Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917 | Clóvis Gruner e Luiz Carlos Ribeiro

Em junho de 1917, em contexto de formação de uma cultura operária no Brasil, uma greve geral foi deflagrada, convocada e liderada principalmente por trabalhadores. O movimento paralisou, de início, a cidade de São Paulo, logo se espalhando para diversas cidades brasileiras e tornando-se, assim, o maior movimento paredista da história brasileira até aquele momento. Em 2017, no centenário da Greve, os historiadores e professores do curso de História da Universidade Federal do Paraná Clóvis Gruner e Luiz Carlos Ribeiro organizaram uma coletânea de textos escritos por diversos historiadores e sociólogos estudiosos de temas como os Mundos do Trabalho e os movimentos operários e anarquistas. Publicado em 2019 e subdividido em três partes, Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917 busca explorar a experiência, as lutas e as utopias pretéritas e posteriores à Greve de 1917.

A primeira parte do livro, intitulada “Greves”, é focada diretamente nos movimentos paredistas de julho e agosto de 1917. No capítulo inicial, Christina Lopreato parte da noção, antes consolidada na historiografia, a respeito do caráter espontâneo e explosivo do movimento para explorar justamente o contrário. Em trabalho de doutorado prévio à publicação do capítulo, a autora estudara o tema e o caráter especialmente anarquista dos movimentos, que, no lugar de espontâneos e sem organização, são demonstrados enquanto planejados e frutos do intenso trabalho de duas décadas de ação direta, trabalho de base e encorajamento de autonomia e de identidade de classe no movimento operário.

Além disso, em 1917 não havia partido ou sindicato para representar os interesses dos trabalhadores, que se mobilizaram em cerca de 100 mil nas ruas de São Paulo para reivindicar melhores condições. Nessa ocasião, o sapateiro José Ineguez Martinez morreu baleado em confronto com forças policiais. O que seguiu foi aquilo que a autora chamou de vida no movimento, o qual acompanhou o cortejo fúnebre do jovem e aproveitou o momento para reivindicar liberdade pelos grevistas presos e protestar contra a violência policial. Segundo Lopreato, demonstrar solidariedade significava aderir ao movimento; daí o título e subtítulo de seu capítulo, “A greve geral anarquista de 1917: militância anarquista e redes de solidariedade”. Por fim, a autora expõe a expulsão das principais lideranças estrangeiras de forma inconstitucional e explora o legado da Greve e as rupturas e continuidades nas estratégias de auto-organização, observadas até 2017.

Já em “Greve geral 1917: organização e luta operária em Curitiba”, Luiz Carlos Ribeiro analisa, a partir de fontes historiográficas, quantitativas e de periódicos da época, o movimento grevista em Curitiba. Com alinhamento teórico marxista, o autor trabalha com os conceitos de classe e de lutas sociais para expor as condições e as práticas dos trabalhadores naquele contexto, investigando a tensão entre as classes no conflito e chegando à conclusão de que a luta se fez na negociação de interesses.

O historiador expõe uma clara participação de diferentes setores das elites, seja por motivos de ordem positivista, para imbuir o espírito civilizatório nas classes pobres, ou porque temiam sua influência e auto-organização. Embora não se deva supervalorizar o papel dessas elites, deve-se ressaltar que as vozes conservadoras tiveram papel político importante nas reivindicações por liberdade de presos e deportados em 1917. Segundo Ribeiro, é uma armadilha dizer que um ou outro grupo liderou os movimentos paredistas e resumi-los a ele. No fim das contas, houve interferência da elite e, igualmente, autonomia dos setores operários – que escolhiam ora se opor, ora não, à participação dos primeiros, já que essa era também uma forma de obter conquistas. Assim, aos poucos, o autor demonstra o esgotamento dos espaços políticos do anarquismo, que deram lugar a propostas socialistas de organização centralizada e apoio na política, enquanto do outro lado o Estado acumulava cada vez mais prerrogativas de controle social. Paradoxalmente, ele argumenta, o anarquismo fora forte enquanto predominava o modelo liberal e individualista de governo. A crise do liberalismo, para Luiz Carlos Ribeiro, foi também a do anarquismo.

