Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política a qual atravessamos reveste o livro de importância, uma forma de indicar as raízes históricas do autoritarismo que hoje paira sobre parte da consciência nacional e seu chefe de governo. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a expressão pública do conservadorismo, era urgente que um(a) historiador(a) propusesse algumas respostas para dar conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu métier especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, ou seja, mais acessíveis. Este é um importante valor do livro em questão. Leia Mais

Việt Nam – A History from Earliest Times to the Present | Bem Kiernan

Os estudos asiáticos no Brasil vêm desenvolvendo nos últimos anos, com algum fôlego, boas produções acadêmicas. Alguns departamentos, com maior frequência aqueles de língua, cultura e civilização estrangeiras, têm se esforçado para criar e manter centros de estudo sobre a Ásia. Os departamentos de História, por sua vez, com esforços igualmente louváveis, vêm já há algumas décadas envidando esforços no sentido de contribuir para uma abordagem mais matizada e vertical dos temas asiáticos, retirando-os assim de um destino quase sempre panorâmico da visada internacionalista interessada, mais imediatamente, nas conjunturas político-econômicas da ordem do dia.

Nesse contexto de abertura e consolidação de uma área de especialização, os estudos asiáticos quase sempre são sinônimo, no volume da produção acadêmica brasileira, de estudos sobre China, Japão e, com menos incidência, Coreia do Sul. As relações históricas mais próximas do Brasil com esses três países acabam, de alguma forma, condicionando e dirigindo o interesse do pesquisador brasileiro por temas ligados àqueles momentos em que estabelecemos relação mais direta com esses três representantes do extremo leste. Leia Mais

Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917 | Clóvis Gruner e Luiz Carlos Ribeiro

Em junho de 1917, em contexto de formação de uma cultura operária no Brasil, uma greve geral foi deflagrada, convocada e liderada principalmente por trabalhadores. O movimento paralisou, de início, a cidade de São Paulo, logo se espalhando para diversas cidades brasileiras e tornando-se, assim, o maior movimento paredista da história brasileira até aquele momento. Em 2017, no centenário da Greve, os historiadores e professores do curso de História da Universidade Federal do Paraná Clóvis Gruner e Luiz Carlos Ribeiro organizaram uma coletânea de textos escritos por diversos historiadores e sociólogos estudiosos de temas como os Mundos do Trabalho e os movimentos operários e anarquistas. Publicado em 2019 e subdividido em três partes, Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917 busca explorar a experiência, as lutas e as utopias pretéritas e posteriores à Greve de 1917.

A primeira parte do livro, intitulada “Greves”, é focada diretamente nos movimentos paredistas de julho e agosto de 1917. No capítulo inicial, Christina Lopreato parte da noção, antes consolidada na historiografia, a respeito do caráter espontâneo e explosivo do movimento para explorar justamente o contrário. Em trabalho de doutorado prévio à publicação do capítulo, a autora estudara o tema e o caráter especialmente anarquista dos movimentos, que, no lugar de espontâneos e sem organização, são demonstrados enquanto planejados e frutos do intenso trabalho de duas décadas de ação direta, trabalho de base e encorajamento de autonomia e de identidade de classe no movimento operário.

Além disso, em 1917 não havia partido ou sindicato para representar os interesses dos trabalhadores, que se mobilizaram em cerca de 100 mil nas ruas de São Paulo para reivindicar melhores condições. Nessa ocasião, o sapateiro José Ineguez Martinez morreu baleado em confronto com forças policiais. O que seguiu foi aquilo que a autora chamou de vida no movimento, o qual acompanhou o cortejo fúnebre do jovem e aproveitou o momento para reivindicar liberdade pelos grevistas presos e protestar contra a violência policial. Segundo Lopreato, demonstrar solidariedade significava aderir ao movimento; daí o título e subtítulo de seu capítulo, “A greve geral anarquista de 1917: militância anarquista e redes de solidariedade”. Por fim, a autora expõe a expulsão das principais lideranças estrangeiras de forma inconstitucional e explora o legado da Greve e as rupturas e continuidades nas estratégias de auto-organização, observadas até 2017.

Já em “Greve geral 1917: organização e luta operária em Curitiba”, Luiz Carlos Ribeiro analisa, a partir de fontes historiográficas, quantitativas e de periódicos da época, o movimento grevista em Curitiba. Com alinhamento teórico marxista, o autor trabalha com os conceitos de classe e de lutas sociais para expor as condições e as práticas dos trabalhadores naquele contexto, investigando a tensão entre as classes no conflito e chegando à conclusão de que a luta se fez na negociação de interesses.

