, o qual ele contribui para aumentar”, essa é uma afirmativa que sustenta o alicerce do ensaio de Elias. Mas ele não deixa de destacar a importância da coerção social. Diz ele: ” A transformação da coerção exerci da de fora para dentro pela instituição social do tempo num sistema de autodisciplina que abarque toda existência do indivíduo ilustra, explicitamente, a maneira como processo civilizador para formar os hábitos sociais que são partes integrantes de qualquer estrutura de personalidade”. É inegável que Elias dialoga com maestria com a obra de Freud. A cultura não é o território exclusivo da construção do prazer, do fluxo contínuo do desejo. Sem repressão, sem controle e regra social seria impossível se pensar a convivência entre os seres humanos. Eles buscam um equilíbrio que nunca alcançam na sua plenitude.

Mesmo com o projeto vitorioso da modernidade ocidental, as temporalidades continuam existindo na multiplicidade. Quem lê O Labirinto da Solidão, do escritor Octavio Paz, verifica como as diversas as maneiras de conceber o tempo são importantes para construção de identidade social de um povo. As marcas da magia e da religiosidade estarão, sempre, presentes no cotidiano, por mais que se racionalizem as práticas sociais. Elias mostra, com vários exemplos, como o conflito entre a objetividade e a subjetividade deve ser compreendido para que as estruturas temporais de uma sociedade possam ser interpretadas. Dentro da sua perspectiva evolucionista, as instituições vão ganhando complexidade e a concepção de tempo hegemônica, na sociedade ocidental, é resultado dessa relação dinâmica.

A rica análise de Elias apresenta, porém, já no seu final, um comentário interessante. Diz o autor: ”Nada é mais freqüente do que ver historiadores erigirem-se em juízes dos homens do passado, que já não têm como se defender, tomando por norma os valores de sua própria época”(p. 148). Realmente, não se pode negar a existência dos julgamentos, dos juízos de valor presente em obras de historiadores. Não são apenas os historiadores que cometem esse tipo de pecado. Elias, no seu argumento mais geral, fortalece a idéia que sua análise está mais próxima da verdade, pois consegue captar as mudanças e permanências, percebendo com mais clareza o desenvolvimento das instituições sociais. Acrescenta: “Em suma a história dos historiadores é a história a curto prazo” (p.148). Sua afirmação é equivocada. Nem todos os historiadores dedicam-se a estudos localizados e privilegiam a curta duração. Esquece de toda contribuição trazida pela Escola dos Annales e das reflexões teóricas de Braudel e sua obra centrada na longa duração.

As conclusões críticas de Elias parecem retomar a polêmica entre Sociologia e História. A questão da produção da verdade ainda está presente na elaboração das pesquisas. Ela continua fundamental, mas não podemos isolá-Ia em determinados campos do saber. Cabe ao historiador não abandonar o diálogo entre passado e presente, com critérios definidos. Não há verdades definitivas. Ela é sempre relativa, mas isso não impede que se indiquem os caminhos da sua formulação e seus limites. As críticas ao positivismo não significam o fim dos critérios científicos, mas uma maneira diferente de se pensar a ciência.

Há, atualmente, uma troca de informações e teorias nas diversas áreas de produção do conhecimento, sem a adoção de hierarquias. O próprio ensaio de Elias revela essa dimensão, como também toda a trajetória da pesquisa história mais recente. Tanto o sociólogo quanto o historiador vivem dificuldades na articulação dos seus saberes. Não há como nomeá-Ios de maneira homogênea, pois as trilhas de cada um exigem também invenção e criatividade. Na História, a Escola dos Annales ressaltou a necessidade de procurar diálogo com os outros saberes para poder desvendar a complexidade do social.

Existe muita generalização, por parte de Elias, quando enfatiza: “Que a maioria dos historiadores, até o momento, deixe de levar em conta os processos sociais a longo prazo parece-me decorrer, em parte, de uma falta de reflexão sistemática sobre os problemas com que grupos humanos se confrontaram no passado e continuam a se confrontar no presente”(p.157). Mesmo quando se preocupa com a curta duração ou a micro-história, o trabalho do historiador não perde de vista uma reflexão sobre o tempo, as diferenças entre as suas dimensões. O perigo de uniformizar as experiências não é só do historiador mas de qualquer intérprete do social. O historiador não é apenas um sistematizador de fontes. Sua reflexão sobre a experiência humana está presente na construção da metodologia e nas conclusões da sua pesquisa.

É importante assinalar que “Sobre o Tempo” é melhor entendido quando o atrelamos a uma compreensão da modernidade, enquanto projeto civilizatório. Não podemos esquecer, porém, que esse projeto é construído sob o signo de confrontos. Existe um projeto que conseguiu se tornar vencedor, mas as resistências continuam, apesar da presença da cultura de massas. Outros projetos também buscam seus espaços, defendem a liberdade e autonomia, não desprezam a crítica e a dúvida como bases para fundação do conhecimento, no entanto se recusam a aceitar o mundo instalado pelo capitalismo, também ele herdeiro das aventuras da modernidade. A concepção de tempo hegemônica diz muito desses choques e dessas diferenças e nos leva a refletir sobre algumas conclusões otimistas de Elias, dentro de uma perspectiva evolucionista, de aperfeiçoamento das instituições sociais. Uma delas merece, com certeza, que o leitor retome suas peregrinações pela história, sem desprezar a complexidade que a envolve. Diz Elias: “Passo a passo, ao longo de uma evolução milenar, o problema do calendário, outrora irritante, foi mais ou menos resolvido. E como atualmente, os calendários já não criam muitas dificuldades, as pessoas esvaziam da memória as antigas épocas em que ainda causavam problemas”. Nem tudo está tão resolvido com parece entender Elias.

Os tempos históricos terminam por se condensar no presente, segundo reflexões de Santo Agostinho. O presente é síntese, mas também memória, utopia, sonho, resistência. As leituras do contemporâneo nos permitem constatar a diversidade de vivências temporais. Não é apenas o tempo dos calendários que nos domina. Lembramos, outra vez, o ensaio O Labirinto da Solidão que faz uma construção preciosa sobre as aventuras da modernidade, a partir da sociedade mexicana, trazendo também uma reflexão sobre tempo e sua dimensão mítica ainda presente. Se a linearidade dos calendários ajuda a modernizar as relações sociais, ela também revela toda uma estruturação de poder, que silencia as diferenças e busca o homogêneo. Esse tempo da produção das mercadorias, da eficiência técnica se confronta com outras maneiras de querer viver a vida e desfazer o peso de cultura tecnicista. O próprio exemplo dado por Elias de um ritual dos Índios americanos acena para a força das singularidades de cada cultura. O projeto civilizador continua sem esmagar todas as diferenças. Ainda bem, pois garante a possibilidade de reinventar a história e traçar travessias não muito previsíveis.

Antônio Paulo Rezende – Professor do Departamento de História da UFPE.

ELIAS, Nobert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p. 225-228, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]

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ALVES, Tarcísio Marcos de. A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937. Recife: Néctar, 2008. Resenha de: SILVA, Edson. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.25, n.2, p.349-354, jul./dez. 2007.

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DABAT Christine Rufino (Aut), Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura/ a academia e os próprios atores sociais (T), Editora Universitária da UFPE (E), Clio – UFPE (CRPHr), Relações de Trabalho, Condições de Vida, Trabalhadores Rurais, Zona Canavieira, Estado de Pernambuco, América – Brasil,

O objetivo de uma resenha é despertar o desejo de ler uma obra, destacando seus aspectos principais e traços originais que possam propiciar aos leitores descoberta, enriquecimento, reflexão, revisão das idéias já consolidadas, num processo de diálogo com o (a) autor (a), possibilitando utilidade e prazer intelectual associados. Tratando-se de “Moradores de Engenho”, de Christine Rufino Dabat, lançado pela Editora Universitária da UFPE em 2007, o principal desafio a ser superado reside na dimensão do livro (800 páginas) numa época cibernética durante a qual se acostumou os leitores a breves e sucessivas leituras de materiais eletrônicos consoantes com a aceleração e a fragmentação do tempo; por se tratar de uma tese de doutoramento em História, pode enfrentar também uma desconfiança face ao caráter especializado e técnico-acadêmico da obra, dificultando a ampla divulgação do livro. Em face desses dois freios iniciais, proponho-me mostrar que o leitor, que superar esse costume e essa desconfiança, terá a fruição do prazer e da utilidade ao ler a muito bem cuidada edição da tese de doutoramento de Christine Rufino Dabat: Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais.

Inicialmente, destaco algumas facilidades que a qualidade da edição propicia ao leitor: o sumário é extremamente detalhado, permitindo acompanhar o encadeamento e o conteúdo de cada um dos oito capítulos distribuídos em três partes. No texto, encontram-se notas de rodapé referenciais, explicativas e complementares que permitem uma leitura fluente do conteúdo central enriquecido aqui, acolá por quadros. A bibliografia estende-se sobre 40 laudas e constitui-se num acervo extraordinário para estudiosos da sociedade da cana-de-açúcar.

O autor dessa resenha não é historiador, mas geógrafo; participou como examinador externo da banca de Doutorado, que, sob a presidência da Profª Maria do Socorro Ferraz Barbosa – orientadora, examinou o trabalho acadêmico e foi unânime em destacar a originalidade e a contribuição que essa tese trouxe para a reinterpretação radical da zona canavieira de Pernambuco, objeto de inúmeros estudos anteriores. Para historiadores há muitas possibilidades de abordar as múltiplas técnicas de fazer história presentes na obra: relações com fontes literárias, organização e tratamento da historiografia, uso de arquivos, incursões no campo da antropologia, coleta e repasse da memória viva dos trabalhadores rurais, cada um desses diversos passos sendo objeto de muitas e debatidas polêmicas metodológicas no âmbito da História. Nada disso, portanto, será tema dessa resenha, pelo simples fato da identidade disciplinar do seu autor.

Mas, além das tecnicalidades disciplinares, a autora propõe uma tese: destaca um evento, “um episódio identificado como singular na evolução das relações de trabalho no campo”, isto é, a saída dos moradores dos engenhos para as “pontas de rua” das cidades da zona canavieira de Pernambuco, para afirmar que se trata de uma inflexão na longa história da exploração dos trabalhadores da cana-de-açúcar, inflexão que foi interpretada pelos setores dominantes da sociedade, através da literatura e da produção acadêmica, como uma mudança dificultando a identificação do “continuum” da incrível exploração do trabalho, desde a escravidão até nossos dias, que caracteriza a zona canavieira de Pernambuco entre as poucas regiões do mundo sem rupturas. É na memória viva das vitimas dessa exploração, que a autora encontra uma interpretação histórica capaz de recuperar esse “continuum”, e de situar o evento na longa duração da exploração e nas lutas políticas, sindicais e culturais do presente. A quais interesses afinal servem os recortes históricos e a afirmação da sucessão de mudanças senão àqueles que se beneficiaram dessa exploração contínua?

A obra de Christine Rufino Dabat não é de um pesquisador iniciante, como o é, hoje em dia, comum, tratando-se de tese de doutoramento. Longamente amadurecida, resulta de um itinerário afetivo, intelectual e militante de cerca de trinta anos. Entre idas e vindas na problemática das relações de trabalho vinculadas à “plantation” canavieira destaca-se a descoberta da obra de Sidney W. Mintz, disponibilizada em português numa coletânea organizada pela autora e publicada em 2003 pela Editora Universitária da UFPE, sob o título “O poder amargo do açúcar. Produtores escravizados, consumidores proletarizados.” Nesse autor, “involuntário farol intelectual de uma jornada acadêmica em forma de labirinto”, Christine Rufino Dabat encontrou o fio de Ariadne para debater e superar os entendimentos consagrados na historiografia nacional acerca da “Morada”; em “Moradores de Engenho” reinsere essa condição no contexto da “economia mundo” de Immanuel Wallerstein e mostra como as relações de trabalho e produção de açúcar são desde o início marcadas pela “modernidade precoce” (p. 388 a 434) relativizando e interpretando, à luz do eurocentrismo, o longo percurso historiográfico nacional do feudal ao capitalismo mercantil e ao capitalismo industrial.

Essa análise historiográfica desenvolvida no capítulo 5 constitui, junto com o capítulo anterior, a 2ª parte do livro. Em “Interpretações da morada”, a autora, após ter situado numa 1ª parte o contexto histórico do episódio que é objeto do trabalho, reserva cerca de 110 páginas a um estudo das visões da morada em José Lins do Rego e Gilberto Freyre, mostrando como a produção cultural foi capaz de criar representações duráveis e fundas, além dos debates acadêmicos norteados pelo evolucionismo cultural. Ao jovem leitor, além da releitura das obras de Lins do Rego e Freyre guiada pela desconstrução empreendida por Christine Rufino Dabat, aconselha-se assistir ao filme de Cláudio Assis “O Baixio das Bestas” que, filmado na zona canavieira de Pernambuco, assume também um caráter universal ao representar a total e brutal desumanização e instrumentalização das relações no período atual da “economia mundo”.

A 3ª parte de “Moradores de Engenho”, estende-se sobre mais da metade do livro e propõe uma reconstrução da história sob o título “A morada na experiência dos moradores”. São abordadas sucessivamente, as condições de vida dos trabalhadores rurais na época da morada, as condições de trabalho e as condições políticas denominadas “violência e cidadania”. Os textos resgatam falas dos trabalhadores e interpretações da autora remetendo sempre a outros estudiosos que se dedicaram ao estudo da vida, das relações de trabalho e da política na zona canavieira. Trata-se de uma minuciosa reconstituição, ficando claro o intuito da autora de dar prioridade à memória viva dos trabalhadores de modo a romper com a “lei do silêncio”, que afeta essa parte dos agentes da região em contraste com a abundância das produções culturais e acadêmicas recuperadas na parte anterior. Christine Rufino Dabat constrói respeitosamente, com os trabalhadores, uma história renovada pela empatia que sustenta a longa militância com os entrevistados, que revelam não ter saudade do passado mesmo se o presente continua marcado pela exploração. Reexamina assim, junto com eles, “a interpretação dada ao desenvolvimento histórico da região”.

Ao ler essa parte, lembrei de um texto do escritor nascido na Martinica, também terra de plantações criadas na “modernidade precoce”, Edouard Glissant, que procuro traduzir aqui:

O significado (a “história”) da paisagem ou da Natureza é a clareza revelada do processo através do qual uma comunidade cortada dos seus laços ou de suas raízes (e, talvez mesmo desde o início, de quaisquer possibilidades de enraizamento) pouco a pouco vem sofrendo a paisagem, merecendo sua natureza e conhecendo seu país” (…) ”Aprofundar esse significado é levar essa clareza à consciência. O esforço teimoso em direção à terra é um esforço para a história. (GLISSANT E., L’intention poétique. Paris: Gallimard, 1997).