A segunda parte do livro tem como objetivo tratar das experiências de grupos específicos na Greve de 1917: as mulheres, a população negra, e as crianças. Em “Silenciosas ou insurgentes? Mulheres trabalhadoras no contexto da Greve de 1917 em Curitiba”, a historiadora Roseli Boschilia procura refletir acerca do silêncio das e sobre as mulheres trabalhadoras no contexto da Greve em Curitiba. No Brasil, a mão de obra feminina esteve presente nas fábricas desde a industrialização no século XIX, um período de escassez de força laboral que abriu espaço para mulheres no ambiente fabril. Para muitas delas, o trabalho era como uma fase transitória entre o fim da escolaridade e o início do casamento, ingressando nele por volta dos 14 anos de idade e saindo aos 24.

As trabalhadoras exerciam diversas funções, geralmente as que exigissem delicadeza e atenção, nas seções de embalagem e acabamento, porém recebiam a metade do salário dos homens. Utilizando como fonte histórica jornais do período, Boschilia afirma que são raros, mas não inexistentes, os vestígios sobre a participação ou ausência das mulheres durante a Greve, destacando a crônica de Gastão Faria, publicada no Diário da Tarde. Nela, o autor narra que as telefonistas não iriam aderir à Greve pois ganhavam muito pouco e se parassem de trabalhar passariam necessidades. Dentre as pautas defendidas pelo comando de greve estava a proibição do ingresso de moças com menos de 21 anos no mercado de trabalho, sendo essa uma clara estratégia de retirá-las desse espaço. A autora finaliza seu texto questionando se o comportamento de pouca aderência ao movimento grevista pelas mulheres não foi uma forma de resistência ao poder masculino, uma vez que suas pautas eram desfavoráveis a elas.

Em “Os trabalhadores têm cor: militância operária na Curitiba do pós-abolição”, as pesquisadoras Joseli Maria Nunes Mendonça e Pamela Beltramin Fabris procuram problematizar a História do Trabalho em Curitiba do final do século XIX e início do XX, abarcando a perspectiva de raça e das experiências da escravidão. Para isso, criticam a interpretação da História do Trabalho no Brasil feita aos moldes europeus, que minimiza e desconsidera a pluralidade de experiências de trabalho e militância vivenciadas em regiões além de São Paulo e por trabalhadores que fugiam ao padrão do homem adulto, branco, predominantemente imigrante, em ambiente fabril, que se organizava em sindicatos e manifestava suas demandas por meio de greves.

Assim, as autoras destacam a importância das sociedades mutualistas do século XIX, ligadas principalmente à luta dos trabalhadores negros, como a Sociedade Protetora dos Operários e o Clube 13 de Maio. Ao trazer à tona esse associativismo, que tinha como objetivo ressignificar a presença negra na cidade a partir de experiências e expectativas dos seus próprios membros, as autoras concluem que, apesar do ocultamento da cor nos registros e interpretações historiográficas a respeito do trabalho na Primeira República, essas organizações mostram que muitos trabalhadores em Curitiba tinham cor, e ela não era branca.

Já em “Lutas sociais, trabalho infantojuvenil e direitos (Brasil, 1889-1927)”, a historiadora e docente da Universidade do Estado de Santa Catarina, Silvia Maria Fávero Arend, busca tratar a respeito da conquista dos direitos sociais na área trabalhista pelas pessoas consideradas menores de idade. Sua análise, que abarca o início da República até o ano de 1917, é centrada na legislação federal do período e nos recenseamentos populacionais de 1920 e 1940.

A questão do trabalho infantojuvenil era pauta do movimento grevista de 1917, que tinha entre as suas demandas a proibição tanto do trabalho noturno para menores de 18 anos, como do trabalho nas fábricas e oficinas para os/as menores de 14 anos. Assim, a autora faz um histórico das legislações que buscavam proteger e regulamentar o trabalho dos indivíduos menores de idade, e conclui que a legislação brasileira procurou garantir minimamente os direitos sociais para eles, porém encontrou entraves na cultura autoritária dos patrões, nas condições de pobreza dos responsáveis e na ausência de instituições estatais que aplicassem a lei.