O historiador expõe uma clara participação de diferentes setores das elites, seja por motivos de ordem positivista, para imbuir o espírito civilizatório nas classes pobres, ou porque temiam sua influência e auto-organização. Embora não se deva supervalorizar o papel dessas elites, deve-se ressaltar que as vozes conservadoras tiveram papel político importante nas reivindicações por liberdade de presos e deportados em 1917. Segundo Ribeiro, é uma armadilha dizer que um ou outro grupo liderou os movimentos paredistas e resumi-los a ele. No fim das contas, houve interferência da elite e, igualmente, autonomia dos setores operários – que escolhiam ora se opor, ora não, à participação dos primeiros, já que essa era também uma forma de obter conquistas. Assim, aos poucos, o autor demonstra o esgotamento dos espaços políticos do anarquismo, que deram lugar a propostas socialistas de organização centralizada e apoio na política, enquanto do outro lado o Estado acumulava cada vez mais prerrogativas de controle social. Paradoxalmente, ele argumenta, o anarquismo fora forte enquanto predominava o modelo liberal e individualista de governo. A crise do liberalismo, para Luiz Carlos Ribeiro, foi também a do anarquismo.

A segunda parte do livro tem como objetivo tratar das experiências de grupos específicos na Greve de 1917: as mulheres, a população negra, e as crianças. Em “Silenciosas ou insurgentes? Mulheres trabalhadoras no contexto da Greve de 1917 em Curitiba”, a historiadora Roseli Boschilia procura refletir acerca do silêncio das e sobre as mulheres trabalhadoras no contexto da Greve em Curitiba. No Brasil, a mão de obra feminina esteve presente nas fábricas desde a industrialização no século XIX, um período de escassez de força laboral que abriu espaço para mulheres no ambiente fabril. Para muitas delas, o trabalho era como uma fase transitória entre o fim da escolaridade e o início do casamento, ingressando nele por volta dos 14 anos de idade e saindo aos 24.

As trabalhadoras exerciam diversas funções, geralmente as que exigissem delicadeza e atenção, nas seções de embalagem e acabamento, porém recebiam a metade do salário dos homens. Utilizando como fonte histórica jornais do período, Boschilia afirma que são raros, mas não inexistentes, os vestígios sobre a participação ou ausência das mulheres durante a Greve, destacando a crônica de Gastão Faria, publicada no Diário da Tarde. Nela, o autor narra que as telefonistas não iriam aderir à Greve pois ganhavam muito pouco e se parassem de trabalhar passariam necessidades. Dentre as pautas defendidas pelo comando de greve estava a proibição do ingresso de moças com menos de 21 anos no mercado de trabalho, sendo essa uma clara estratégia de retirá-las desse espaço. A autora finaliza seu texto questionando se o comportamento de pouca aderência ao movimento grevista pelas mulheres não foi uma forma de resistência ao poder masculino, uma vez que suas pautas eram desfavoráveis a elas.

Em “Os trabalhadores têm cor: militância operária na Curitiba do pós-abolição”, as pesquisadoras Joseli Maria Nunes Mendonça e Pamela Beltramin Fabris procuram problematizar a História do Trabalho em Curitiba do final do século XIX e início do XX, abarcando a perspectiva de raça e das experiências da escravidão. Para isso, criticam a interpretação da História do Trabalho no Brasil feita aos moldes europeus, que minimiza e desconsidera a pluralidade de experiências de trabalho e militância vivenciadas em regiões além de São Paulo e por trabalhadores que fugiam ao padrão do homem adulto, branco, predominantemente imigrante, em ambiente fabril, que se organizava em sindicatos e manifestava suas demandas por meio de greves.

Assim, as autoras destacam a importância das sociedades mutualistas do século XIX, ligadas principalmente à luta dos trabalhadores negros, como a Sociedade Protetora dos Operários e o Clube 13 de Maio. Ao trazer à tona esse associativismo, que tinha como objetivo ressignificar a presença negra na cidade a partir de experiências e expectativas dos seus próprios membros, as autoras concluem que, apesar do ocultamento da cor nos registros e interpretações historiográficas a respeito do trabalho na Primeira República, essas organizações mostram que muitos trabalhadores em Curitiba tinham cor, e ela não era branca.