Tradução livre de:

La signification (l’”histoire”) du paysage ou de La Nature, c’est La clarté révelée du processus par quoi une communauté coupée de ses liens et de see racines (et, peut-être même au départ, de toutes possibilités d’enracinement) peu à peu souffre le paysage, merite sa nature, connaît son pays. » (…) Approfondir la signification c’est porter cette clarté à la consciência. L’effort ardu vers la terre est un effort vers l’histoire. »

Jan Bitoun – Professor do Departamento de Ciências Geográficas da UFPE.

DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. Resenha de: BITOUN, Jan. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p.257-261, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

CARDOSO Ciro Flamario (Aut), Um historiador fala de teoria e metodologia/ Ensaios (T), Edusp (E), SILVA Severino Vicente da (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Teoria da História, Filosofia da História, Epistemologia Historia, Metodologia da História, História da Historiografia

São poucos os historiadores brasileiros que podem apresentar uma produção tão rica e diversificada quanto o professor Ciro Flamarion Cardoso. Parte de sua vida foi vivida fora do Brasil, à época da ditadura militar e, contudo a sua presença foi marcante na formação de uma geração que leu e refletiu o Métodos da História, seus escritos sobre o trabalho escravo na antiguidade e Uma Teoria da História. Em suas obras nota-se uma constante critica à pequena importância que o estudo da filosofia tem recebido na formação dos historiadores no Brasil. Essa preocupação teórica o levou a refletir, com outros autores, em Caminhos da História.

Após os eventos do final dos anos oitenta, ocorreu a debandada dos historiadores para fora dos caminhos da interpretação marxista da história. Ciro Flamarion é um dos raros que mantém a sua adesão àquele método de estudo, àquela filosofia explicativa da história. Assim, não surpreende a edição desses ensaios, produzido ao longo de doze anos, resultado de suas reflexões e perplexidades, advindas de sua prática docente.

Pouco avesso aos salameques e ao culto das novidades por serem novidades, o autor de Um Historiador fala de teoria e metodologia, continua fiel ao viés fundamental de sua obra. Ciro nos mostra como ele continua capaz de dialogar com o mundo e apresenta o marxismo como ainda capaz de dar conta da complexidade que estudos setoriais não conseguem, segundo ele, enfrentar plenamente.

Dividido em quatro partes, o livro organiza didaticamente os grandes temas que estudos históricos enfrentam atualmente. Na primeira parte, composta por dois capítulos, o Autor dedica-se a debater as novas perspectivas e compreensão do Tempo e do Espaço para a História, dedicando um capítulo para o debate sobre a construção do espaço, nesses novos tempos em que as realidades parecem estar cada vez compressas e em que os limites geográficos, definidos matemática e geometricamente no final do século XIX, mostram-se ineficazes para a compreensão das políticas atuais dos países e estados.

A segunda parte é dedicada ao acompanhamento do debate epistemológico atual, com destaque especial ao anti-realismo do pensamento histórico contemporâneo e sobre a influência negativa que o Autor entende que as teorias do conhecimento exercem na atual produção histórica no Brasil. Talvez seja a sua adesão incondicional ao marxismo que o impeça de olhar com maior simpatia a atual produção vinda dos programas de pós-graduação das universidades, talvez muito ávidas por aceitar as novidades conseqüentes das contradições européias, aceitas sem o respaldo de um estudo filosófico que seja capaz de assumir as novas tendências sem superar simples macaqueação própria do novidadeirismo.

A terceira parte é dedicada à reflexão do pensamento histórico e ao debate historiográfico contemporâneo. Embora instigante, essa parte pode ser apontada como frustrante por limitar esse debate apenas até os anos trinta. Esperava-se mais, na reflexão sobre a atual produção, essa que vem desde a segunda metade do século. Mas, talvez, com esse enorme hiato, o autor queira nos dizer que não ocorreu ainda uma real e nova interpretação da história brasileira, nem universal, além daquelas que foram apresentadas nas primeiras décadas do século XX, pouco importando que seja uma história produzida nos limites do Brasil ou além deles. Seria isso produzido pela quebra dos paradigmas, pela queda física, antes da metáfora, do muro que separavam as duas maiores experiências políticas ideológicas do século findo há quase uma década, ou a duas décadas, como quer um outro historiador marxista, Eric Hobsbawm. Interessante capítulo, desta parte, é quando nosso Autor quase se transforma em perscrutador do futuro ao discorrer sobre “que história convirá ao século 21” e reflete sobre como a crise dos paradigmas, o cultivo quase niilista da dúvida permanente e da certeza de que só a dúvida existe pode levar os historiadores a perder a perspectiva, atolando-se nos mais diversos solipsismos.

A parte quarta desse livro é dedicada a debater questões mais setorizadas tanto quanto à teoria quanto ao método histórico. No nono capítulo estão abordadas questões atuais no debate sociológico, político e histórico, referindo-se mais diretamente às questões étnicas, tão pungentes e atraentes numa globalização na qual para não se tornarem massas liquidas, voltam-se a paradigmas pré-modernos vestidos em vistosas roupagens pós-modernosas, escondendo nas colorações cintilantes, ranços de racismos que podem fazer retornar com mais tragicidade situações aparentemente vencidas em meados do século XIX. Capítulo muito interessante é o dedicado à chamada História das Religiões, uma quase ciência e uma quase teologia, ou uma teologia que não quer dizer-se como tal. Para ele muitos dos que se dizem historiadores das religiões, deixaram-se seduzir pelos mistérios que atraem os crentes, esquecendo-se dos problemas que são os verdadeiros interesses do historiador, do cientista. Ao crente basta a admiração e contemplação da verdade religiosa, ao historiador a admiração serve apenas de pretexto para iniciar a busca do entendimento de porque homens e mulheres, em determinados tempos e lugares, criaram sistemas e necessitaram afirmar que esses sistemas foram doados gratuitamente por alguma entidade não humana, mas superior aos homens e mulheres Tais adesões à pseudociência História das religiões só é possível pela negativa em abordar os problemas humanos a partir de sua materialidade.

A leitura dos Ensaios contidos em Um historiador fala de teoria e metodologia é interessante àquele que já se encontra na militância da história, seja como professor apenas, seja como professor, pesquisador e historiador. Para os que estão iniciando-se nos afazeres do historiador, essa é uma leitura obrigatória. Nela ocorrerá o encontro com um permanente estudioso da história, e um constante enamorado pelas criações dos homens que vivem as contradições das sociedades que criam e na qual vivem.

Severino Vicente da Silva – Professor adjunto, atuante no programa de pós-graduação do Departamento de História da UFPE.

CARDOSO, Ciro Flamario. Um historiador fala de teoria e metodologia, Ensaios. Bauru, SP: Edusp, 2005. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 262-265, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

LIAUZU Claude (Dir), Dictionnaire de la colonisation française (T), TOPOR Hélène d’Almeida (Cons-cient), BROCHEUX Pierre (Cons-cient), COTTIAS Myriam (Cons-cient), REGNAULT Jean-Marc (Cons-cient), Larousse (E), DABAT Christine Rufino (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Dicionário, Colonização Francesa, Europa – França, Séc. 19-20, Ásia – Vietnam, África – Argélia, África – Margreb, América, África, Ásia – Oriente Próximo

Entre as muitas obras recentes que tratam do passado colonial da França, o Dicionário da colonização francesa destaca-se pela abrangência das temáticas e análises, numa época de grandes debates no campo desta história. Falecido no ano da publicação deste dicionário, o grande historiador Claude Liauzu o organizou com a preocupação central de valorizar a seriedade na determinação dos fatos e respeitar a pluralidade das interpretações. Ele introduz o volume « A colonização em questões » (p. 9-25) expondo suas ambições e limites.

Os grandes embates que ocupam a fábrica da história colonial na França dos séculos XIX e XX, e sua eventual instrumentalização pelos poderes políticos, torna o assunto atual. Claude Liauzu e sua equipe de dezenas de colaboradores (entre os quais pesquisadores oriundos dos países antigamentes colonizados) decidiram encarar o desafio, afirmando a necessidade de oferecer aos leitores pontos de referência seguros a partir dos quais eles possam definir uma opinião informada no fogo cruzado das « guerras de memória ». Daí a forma de dicionário. São setecentos e setenta e cinco entradas que dizem respeito a pessoas, eventos, mas também categorias de análise histórica. « Tempos fortes », que antecedem sequência alfabética, estabelecem a periodização do assunto. Dezoito mapas e uma bibliografia (dividida tematicamente), no fim da obra, além de diversos índices (de pessoas, lugares e temas, disponíveis na internet) ajudam o leitor a se situar. Os nomes que, nos textos, remetem a artigos próprios são assinalados por asterisco e setas associam outros relacionados.

São tratados aspectos variados, destacando-se a definição do próprio título « colonização » com vários desdobramentos: etimológicos (« colônia », p. 200-201, e « colônia penal » p. 201) ; sociais e políticos como o dossiê « colonos – brancos pobres e ´franceses majorados » (p. 202-210) com várias seções, inclusive o « colono visto pelo colonizado » ; geográficos, mostrando as dimensões políticas, em cada região em que atuou, América, África, Ásia, Próximo Oriente ; culturais, revelando os diversos olhares sobre o fenômeno, « escola colonial » (p. 258), « a escola do colonizado » (p. 259-263), « professores primários » (p. 381), « estudantes colonizados » (p. 280), e mesmo as prestigiosas instituições acadêmicas como a « Escola francesa do Extremo Oriente » (p. 263), focada em aspectos tocando diretamente à historiografia. « As colônias na escola » (p. 265) complementada pelo dossiê « criança e propaganda colonial – Convencer os jovens da metrópole » (p. 269) e o artigo « Propaganda colonial oficial » (p. 538-539), expõe a maneira como a colonização foi ensinada pelos manuais e outros meios de divulgação, desde a criação da escola pública, laica, gratuita e obrigatória, pelos próprios governos da IIIa. República, que promoviam ambas.

« Escritores e colonização » trata da literatura acerca deste fenômeno, seguindo uma entrada rápida sobre o papel de editoras como as Éditions de Minuit, que publicaram grandes textos de combate contra a colonização, em particular A questão, de Henri Alleg, denunciando a tortura utilizada pelo exército francês durante a guerra – que não dizia seu nome – da Argélia. Enfim, « palavras e colonização », (p. 482), « migrações e colonização » (p. 470). « República e colonização – Relações ambíguas » (p. 552-557), faz objeto de um dos numerosos dossiês analíticos que pontuam a obra, com um subtítulo « colonização e civilização », onde são tratados os grandes traços do discurso dominante a respeito do assunto. Outro dossiê, « Capitalismo e colonização. Um debate » (p. 168-172), mostra como se articulam império e prosperidade na metrópole, ao longo dos séculos. « Cristianismo, missões e colonização » (p. 185-191) seguido de « Cristianismo e descolonização » (p. 191-193) focam no papel dos religiosos, numa empresa estatal cuja fase republicana foi marcada pelo anti-clericalismo.

Outros conjuntos de artigos poderiam assim ser singularizados, particularmente em torno dos artigos-dossiês que propõem uma síntese sobre dado assunto, tentando equilibrar o tratamento dos diversos espaços geográficos que, através de quatro continentes, sofreram a marca da empresa colonial francesa : por exemplo, a Nova Caledônia (p. 501-505), complementada por outros artigos como « religiões da Oceânia », (p. 551) « Oceânia » (p. 506-507) « Novas Hébridas Vanuatu » (p. 505) e assuntos, às vezes esquecidos, como o de Moruroa, atol onde os franceses efetuaram seus experimentos nucleares (p. 481).

Em « Raça » incluindo « a política das raças », « racismo » (p. 545-548), Liauzu, autor do maior número de entradas, evoca um campo que detalhou no seu notável estudo Raça e civilização. O outro na civilização ocidental (Paris: Syros, 1992). Ao lado dos artigos esperados sobre a « escravidão – quatro séculos de história da colonização » (p.272-277) e sua abrogação, com a figura emblemática de Victor Schoelcher (p. 579), os autores não se furtam a mencionar eventos recentes, como a Lei Taubira (2001), que confere ao tráfico negreiro o estatuto de crime contra a humanidade (« Comitê para a memória da escravidão » p. 210) e a mal afamada lei de 2005, posteriormente abrogada sob pressão dos meios acadêmicos e mais amplamente cidadãos, que pretendia obrigar ao ensino dos « aspectos positivos » da colonização francesa (p. 533).

Os autores utilizam conceitos atuais como os « lugares de memória » (p. 409-413), complementado em « imaginário e espaços » (p. 364-366), e lugares, simplesmente, inclusive presídios famosos (« Poulo Condor », no Vietnam, p. 536) ou manifestações físicas importantes como o « Mediterrâneo » (p. 460), ou ainda espaços situados no tempo como o artigo « O Magreb na véspera da colonização – Blocagens e tentativas de reforma ». (p. 437-440), ou « o grande deserto do Sahara » (p. 568).

Entre os assuntos tratados em si podem ser citados como exemplos as grandes temáticas do « povoamento » (p. 527), « campesinato » (p. 524), « industrialização » (p. 379), assim como conceitos: « negritude » (p. 495), « nacionalismos » (p. 488). As posições das grandes forças políticas são detalhadas (« Internacional Comunista » (p. 383); « OAS » (p. 506) « FLN » (p. 299) com seus desdobramentos: « chefes históricos », « Federação de França do FLN »; « Pan-africanismo » (p. 514). Personalidades de destaque como Ahmed Messali Hadj, nacionalista argelino do século XX, Ho Chi Minh (p. 359) ou Solitude (p. 586) heroina da resistência ao restabelecimento da escravidão nas Antilhas são tratados com particular cuidado assim como as « resistências à conquista » (p. 557) e grandes rebeliões, como a Kanak, em 1878 (p. 393) ou a insurreição em Madagascar de 1947 (p. 435) e as diversas organizações (partidos e movimentos armados, mas também confrarias e outras) de resistência dos povos colonizados pela França. Entre os personagens mencionados, pode-se destacar os resistentes à colonização, inclusive franceses como Camille Pelletan que denunciava no seu jornal, A justiça, a maneira como as autoridades republicanas francesas impunham sua civilização « por meio de canhões » (p. 526). Em obra póstuma de Claude Liauzu, História do anti-colonialismo na França do século XVI a nossos dias (Paris: Colin, 2007), este aspecto ganha vulto.

