Corporativismos: experiências históricas e suas representações ao longo do século XX / Tempo / 2019

O corporativismo foi frequentemente apresentado por intelectuais, associações, grupos de poder e governos como resposta a um período de crise e alternativa às distorções do paradigma liberal na representação dos interesses produtivos. Essa terceira via entre socialismo e liberalismo pretendia criar uma nova ordem social capaz tanto de “reprimir quanto de cooptar o movimento trabalhista, os grupos de interesse e as elites, por meio dos legislativos orgânicos” (Pinto e Martinho, 2016, p. 19).

As características acima delineadas explicam como o corporativismo demonstou ter sido um projeto político, ideológico e econômico de sucesso, em especial durante os anos convulsivos do período entre as duas guerras mundiais, registrando êxito sobretudo nos regimes autoritários de direita na Europa e na América Latina.

Se é inegável que nos anos entre a promulgação da Carta del Lavoro, de 1927, e o fim da Segunda Guerra Mundial o corporativismo viveu seu apogeu em termos de especulação intelectual e vivência histórica, esse fenômeno merece também ser investigado além do marco cronológico e das correntes da direita autoritária (Schmitter, 1974). Este dossiê, inserindo-se no recente debate sobre o corporativismo como fenômeno transnacional (Pasetti, 2016Pinto, 2017Pinto e Finchelstein, 2018), quer investigá-lo como um acontecimento complexo e multifacetado do ponto de vista teórico e de suas experiencias práticas e representativas.

As páginas que se seguem abordam os casos inglês, brasileiro, italiano e português, num período compreendido entre a Primeira Guerra Mundial e a queda do regime salazarista, em 1974, tendo como fil rouge comum a análise dos sistemas políticos contemporâneos em períodos de crise e transição e o papel representado pelo corporativismo em meio a tais mudanças.

Os anos da Grande Guerra no Reino Unido são o cenário do artigo de Valerio Torreggiani. A crise política, militar, e a desconfiança em relação ao sistema liberal, em conjunto com a necessidade sempre mais premente de disciplinar as massas, deram lugar a um intenso debate entre os intelectuais britânicos acerca da necessidade de “garantir a ordem social, implementar a eficiência econômica e realizar a representação funcional-corporativa” (infra p. XX).

Por meio da análise de três momentos tópicos – a conferência organizada no Ruskin College, as atividades desenvolvidas pelo Romney Street Group e o relatório produzido pela Garton Foundation em 1916 -, Torreggiani reconstrói o intenso debate que envolveu intelectuais de várias afiliações políticas para promover uma nova democracia econômica, baseada numa tipologia de representação corporativo-empresarial, que tivesse em seu centro os representantes das associações de interesses.

Essa medida, embora elaborada para responder à crise causada pela Grande Guerra e às mudanças sociais, econômicas e políticas do século XX, além de ter por fim encontrar uma nova ordem capaz de disciplinar a sociedade e suas relações laborais, acabou, paradoxalmente, encontrando espaços limitados nas políticas promovidas pela classe dirigente conservadora, que, assustada pela exacerbação do conflito irlandês e pelas notícias provenientes de Moscou, decidiu não apoiar por completo um corporativismo que previa a cooperação entre as classes sociais.

Da mesma forma que o artigo de Torreggiani demonstra que o conceito de corporativismo foi muito versátil e que as hipóteses de suas realizações práticas foram debatidas também em estados democráticos, com a presença marginal de movimentos fascistas, o estudo de Marco Vannucchi ilustra, de modo original, como, no seio do corporativismo brasileiro, surgiram forças oposicionistas ao regime. O tema principal do artigo é a complexa relação entre o Estado e o corporativismo das classes médias na era Vargas, com enfoque específico sobre as profissões liberais.

Mais uma vez, o corporativismo, entendido como projeto político, econômico e social, se delineia nas páginas do texto como uma solução de ordem perante uma fase de transição – no caso especifico, a surgida após a revolução de 1930, com a proscrição das instituições da democracia liberal-oligárquica. Conquanto Vannucchi defina o Estado Novo como o momento forte do corporativismo, ao mesmo tempo sua análise das posições tomadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Sindicato dos Advogados nos anos 1944 e 1945 prova como a estrutura corporativa não foi granítica, sobretudo por não ter sido capaz de controlar a oposição ao regime exercida pelas profissões liberais ao fim da ditadura varguista.

O fim do regime corporativo e o papel desempenhado pelo corporativismo em meio às oposições ao fascismo é também o tema central dos artigos de Maurizio Cau e Laura Cerasi, mas o cenário é a Itália dos anos de transição democrática, em 1945. Os recentes estudos sobre o corporativismo fascista (Santomassimo, 2006Stolzi, 2007Gagliardi, 2010Cassese, 2010Cerasi, 2017) asseveram que o ordenamento corporativo previsto pelo regime de Mussolini foi um projeto político, institucional e econômico de sucesso, tanto por ter tido impacto no debate intelectual quanto pelas práticas corporativas em nível mundial (Pasetti, 2006).

Da mesma forma, evidenciam que, para compreender a fundo o corporativismo é necessário reconstruir o debate sobre esse projeto, analisando as diferentes matrizes ideológicas que o animaram desde o início do século XX até os anos imediatamente sucessivos à queda do regime. Esse é o ponto de partida dos textos de Cerasi e Cau. Os dois artigos traçam um perfil das especulações a respeito do corporativismo em meio às forças políticas democráticas italianas e seus relativos pontos de contatos, fricções e incompatibilidades com o fascismo.