Já em “Lutas sociais, trabalho infantojuvenil e direitos (Brasil, 1889-1927)”, a historiadora e docente da Universidade do Estado de Santa Catarina, Silvia Maria Fávero Arend, busca tratar a respeito da conquista dos direitos sociais na área trabalhista pelas pessoas consideradas menores de idade. Sua análise, que abarca o início da República até o ano de 1917, é centrada na legislação federal do período e nos recenseamentos populacionais de 1920 e 1940.

A questão do trabalho infantojuvenil era pauta do movimento grevista de 1917, que tinha entre as suas demandas a proibição tanto do trabalho noturno para menores de 18 anos, como do trabalho nas fábricas e oficinas para os/as menores de 14 anos. Assim, a autora faz um histórico das legislações que buscavam proteger e regulamentar o trabalho dos indivíduos menores de idade, e conclui que a legislação brasileira procurou garantir minimamente os direitos sociais para eles, porém encontrou entraves na cultura autoritária dos patrões, nas condições de pobreza dos responsáveis e na ausência de instituições estatais que aplicassem a lei.

A última parte do livro contém contribuições de quatro autores que enfocam em seus escritos principalmente as utopias e os ideais anarquistas, disseminados através de escritos e experiências. Em “Folletos anarquistas en papel veneciano”, o sociólogo argentino Christian Ferrer pauta-se em um conjunto de 14 publicações, dentre elas impressos espanhóis e argentinos de 1895 e 1896 agregados em uma brochura. Ferrer narra o conteúdo de tais livretos de forma descontínua, dividindo seu trabalho em seções. Essas expõem, para além dos ideais libertários percebidos nos escritos em questão, as relações políticas e sociais entre os escritores e seus jornais, os autores expoentes do anarquismo e suas trajetórias de vida, bem como destacam o contexto de escrita, editoração e a circulação, inclusive internacional, das obras e dos autores analisados por ele.

Ademais de levantar as ideias anarquistas presentes nesses materiais, também são apontadas as características da escrita anarquista, como o uso de pseudônimos pelos contribuintes e a importância dos impressos em seu ideal revolucionário. Ao dar enfoque ao escrito Um Episódio de Amor na Colônia Socialista Cecília, de Giovanni Rossi, que foi publicado na Argentina com cerca de 3 mil cópias, o autor expõe as tensões e contraposições entre os ideais libertários concernentes ao amor e a experiência empírica ocorrida na Colônia Cecília. Além disso, aponta para a recuperação da memória dessas experiências através de canções, peças de teatro, documentários e filmes. Aborda-se a obra memorialística de 1979 de Zélia Gattai e de seu marido Jorge Amado, autor do romance Dona Flor e seus dois maridos, que, de acordo com Ferrer, foi baseado na experiência da família de colonos anarquistas de sua esposa.

Já em “Cenas do agir anárquico”, o sociólogo Nildo Avelino defende, através de uma análise comparativa entre as greves de 1917 e 1918 e os movimentos de 2013 no Brasil, que há uma regularidade na atuação dos sujeitos desses confrontos. A performance de todos eles contribui com a ação coletiva por meio da horizontalidade, da organização anti-hierárquica por redes ou ligas e da ação direta, a última sendo um traço característico do “agir anárquico” dessas três insurreições. Baseando-se em anarquistas como Pierre-Joseph Proudhon, Émile Pouget, Piotr Alexeyevich Kropotkin e Fernand Pelloutier, o autor compreende a horizontalidade empregada nesses movimentos como alicerçada em um pensamento anarquista para se evitar a concentração do poder político. De maneira análoga, entende que a negação do princípio da legalidade – materializada pela rejeição da representação na Greve de 1917 e pela aversão às instituições nas manifestações de 2013 – foi o elemento original desses fenômenos históricos. Esses acontecimentos, segundo o autor, levaram à transformação da subjetividade desses indivíduos e de sua capacidade política, proporcionando a eles uma energia revolucionária.

Em “Um Snob anarquista: O maximalismo libertário de Lima Barreto” o historiador Clóvis Gruner aborda o modo como as críticas à República se desenvolveram para além da imprensa libertária. Isso porque caracteriza a produção ficcional de Barreto como uma literatura militante que nutre aproximações com os ideais do movimento anarquista, uma vez que estabelece críticas em sua obra à burguesia, ao Estado republicano e às desigualdades e violências perpetradas por ele. Gruner demonstra que a aproximação de Lima Barreto com as ideias libertárias não se estende à atuação militante, mas centra-se na produção intelectual, sendo esta entendida também como engajada, pois apresenta um cenário de denúncia indignada ao seu presente.