Obviamente, aspectos econômicos da empresa colonial estão presentes : as companhias que recebiam concessões da potência colonial (p. 213-216), « cultura de seringueira na Indochina » (p. 358) etc. Também é tratada a dimensão propriamente militar, os métodos de conquista e administração – « governo colonial » (p. 315-319) ; « ministério das colônias » (p. 472-473) – de vastos espaços e populações numerosas em âmbitos geográficos diversos e longínquos, embora nenhuma predominância seja dedicada a estes assuntos clássicos. No entanto, menciona-se aspectos peculiares como, sob o título « Marinha, Marinheiros – o seu papel na expansão colonial » (p. 444), evocando a situação difícil destes, muitas vezes oriundos de territórios colonizados. O maior destaque é dedicado aos conflitos de descolonização, sobretudo na Argélia, que se desdobra em dois dossiês: « guerra de Argélia – Uma guerra que não diz seu nome » (p. 321-335) e « guerra de Argélia e liberdades – Estado de sítio e poderes especiais » (p. 340); para garantir o equilíbrio no tratamento, há também : « Guerra de Indochina – A primeira guerra de descolonização» (p. 341-350).

Aspectos culturais têm, em compensação, muito destaque, desde « festas » (p. 297), « canção » (p. 179), como testemunho da cultura popular, refletindo preconceitos sob os apetrechos do exotismo, mas também nas dimensões de resistência como o anti-militarismo. Famosos artistas são retratados, como Josephine Baker (p. 130-131), cujo sucesso revelou visões metropolitanas da coisa tropical, por assim dizer, e influenciou numa mudança, surpreendentemente recente, nas mentalidades. « Fotografia – a colocação em imagens das colônias » (p. 529), « pintura orientalista » (p. 510) e « Cinema » (p. 194-200), tratam tanto de documentos fotografados encenados ou não, documentários e ficções, mostrando também os esforços de alguns autores para romper com os clichês coloniais, como o premiado « Indígenas », de Rachid Bouchareb (Cannes 2006). A literatura abrange as representações, inclusive populares, como a personagem bretã « Bécassine e suas aventuras coloniais » (p. 140) mas também as produções de criadores de horizontes diversos : literatura da África negra, magrebina, da Nova Caledônia, da Polinésia, « Indochina : edição e literatura » (p. 374) e enfim, « literatura e colonização » (p. 421), seguida de um artigo curioso : « literatura, romance policial e descolonização » (p. 422), mencionando sobretudo obras recentes que tratam de episódios de repressão na própria metrópole contra pessoas oriundas das (ex)colônias.

Muitos atores da descolonização, em várias áreas, literatura e política em particular, fazem parte do elenco biografado: como Leopoldo Sedar Senghor (p. 584), Albert Memmi (p. 461-462), Aimé Césaire (p. 176), desaparecido recentemente. Eles dividem páginas com autores franceses cuja obra e engajamento lhes estão ligados ou opostos: SaintJohn Perse (p. 572), Jean Paul Sartre (p. 578), Céline (p. 174), Camus (p. 163-164), André Malraux (p. 441). Outros autores, cuja obra fez evoluir consideravelmente os instrumentos do pensar da coisa colonial, são mencionados, por exemplo, Marcel Mauss (p. 458), Jean Dresch (251), Cheikh Anta Diop (p. 183), Frantz Fanon (286) e Maxime Rodinson (p. 565), além de revistas como « Presença africana », que marcou as gerações da descolonização fazendo « a ligação com os intelectuais franceses » (p. 538), bem como editores como François Maspéro (p. 455) que abasteceu os militantes anti-colonialistas com obras de Castro, Ho Chi Minh, Basil Davidson e tantos outros.

Entre as dimensões culturais, poderia se singularizar a questão das línguas criadas pela própria colonização « pidgin » (p. 532), « petit nègre » (p. 527) , « pataouète » (p. 523) e « sabir » (p. 568), assim como seu impacto sobre o francês : termos próprios à história colonial ou por ela gerados como « força negra » (p. 302) « spahis » (p. 587) « méharistes », os policiais do deserto (p. 461); ou ainda « bled » palavra oriunda do árabe falado na Argélia que passsou na língua francesa para designar o campo ; « bidonville » (clássica tradução de favela), cuja origem é marroquina ; « béké », termo das Antilhas, até hoje empregado para os descendentes de plantadores ; « cafre » termo utilizado na ilha da Réunion para designar as populações mestiças (p. 160).

O artigo « folie et psychiatrie » (p. 302) evoca a obra pioneira de Frantz Fanon e a recém formada sociedade franco-argelina de psiquiatria, cujo primeiro congresso (2003) consagrou o reconhecimento científico dos traumas resultantes da colonização e guerras de libertação. O dossiê « Saúde » (p. 575-577) trata da epidemiologia, mas sobretudo do imaginário e da justificação da exploração colonial apresentada como compensada pela assistência primária à saúde das populações colonizadas:« Institutos Pasteur » (p. 381) ; « Médicos » (p. 459) « quinine » (p. 544). Os autores do Dicionário não hesitam em abordar assuntos difíceis como o dossiê sobre « mestiçagens e uniões mistas – Da marginalidade à pluralidade incontornável » (p. 465-470); « homossexualidade » (p. 361); « corpos – realidades e imaginários » (p. 223-227) « prostitutas » (p. 539), ao qual corresponde o artigo «masculinidade colonial » (p. 454-455). Embora haja um dossiê importante « mulheres – elas também têm uma história » (p. 287- 295) associado ao artigo « moças – Um novo tipo social nascido da colonização » (p. 387-389), sua presença, esparsa em outras entradas, inclusive biográficas (poucas), é discreta.

Em suma, Dicionário da colonização francesa é uma obra que prima pela coragem dos autores, abrangência e atualidade dos assuntos e sobriedade benvinda no tratamento.

Christine Rufino Dabat – Professora do Departamento de História da UFPE.

LIAUZU, Claude (Dir.). Dictionnaire de la colonisation française. Conselho científico: Hélène d’Almeida Topor, Pierre Brocheux, Myriam Cottias, Jean-Marc Regnault. Paris: Larousse, 2007. Resenha de: DABAT, Christine Rufino. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 266-271, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

GOMES Edvânia Torres Aguiar (Aut), Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica (T), Massangana (E), SERNA Aura González (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Natureza, Paisagem Cidade do Recife, Séc. 20, América – Brasil

Este trabalho produzido originariamente sob a forma de tese em 1997 pode ser considerado de vanguarda em diversas acepções, analisando o seu conteúdo e suas advertências no plano das novidades que cercam a discussão contemporânea sobre Paisagem. Pode-se argumentar que se trata de um trabalho clássico na revisão dos conceitos mais primevos dos primeiros entendimentos sobre paisagem, desde a escola alemã, passando por alguns desdobramentos disciplinares inclusive para além da Geografia. Por outro lado, pode ser considerado crítico na perspectiva sócio-ambiental, ao se utilizar este trabalho no âmbito do urbanismo. Verifica-se o efeito denúncia que marca os embates entre o idealizado e o realizado, entre a cidade e o meio. A voz de distintos segmentos da sociedade se expressa através dos 600 questionários trabalhados, capturando as vertentes da representação da cidade no final do século passado. Através dessas falas são reveladas as idealizações e representações da cidade, podendo subsidiar o urbanismo e a gestão dos espaços públicos na metrópole recifense. Essa mescla guarda nexos marcados pelo esforço transversal, enunciando que não existe novidade na feitura das práticas e interesses – principalmente quando se trata de um mundo confeccionado colonialmente, que se busca num jogo de espelhos – e sim, que o mundo é permanentemente (re)criado. Este trabalho é uma excelente maneira de afirmar que não é por natureza que se compreendem e se estabelecem múltiplas aproximações ao objeto do saber. É preciso sentir, estar apaixonado, em conexão com referentes que historicamente constituem elos estruturadores da cidade, mas, e, principalmente, priorizar na escolha por tornar visíveis experiências vividas, na fala de seus usuários, identificando sentimentos profundos do povo na relação com trechos da cidade, para descobrir neles os elementos, mesmo confusos, que podem impulsionar relações de respeito por representações culturais fundamentais que reflitam, na paisagem, as necessidades humanas que a reproduzem. Trata-se de uma pesquisa instigante, qualitativa, e quantitativa de corte teórico e empírico, que passando pela apropriação fenomenológica, subsidiada por um rico elenco de fotografias, mapas, gráficos e gravuras conseguiu preservar a coerência entre o método de pesquisa e a apresentação da realidade estudada. A autora partindo das contribuições da geografia alemã leva-nos de passeio, pela trajetória da paisagem, aproveitando aportes de diversas disciplinas, em legados de historiadores, psicólogos, antropólogos, poetas, filósofos para analisar a composição da paisagem: o meio físico e o meio social, em estreito nexo com as percepções, o imaginário, a atividade humana constituída por atos, com os quais visa algo. A pesquisa tem como campo empírico o dilema na perspectiva das coexistências do planejador, do artista, do político, do cientista, do simples habitantes em uma cidade anfíbia, marcada por atributos da natureza e engenharia humana. As águas dos rios e dos manguezais que configuram o sítio da cidade são enfatizadas a luz desses diferentes segmentos da sociedade em suas práticas. No contemporâneo, até olhares menos atentos registram evidentes provas de agressão como negação a presença das águas na cidade, subestimando a sua morfologia genuína. Através de uma linguagem simples e dialogando com imagens, letras de músicas, poesias, o trabalho nos ajuda a entender que em função da subordinação à lógica da acumulação de riqueza, este processo de construir os espaços vividos se faz à custa de uma decadente condição da sociedade, singularizando alguns resultados que impactam os modos vida dos seus habitantes. Nesse campo, a autora dialoga com reflexões realizadas por renomados geógrafos como Josué de Castro, Milton Santos, Manoel Correia de Andrade, Rachel Caldas Lins e Jan Bitoun, bem como com poetas como Bento Teixeira, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, Chico Science, consegue ilustrar faces desses impactos no sítio urbano natural do Recife. Os historiadores, urbanistas, engenheiros pesquisados em suas obras propiciam apoio para firmar a posição da autora em suas críticas aos processos de planejamentos da cidade, com a adoção de mudanças que priorizam a técnica aplicada a demandas pseudo uníssonas, tornadas homogeneizantes na leitura de escala global. Como através de um painel, passando pelos primeiros esboços da cidade Mauricia até os dias atuais, com base nos trabalhos comparativos, Edvânia propicia uma revisão da concepção da paisagem idealizada para a cidade e refletida na estrutura do planejamento e suas práticas ao longo da história. O trabalho utiliza três eixos espaciais como referências para cotejar Recife à luz de algumas questões urbanas significativas e que dizem respeito ao cotidiano daqueles que animam a cidade do Recife. As variáveis eleitas espelham a história do presente e do futuro, revelando aproximações entre as representações das paisagens instituídas e divulgadas do Recife e as representações contidas nas falas e depoimentos de alguns usuários de seus espaços. As inquietações da autora são marcas indeléveis que saltam nas páginas deste livro realizando um arco interdisciplinar no sentido acadêmico, mas também no sentido da vivência. De um lado essas inquietações remontam as vivências cotidianas de lembranças primordiais de vida familiar percorrendo a cidade, mas também as interpelações da vida profissional na passagem como técnica em Órgãos de Planejamento Urbano Ambiental na cidade do Recife e, continuando como intelectual, no ideário Gramsciano que inspira as conexões entre intelectuais e o povo-nação. Evidencia-se, assim, a novidade do trabalho, no movimento que incorpora e o inspira, como uma importante contribuição da autora, que se tornará cada vez mais necessária para nos ajudar a recolocar na ordem do dia a agenda do meio físico e do meio ambiental nos espaços da vida urbana, numa cidade de referência histórica para a reprodução das culturas. Edvânia o manifesta nas inquietações finais: “Afinal o que é natureza? Esta pergunta aparentemente tão simples de responder não encontra eco plausível na história da confecção de Paisagens de nossas cidades. Os pilares sobre os quais foram edificados os espaços urbanos não contemplam entendimentos nítidos acerca da existência da natureza possível. No “mundo da engenharia e da técnica” ideologicamente os elementos físico-naturais são convertidos em acessórios subliminares até o surgimento de protótipos que os substituam”. A obra finaliza como se estivesse iniciando pela carga de provocações que evoca e pelas inquietações que ultrapassam a leitura e fazem vagar o pensamento. Nesse sentido, cabe concluir essa resenha retomando mais um importante atributo desse trabalho que é a forma como ele se encontra estruturado em seqüência ascendente partindo da teoria, história e a parte empírica. Dividido em blocos que podem ser lidos de forma solta, enfim degustados, o livro é uma referência sem dúvidas para aqueles que querem aprender a paisagem e apreender as paisagens e a história da cidade do Recife enquanto registro e nova metodologia.

Aura González Serna – Doutora em Serviço Social pela UFPE, (2005). Docente Pesquisadora, na direção do Grupo Território na “Universidad Pontificia Bolivarianam-UPB”. Campus de Laureles. Medellín, Colômbia. E-mail: [email protected]

GOMES, Edvânia Torres Aguiar. Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica. Recife: Massangana, 2007. Resenha de: SERNA, Aura González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p.375-378, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]

ELLIOTT John H. (Aut), Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830) (T), Taurus (E), SOUZA George F. Cabral de (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Império Inglês, Império Espanhol, América, Séc. 16-19

Ao longo de muitas décadas de minuciosa pesquisa, John Elliott, autor de El Conde-Duque de Olivares e La España Imperial, entre outras importantes obras, se destacou como um dos mais renomados especialistas na história da Espanha. Mais recentemente seu interesse deslocou-se também para os cenários coloniais da monarquia hispânica. O leitor brasileiro em geral conhece de John Elliot apenas os excelentes textos presentes na monumental História da América Latina da Universidade de Cambridge, organizada por Leslie Bethell e publicada no Brasil no final da década de 90. No seu último livro, Imperios del Mundo Atlántico, que como o restante da obra de Elliott ainda não teve tradução brasileira, realiza uma abordagem comparativa da história do continente americano.