A última parte do livro contém contribuições de quatro autores que enfocam em seus escritos principalmente as utopias e os ideais anarquistas, disseminados através de escritos e experiências. Em “Folletos anarquistas en papel veneciano”, o sociólogo argentino Christian Ferrer pauta-se em um conjunto de 14 publicações, dentre elas impressos espanhóis e argentinos de 1895 e 1896 agregados em uma brochura. Ferrer narra o conteúdo de tais livretos de forma descontínua, dividindo seu trabalho em seções. Essas expõem, para além dos ideais libertários percebidos nos escritos em questão, as relações políticas e sociais entre os escritores e seus jornais, os autores expoentes do anarquismo e suas trajetórias de vida, bem como destacam o contexto de escrita, editoração e a circulação, inclusive internacional, das obras e dos autores analisados por ele.

Ademais de levantar as ideias anarquistas presentes nesses materiais, também são apontadas as características da escrita anarquista, como o uso de pseudônimos pelos contribuintes e a importância dos impressos em seu ideal revolucionário. Ao dar enfoque ao escrito Um Episódio de Amor na Colônia Socialista Cecília, de Giovanni Rossi, que foi publicado na Argentina com cerca de 3 mil cópias, o autor expõe as tensões e contraposições entre os ideais libertários concernentes ao amor e a experiência empírica ocorrida na Colônia Cecília. Além disso, aponta para a recuperação da memória dessas experiências através de canções, peças de teatro, documentários e filmes. Aborda-se a obra memorialística de 1979 de Zélia Gattai e de seu marido Jorge Amado, autor do romance Dona Flor e seus dois maridos, que, de acordo com Ferrer, foi baseado na experiência da família de colonos anarquistas de sua esposa.

Já em “Cenas do agir anárquico”, o sociólogo Nildo Avelino defende, através de uma análise comparativa entre as greves de 1917 e 1918 e os movimentos de 2013 no Brasil, que há uma regularidade na atuação dos sujeitos desses confrontos. A performance de todos eles contribui com a ação coletiva por meio da horizontalidade, da organização anti-hierárquica por redes ou ligas e da ação direta, a última sendo um traço característico do “agir anárquico” dessas três insurreições. Baseando-se em anarquistas como Pierre-Joseph Proudhon, Émile Pouget, Piotr Alexeyevich Kropotkin e Fernand Pelloutier, o autor compreende a horizontalidade empregada nesses movimentos como alicerçada em um pensamento anarquista para se evitar a concentração do poder político. De maneira análoga, entende que a negação do princípio da legalidade – materializada pela rejeição da representação na Greve de 1917 e pela aversão às instituições nas manifestações de 2013 – foi o elemento original desses fenômenos históricos. Esses acontecimentos, segundo o autor, levaram à transformação da subjetividade desses indivíduos e de sua capacidade política, proporcionando a eles uma energia revolucionária.

Em “Um Snob anarquista: O maximalismo libertário de Lima Barreto” o historiador Clóvis Gruner aborda o modo como as críticas à República se desenvolveram para além da imprensa libertária. Isso porque caracteriza a produção ficcional de Barreto como uma literatura militante que nutre aproximações com os ideais do movimento anarquista, uma vez que estabelece críticas em sua obra à burguesia, ao Estado republicano e às desigualdades e violências perpetradas por ele. Gruner demonstra que a aproximação de Lima Barreto com as ideias libertárias não se estende à atuação militante, mas centra-se na produção intelectual, sendo esta entendida também como engajada, pois apresenta um cenário de denúncia indignada ao seu presente.

Entretanto, ele aponta que tal postura não é meramente uma resignação do autor frente à sua contemporaneidade, mas uma crítica à pretensa modernidade, que mascara uma tradição política autoritária e excludente. Gruner demonstra como Barreto compreende os acontecimentos do seu período, inclusive as greves de 1917 e 1918, por meio de críticas ao poder estatal, à polícia e à imprensa, buscando, assim, construir uma sociedade mais igualitária ao se basear na intervenção da realidade que sua escrita poderia produzir.