Entretanto, ele aponta que tal postura não é meramente uma resignação do autor frente à sua contemporaneidade, mas uma crítica à pretensa modernidade, que mascara uma tradição política autoritária e excludente. Gruner demonstra como Barreto compreende os acontecimentos do seu período, inclusive as greves de 1917 e 1918, por meio de críticas ao poder estatal, à polícia e à imprensa, buscando, assim, construir uma sociedade mais igualitária ao se basear na intervenção da realidade que sua escrita poderia produzir.

Em “Utopía, técnica e historia: tiempo y espacio de la división social del trabajo”, o sociólogo chileno Jorge Pavez Ojeda faz uma crítica à modernidade e às divisões do trabalho em diálogo com a teoria marxista. Quebrando as linhas temporais e espaciais, o autor parte da realidade material do Chile para expandir a reflexão a respeito da experiência operária pretérita, presente e futura, indicando como principal desafio para os movimentos que buscam a unidade, caso da Greve geral, a existência de um lumpemproletariado. Esse, ele explica, seria caracterizado por um forte apego às afinidades, em lugar das outrora importantes identidades. Em outras palavras, são pessoas integrantes da classe proletária que não se veem enquanto parte de um sistema estrutural e que, pelo contrário, pautam suas ações pelos processos políticos. Por isso, citando Fanon, aponta que sua existência contribui para a auto-organização social. De forma análoga, elas podem, como fizeram no Chile, participar de movimentos fura-greve e contribuir para a desestruturação dos movimentos militantes.

Antes de chegar a isso, Ojeda traça um longo contexto do capitalismo no Chile e estende o padrão de atuação para outras regiões colonizadas. Partindo de diferentes utopias, encontra um elemento comum: um movimento teleológico da história orientado a um futuro. Essa ideia foi questionada pelo citado Walter Benjamin, para quem o progresso histórico só deixava ruínas para trás e cuja concepção de história universal do progresso é essencialmente de uma história de catástrofes. Para o chileno, enquanto a espacialidade utópica orientou teleologicamente o processo histórico moderno, é a dimensão temporal da utopia, chamada de ucronia, que constitui o lugar onde pode-se pensar a emancipação, agora como redenção à razão instrumental moderna.

Tendo em vista a pluralidade das discussões, abordagens e visões da Greve de 1917, é evidente que a obra resenhada é de alto valor epistemológico não apenas para a História, mas para as Ciências Humanas em geral. Ao mobilizar discussões teóricas importantes e distintas entre si, o volume consegue ainda sim ser coeso e intertextual no que tange à Greve de 1917, à sua historiografia, à teoria e ao trabalho com fontes. As contribuições abordam esse fenômeno histórico apresentando recortes, interpretações e sujeitos distintos, além de ampliarem as possibilidades de trabalho com o tema. Por agregar ao seu conjunto textos de historiadores e sociólogos, alguns deles estrangeiros, a obra apresenta novas abordagens e análises, ao mesmo tempo em que estabelece diálogos com a produção de países que passaram e passam por processos históricos semelhantes aos brasileiros, o que a enriquece ainda mais. Em suma, para além da contribuição elucidada acima, os debates – que englobam estudos comparativos com outras temporalidades e movimentos insurrecionais – enriquecem o campo de pesquisa dos movimentos paredistas e as amplas possibilidades de explorá-lo.

Referência

GRUNER, Clóvis; RIBEIRO, Luiz Carlos (org.). Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917. São Paulo: Intermeios, 2019. 194p.

Cassiana Sare Maciel – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3210157518477759.

Kauana Silva de Rezende – Graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como bolsista do grupo PET História UFPR de 2018 a 2020. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2149264497539586.