O método comparativo em história não é prática inédita no Brasil, mas devido a sua alta complexidade, infelizmente não logrou reunir muitos adeptos. O exemplo mais conhecido é o da obra clássica de Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil), na qual ele ensaiou algumas comparações entre os diferentes colonizadores do continente americano, concretamente entre portugueses, espanhóis e holandeses, atribuindo de forma um tanto intuitiva, características de fundo psicológico a cada um deles. Em 1939, Herbert Bolton lançava a questão: as Américas têm um história comum? A pergunta, proposta a modo de desafio, provocou reações, embora as dificuldades subjacentes a este tipo de análise tenham desanimado os historiadores. Realizar estudos comparativos expõe o historiador ao duro dilema de ter que escolher entre trabalhar dados secundários para ampliar o universo de análise ou reduzi-lo a patamares bastante limitados, se deseja trabalhar com fontes primárias. Uma obra clássica na qual se utilizou o método comparativo surgiu nos anos 70, quando James Lang advogava em Conquest and Commerce que a principal diferença entre os dois impérios seria o perfil de conquista do colonizador espanhol, ao passo que o inglês se inclinaria, sobretudo, pela tentativa de estabelecer redes comerciais em suas novas possessões.

Em Impérios del Mundo Atlántico, Elliot empreende a difícil tarefa de estabelecer comparações entre os impérios espanhol e inglês na América. O hispanista inglês consegue em seu trabalho (fruto de anos de experiência como pesquisador e professor em várias universidades européias), equacionar bem o problema da abordagem comparativa, embora tenha que esquivar o desafio de incluir também o Império Português. Este aparece apenas em algumas passagens específicas, quando a menção às suas características ajuda a esclarecer aspectos concretos, como por exemplo, o da utilização da mão-de-obra escrava africana. O autor reconhece que incluir a América portuguesa no espectro de análise agigantaria a tarefa de forma a torná-la por demais ampla para os limites de um volume. Não obstante, a opção por centrar-se nas áreas de colonização espanhola e britânica não desmerece a obra. O livro foi estruturado em três partes (La ocupación, La consolidación e La emancipación) formadas por quatro capítulos cada. Ao longo de suas mais de 800 páginas, o autor trabalha com uma ampla gama de eixos temáticos. Sua abordagem se interessa pelos aspectos relacionados com a adaptação do colonizador aos recursos alimentícios disponíveis no novo mundo, a postura do europeu frente aos nativos, os posicionamentos frente à mestiçagem em suas várias facetas, as variantes na organização da produção e da utilização da mão-de-obra, as práticas político-administrativas e os processos de desagregação dos vínculos coloniais. Elliott, graças aos seus amplos conhecimentos de história moderna, transcende os aspectos propriamente locais na sua abordagem, conectando as manifestações da experiência colonial no novo mundo com as estruturas mentais e as práticas políticas e culturais de origem dos colonizadores. Na opinião do autor, são as experiências européias destes colonizadores que fizeram com que os espanhóis recorressem freqüentemente à figura do mouro para caracterizar os indígenas (sobretudo os das áreas de maior desenvolvimento civilizacional) ao passo que ingleses os relacionassem com os irlandeses. É através deste olhar mais amplo, que o autor pode, por exemplo, tecer esclarecedores comentários acerca das formas como colonizadores britânicos e espanhóis entendiam a questão da cristianização dos nativos. No caso britânico, o esforço missionário, tão característico da colonização espanhola no Novo Mundo, se viu embaraçado seja pela falta de uma política estatal de catequese pungente, seja pela concepção da predestinação que regia a cultura religiosa de muitos dos colonos puritanos. Entre os colonizadores espanhóis, Elliott detecta o envolvimento direto da coroa no mister de cristianizar os nativos. A instituição do padroado régio, se por um lado dava ao monarca espanhol amplos poderes em matéria eclesiástica no Novo Mundo, por outro o obrigava a empenhar-se na salvação das almas dos indígenas, sob pena de ter sua consciência maculada. Também nesse caso o cenário europeu interfere diretamente nas realidades construídas no além-mar: os missionários católicos chegados ao continente depois das reformas tridentinas entendiam o objeto de sua atuação de forma bastante diferente dos primeiros missionários da “fase heróica” da catequese. Em relação aos aspectos políticos, Elliott esquadrinha inteligentemente de que formas os conflitos políticos seiscentistas da Inglaterra influenciaram a cultura política dos colonos britânicos, traçando um interessante paralelo entre estes e os colonos espanhóis durante o processo de desagregação dos respectivos vínculos coloniais.

A mais recente obra de Elliott disponibiliza ainda uma longa lista de bibliografia que inclui contribuições monográficas sobre a história da América colonial publicadas após o ano 2000. O primoroso estilo do autor e a excelente tradução (monitorada pelo próprio Elliott, profundo conhecedor do idioma castelhano) garantem uma leitura agradável, ao passo que um bem elaborado índice analítico facilita as consultas mais pontuais. A tradução ao português desta e de outras obras suas representaria inegavelmente um poderoso estímulo aos estudiosos do período colonial da América portuguesa para romper as tradicionais barreiras que atualmente setorizam o estudo das experiências coloniais no Novo Mundo.

George F. Cabral de Souza – Professor no Departamento de História da UFPE. Pesquisador financiado pela FACEPE. Membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

ELLIOTT, John H. Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830). Madrid: Taurus, 2006. Resenha de: SOUZA, George F. Cabral de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.2, p. 379-382, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]

MARZAL Manuel (Ed), BACIGALUPO Luis (Ed), Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773) (T), Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú (E), Universidad del Pacífico (E), Instituto Francés de Estudios Andinos (IFEA) (E),DIAS Camila Loureiro (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Jesuítas, Modernidade, América Ibérica, América Latina, América -, Sec. 16-18

Desde a renovação historiográfica de que a Companhia de Jesus foi objeto − agora há mais de vinte anos −, sua história esteve especialmente relacionada à questão da modernidade. Isso porque o movimento que consistiu no désenclavement1 da história da Ordem (até então controlada quase exclusivamente por seus membros e limitada a um enquadramento nacional de cunho apologético) resultou em sua apropriação por historiadores leigos, na qualidade de um “observatório” do período moderno. O que se procura, desde então, não é mensurar a contribuição dos jesuítas, mas antes questionar a modernidade por meio da história da Companhia de Jesus. Instituição essa que, de fato, se apresenta como campo privilegiado de observação, por uma dupla razão: seu apostolado universalista, e a sua organização institucional responsável pela formação de um corpus documental contínuo, capaz de trazer elementos de resposta a muitas das questões sobre o período moderno2.

Esse renovamento atendeu em parte ao anseio de abordar a história moderna da Europa a partir de um espaço supranacional, correspondendo à identidade e forma de operação da Ordem inaciana3. Contudo, se teve ares programáticos primordialmente na França e Itália, rapidamente o debate adquiriu uma dimensão internacional e, dos vários campos em que se desenvolveu, sem dúvida o da história da ciência e educação e o das missões e evangelização confirmaram-se os mais dinâmicos4.

Assim, a pergunta que de imediato se coloca a respeito de uma publicação que leva o nome de “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica” é a de saber qual a sua relação com esse contexto de renovação historiográfica. O livro foi publicado em 2007, e traz a lume as atas de um colóquio internacional de mesmo nome realizado no Peru, em 2003. A proposta dos organizadores − um dos quais ele próprio jesuíta5 − aos participantes do encontro era a de avaliar a contribuição da Companhia de Jesus para o desenvolvimento da modernidade na América. Em outras palavras, solicitou-se aos colaboradores a tarefa de delinear algumas características da modernidade na tradição cultural americana, a partir dos diferentes âmbitos em que atuaram os jesuítas, partindo da hipótese inicial segundo a qual a produção intelectual e a atividade educacional e missionária de “alguns padres” da Companhia de Jesus teriam representado o “primeiro e decisivo resplendor da cultura moderna no mundo católico”6. Colocada nesses termos, a questão de fato não parece atender ao novo delineamento metodológico acima referido. Porém, como se explicita na própria introdução, ela foi superada pelas contribuições que, em muitos casos, fizeram realmente valer os ganhos da, ainda recente, renovação. Optou-se então por uma organização da publicação em função das questões levantadas no encontro, e é justamente esse o aspecto mais interessante do livro a se observar.

A obra tem dois volumes: o primeiro, um impresso de portentosas dimensões (pouco mais de quinhentas páginas), conta com uma introdução e vinte e dois artigos. O segundo, em suporte eletrônico (mini-cd) que acompanha o volume impresso, conta com dezessete artigos, além de um apêndice onde foram publicados dois documentos de interesse para os estudiosos da Companhia de Jesus na América Latina: uma apresentação do projeto de reconstituição do acervo histórico da Universidade Javeriana de Bogotá e uma extensa bibliografia sobre os jesuítas na história do Peru. Em ambos os tomos, os artigos foram distribuídos em três seções. A primeira pretende ser uma relação dos textos que tratam dos aspectos teológicos e filosóficos da contribuição jesuíta à construção da modernidade (Los jesuitas y la razón moderna). A segunda reúne os artigos que tratam, em seus múltiplos âmbitos de atuação − ciências naturais e humanas, educação, missão, tecnologia, economia, arte, arquitetura etc. −, a inserção “multifacetada” dos jesuítas no contexto histórico e cultural das colônias americanas (Los jesuitas y la patria criolla). Por fim, a terceira seção agrupa artigos que abordam temas relacionados à expulsão dos jesuítas das colônias americanas, englobando aspectos econômicos, políticos e culturais (Los jesuitas y la crisis de la expulsión).

É compreensível que numa obra que traz a contribuição de quase quarenta autores, de várias áreas e relações diversas com a instituição objeto do debate, as visões sobre a mesma questão sejam defasadas, e revelem a presença tanto de autores que se vêem diretamente engajados nessa renovação historiográfica quanto de outros que lhe são visivelmente alheios. Com efeito, é difícil encontrar nesse livro um eixo que dê realmente conta de todas as contribuições. Mas o fato é que, independentemente da qualidade desigual dos artigos, essa publicação permite-nos esboçar algumas tendências na maneira como a história da Companhia de Jesus vem sendo emprestada pelos pesquisadores interessados na modernidade, especificamente ibero-americana.

Modernidade é, pois, o conceito-chave deste livro. A partir daí, dois problemas de definição se apresentam: um relativo à sua cronologia, e outro, ao delineamento dos seus principais traços característicos. Cada autor opera com uma concepção distinta da modernidade, ora associando-a ao Renascimento, ora à Ilustração, e às vezes ao século XVII. Alguns não consideram o problema, outros o colocam claramente, explicitando seu posicionamento, outros, ainda, o tomam como principal objeto de reflexão. Porém, para Luis Bacigalupo, autor da introdução, o termo moderno abarca menos o sentido do período que se inicia no fim da Idade Média e termina com a Revolução Francesa do que aquilo que representa o pensamento questionador do consuetudinário, sendo que a modernidade se caracteriza, então, como uma era da “cultura em crise” (p. 24). Ainda segundo o organizador, um dos seus principais traços característicos é o fato de ser expansiva, isto é, de tender a aplicar os êxitos da razão a todos os campos do conhecimento e das atividades humanas; a ciência e a educação revelando-se, pois, âmbitos importantes de sua definição e veiculação. Assim, o eixo escolhido no livro para caracterizá-la é o da tensa relação entre princípios de ações divergentes: se por um lado, a razão moderna impele o homem a se emancipar das irracionalidades que o “escravizavam”, por outro, estimula o Estado a ações que visam o seu fortalecimento, pela expansão comercial, industrial e burocrática, gerando forças paradoxais entre a liberdade do indivíduo e a soberania do Estado.

Nessa encruzilhada, a Companhia de Jesus que, justamente por conta do seu apostolado universal, sempre ocupou um lugar central, do ponto de vista social, político e cultural, no processo de expansão do velho mundo e de formação das novas sociedades americanas7, desempenhou um papel importante, tanto na sistematização de estruturas do colonialismo quanto na formação dos quadros que posteriormente foram responsáveis pela emancipação das colônias. Entendida nesses termos, a atuação da Companhia de Jesus na América revela uma contradição crucial para a modernidade americana, na sua relação com a Europa, e parece ser esse paradoxismo do sistema colonial o eixo em torno do qual se reúnem as questões colocadas pelas diversas, e heterogêneas, contribuições.

Em uma apreciação alheia à distribuição dos artigos nas seções definidas pelos organizadores, é possível notar a presença marcante de duas classes de contribuições: artigos que aproximam o tema da modernidade ao da formação das sociedades coloniais, e outros que determinam ênfase na construção da “pátria criolla”. Quanto a esta última, duas questões são nomeadamente abordadas: a responsabilidade dos jesuítas na educação da elite nativa e seu papel na construção de uma identidade nacional.

Assim, o debate teológico-jurídico, que por uma reavaliação do aristotelismo, procurou justificar moralmente a escravidão, é explorado nos artigos de Josep Ignasi Saranyana e de Francisco Moreno Rejón. No que concerne à formulação de um modelo e aos aspectos relacionados à empresa missionária propriamente dita há que se conferir, por exemplo, as contribuições de Jeffrey Klaiber, S.J., Javier Baptista, S.J., Ignacio del Río e Norberto Levinton. Já o texto de Antonella Romano − que se destaca por chamar a atenção para a missão como espaço de produção de ciência, por conta da mobilização de técnicas e saberes que visavam ao domínio territorial − submete a relação entre centro e periferia a uma perspectiva mais ampla, mostrando que a América não somente importou e mestiçou, mas também foi protagonista na construção da cultura moderna. Nesse mesmo sentido vai o argumento de Carmen Salazar-Soler, em seu artigo sobre o desenvolvimento de técnicas mineradoras no Peru nos séculos XVI e XVII.

O tema das atividades educativas dos colégios administrados pelos jesuítas é especialmente mobilizado pelos autores desse livro, e responde a interrogações de enquadramento nacional, desde a abordagem da educação dos caciques, por Monique Alaperrine-Bouyer, até a organização e consolidação de uma estrutura de ensino e formação dos espanhóis e filhos de espanhóis. Nesse sentido, para Maria Cristina Torales Pacheco, os jesuítas teriam assentado na Nova Espanha as bases de uma “esfera pública burguesa”8, na qual se teria formado a geração que posteriormente foi responsável pela emancipação política “e construção do México como país independente” (p. 158).