Em “Utopía, técnica e historia: tiempo y espacio de la división social del trabajo”, o sociólogo chileno Jorge Pavez Ojeda faz uma crítica à modernidade e às divisões do trabalho em diálogo com a teoria marxista. Quebrando as linhas temporais e espaciais, o autor parte da realidade material do Chile para expandir a reflexão a respeito da experiência operária pretérita, presente e futura, indicando como principal desafio para os movimentos que buscam a unidade, caso da Greve geral, a existência de um lumpemproletariado. Esse, ele explica, seria caracterizado por um forte apego às afinidades, em lugar das outrora importantes identidades. Em outras palavras, são pessoas integrantes da classe proletária que não se veem enquanto parte de um sistema estrutural e que, pelo contrário, pautam suas ações pelos processos políticos. Por isso, citando Fanon, aponta que sua existência contribui para a auto-organização social. De forma análoga, elas podem, como fizeram no Chile, participar de movimentos fura-greve e contribuir para a desestruturação dos movimentos militantes.

Antes de chegar a isso, Ojeda traça um longo contexto do capitalismo no Chile e estende o padrão de atuação para outras regiões colonizadas. Partindo de diferentes utopias, encontra um elemento comum: um movimento teleológico da história orientado a um futuro. Essa ideia foi questionada pelo citado Walter Benjamin, para quem o progresso histórico só deixava ruínas para trás e cuja concepção de história universal do progresso é essencialmente de uma história de catástrofes. Para o chileno, enquanto a espacialidade utópica orientou teleologicamente o processo histórico moderno, é a dimensão temporal da utopia, chamada de ucronia, que constitui o lugar onde pode-se pensar a emancipação, agora como redenção à razão instrumental moderna.

Tendo em vista a pluralidade das discussões, abordagens e visões da Greve de 1917, é evidente que a obra resenhada é de alto valor epistemológico não apenas para a História, mas para as Ciências Humanas em geral. Ao mobilizar discussões teóricas importantes e distintas entre si, o volume consegue ainda sim ser coeso e intertextual no que tange à Greve de 1917, à sua historiografia, à teoria e ao trabalho com fontes. As contribuições abordam esse fenômeno histórico apresentando recortes, interpretações e sujeitos distintos, além de ampliarem as possibilidades de trabalho com o tema. Por agregar ao seu conjunto textos de historiadores e sociólogos, alguns deles estrangeiros, a obra apresenta novas abordagens e análises, ao mesmo tempo em que estabelece diálogos com a produção de países que passaram e passam por processos históricos semelhantes aos brasileiros, o que a enriquece ainda mais. Em suma, para além da contribuição elucidada acima, os debates – que englobam estudos comparativos com outras temporalidades e movimentos insurrecionais – enriquecem o campo de pesquisa dos movimentos paredistas e as amplas possibilidades de explorá-lo.

Referência

GRUNER, Clóvis; RIBEIRO, Luiz Carlos (org.). Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917. São Paulo: Intermeios, 2019. 194p.

Cassiana Sare Maciel – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3210157518477759.

Kauana Silva de Rezende – Graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como bolsista do grupo PET História UFPR de 2018 a 2020. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2149264497539586.

Mariana Mehl Gralak – Graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como bolsista do grupo PET História UFPR de 2016 a 2020. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1555033953635717


GRUNER, Clóvis; RIBEIRO, Luiz Carlos (Org.). Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MACIEL, Cassiana Sare; REZENDE, Kauana Silva de; GRALAK, Mariana Mehl. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.2, p.104-114, 2019. Acessar publicação original [DR]

A Consciência Histórica Africana | Babacar Diop e Doudou Dieng

A Consciência Histórica Africana, organizado por Babacar Mbaye Diop (professor no departamento de Filosofia da Universidade Cheikh Anta Diop, Senegal) e Doudou Dieng (doutor em Filosofia pela Universidade de Rouen, França), é uma compilação de textos de autores das áreas de história, física, letras, entre outras, evidenciando a construção Ocidental sobre o que é a África, elucidando os processos que induziram à uma concepção de existência de um continente atemporal e ahistórico. Expondo esse processo, os autores da coletânea defendem caminhos para que essa imagem deixe de existir, sendo o principal deles a retomada da consciência histórica africana, fazendo jus ao título da obra.