Mariana Mehl Gralak – Graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como bolsista do grupo PET História UFPR de 2016 a 2020. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1555033953635717


GRUNER, Clóvis; RIBEIRO, Luiz Carlos (Org.). Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MACIEL, Cassiana Sare; REZENDE, Kauana Silva de; GRALAK, Mariana Mehl. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.2, p.104-114, 2019. Acessar publicação original [DR]

A História Secreta da Mulher-Maravilha | Jill Lepore

Quem não conhece a Mulher-Maravilha? Não importa que geração você faça parte, a super-heroína provavelmente faz parte do imaginário de sua infância e das referências de sua vida adulta. Seja pelos quadrinhos ou filmes e séries que representam a personagem. Não foi diferente no momento em que a Mulher-Maravilha apareceu pela primeira vez nos quadrinhos. Priscilla Ferreira Cerencio revela que os quadrinhos eram a principal forma de entretenimento de crianças e jovens adultos antes da televisão, especialmente nas classes mais baixas (CERENCIO, 2011: 12). Jill Lepore escreveu um best-seller que trata especificamente da História Secreta da Mulher Maravilha. Lepore é uma historiadora norte-americana, professora de História dos Estados Unidos na Universidade de Harvard e escritora da The New Yorker, onde contribui desde 2005. Escreve principalmente sobre história, direito, literatura e políticas americanas, o que não a impediu de escrever muito bem sobre a cultura pop.

O Batman começou a espreitar as sombras em 1939. A Mulher-Maravilha aterrissou seu avião invisível em 1941. Era uma amazona, nascida em uma ilha de mulheres que viviam afastadas de homens desde a Grécia Antiga. Ela fora aos Estados Unidos para lutar pela paz, pela justiça e pelos direitos femininos. (LEPORE, 2017: 11)

Logo no início de seu livro, Lepore explicita que, diferentemente dos outros super-heróis, a Mulher-Maravilha tem muito mais do que uma identidade secreta, ela tem uma origem secreta a qual vai além da mítica que percorre as histórias em quadrinhos. Todavia, o livro em questão não mostra essa origem. Conforme a autora, o livro foi um trabalho historiográfico: o resultado de anos de pesquisa em dezenas de bibliotecas, arquivos e coleções, incluindo documentos particulares do criador da heroína, William Moulton Marston — documentos que nunca foram revelados a pessoas fora da família de Marston. Lepore traz exemplos de suas fontes: jornais e revistas, a imprensa especializada, revistas científicas, tiras, gibis, arquivos, milhares de páginas de documentos manuscritos e datilografados, fotografias e desenhos, cartas e cartões-postais, fichas criminais, anotações rabiscadas nas margens de livros, depoimentos de tribunal, prontuários médicos, memórias não publicadas, roteiros rascunhados, esboços, históricos de estudante, certidões de nascimento, documentos de adoção, registros militares, álbuns de família, álbuns de recortes, anotações para palestras, arquivos do FBI, roteiros de cinema, as minutas cuidadosamente datilografadas dos encontros de um culto sexual e minúsculos diários escritos em código secreto. Estes documentos preenchem as páginas do livro, recheando a história com detalhes sobre a vida do criador e os motivos da criação da personagem.

A Mulher-Maravilha não é apenas uma princesa amazona que usa botas fabulosas. Ela é o elo perdido numa corrente que começa com as campanhas pelo voto feminino nos anos 1910 e termina com a situação conturbada do feminismo um século mais tarde. O feminismo construiu a Mulher-Maravilha. E, depois, a Mulher-Maravilha reconstruiu o feminismo — o que nem sempre fez bem ao movimento. Super-heróis, que deveriam ser melhores do que todo mundo, são excelentes para dar porrada, mas péssimos para lutar por igualdade. (LEPORE, 2017: 14)

O livro revela o quão a história da personagem é ligada a de seu criador: ao seu passado e às mulheres que amou – foram elas que inspiraram e até mesmo ajudaram a idealizar a personagem. Além disso, Lepore ressalta seu vínculo com a utopia feminista e com a luta pelos direitos das mulheres. A obra é estruturada em três partes, as quais são divididas pelos 30 capítulos e um epílogo. A primeira parte, Veritas, trata da vida de William Moulton Marston antes da formação de sua curiosa família. Já a segunda parte, O Círculo Familiar, tange a introdução de Marston no mundo dos quadrinhos, os antecedentes que inspiraram a personagem e como se constituiu a sua grande família. E, por fim, a terceira parte, Ilha Paraíso, refere-se mais especificamente a criação da super-heroína e sua influência na vida da família Marston e, por fim, o que acontece após o falecimento de seu criador.