Porém, adverte Pacheco, não foi apenas na formação de uma classe social que a Companhia de Jesus desempenhou um papel importante: os jesuítas também se implicaram diretamente na construção da identidade nacional. É o que procuram revelar, por exemplo, os estudos sobre os conflitos no seio da própria Ordem, entre os jesuítas nativos e aqueles oriundos da Europa. Bernard Lavallé demonstra que, embora tenha tentado, a cúria generalícia romana não conseguiu coibir a entrada, na instituição, de membros americanos, que acabaram se impondo: pouco tempo depois da chegada dos jesuítas, conclui o autor, os criollos instruídos em seus colégios chegaram a dominar os postos do clero secular em suas respectivas dioceses, gerando conflitos. Pedro Guibovich Pérez identifica no Poema hispano-latino, do jesuíta peruano Rodrigo de Valdés (1619-1682), uma exaltação nacionalista: evidenciando as disputas entre nativos e estrangeiros dentro da própria Companhia, segundo o autor, Valdés mostrava erudição como estratégia de defesa da capacidade intelectual dos criollos, e fazia uso do gênero corográfico como instrumento de exaltação da “pátria chica”.

Também Clavijero (1731-1787) é apresentado, por Beatriz Domingues, como um dos construtores do “patriotismo” mexicano. Como ele, outros jesuítas exilados na Itália, após as expulsões de 1767, contribuíram à construção de uma identidade nacional ao contradizer as teorias de Buffon e De Pauw sobre a degenerescência da natureza americana. Este mesmo assunto passa por vários outros artigos, um dos quais trata especificamente do jesuíta Juan de Velasco, com relação à história equatoriana (Carmen-José Alejos Grau). Quanto a isso, é de se notar as referências obrigatórias aos estudos de Antonello Gerbi e Miguel Batlori9.

A questão dos nacionalismos levantada pela análise da “literatura de exílio” aproxima-nos então de outro importante tema tratado em artigos que também lhe fazem referência, e que acabou originando uma seção à parte: os contextos das expulsões (José del Rey Fajardo, S.J., Francisco de Borja Medina, S.J., Manuel Marzal, S.J., Sandra Negro). Porém, não só essa literatura do exílio, como igualmente aspectos econômicos da expulsão (Guillermo Bravo Acevedo e Kendall W. Brown), relativos aos conflitos no Paraguai (Martín Maria Morales, S.J. e Barbara Ganso) e à definição das fronteiras amazônicas (Fernando Rosas Moscoso) são assuntos levantados, deixando patente a predominância da questão nacional no tratamento da história da Companhia de Jesus na América.

Ora, a correspondência dos marcos cronológicos da história do período moderno e da colonização da América com os da história dos jesuítas (1540-1773) não é fruto de mera coincidência. Se a história da Companhia de Jesus nos momentos de sua fundação e consolidação institucional possibilita questionar o período moderno por um enquadramento supranacional, entretanto, no contexto da sua supressão, a história da Ordem proporciona fecundo campo de análise da questão nacional. E, se o debate franco-italiano privilegiou os séculos XVI e XVII − de construção da identidade jesuíta e definição do apostolado universalista e missionário −, abrindo espaço para a análise da atuação dos padres no âmbito das ciências e das missões, nos meios acadêmicos hispano-americanos (onde aliás a presença de jesuítas historiadores se faz notar de maneira mais evidente), os temas permanecem associados sobretudo ao século XVIII, contexto em que se encadeou uma série de fenômenos que desembocaram na expulsão dos jesuítas dos domínios imperiais europeus e, por fim, na supressão da Ordem. Sob o aspecto historiográfico, então, o livro “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica”, parece confirmar uma tendência própria ao debate hispânico, em que as circunstâncias, causas e conseqüências das expulsões constituem objetos privilegiados de estudo10.

Não é de pouco interesse notar, quanto a isso, um desequilíbrio na publicação que, se reúne na sua maior parte textos referentes à história do México e Peru, conta apenas com a colaboração de Rafael Chambouleyron no que diz respeito aos jesuítas na América portuguesa (embora a baliza cronológica da publicação se inicie em 1549, ano da fundação, no Brasil, da primeira missão jesuíta americana). Se incorporasse a vertente brasileira desse debate, o livro talvez apresentasse um outro tom − contudo ainda em vias de se delinear11.

Notas

1 Termo que, em francês, significa desenclausuração; foi cunhado por Luce Giard, curadora de um volume considerado marco desse novo significado conferido aos estudos jesuítas. Les jésuites à la Renaissance. Système éducatif et production du savoir, dir. Luce GIARD, Paris: Presses universitaires de France, 1995.

2 ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, Présentation, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, pp. 247-260.

3 CANTÚ, Francesca. I gesuiti tra vecchio e nuovo mondo. Note sulla recente storiografia, in Carlo OSSOLA, Marcello VERGA & Maria Antonietta VISCEGLIA (eds.), Religione cultura e política nell’Europa dell’età moderna. Studi offerti a Mario Rosa dagli amici, Firenze: Leo S. Olschki, 2003, pp.173-187.

4 FABRE, Pierre-Antoine. L’histoire des jésuites hors les murs. L’état de la recherche em France. Annali di storia dell’esegesi. Anatomia di un corpo religioso: l’identità dei gesuiti in età moderna, 19/2, 2002, pp. 357-367. Citamos apenas algumas das publicações coletivas mais recentes sobre missão, ensino e ciência: CAROLINO, Luis Miguel & CAMENIETZKI, Carlos Ziller (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência. Séculos XVI-XVIII, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. CHINCHILLA, Perla & ROMANO, Antonella (coord.), Escrituras de la modernidad. Los jesuitas entre cultura retórica y cultura científica, Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2008; FABRE, Pierre-Antoine & VINCENT, Bernard (comp.), Missions religieuses modernes. “Notre lieu est le monde”, Roma: École française de Rome, 2007. Não se pode deixar de mencionar a contribuição dos Estados Unidos a esse renovamento historiográfico, da qual podemos citar, ainda restringindo-nos a publicações coletivas, O’MALLEY, J., BAUILEY, G.A., HARRIS, S.J. & KENNEDY, T.F. (eds.), The Jesuits: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 1999 e, dos mesmos organizadores, The Jesuits II: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2006. Também na relação entre poder e religião, a Companhia de Jesus inspirou sólidas pesquisas, como se pode conferir em MOLINIÉ, Annie, MERLE, Alexandra & GUILLAUMEALONSO, Aracelo (dir.), Les jésuites en Espagne et en Amérique. Jeux et enjeux du pouvoir (XVIe-XVIIIe siècles), Paris: PUPS, 2007.

5 Esse colóquio foi organizado pela Universidade Católica do Peru, por Luis Bacigalupo e Manuel Marzal Fuentes, S.J. († 2005).

6 “La hipótesis general que motivó la convocatoria a este coloquio es que la producción intelectual y la obra educativa y misionera de algunos padres da Compañía de Jesús habrían sido el primer y decisivo resplandor de la cultura moderna en el mundo católico. Para explorar esa hipótesis, la comisión organizadora del coloquio invitó a académicos de prestigio, quienes aceptaron delinear algunas características de la modernidad en la tradición cultural iberoamericana, partiendo de los diferentes ámbitos en que actuaron los jesuitas entre 1549 y1773”, BACIGALUPO, Luis E. Introducción, in Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica. 1549 y 1773, p.15.

7 ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, “Présentation”, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, p. 255.

8 No seu artigo intitulado “Los jesuítas novohispanos, la modernidad y el espacio público ilustrado”, a autora se diz tributária dos estudos de Roger Chartier e Jürgen Habermas.

9 BATLORI, Miguel. La cultura hispano-italiana de los jesuítas expulsos, Madrid: Biblioteca Românica Hispánica 1966. GERBI, Antonello. La disputa del Nuovo Mondo. Storia de una polemica. 1750-1900, Milano-Napoli, Ricciardi, 1955.

10 De fato, os organizadores do livro Les jésuites en Espagne et en Amérique (cf. supra n. 4) notam que temas relacionados ao destino dos jesuítas no século XVIII ou as missões do Paraguai constituem uma parte importante dos estudos referentes à influência da Companhia de Jesus no mundo ibero-americano. Alguns trabalhos recentemente têm procurado outros caminhos: além do livro em questão, ver, por exemplo, Julian J. LOZANO NAVARRO. La Compañía de Jesús y el poder en la España de los Austrias, Madrid: Cátedra, 2005.

11 Embora pesquisadores brasileiros se dediquem aos estudos jesuítas há vários anos, os empreendimentos coletivos são bastante recentes. Em 2007, também foram publicadas no Brasil as atas de um colóquio referente à Companhia de Jesus, por iniciativa dos próprios jesuítas: BINGEMER, M. C. L., MAC DOWEL, J. A. & NEUTZLING, I. (orgs.), A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos. Anais do Seminário Internacional realizado entre 25 e 29 de setembro de 2006 na PUC-RJ, Unisinos-RS e na Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia (FAGE), de Belo Horizonte, São Paulo: Loyola, 2007. Apesar de o próprio título da publicação expressar uma diferença importante com relação ao debate hispano-americano, não é suficiente para definir o tom das discussões brasileiras. Acompanhado deste presente volume e da edição, que deve sair em breve, das atas do colóquio internacional realizado em 2007 na Universidade de São Paulo, “Contextos missionários: religião e poder no Império português”, seus contornos se tornarão mais claros. Este último colóquio, embora não estivesse centrado especificamente nos jesuítas, contou com a colaboração de alguns importantes especialistas em história da Companhia de Jesus. De todo modo, importa aqui salientar o recorte imperial atribuído ao objeto, como indicado no próprio título do encontro.

Camila Loureiro Dias – Doutoranda EHESS, Paris.

MARZAL, Manuel; BACIGALUPO, Luis (Eds.) Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773). Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú; Universidad del Pacífico; Instituto Francés de Estudios Andinos (IFEA), 2007. Resenha de: DIAS, Camila Loureiro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.1, p. 417-425, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]

RICUPERO Rodrigo (Aut), A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630) (T), Alameda (E), SOUZA George Félix Cabral de (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Elite Colonial, Séc. 16-17, América – Brasil

Os momentos iniciais da efetiva conquista e ocupação dos territórios americanos do império português são de fundamental importância para todo o posterior desenvolvimento histórico do Brasil. Durante estes anos se desenharam os traços básicos da distribuição espacial da América portuguesa, traços que repercutem até hoje nas dinâmicas do país. Vem dessa época também algumas das principais feições sociais do país, bem como uma parcela importante do caldo sociológico que compõe suas culturas políticas. Apesar de sua importância, poucos são os historiadores que ousam mergulhar nestas águas profundas, nesta fase ao mesmo tempo tão longínqua e tão presente de nossa história. As razões para isso em geral giram em torno do problema das fontes. Essa é uma questão que se repete para outros objetos do período colonial, o que faz desta fase a menos conhecida de nossa história, pese seu caráter fundante.

A obra em tela enfrenta estas limitações e ousa incursionar no primeiro século de colonização. Sua baliza cronológica inicial é 1530, momento em que a política da coroa em relação às terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas “dá um salto de qualidade, com a iniciativa do povoamento das terras da costa do Brasil”. O fechamento do período do estudo é a invasão de Pernambuco pela West Indische Compagnie, em 1630, fase em que a conjuntura externa foi sacudida pela entrada em cena de novas potências e pela crise geral do século XVII. Do ponto de vista geográfico, o estudo abrange toda a área costeira da colônia, salientando o autor, que a repartição do estado do Maranhão somente se efetivou a partir de 1626.

As fontes foram magistralmente reunidas por Ricupero, que revisitou um vasto material transcrito e publicado em vários veículos como os Anais e a Coleção de Documentos da Biblioteca Nacional, as revistas de vários Institutos Históricos, inúmeras crônicas, relatórios, descrições, sumários, memórias e compêndios publicados no Brasil e em Portugal. As fontes manuscritas consultadas também foram variadas e numerosas. Ricupero utilizou-se de cartas régias, consultas, processos de disputa de terras, registros de chancelaria régia e das ordens militares, processos inquisitoriais e códices diversos depositados em Lisboa, no Porto e em Évora. No Brasil, consultou fundos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A relação das fontes e bibliografia ocupa sessenta e sete páginas e se constitui por si só num importante guia de pesquisa.

O trabalho se divide em três partes: “Honras e mercês”, “Conquista e Governo” e “Terra, Trabalho e Poder”. Ao longo destas três seções estão distribuídos nove capítulos. Os primeiros dois capítulos, inseridos na seção “Honras e Mercês” discutem como, a partir da concepção de que a principal tarefa da realeza é a distribuição da justiça, as práticas de recompensas por serviços prestados desempenharam um papel importante na atração de colonizadores e no pagamento de suas ações em prol da consolidação dos primeiros núcleos de colonização. O autor elenca um farto rol de exemplos de como a pressa em recompensar e a vagareza em castigar eram elementos indispensáveis no trato com os primeiros colonizadores.

Três capítulos formam a segunda parte do trabalho. Nela o autor esquadrinha as ações iniciais de ocupação efetiva do território, afrontando a presença cada vez mais intensa de outros europeus, sobretudo franceses. Os aspectos legais, militares, econômicos e administrativos são abordados. Destaca-se a necessidade de mais estudos sobre a administração colonial e dos ocupantes dos cargos nesse período. A montagem do Estado colonial nesta fase é analisada sob o prisma da legislação da época e dos provimentos passados aos designados para os cargos da governança. Não se descuida, entretanto, do papel que as redes familiares e clientelares tiveram na formação de uma elite de poder, na qual as principais figuras incrementavam seu raio de influência exatamente pelo controle das indicações e nomeações para os postos de mando.

A terceira e última parte, “Terra, trabalho e poder”, referência direta ao texto da Profa. Vera Lúcia Amaral Ferlini, orientadora do trabalho, é a mais extensa do livro, contendo quatro capítulos. Nesta seção o autor analisa como a ocupação dos cargos de governo permitia um acesso direto aos mecanismos de distribuição de terras e, conseqüentemente, na formação de dilatados patrimônios. Em paralelo, especialmente nos primeiros anos do período em estudo, o acesso privilegiado a outros bens explorados na imensa costa atlântica do continente representava uma considerável possibilidade de ganhos para aqueles que ocupavam posições cimeiras na administração local ou para seus apaniguados. Freqüentemente, esses ganhos e vantagens eram conseguidos ao arrepio da lei. Seja pelo trato ilícito, seja pelo açambarcamento de determinadas atividades, vários são os exemplos de como as autoridades se valiam dos poderes que lhe foram investidos para sacar proveito próprio de recursos que deveriam ser exclusivos do monarca ou que poderiam beneficiar um maior número de colonizadores.