A obra é iniciada evidenciando: a África Negra encontra-se em uma situação de precariedade e exposição perante o Ocidente, o qual busca manter seu controle sobre o povo negro por intermédio da falsificação e forjamento de fatos históricos. Ou seja, diante a constatação de que uma civilização como a egípcia seria fruto de um povo africano, e não do ocidente, os ocidentais – sabendo que a tomada da consciência histórica dificultaria as investidas de controle, manipulação e imposição – forjaram uma historiografia desfavorável aos nativos do continente africano. O resultado de tal embate é a concepção de uma África ahistórica, sem desenvolvimento, do homem africano como aquele que nunca contribuiu para a humanidade. Enquanto isso, os ocidentais se colocariam como recuperadores da história do continente por intermédio de missionários, militares, administradores e mesmo pesquisadores, como demonstra Thiago Stering Moreira da Silva, formado em História pela UFJF, que reafirmava a percepção eurocêntrica da África. Sob esse quadro, Diop defende que a verdade e a memória histórica poderiam engrenar revoltas e a formação de uma consciência histórica que inseriria o continente na história mundial, deixando de negligenciá-lo. O africano deve, portanto, analisar o passado de seu povo. A história da África deve ser apresentada não como a história de europeus no continente, mas partindo da experiência de populações africanas em contato com eles. Assim, a partir desta concepção historiográfica, outras obras africanas enriquecem o debate sobre a construção da história da África, como a Coleção da História Geral da África – Metodologia e pré‑ história da África, organizado por Ki Zebo, de oito volumes, além da obra Historiografia da História de África de Manuel Difula.

Bwemba Bong’, membro do Círculo Samory e do Groupe de Réflexion Sur la Culture Africaine pour la Renaissance du Peuple Noir, aponta que a decadência dos grandes impérios do continente – como a civilização egípcia – deve ser analisada em tal retorno ao passado e pode ser resumida tanto em causas internas quanto externas. O autor se volta à necessidade de escutar as narrativas de antigos eruditos e absorver seu saber. A quebra de tal silêncio, conclui, poderia salvar a África do poderio estrangeiro, e o sistema de transmissão de conhecimentos e tal tradição oral devem ser reformulados de forma a torná-los acessíveis para as novas gerações de historiadores da África. Além da importância da cultura oral, os povos africanos têm uma relação diferente da relação de dominação do homem sobre a natureza mantida pelos ocidentais: a concepção africana perpetuou a visão do ser humano integrado à natureza, não dominador dela. Além desses aspectos, a ética contra a acumulação de riquezas, a exclusão de promoção social, a crença de que ricos são abençoados por deus e a visão da morte como passagem para outra vida, quando comparados à cultura ocidental, passam a ser considerados outros fatores internos que geram uma inércia mediante os acontecimentos e devem, para o autor, desaparecer.

Diante de tais características, o autor evidencia a necessidade do africano de refletir sobre sua história. A falta de patriotismo, por sua vez, levaria a traições, à existência de uma prejudicial ganância e a uma confiança demasiada no estrangeiro que corromperiam a consciência histórica tão necessária para as sociedades africanas. Dentre tais formas de traição, a renúncia à independência e a subjugação às potências mundiais seriam outra prova de que os países africanos não podem ser mais um prolongamento destas. A garantia do futuro e da unidade política do continente, conclui o pesquisador, só ocorrerá por tal tomada de consciência e mobilização por parte do africano. Um exemplo desse processo de dominação externa sobre o povo africano trazido pelo historiador Momar Mbaye é a Guerra do Biafra, um processo de evolução política perpassado por extrema violência que marcou a Nigéria sete anos após a sua independência, analisando a cobertura que a imprensa internacional fez do conflito, manipulando as mídias do hexágono através de agentes pró-biafrenses.

O argumento central do livro é reforçado por Bernard Zongo, utilizando o intelectual senegalês Cheikh Anta Diop. Afirma que a restauração da consciência histórica do homem negro consiste numa luta constante contra as instâncias de dominação, que tentam de diversas maneiras preservar o seu estatuto. Seus exemplos são os “pseudo-científicos” ou “pseudo-humanistas” Voltaire, Hegel, Gobineau, Bruhl e Hume, que no século XIX se aplicaram a legitimar moral e filosoficamente a “inferioridade intelectual” dos negros, travestindo dados científicos para corroborar com uma ideologia de submissão e dominação desse povo. Analisando de um ponto de vista linguístico, o autor introduz o conceito de glatofagia: a ideia de que as línguas, culturas e comunidades dos outros existem apenas para provar a superioridade das línguas ocidentais, sendo fósseis da evolução das mesmas, afirmando que toda a linguística africanista francesa carrega os germes de uma ideologia glatofágica.