A obra quando assim resumida, perde em sua riqueza de detalhes. Todavia, a presente resenha se pretende curta e deve-se focar em apenas certos aspectos da obra. Neste caso, nos ateremos, especificamente, à relação da Mulher-Maravilha com o movimento sufragista e o movimento feminista, tratada em especial na primeira parte da obra. Sean Purdy chama as duas primeiras décadas do século XX de “Era Progressista”, momento em que os EUA se mostram como mais fortes que as antigas potências europeias, ou melhor, o maior poder econômico no mundo, graças a forte produção industrial e os grandes monopólios (PURDY, 2007: 173-276). As sufragistas e as feministas apareceram naquele momento como um movimento social em ascensão, ainda antes da Primeira Grande Guerra. Entretanto, foi justamente a partir deste evento que as mulheres conquistaram mais direitos e liberdades, uma vez que agora eram a maior parte da mão de obra. William Moulton Marston, criador e roteirista dos quadrinhos da Mulher-Maravilha, inspirou sua personagem especificamente nessas feministas.

Enquanto estudava em Harvard, William Moulton Marston tinha como uma grande influência o seu professor de filosofia, o Prof. George Herbert Palmer cuja falecida esposa foi sufragista. Palmer tinha como um de seus compromissos intelectuais e políticos principais a igualdade dos sexos, que segundo a autora, poderia significar uma forma de lembrar-se de sua esposa. Diante disso, é significativo que o professor que salvou a vida de Marston [2]

era também padrinho da Liga Masculina de Harvard pelo Sufrágio Feminino. Ademais, Zina Abreu explicita que a percepção, no século XVII, da sua ‘igualdade cristã’ levou as mulheres a se consciencializarem da sua desigualdade civil: se como cristãs tinham ‘almas iguais’, como cidadãs deveriam ser, tal como os homens, também detentoras de direitos naturais e inalienáveis (ABREU, 2002: 446), algo que explica os argumentos na citação a seguir:

O movimento sufragista nos Estados Unidos remonta a 1848, quando se deu a primeira convenção sobre os direitos das mulheres em Seneca Falls, Nova York (história que viria a ser contada na revista da Mulher-Maravilha [3]), onde as representantes adotaram uma “Declaração de Sentimentos”, escrita por Elizabeth Cady Stanton, que tinha a Declaração da Independência como modelo: “Consideramos as seguintes verdades evidentes por si mesmas: que todos os homens e todas as mulheres são criados iguais; que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” Entre as exigências estava a de dar às mulheres “admissão imediata aos direitos e às prerrogativas que lhes cabem como cidadãs norte-americanas.” (LEPORE, 2017: 25)

A Liga Masculina de Harvard pelo Sufrágio Feminino foi constituída em 1910 e, em 1911, anunciou uma série de palestras. Lepore mostra que a Liga anunciou que sua próxima convidada seria a sufragista britânica Emmeline Pankhurst, a mesma que, no início do século XX, inspirou as sufragistas norte-americanas em sua entrada na militância. Pankhurst, feminista que sempre falava sobre as “correntes do patriarcado” foi impedida de palestrar em Harvard, mas acabou palestrando em um teatro muito próximo, o qual, segundo Lepore, lotou. O livro mostra que, trinta anos depois, quando Marston cria a super-heroína que luta pelos direitos femininos, tem como a sua única fraqueza a perda toda a força se um homem acorrentá-la.

Lepore mostra no decorrer do livro que muitas das histórias dos quadrinhos da Mulher-Maravilha foram inspiradas em acontecimentos reais. Em uma das primeiras revistas da super-heroína, Marston teria se inspirado na greve dos operários da indústria têxtil em Lawrence, Massachusetts, em 1912, greve em que Margaret Sanger havia se envolvido – sendo ela uma das inspirações para a personagem. Outro exemplo é uma revista em que se inspira no acontecimento de 1910, em que o sindicato dos leiteiros teria colocado preços altíssimos no leite. Este quadrinho, publicado em 1942, torna-se uma propaganda antinazista, já que nele os altos preços do leite seriam consequência de uma conspiração alemã, para deixar as crianças norte-americanas mais fracas (LEPORE, 2017: 281). Purdy aponta que nos “tempos duros” da década de 30, houve uma mudança nas dinâmicas familiares, as quais tiveram que se adaptar à pobreza, ao choque social e ao desespero, causando grande tensão no ambiente familiar. As mulheres viram seu movimento ter duas repercussões: ao mesmo tempo, perdiam seus empregos para os homens, devido ao desemprego da Grande Depressão, e mais mulheres se inseriram no mercado de trabalho para aumentar a renda familiar (PURDY, 2007: 206).