Entra nesta questão, além da terra, o indispensável aporte de mão-de-obra. Neste campo, o autor demonstra como os dilatados poderes concedidos aos representantes do poder real na colônia acabaram permitindo que os mesmos consolidassem suas redes clientelares através do controle da divisão do contingente humano indígena entre as propriedades de parentes ou achegados. Coloca-se em relevo a atuação dos jesuítas na arregimentação de indígenas, bem como as reações dos colonizadores as interferências inacianas e à legislação regulamentadora emanada de Lisboa e Madri.

Os dois últimos capítulos, “O patrimônio fundiário I e II” oferecem abundante informação sobre o processo de ocupação das terras pelas unidades produtivas nas capitanias, iniciando-se pela Bahia, seguida pelas capitanias do centro-sul, Pernambuco e Itamaracá, Paraíba e Sergipe e finalmente a costa leste-oeste. Nestes capítulos figuram cinco interessantes tabelas que reúnem e sistematizam dados sobre os senhores de engenho do Recôncavo Baiano e de Pernambuco e Itamaracá, apontando informações sobre sua participação na governança colonial e seu estatuto social.

Ao longo de todo o texto, Ricupero dá ao poder central um papel de relevo e de controle sobre o processo de ocupação da nova colônia. Esta inclinação deriva diretamente da opção que faz pela idéia de que a colonização se realiza dentro dos quadros do Antigo Sistema Colonial. Daí também o seu empenho em tentar afirmar a existência de um senso de unidade territorial e centralidade administrativa e a sua crítica à idéia de “América Portuguesa”, alegando sua ausência na documentação consultada. O autor faz questão, entretanto, de expressar sua negação à vinculação automática retroativa ao Estado que se formaria a posteriori.

Apesar deste posicionamento, no decorrer do seu trabalho, o autor menciona dezenas de exemplos de como as brechas da autoridade régia permitiam que os componentes das primeiras gerações da “elite brasileira” lograssem, em direto afrontamento às normais emanadas do centro, sacar vantagens para interesses próprios. Pese as afirmações do autor no sentido de dar um papel de relevo à coroa – como cabeça e impulsionadora do aparelho de dominação sobre a colônia através de seus representantes, máxime o Governador-geral – a impressão que fica do livro é de que ao contrário de defender os interesses da coroa, os seus oficiais instrumentalizam os poderes que lhe eram delegados para beneficiar a si próprios e a suas redes clientelares. O desvirtuamento das normativas sobre os indígenas é um bom exemplo disso.

Os mecanismos de formação das elites no eixo centro-sul, descritos por Fragoso e outros autores em trabalhos recentes, emergem claramente dos casos estudados por Ricupero, apesar de algumas discordâncias do autor em relação à interpretação da formas e intenções das concessões de mercês régias. Na própria referência ao que entende por elite (nota 43, página 22), o autor se remete às discussões propostas por Bicalho. Por isso soa “estranha” a defesa feita pelo autor, diretamente em duas ocasiões (na introdução e nas considerações finais) e indiretamente em algumas passagens ao longo do texto, da concepção do Antigo Sistema Colonial como chave interpretativa para a formação de uma elite brasileira.

A abordagem do autor sobre as esparsas fontes do período inicial da colonização lança indagações atuais sobre um material que se revela extremamente rico em informações históricas. O laborioso trabalho de pesquisa vem apresentado em um texto claro e de agradável leitura, e se beneficia ainda de um primoroso trabalho de edição. Os capítulos finais seriam ainda mais informativos se acompanhados de mapas para orientação espacial do leitor. Ricupero apresenta assim uma sólida contribuição para a crescente produção científica sobre o período colonial e nos oferece interessantes elementos para o salutar debate historiográfico em torno à suas interpretações. Seu livro integra, indiscutivelmente, o rol de obras obrigatórias para o estudo do nosso período fundacional.

George Félix Cabral de Souza – Universidade Federal de Pernambuco.

RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630). São Paulo: Alameda, 2009. Resenha de: SOUZA, George Félix Cabral de. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.2, p.329-333, jul./dez. 2009. Acessar publicação original [DR]

SERRERA Ramón María (Aut), La América de los Habsburgo (1517-1700) (T), Universidad de Sevilla (E), Fundación Real Maestranza de Caballería de Sevilla (E), SÁNCHEZ Carlos Alberto González (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Dinastia dos Habsburgo, Europa -, América -, Europa – Espanha, Séc. 15-17

Reseñar un libro no en pocas ocasiones puede llegar a ser una labor aburrida y tediosa, sobre todo cuando no es el fruto de una decisión personal sino de una obligación editorial, un compromiso o cualquier otra de las componendas propias de la vida académica. La tarea puede complicarse aun más si la obra no es del gusto del reseñador; o su temática no cuadra con sus aficiones y preocupaciones científicas, ni su calidad alcanza un mínimo de solvencia. Bien saben los implicados en estas lides los sinsabores e ingratitudes que puede plantear la redacción de una crítica negativa, aunque fuere constructiva, sobre trabajos en los que, en el peor de los casos, siquiera se ha vertido tiempo, alguna ilusión y esfuerzo. Por ello soy de la opinión, como Cervantes, de que todo libro merece respeto, pues algo bueno siempre guardan. No en vano don Miguel leía hasta los papeles tirados en las calles.

No es éste el pleito del que ahora me ocupa, todo un alarde de reposado saber, rigor y sutileza historiográfica. Resultado de muchos y calmos años de investigación y reflexión; de una vida dada al empeño de comprender y hacer saber a los demás acerca del impacto de América en el devenir histórico de la España, y Europa en general, del Antiguo Régimen. Ya decía Erasmo que es el mejor sabio-profesor quien se da con fruición al estudio para a la postre regalar el provecho a sus alumnos y a todo aquel con deseos de aprender. Créanme si les digo que semejante cometido siempre ha sido la meta de don Ramón María Serrera, catedrático de Historia de América de la Universidad de Sevilla. Basta con interrogar al numeroso y premiado alumnado que ha tenido la suerte de disfrutar de su minerva durante su ya dilatada carrera profesional. A ellos va dedicado el libro al que ahora doy la bienvenida y enhorabuena; ¿quieren mejor refrendo de lo dicho, mayor prueba de generosidad docente y personal? Alguno, resuelto en desconfianza y recelos, podría atribuir mi juicio, por interesado y subjetivo, a la admiración y amistad que, desde hace largo tiempo, profeso al autor. Cierto es, pero les aseguro que ambos estados anímicos son una agradecida consecuencia de lo mucho y bueno que me ha enseñado de viva voz o en letra impresa; no solo de historia, también de arte y música, de ética y honradez, humana e intelectual. De la cultura en definitiva. Decían los clásicos que el cariño, el trato, la conversación y los hechos conservan las amistades.

Pues bien, el libro en cierne, La América de los Habsburgo (1517-1700) –título acertado por lo inusual de Habsburgo en otros de cariz similar-, está concebido como un manual universitario, un útil de consulta para el estudio de una de las asignaturas que el Profesor Serrera viene impartiendo desde tiempo atrás (América en la Edad Moderna). De ahí que para la dilatada elaboración del texto se haya servido de las fuentes documentales, manuscritas e impresas, antiguas y modernas, actualizadas y repensadas, que distinguen su diverso cúmulo de saberes, maná indispensable al adecuado conocimiento de una materia tratada e interpretada con rigurosos criterios científicoacadémicos. Por ello no es uno más de los manuales al uso que suelen exhibir una suma informativa sin apenas introspección del historiador, es decir, la casi simple secuencia de los hechos y personajes, de variopinta naturaleza, correspondientes a la época de referencia, con frecuencia realizada a partir de los manuales precedentes. No olvidemos que estas iniciativas suelen tener su origen en propuestas editoriales, cuyas miras con frecuencia giran en torno a la oportunidad de un determinado producto en el mercado. Así, los autores se ven apremiados por una ajustada programación empresarial, la que, a su vez, delimita de forma precisa la ejecución de la obra en la forma prevista y en un tiempo determinado.

La de don Ramón, en cambio, fue una decisión personal, tomada, hace 20 años, sin otro ánimo crematístico que poner a prueba sus conocimientos y capacidad comunicativa –de sobra magistral- en la confección de un texto, a modo de guía de estudio y alta divulgación, capaz de ofertar a propios y extraños un panorama analítico de la América Española en los siglos XVI y XVII, desde una perspectiva total e integradora, o sea, afrontando cada una de las manifestaciones que definen una época y su humanidad (geografía, economía, sociedad, política, cultura y civilización). Porque abomina la actual especialización de la historiografía en temáticas acotadas y exclusivistas fuera de las cuales no se sabe nada: el virus mortal de las humanidades. De ahí la importancia que concede, entre otras muchas variables, al arte, y a la cultura en última instancia; parámetros que le ayudan a definir mejor sus objetos de estudio, exquisitamente plasmados en las cuantiosas imágenes que ilustran las páginas del libro. Una especie de treta afortunada con la que nos quiere delatar la importancia de la imagen como documento histórico, vestigios del pasado en el presente, no mudos sino elocuentes, a la par que los escritos, dotados de una preciosa información esencial para la mejor comprensión de la época en la que surgen y se expresan.

El cometido del libro, por tanto, requirió atención esmerada y trabajo pausado; no menos, audacia, ingenio y, sobre todo, sapiencia acrecentada. A la larga, como se ha demostrado, llegaría la hora de la cuestión editorial. Esta manera de proceder y de buen hacer ha dado a luz una magnífica síntesis interpretativa en la que quedan virtuosamente equilibradas la información factual y la reflexión crítica, la profundidad y la difusión; al mejor estilo de don Antonio Domínguez Ortiz y don Guillermo Céspedes, próvidos historiadores a los que nuestro autor profesa una inteligente consideración. Si a ello le unimos el alarde de exquisitez plasmado en su prosa, sencilla y elegante a la vez, colorista y expresiva sin necesidad de artificios retóricos, las mercedes del libro están servidas por doquier en el texto.

Una de sus mejores cualidades, sin duda, es la pericia historiográfica del autor, arraigada en la mesura y el sentido común, el tiento y la prudencia. Garantes de una aproximación a los procesos históricos tratados al margen de juicios y evaluaciones éticos, una manera de ejercer el oficio que él mismo estima antihistórica y propensa a descontextualizar los fenómenos en estudio, o lo que es igual, a abordarlos fuera de las coordenadas culturales y mentales dentro de las cuales se desarrollan. No por casualidad su relato se distancia de aquella historiografía, en tiempos dominante, presa de una concepción eurocéntrica, y chovinista por defecto, en la que adquiere un exagerado protagonismo el hombre blanco a costa de las civilizaciones autóctonas. La de don Ramón en cambio enfatiza en el desarrollo de una trayectoria histórica resultado de las grandes migraciones atlánticas y del contacto multicultural entre europeos, indígenas y africanos, dentro de un orden colonial -un sistema de dominio- desplegado a través de una red intercontinental de circuitos comerciales, intelectuales, culturales y políticos. Ello tampoco le impide ignorar la diversidad ni las grandes diferencias de estructura y experiencia histórica entre Europa y el Mundo Atlántico, o admitir que la cultura americana no fue una réplica exacta de la europea. Del mismo modo huye de teorías totalizadoras en la interpretación del pasado, consciente del determinismo y relativismo que propician, dejando escaso margen de acción a la irracionalidad y libertad del hombre, factores en nada incompatibles con los estructurales.

La forma de hacer historia del profesor Serrera, obvio es, facilita la reflexión y el debate mediante el despliegue de problemas y líneas de investigación de cara a los posibles interesados en este menester. Más aun cuando aborda cuestiones controvertidas o desfiguradas por tópicos carentes de escrúpulos científicos, sea el caso de los distintos episodios que tienen que ver con la leyenda negra todavía vigente y, lo que es peor, a menudo encorsetados en discursos oficiales a este y el otro lado del Atlántico. Cuita que, a la par, no le predispone hacia una leyenda rosa o dorada, sino hacia otra gris claro, el color que nos ayude a asumir nuestra historia tal como fue, sin complejos de madrastra ni sentimientos de culpa descontextualizados y al albur de quienes los manipulan depositando en ellos fines espurios e interesados.

Este gran libro en todos los órdenes, como fuere, transita por una silva de conocimientos -auxiliada de un encomiable y auxiliar piélago de gráficos y mapas-, entre 1517, año de la llegada al trono de Carlos I, y 1700, fecha del óbito de Carlos II sin herederos y del fin de la dinastía de los Austrias en España. He aquí una cronología que precipita la razón principal del título de una obra cuyo argumento se divide en tres grandes apartados. El primero cubre una etapa crucial de la historia de las Indias españolas (1517-1542), correspondiente al ciclo de la conquista de aquel Nuevo Mundo, en el que se dirimen con maestría cuestiones tan trascendentes como el “choque cultural”, concepto que, dados los efectos desestructuradores de la acción conquistadora, el autor aprecia más coherente que los de “aculturación”, “occidentalización” o “transculturación”. También el proceso de dominación militar y su justificación teológica, la resistencia, activa y pasiva, de la población indígena, para terminar con un precioso capítulo de historia cultural imbuido en las novedades, y su asimilación por los europeos, que empezaron a exhibir unas tierras demasiado lejanas y extrañas: la dietética, la flora, la fauna, el medio ambiente y un sinfín de otras albricias que empezaron a transmitir las plumas de los primeros pobladores españoles. Gentes a la ventura que, conforme a su utillaje mental y referente simbólico, solían ver lo que escriben y no al contrario.

El segundo bloque temático afronta el periodo coincidente con la reorganización del sistema colonial, que nuestro historiador extiende de 1542 a 1598. Casi medio siglo en el que América va dejando de ser el espacio ideal del conquistador, el fraile y el encomendero para convertirse en el ecumene del colono, el funcionario y el cura. Porque es la época del nacimiento de una población multicultural y, como consecuencia inmediata, del impacto de los mestizajes a causa de un continuo tránsito, además de humano, de conocimientos, prácticas e imaginarios, germen del enfrentamiento de modos de vida, tradiciones y sistemas de pensamientos diferentes que la apertura de los nuevos mundos provocó. Son los años de la emergencia de un nuevo orden social, de un método de explotación de los recursos, con los metales preciosos y la Carrera de Indias como ejes, catalizador de una economía-mundo que algunos ven cual principios de la globalización actual; del despliegue del poder real y su centralizadora maquinaria burocrática-institucional. Atrás no queda, en medio de la Contrarreforma, la formación de la Iglesia Indiana, expresión de un catolicismo militante que tendrá en la misión y el control de las conciencias (la Inquisición y la extirpación de idolatrías) una de sus principales señas de identidad, patente de igual manera en un arte y una cultura concebidos como retórica cristiana.