Reconstruindo a consciência histórica, a segunda parte da obra é denominada “As Origens egípcias da civilização africana”. Ressalta o trabalho de Cheikh Anta Diop, dedicado à uma análise sobre as relações do Egito com a África Negra que tanto foi impedida pelo colonizador. O contexto inicial é a “partilha da África” promulgada pelo pacto de Berlim, e a dominação de seu povo por países europeus. Diop mostra como se deram as relações de poder, especialmente o método dos europeus de legitimar seu domínio através da filosofia, além de todo o poderio econômico, militar e bélico que insultava a cultura existente nos territórios africanos. A construção do Egito branco demonstra a concretização de uma política racista que subjugou o negro como incapaz de construir e produzir avanços científicos. A consciência histórica africana é, portanto, uma forma de resistir às filosofias infelizmente fecundas que legitimou a opressão por parte dos brancos – que fizeram o indigno trabalho de produzir uma ciência que solidificou a desigualdade.

É necessário resgatar e reconstituir as relações Egito – “África Negra” para estimular a consciência histórica africana, além de buscar a relação África – Mundo. Cheikh Anta Diop separa vários aspectos que podem resgatar tal relação, como a origem do homem (no sentido antropológico), e os aspectos culturais, sociológicos, geográficos, evolutivohistóricos que aproximam a África-Negra do Egito e do mundo. Aponta também a importância do surgimento da Escola africana de Egiptologia para a resistência negra. O professor afirma ainda a existência de uma unidade entre as culturas egípcias e as da áfrica-negra realizando uma comparação lexical entre egípcio antigo e as línguas negro-africanas como fula, wolof, serer, soninquê, bamba, dogon.

Cheikh Anta Diop defende a necessidade de uma escrita sobre a história da antiguidade africana, que abranja as antigas sociedades, mas destaca a impossibilidade dessa narrativa ser realizada por indivíduos não-africanos. A construção da antiguidade dessas sociedades ocorreria a partir de documentos escritos egípcios, cartagineses e gregos, fontes arqueológicas localizadas principalmente no Vale do Nilo, e os quadros rupestres. Assim, o autor Babaccar Sall enfatiza a busca de uma história africana, contada por africanos, a partir de fontes africanas. E evidencia que o conhecimento das antigas sociedades é fundamental para a construção da consciência negra, e não uma busca por um passado grandioso forjado.

Por fim, a temática se volta para as teorias filosóficas africanas, que, segundo a pesquisa do Pr. Obenga, se inserem na história geral do continente a partir dos estudos do período faraônico egípcio – na criação de uma língua tão complexa quanto os hieróglifos e sua forma de pensar. Para o professor, diferente do que afirmam os pensadores ocidentais, o Egito e a Etiópia criaram formas de organização e sociedades muito particulares e desenvolvidas. O conhecimento destas teorias filosóficas africanas contribui para a construção de uma consciência própria, da mesma maneira que a antiga Grécia é um pilar para o conhecimento europeu, o antigo Egito se consolida para a África. Portanto é necessário inserir o pensamento africano dentro da história do pensamento mundial, não o tratar de maneira segregada ou inferior. Outras obras de pensadores africanos enfatizam a existência de uma filosofia própria africana e sua relevância tanto na construção da identidade do continente, como na discussão com a história europeia. Tal como a obra de Marcien Towa, um filósofo camaronês, denominada A ideia de filosofia negro-africana e o livro A Invenção da África de V.Y. Mudimbe.

Na terceira e última parte do livro, “O contributo da comunidade negra e do Egito para a civilização”, os autores trazem provas, baseados no conhecido filósofo Platão, de que o Egito sempre foi posto como parte da África. Primeiramente, Jean-Paul Mbelek afirma, como ideia recorrente em todo o texto, que a construção da Europa como uma cultura universal originariamente grega foi embasada em uma mentira cultural, assim como toda a história científica. Tal ato negligenciou, e ainda negligencia, toda a produção de conhecimentos africanos.