A escolha da análise de longa duração é particularmente interessante, em especial quando os dois textos analisam o que resta do corporativismo, definido por Cau como uma “herança incômoda”, nos anos da definição da Constituição Republicana. Focando a atenção no mundo católico, o autor ilustra como o ponto crucial do corporativismo continuou a alimentar o debate nos anos de redefinição do sistema democrático, tornando-se um dos principais protagonistas da nova Itália republicana.

Cerasi, por sua vez, dissolve a questão da herança do corporativismo fascista sublinhando como o leitmotiv entre as forças políticas que emergiram vitoriosas da luta contra o regime e a experiência política anterior se encontra não no corporativismo per si, que já desde a metade dos anos 1930 havia perdido a força inovadora e aglutinadora, mas na dimensão fundadora desempenhada pelo trabalho, entendido como componente econômico, social e ético do Estado italiano.

Essa é uma centralidade que a autora identifica também na sua forma representativa simbólica, seja no monumento icônico do fascismo – o Palazzo del Lavoro, situado no bairro do Eur, em Roma -, seja naquele documento-monumento representado pela nova Constituição italiana, que no seu primeiro artigo afirma que “a Itália é uma República Democrática baseada no trabalho”.

A abordagem de longo prazo carateriza, do modo similar, o artigo de Dulce Freire e Nuno Estêvão Ferreira dedicado à experiência corporativa no Estado Novo português. É interessante analisar esse texto em comparação com os dois anteriores a fim de destacar os pontos de contato e as divergências entre os sistemas corporativos italiano e português. Valendo-se de um novo conjunto de fontes, Freire e Ferreira reconstroem a criação e a estabilização do sistema corporativo português e sua difusão no território, estabelecendo que esse sistema não surgiu de forma casuística ou desordenada, como afirmado em diversos estudos recentes, mas como um projeto sistemático e moldado nas várias fases do regime.

Os estudos de Cau, Freire e Ferreira provam, portanto, que, para entender completamente o fenômeno do corporativismo em cada Estado – por meio de uma perspectiva mais ampla, como um fenômeno transnacional -, este deve ser pensado não como um instrumento de retórica institucional ou mera criação de estruturas administrativas, mas como um sistema que, mesmo apresentando algumas distorções, acabou por ser funcional e dinâmico ao longo de varias décadas.

No caso português, graças à extensão cronológica maior, os autores mostram que o ordenamento corporativista do Estado Novo, assim como seu ditador, foi caracterizado por aquela “arte de saber durar” (Rosas 2012) que o tornou capaz de se adaptar aos vários momentos políticos e se moldar em função do território, de modo a manter um controle funcional sobre as principais atividades econômicas e, mais em geral, contribuir para preservar o controle político sobre a população.

Em conclusão, os estudos que apresentamos neste dossiê procuram oferecer um novo olhar acerca do fenômeno do corporativismo ao revelar sua poliedricidade política e sua duração de longo prazo. Em particular, o dado mais inovador que emerge da leitura dos textos aqui recolhidos é a análise da capacidade de adaptação e preservação – no que diz respeito a alguns aspectos -, bem como de remoção – no tocante a outros -, que o corporativismo teve dentro das grandes mudanças e os desafios que caraterizaram as sociedades ocidentais ao longo do século XX.

Referências

CASSESE, Sabino. Lo stato fascista. Bolonha: Il Mulino, 2010. [ Links ]

CERASI, Laura. Rethinking Italian Corporatism: Crossing Borders between Corporatist Projects in Late Liberal Era and the Fascist Corporatist State: Topics, Variances and Legacies. In: PINTO, António Costa. Corporatism and Fascism: The Corporatist Wave in Europe. Londres: Routledge, 2017, p. 103-123. [ Links ]

GAGLIARDI, Alessio. Il corporativismo fascista. Roma: Laterza, 2010. [ Links ]

PASETTI, Matteo. L’Europa corporativa: una storia transnationale tra due guerre mondiali. Bolonha: BUP, 2016. [ Links ]

PASETTI, Matteo(Ed.). Progetti corporative tra le due guerre mondiali. Roma: Carocci, 2006. [ Links ]

PINTO, António Costa. Corporatism and Fascism: The Corporatist Wave in Europe. Londres: Routledge, 2017. [ Links ]

PINTO, António Costa; FINCHELSTEIN, FedericoAuthoritarianism and Corporatism in Europe and Latin America: Crossing Borders. Londres: Routledge, 2018. [ Links ]

PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Palomares(Eds.). A vaga corporativa: corporativismo e ditaduras na Europa e na América Latina. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2016. [ Links ]

ROSAS, Fernando. Salazar e o poder: a arte de saber durar. Lisboa: Tinta da China, 2012. [ Links ]

SANTOMASSIMOLa terza via fascista: il mito del corporativismo. Roma: Carocci, 2006. [ Links ]

SCHMITTER, Philippe. Still the Century of Corporatism? The Review of Politics (Cambridge), n. XXXVI, v. 1, 1974. [ Links ]

STOLZI, Irene. L’ordine corporativo: poteri organizzati e organizzazione del potere nella riflessione giuridica dell’Italia fascista. Milão: Giuffré, 2007. [ Links ]

Cláudia Maria Ribeiro Viscardi – Universidade Federal de Juiz de Fora- Juiz de Fora (MG) – Brasil. E-mail: [email protected]
http: / / orcid.org / 0000-0002-0277-4478

Annarita Gori – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa – Lisboa- Portugal. E-mail: [email protected] 
http: / / orcid.org / 0000-0002-8703-8700


VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro; GORI, Annarita. Apresentação. Tempo. Niterói, v.25, n.1, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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