Llegamos así a la última de las partes del libro, dedicada a poner de relieve la consolidación de la personalidad continental de América durante el Seiscientos, un siglo de crisis en Europa que exhala una coyuntura opuesta, o diferente (reajustes, cambios, transformaciones), en unas Indias atlánticas que empiezan a afianzar su autoidentidad. Es por ello que el profesor Serrera nos aperciba aquí, con esmero y agudeza, de los riesgos que conlleva ensayar la historia de América desde una perspectiva exclusivamente metropolitana; pues podemos caer en una visión reduccionista, alejada de la realidad y, peor aun, muy cercana a los postulados ideológicos del gobernante peninsular del XVII. Con este presupuesto metodológico se incide en la autonomía y autosuficiencia, en parte consecuencia de la postración de la Metrópoli, que irá desarrollando el Nuevo Continente. El fenómeno, como bien pone de manifiesto el autor, se dejará sentir en las diferentes facetas de la vida colonial, ya sea a través del progresivo protagonismo de la economía rural (la hacienda) frente a la minería y el tráfico oceánico; de las tensiones de una sociedad multiétnica, del auge de la Iglesia Nacional (la expansión conventual), del incremento del poder criollo y las lacras de la política colonial (corrupción, clientelismo, venalidad). Todo ello enmarcado en una cultura barroca cuya criollización le presta un perfil sincrético y sui generis.

En fin, creo que no es poco el abismo de sugerentes ideas, hechos y especulaciones que el libro sometido a mi opinión nos ofrece. Confío que en poco tiempo nos referiremos a él como “el Serrera”, cual se alude al “Elliott” o al “Domínguez Ortiz”, una simbiosis entre autor y título que sin más denota calidad, fama, familiaridad y asiduidad de uso. Pero hora ya va siendo de dar la palabra, escrita o hablada, a los posibles y agraciados lectores, a quienes don Ramón les ha dado en breve la cosecha que ha sudado en muchos años. Espero que sus opiniones mejoren la mía, según dije, quizás sesgada por el afecto y la admiración. En cualquier caso nadie quedará defraudado de internarse en semejante copia de aciertos y bonanzas. Si falta hallaren, súplanla con discreción, porque ha de ser leve y sobre asunto muy dudoso, más dadas las muchas generalidades y particularidades, de tan varios sucesos, labradas. O traigan a la memoria al Inca Garcilaso, quien en uno de sus prefacios pide al lector el aprecio de una su traducción haciéndole saber, que hasta que no tuviere hijos de esta talla y no supiere lo que cuesta criarlos y ponerlos en tal estado, no desdeñase su trabajo. A buen seguro no caeremos en trampa tan ingrata delante de un historiador, don Ramón María Serrera, en el que coinciden grandeza de persona, ingenio y saber. Arte es saber buscar a estos hombres, y suerte topar con ellos.

Carlos Alberto González Sánchez – Universidad de Sevilla.

SERRERA, Ramón María. La América de los Habsburgo (1517-1700). Sevilla: Universidad de Sevilla; Fundación Real Maestranza de Caballería de Sevilla, 2011. Resenha de: SÁNCHEZ, Carlos Alberto González. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

SILVEIRA Marcus Marciano Gonçalves da (Aut), Templos modernos/ templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil (T), Autêntica Editora (E), RIBEIRO Marília de Azambuja (Res), BOTELHO Angélica Cristina de Paula (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Arquitetura Religiosa, Modernismo, Demolição de Templos, Catolicismo, América – Brasil, Séc. 20

Desde a independência política do Brasil, já durante o período monárquico, surgiu a preocupação com a criação de uma identidade artístico-arquitetônica para o novo estado em vias de formação. Foi no contexto da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, por exemplo, que Manuel José Araújo de Porto Alegre encetou os primeiros debates acerca de um estilo arquitetônico nacional.

Entretanto, é somente a partir do movimento modernista e da institucionalização de uma política patrimonial para o país, com a criação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), durante o Estado Novo, que estratégias mais incisivas em torno da criação de um modelo artístico identitário nacional começaram a ser colocadas em prática.

Na verdade, seriam os mesmos arquitetos promotores do movimento modernista aqueles que a parir do final da década de 1930, ajudariam o governo Vargas a forjar a política patrimonial do Sphan e a elaborar a “versão oficial” da memória patrimonial e artística do Brasil.

O paradoxo que caracterizou a trajetória desse grupo de arquitetos-intelectuais, marcada pelo seu envolvimento direto tanto nas políticas de preservação do “Barroco Colonial” – em especial o “Barroco Mineiro” – elevado por eles à condição de símbolo da identidade artística nacional, quanto no projeto de criação de novo “estilo brasileiro”, o moderno, também por eles legitimado, é o ponto de partida do estudo de Marcus Marciano Gonçalves da Silveira.

O livro consiste na publicação da Dissertação de Mestrado em História e Culturas Políticas do autor, junto a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nele, a partir do caso da cidade de Ferros (MG) – cuja Igreja Matriz dedicada a Santa Ana, originariamente em estilo colonial, foi demolida, na década de 1960, para a construção de um edifício em estilo modernista –, o autor procura estabelecer relações entre o processo de difusão da arquitetura religiosa modernista no Brasil, nas décadas de 1940 a 1960, com uma ideologia estatal de cunho desenvolvimentista e a escolha de políticas “modernizantes” por parte de determinados setores da Igreja Católica.

Diante do silêncio das principais narrativas sobre a história da arquitetura modernista no Brasil que, centradas na arquitetura civil, geralmente, só mencionam duas obras de arquitetura eclesiástica: a Capela da Pampulha e a Catedral de Brasília de Oscar Niemeyer, o autor se propõe a tirar da obscuridade outros projetos arquitetônicos modernistas para edifícios religiosos.

Para tanto, faz um levantamento dos projetos de igrejas em estilo modernista publicados nas principais revistas brasileiras de arquitetura entre as décadas de 40 e 60 (leia-se: Acrópole; Habitat; Arquitetura e Engenharia; Arquitetura; e, Arquitetura, Engenharia e Belas Artes).

Todavia, apesar do título do primeiro capítulo “A trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil” somente ao seu final (pp. 88-97) encontraremos uma lista e algumas imagens de projetos e de igrejas efetivamente construídas. Mesmo somando-se a esses, os projetos colocados – sem razão evidente – no Anexo A, o autor está longe de fazer um levantamento sistemático sobre o assunto: os exemplos mencionados, praticamente, só dizem respeito ao sudeste e, em número menor, ao sul do país e, além disso, o autor não se preocupa em destacar quais projetos efetivamente saíram do papel.

A primeira parte do livro, na verdade, se ocupa muito mais dos fatores ideológicos e políticos que legitimaram a destruição dos edifícios antigos e sua substituição por templos modernos.

O autor procura investigar de que forma o modernismo conseguiu fomentar a associação entre passado e atraso, e entre modernidade e progresso. O modernismo coloca-se como alternativa a um passado atrasado, não pelo seu valor histórico e estilístico, mas por ser carregado de estrangeirismos.

Neste sentido, “o projeto modernista” vincularia a idéia de retrógrado, de ultrapassado, sobretudo, aos chamados “estilos históricos”, a partir de uma construção discursiva que também reverberaria na política do próprio Sphan, uma vez que houve pouquíssimos tombamentos de edifícios em estilo eclético neste período.

Segue-se uma reconstrução da rede de interesses que uniu os arquitetos modernistas e alguns setores da Igreja. A Igreja buscava fugir de sua “identidade museológica”, a partir da retirada dos elementos decorativos que preenchiam todo o corpo do templo, tirando a atenção do altar. Assim, a ânsia de alguns setores do clero por uma renovação litúrgica que adequasse os templos à sua funcionalidade ajudou nessa aproximação.

No que tange, por exemplo, o caso da Matriz de Ferros, segundo o autor, a preocupação com o estado deplorável do templo era muito mais centrada na sua falta de funcionalidade do que no seu valor enquanto patrimônio histórico.

Neste sentido, a ausência de posicionamento do Sphan em relação à proposta de demolição da Matriz de Sant’Ana, ratifica a afirmação do autor de que o estilo “Barroco Nacional” legitimado pelos modernistas, foi praticamente o único padrão artístico que despertava o interesse da instituição, a qual deixava na mão da Igreja a responsabilidade absoluta sobre aqueles templos que “fugiam da norma”, incluídos aqueles em estilo colonial tardio.

Desta forma, a aproximação entre religiosos e arquitetos e a inércia/desinteresse dos órgãos institucionais, segundo o autor, teriam ajudado o modernismo a se colocar como a possibilidade arquitetônica capaz de atender aos desejos do clero por novas formas litúrgicas, mais adequadas ao espírito desenvolvimentista no qual o país estava mergulhado.

Na segunda parte do livro, o autor desenvolve seu estudo de caso, reconstruindo, com rica documentação, todo o processo que conduziu a demolição da antiga e a ereção da nova Matriz.

Ele destrincha toda a polêmica acerca da demolição, o Movimento Verde – pró- modernismo –, seus antagonistas, os pontos de vista, os discursos, o papel da imprensa, a decisão por meio de plebiscito, a atuação da Igreja – mais especificamente do Movimento Litúrgico –, o desinteresse dos órgãos de salvaguarda do Estado, etc.. As imagens colocadas no Anexo B muito enriquecem a percepção do leitor acerca da importância e do impacto que todo o processo teve para a cidade.

Assim, partindo de um plano mais geral, o da consolidação do modernismo como proposta mais conveniente a um Estado cujo programa político estava voltado para a “modernização” do país, o autor chega às conseqüências – a seu ver, nefastas – que a colocação em prática desta política de renovação teve para a pequena cidade de Ferros, no interior de Minas Gerais.

Destaca-se, nesta parte, a força narrativa com a qual o autor constrói seu discurso acerca da falência do projeto “modernizador” dos modernistas. Tocante é seu relato acerca de como o contraste entre o fórum – em estilo colonial – e a nova igreja representavam a memória de um arrependimento coletivo.

A imagem da estrutura arquitetônica modernista – hoje já não mais “moderna” – transformou-se assim no vestígio vivo de uma “modernidade” que não veio. A crença na eficácia da inferência arquitetônica como propulsora do progresso mostrou-se vã.

O estudo da dissolução da “paisagem tradicional mineira” na cidade de Ferros, deste modo, torna-se uma importante reflexão sobre a ausência de preocupação com o restante da paisagem urbana que caracterizou o “projeto modernista”, bem como uma lição para aqueles que fazem e implantam políticas patrimoniais neste país.

A eleição de uma ou outra forma patrimonial como mais “legítima”, em detrimento de outras, consideradas retrógradas, via de regra, acaba por retirar das gerações vindouras o direito de conhecer o seu próprio passado.

Marília de Azambuja Ribeiro – Departamento de História, UFPE.

Angélica Cristina de Paula Botelho – Bolsista PIBIC (Propesq/UFPE) do Projeto Espaço urbano, arquitetura eclesiástica e cultura tridentina da Professora Doutora Marília de Azambuja Ribeiro (Departamento de História, UFPE).

SILVEIRA, Marcus Marciano Gonçalves da. Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja; BOTELHO, Angélica Cristina de Paula. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

ZANETTI Valéria (Aut), Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860), (T), MAESTRI Mário (Apres), Editora Universitária (E), Universidade de Passo Fundo (E), BERNARDES Denis Antônio de Mendonça (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Escravos, Libertos, Cidade de Porto Alegre, Séc. 19, América – Brasil

Em nossa formação como nação, como povo e como Estado a colonização e a escravidão foram fundamentais e sob muitos aspectos ainda estão presentes em seus prolongamentos. A escravidão permanecendo bem além da constituição do Estado nacional e do surgimento de um novo ente político, cultural, social e econômico: a Nação brasileira.

Sob as mais diversas visões interpretativas e com maior ou menor solidez de pesquisa documental, ambas – colonização e escravidão – foram desde logo objeto de estudos históricos muitos dos quais se tornaram referências obrigatórias na historiografia brasileira. Não podia ser diferente, mesmo de um ponto de vista teoricamente pouco ambicioso, devido, entre outros fatores, a união intrínseca entre colonização e escravidão e a longa duração de ambas por mais de quatro séculos para a primeira e quase cinco séculos para a segunda. A escravidão sobreviveu ao fim do Antigo Sistema Colonial e continuou sendo o fundamento das relações sociais de produção do Império do Brasil. Todas as tentativas iniciais feitas para desvincular a nova Nação da escravidão fracassaram sob a força avassaladora da herança colonial escravista. Assim o Império do Brasil assentou sua modernidade na manutenção de uma estrutura econômica e social arcaica. Conheceu uma nova inserção na economia internacional absorvendo várias das inovações tecnológicas oriundas da revolução industrial: navegação a vapor, estradas de ferro, cabo submarino para a comunicação com a Europa e a América do Norte, fotografia, telefone, imprensa de massa. No plano político nasceu como uma nação constitucional, com divisão de poderes, limitações ao poder imperial, declaração de direitos de cidadania, liberdade de imprensa, vida social e cultural burguesa. Mas, convivendo com tudo isto no plano das estruturas materiais e das estruturas da política e da cultura, lá estava presente a escravidão. Não é, naturalmente, fortuito, que o final do Império tenha se dado pouco depois do fim da escravidão, embora esta quase coincidência não possa e não deva ser vista como uma causalidade mecânica. A relação entre os dois acontecimentos é mais profunda e, sob muitos aspectos, não deve ser tomada em desfavor das realizações reformistas do Império. Mas esta questão nos levaria longe do objeto e do objetivo desta resenha: a escravidão urbana em Porto Alegre e, por extensão no Brasil, a partir do livro de Valéria Zanetti, aqui examinado.