Quase ironicamente, ao discorrer sobre o Egito na obra de Platão, Théophile Obenga, outro autor da coletânea, expõe que os próprios gregos, retratados pelo Ocidente como gênese da civilização, atribuíam tal fato aos egípcios. Além disso, para evidenciar a omissão do continente africano como parte da História desde os primórdios das produções na Antiguidade, o autor cita um fato no mínimo curioso: 12, das 28 obras que incluem os Diálogos de Platão, cita o Egito. Porém, como tudo que envolve a África e serve para provar sua participação em produções filosóficas que a retiram do papel de inércia pintado pelos ocidentais, pouco se fala sobre tal inclusão. Tal crítica é realizada também pelo autor V. Y. Mudimbe, em sua obra A Ideia de África, em que traça uma conexão entre o mundo greco-romano ao continente africano, problematizando a tradução dos escritos de Filóstrato e a articulação feita pelos Europeus na construção de conceitos sobre a África.

Além disso, mais feitos são atribuídos aos africanos, segundo Obenga: a invenção das ciências matemáticas, a invenção do zero. A gênese da civilização mundial atribuída à África, como exposto no parágrafo anterior, é comprovada por fósseis encontrados não no Egito, como pode se imaginar numa primeira leitura, mas no Quênia, Etiópia e África do Sul. Sendo assim, Mbelek defende que o processo de hominização ocorreu somente na África por muito tempo.

Convergindo com a ideia central do livro – a retomada da consciência histórica como forma de resistência – consideramos de fundamental importância que o estudo sobre a história africana receba tanto mais investimento, como incentivos. Além das provas evidenciadas no livro, que demonstram os percalços para que tal empresa seja feita, o próprio grupo encontrou dificuldades ao pesquisar termos, conceitos e até mesmo as origens dos diversos escritores que produziram o livro. Quando muito, tais informações eram encontradas em outras línguas (não por acaso, majoritariamente a língua francesa, devido ao imperialismo Francês sobre a África). Portanto, os processos de domínio sobre o continente africano não estão delimitados apenas aos séculos passados, mas são recorrentes até os dias de hoje. Tanto na ocultação de informações sobre a África e as produções científicas que lá ocorrem, como na forma que ela é retratada dentro de livros escolares, que geralmente expõem apenas o Egito como grande civilização, retratando-o como branco e induzindo ao equívoco de considerá-lo europeu, negligenciando a formação de todo o continente Africano por diversos séculos, até que colonialismo o coloque como fonte de escravos.

Referências

DIFUILA, Manuel Maria. “Historiografia da História de África”. In: Actas do Colóquio ‘Construção e Ensino da História de África’. Lisboa: Linopazas, 1995.

DIOP, Babacar Mbaye; DIENG, Doudou (Org.). A Consciência Histórica Africana. Luanda: Edições Mulemba da Faculdade de Ciências sociais da Universidade Agostinho Neto, 2014.

KI-ZEBO, Joseph (Org). História Geral da África: Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Editora Ática/Paris: UNESCO, 1982.

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde, Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.

MUDIMBE, Valentin Yves. A Ideia de África. Portugal: Edições Pedago, 2014.

SILVA, Thiago Stering Moreira da. Caminhos e descaminhos da historiografia da História da África (1840-1990). Trabalho Monográfico de Graduação em História – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010. Acesso em 4 set. 2018.

TOWA, Marcien. A ideia de uma Filosofia Negro-Africana. Trad. Roberto Jardim da Silva. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: NEABUFPR, 2015.

Eleonora Beatriz Ramina Apolinário – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Giulia Aniceski Manfredini – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Marcelo Augusto Farias – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Martins Mariana Mehl Gralak – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Rebeca Nogueira Vilodres – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.


DIOP, Babacar Mbaye; DIENG, Doudou (Org.). A Consciência Histórica Africana. Luanda: Edições Mulemba da Faculdade de Ciências sociais da Universidade Agostinho Neto, 2014. Resenha de: APOLINÁRIO, Eleonora Beatriz Ramina; MANFREDINI, Giulia Aniceski; MARTINS, Marcelo Augusto Farias; GRALAK, Mariana Mehl; VILODRES, Rebeca Nogueira. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.1, p.115-123, 2017. Acessar publicação original [DR]