A grande teia das relações escravistas que cobriu, com intensidade diversa, todo o território colonial e nacional até sua extinção tinha duas grandes expressões espaciais: a rural e a urbana. A primeira numericamente mais importante propiciou a inserção da colônia e depois do Império independente, na economia mundial. Foi, em sua fase colonial, essencial para o enriquecimento da metrópole e de suas camadas mercantis, burocráticas clericais e fradescas e do Estado monárquico português. Foi, ainda, fundamental no processo de acumulação primitiva que está na base da formação do capitalismo e da eclosão da revolução industrial do século XVIII. A escravidão urbana, mais voltada para a acumulação interna, foi, sobretudo, a escravidão dos indispensáveis serviços domésticos quando a tecnologia do cotidiano dependia em larga medida da força física: abastecimento de água e lenha, limpeza dos excrementos humanos, limpeza do lixo, transporte de alimentos, de diversas mercadorias, de móveis e mesmo de pessoas. Mas ela esteve, também, presente, no comércio urbano de miudezas, de alimentos, de bebidas. No transporte costeiro e fluvial. Produtores de renda para seus senhores, escravos e escravas urbanos foram utilizados sob a dupla forma de escravos de aluguel e de escravos de ganho. Vista no longo prazo percebemos que, ao contrário de arrefecer com a Independência e com o crescimento de uma vida urbana de recorte mais burguês, ela se intensificou. O auge da escravidão urbana no Brasil corresponde justamente aos anos de consolidação do Império e ao seu apogeu.

Durante anos, mais ou menos ignorada pela historiografia ou mitificada como mais suave, a escravidão urbana no Brasil tem sido objeto de novos e importantes estudos, que tem promovido uma verdadeira renovação do conhecimento da história brasileira em seu conjunto. Neste processo de renovação muitos são os autores e livros a serem citados. Para não cometer injustiças e omissões deixamos de mencioná-los aqui, mas o leitor encontrará boa parte deles nas referências presentes no livro de Valéria Zanetti. Que passaremos agora a examinar mais detidamente. Situando-se com originalidade na renovadora historiografia da escravidão no Brasil Valéria Zanetti nos deu um livro vigoroso, solidamente fundamentado em pesquisas de ricas fontes primárias e utilizando o melhor das referências então disponíveis. Com pleno domínio da boa escrita histórica. O que significa que a leitura é feita com agrado, além de proveito, tanto por especialistas quanto por não especialistas, o que não é pouco.

Com este livro tomamos conhecimento da escravidão urbana na Porto Alegre e arredores entre os anos 1840-1860. A autora reforça a revisão de um equívoco por vezes ainda corrente: a da pouca presença do escravo no Rio Grande do Sul. Para tanto os dados quantitativos são, naturalmente, essenciais. Ficamos assim sabendo que mesmo após o fim do tráfico a partir de 1850, o número de escravos no Rio Grande do Sul aumentou. Informação importante que significa a existência de um dinamismo econômico que necessitava do aporte de mão de obra escrava através do comércio interprovincial de escravos. Mas, os essenciais dados quantitativos são aqui a base de uma trama qualitativa de grande riqueza. Para tanto contribui em muito o uso de depoimentos de viajantes e observadores locais, do noticiário dos jornais e dos processos judiciais. As ilustrações foram escolhidas com critério, enriquecem o texto, complementando-o.

Acomodação, negociação, alimentação, vestuário, doenças, folguedos, ofícios e ocupações de escravos e escravas, feitiçarias, estupros prostituição, devoção, controle, traições, atração erótica da mulher negra, assassinatos, conflito violência, criminalidade, roubos, suicídios, resistência, sob as mais diversas formas, (in) justiça senhorial, são algumas expressões e temas estudados ao longo do livro e que registram com acuidade a presença e o modo da presença de escravos e escravas no meio urbano de Porto Alegre de meados do século XIX. Expressões e temas que podem ser aplicados às principais cidades brasileiras do período, o que situa este livro não apenas como uma valiosa contribuição para a história de Porto Alegre, mas para a história do Brasil. A enunciação dos títulos dos seus vários capítulos dará ao leitor uma idéia dos diversos aspectos da escravidão em Porto Alegre no período estudado por Valéria Zanetti: 1. O gado, a terra e o homem, 2. Porto Alegre: origem e povoamento, 3. Violência no passado, amenidades no presente: as visões da historiografia acerca do escravo urbano, 4. Crimes de escravos e libertos em Porto Alegre, 5. Vivendo em conflito e em solidariedade, 6. Vida amorosa, familiar e manifestações culturais de escravos e libertos em Porto Alegre, 7. Poder e contrapoder: resistência do escravo urbano.

Finalizemos esta breve resenha com um trecho do livro para que o leitor tenha a vontade, da qual não se arrependerá, de conhecer o livro em sua inteireza:

“A visão de que os cativos urbanos eram bem alimentados, vestiam-se adequadamente e viviam em harmonia com os senhores não combina com a informação documental. Involuntariamente, os anúncios sobre fugas na imprensa denunciam a verdadeira condição de existência civil. Arsène Isabelle esteve na província e não partilhou da visão otimista, registrando em seu diário as violências cometidas pelos senhores. Segundo Isabelle, os senhores gaúchos tratavam seus cativos como se tratavam os cães: ‘Começam por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora […] ou ainda um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo. Se resmungam, são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vêm com grande alegria no coração, para ver como são flagelados, até verterem sangue aqueles que não têm, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões’.

Ao percorrer as páginas deste livro, sob muitos aspectos fascinantes, não podemos deixar de pensar que muitos dos antigos males da escravidão não compõe apenas o nosso passado. Renovam-se cotidianamente em nossa (in) justiça de classe, ainda senhorial, na precariedade das diversas formas de trabalho nas áreas rurais e urbanas, na precariedade dos direitos, nas discriminações de gênero, na exploração do trabalho infantil, em renovadas formas de trabalho escravo, na violência a que está submetida a população pobre do campo e das cidades, especialmente dos descendentes diretos dos antigos escravos, nos privilégios incrustados no Estado, na sua captura pelos interesses privados.

Livros como este mostram como a boa história é sempre libertadora e não faz uma limitada e equivocada separação entre o passado e o presente. Por isso a grande mídia conservadora a ignora, promovendo best sellers que veiculam uma visão pitoresca e caricatural do nosso passado. Visão que serve apenas para acomodar os leitores na visão de que nada mudou e nada mudará.

Nota

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Denis Antônio de Mendonça Bernardes – Universidade Federal de Pernambuco.

ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860). Apresentação de Mário Maestri. Passo Fundo: Editora Universitária; Universidade de Passo Fundo1, 2002. (Coleção Malungo, 6). Resenha de: BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

VAREJÃO Marcela da Silva (Aut), Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica/ giuristi e legislazione (1822 – 1935) (T), Giuffrè (E), DANTAS Laércio Albuquerque (Res), Clio – UFPE (CRPHr), Positivismo, América – Brasil, Europa – Itália, Séc. 19-20

A geração de 1870 é um dos temas de grande interesse e relevância para muitos dos intelectuais que se propõem ou propuseram a estudar a história das idéias no Brasil. A essa geração deve-se, parafraseando Sílvio Romero, o “surto de idéias novas” que passou a contestar as estruturas do Estado monárquico brasileiro. A chamada Escola do Recife, muito contribuiu, de acordo com essa mesma historiografia das idéias, para a recepção do positivismo e evolucionismo europeus e suas manifestações críticas em campos diversos como filosofia, direito, política e sociologia.

Essa autoproclamada escola, pois foi nomeada por um de seus membros, Sílvio Romero, e outros a perpetuaram, definia-se como uma orientação filosófica progressiva e que permitia a cada um ter suas idéias e investigações. Seus membros se formaram na mesma Faculdade, a de Direito do Recife, e compartilharam o mesmo ambiente acadêmico.

Entretanto, não existe unanimidade entre aqueles que enveredaram pelo estudo desse grupo de intelectuais quanto à formação de uma escola de pensamento, nem tão pouco dos membros que faziam parte desse grupo. Por outro lado, mesmo que se questione a existência de uma escola ou quem são seus membros, é inegável que eles tiveram um papel importante nos diversos campos pelos quais a chamada Escola enveredou.

O livro de Marcela Varejão, Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia Del diritto, giuristi e legislazione (1822 – 1935), tem como tema mais circunscrito a relação entre os membros da Escola do Recife e os intelectuais italianos através da recepção, por parte dos primeiros, do pensamento positivista elaborado pelos segundos. O livro é o resultado da pesquisa de doutorado da autora, defendida no ano de 1999 em Milão, mas foi publicado em forma de livro apenas em 2005. A distância entre a conclusão da escrita e a publicação do livro pode deixar o leitor com a sensação de que a bibliografia utilizada é desatualizada, mas, com essa distância em mente, a leitura se torna mais indulgente nesse quesito.

O trabalho da autora consiste em rastrear a recepção do positivismo no Brasil focando na Escola do Recife através, principalmente, de sua faceta jurídica. Nesse sentido, o trabalho de Varejão se preocupa em fazer uma história das idéias sóciojurídicas com pouco ou quase nenhum contato destas com o ambiente político-social no qual elas, as idéias, e aqueles que as recepcionam e reelaboram, os intelectuais, estão inseridos.

O livro, por ser escrito e publicado na Itália e por ter os italianos como público alvo, procura nos dois primeiros capítulos inserir o leitor no contexto da recepção das idéias positivistas na América do Sul. A primeira parte do livro é dedicada a todas as nações sul-americanas. A Argentina é tomada como principal receptora e divulgadora, já os demais países, com exceção do Brasil, são tratados em separado e com pouca atenção. Nesse momento a autora se utilizou de uma bibliografia da história das idéias para a América Latina pouco atual (o livro mais recente é de 1987) e poucos trabalhos da historiografia dos países por ela trabalhados.

Já no Brasil são destacados os intelectuais que tiveram contato com o positivismo dedicando-se atenção especial ao positivismo ortodoxo capitaneado pela Igreja Positivista sediada no Rio de janeiro. A primeira parte funciona apenas como uma introdução confusa ao pensamento positivista sul-americano, o que, de qualquer maneira, se aproxima do que pareceu ser a intenção da autora.

A partir da segunda parte do livro, após mais de um terço do mesmo, Varejão inicia a sua pesquisa com profundidade. É nesse momento que ela passa a trabalhar com os membros da Escola do Recife como Tobias Barreto, Silvio Romero, Clóvis Beviláqua, Artur Orlando e João Vieira de Araújo, além de dedicar um capítulo especial à relação entre Nina Rodrigues, a Antropologia Criminal, Lombroso e sua filha, Gina Lombroso.

Daí em diante o trabalho ganha em riqueza com a análise das discussões, apropriações e rejeições das idéias de um sem número de intelectuais, principalmente os italianos. A análise da autora começa de uma dimensão mais ampla, ou seja, a introdução das idéias positivistas na Escola do Recife, em especial com Tobias Barreto, passando pelo nascimento de uma sociologia jurídica no Brasil, onde além de Barreto Varejão inclui Silvio Romero e Artur Orlando, terminando em Vieira de Araújo e sua relação entre as reformas da legislação penal de 1890 e o pensamento jurídico penal positivista italiano.

O trabalho de pesquisa de fontes realizado por Varejão é muito bem feito, entendendo-se como fontes aquelas que têm relevância dentro de uma história do pensamento jurídico-penal feita por uma jurista. Em capítulos como o último que trata de João Vieira de Araújo, por exemplo, encontra-se o ante projecto de nova edição do código criminal e o parecer de Assis Martins, exemplar raro, e até os estudos italianos do mesmo autor, também raríssimo. Entretanto, fontes de outros tipos, como jornais ou opúsculos, por exemplo, apesar de figurarem no texto são pouco explorados.

Não é à toa que a autora não se preocupa muito com esse tipo de fonte. As leituras que Varejão fez estão ligadas a uma tradição de história das idéias no Brasil associada a filósofos e juristas de renome que já trabalharam com a mesma temática, como Antônio Paim, Machado Neto, Vamireh Chacon, Nelson Saldanha, entre outros. A proposta e interesse da autora se alinham com os deles.

É a partir dessa tradição que na segunda parte ao trabalhar com Tobias Barreto é mostrado ao leitor como o próprio Barreto concebia o direito: como uma luta da humanidade contra a natureza que produziria a cultura na qual o direito estaria incluso. Essa visão de direito, por sua vez, seria derivada da leitura e refutação ou aceitação do pensamento de intelectuais italianos. Um exemplo disso foi a negação da teoria do atavismo de Lombroso por ser biologizante demais e negar a luta humana pela cultura.

Exemplos dessa relação não faltam durante todo o trabalho. Na quarta parte, quando Varejão passa a se dedicar a Artur Orlando, a autora mostrará que a concepção de direito dele estava intimamente ligada à sua percepção da sociedade. Para Orlando a Antropologia era a ciência por excelência para conhecer o homem, e o direito seria uma espécie de antropo-técnica que não poderia prescindir da Antropologia. Criticava Lombroso pelos seus exageros de querer submeter uma, o direito, à outra, a Antropologia.

O que fica claro na tese da autora é que a visão de sociedade de cada um dos membros da Escola do Recife influenciou profundamente na forma como recepcionaram as idéias positivistas italianas. Estas, por sua vez, eram em sua maioria ligadas às novas discussões jurídico-penais presentes em terreno europeu, como a Antropologia Criminal, a Sociologia Criminal e a Terceira Escola de Direito Penal. Mas não há explicação do porquê destas teorias terem despertado tanto interesse a ponto de serem abordadas por vários dos intelectuais mais importantes daquele período ligados ao direito no Brasil. É certo que a autora assinala o pertencimento destes intelectuais a uma linha evolucionista positivista em pelo menos algum momento de suas vidas, mas fora do mundo das idéias não há explicação para tal fenômeno na pesquisa proposta.

O trabalho de Marcela Varejão possui todos os méritos por se propor a fazer uma pesquisa inovadora de rastrear a recepção das idéias sócio-jurídicas nos integrantes da Escola do Recife e por dar continuidade à tradição de pesquisa de autores importantes como Antonio Paim e Miguel Reale. Acredito que cumpre muito bem com seu objetivo, como a própria banca da sua tese registrou. A autora deixou, no entanto, para outro pesquisador a tarefa de enveredar pelos caminhos ainda pouco explorados da recepção das idéias sócio-jurídicas e suas relações com o mundo social ou político.

Laércio Albuquerque Dantas – Universidade Federal de Pernambuco.

VAREJÃO, Marcela da Silva. Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica, giuristi e legislazione (1822 – 1935). Milão: Giuffrè, 2005. Resenha de: DANTAS, Laércio Albuquerque. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Clio | UFPE | 1977

Clio Revista de Pesquisa Historica

A CLIO – Revista de Pesquisa Histórica (Recife, 1977-) é um periódico do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, dirigido, prioritariamente, à comunidade acadêmica da Área de História. Nossa missão é publicar artigos inéditos e de pesquisas originais na área de História.

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ISSN 2525-5649 (Online)

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