As mulheres padeceram não somente pelas condições econômicas ruins, mas também vítimas dos estereótipos sexuais ligados a seu papel social. Nas fábricas, muitas perderam trabalho para os homens, aos quais foi dada prioridade nas poucas vagas existentes. Mesmo assim, em 1939, 25% mais mulheres estavam trabalhando do que em 1930, primariamente porque tinham que contribuir com a economia familiar e também porque os empregos femininos – professoras, funcionárias de lojas e secretárias – foram menos abalados pela Depressão do que os da indústria pesada. (PURDY, 2007: 208)

A década de 30, conforme Purdy, foi um momento intenso e próspero dos movimentos sociais, dado que a maioria da população se mostrava revoltosa com as circunstâncias. O impacto da crise econômica e as novas alternativas políticas chegaram a influenciar muito a indústria cultural, como o cinema. O historiador mostra que esta indústria se focou, principalmente, no escapismo. “O mundo hollywoodiano da fantasia cultivava a crença nas possibilidades de sucesso individual, na capacidade do governo em proteger cidadãos contra o crime e numa visão da América como uma sociedade sem classes” (PURDY, 2007: 213).

Em uma linguagem clara e objetiva, acessível ao público, Lepore conseguiu trazer sua pesquisa historiográfica, dando a atenção necessária aos movimentos sufragista e feminista do século XX, mostrando o quanto a super-heroína foi inspirada por elas. Não é nem mesmo necessário ter conhecimentos prévios para melhor entendimento do assunto, no decorrer da obra a autora consegue expor muito bem como estes movimentos influenciam tanto na criação da Mulher-Maravilha quanto as repercussões para a vida das mulheres do período.

Notas

2. Com 18 anos, Willian Moulton Marston, tentou se matar com ácido cianídrico, mas foi salvo pelo seu professor de filosofia.

3. Mais especificamente na revista nº5 de junho/julho de 1943.

Referências

ABREU, Zina. Luta das Mulheres pelo Direito de Voto: movimentos sufragistas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. In: Revista ArquipélagoHistória, 2ª série, VI, 2002. pp. 443-446.

BANTI, Alberto Mario. Wonderland. La cultura di massa da Walt Disney ai Pink Floyd. Roma-Bari: Laterza, 2019.

LEPORE, Jill. A História Secreta da Mulher Maravilha. Tradução de Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017.

PURDY, Sean. O Século Americano. In: KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. pp. 173-276.

Nathália Santos Pezzi – Graduanda do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. Endereço para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0895456220435755


LEPORE, Jill. A História Secreta da Mulher-Maravilha. Tradução de Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017. Resenha de: PEZZI, Nathália Santos. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.1, p.146-153, 2019. Acessar publicação original [DR]

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

O imaginário sobre o passado brasileiro está permeado de interpretações que, sendo oriundas de um antigo projeto excludente de nação, ignoram uma série de aspectos e problemáticas que marcaram diferentes temporalidades da história do país, da colônia à república. Ideias como o “mito das três raças”, a democracia racial e o entendimento de que a escravidão brasileira teria sido mais “branda” não raro surgem quando se discute a história do Brasil. Esta visão relaciona-se diretamente com a historiografia brasileira do século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) tinha como objetivo criar uma imagem de um Brasil cujo passado era harmônico, e o futuro, glorioso.

É desse ponto que parte a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, na introdução de seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro. A obra é resultado da junção de conteúdos de outro livro da autora, Brasil: uma biografia (2014), com algumas colunas escritas por Schwarcz ao jornal Nexo. Feito a pedido da editora Companhia das Letras, Sobre o autoritarismo brasileiro tem a intenção de fornecer ao leitor um panorama geral de algumas questões que atravessam a história do Brasil e ainda se fazem presentes na atualidade. Tendo em vista as recentes disputas de ideias, a turbulência política e econômica e a crise social que o país tem vivenciado na última década, Schwarcz busca não atribuir acriticamente as raízes dos problemas atuais ao passado, mas sim propor um olhar à nossa história para lembrar que, diferentemente do que comumente se acredita, a intolerância e a violência sempre marcaram a figura do brasileiro.

Cada capítulo do livro aborda uma temática específica, evidenciando as variadas facetas do autoritarismo no Brasil. O primeiro, “Escravidão e racismo”, busca reforçar que o sistema escravista, muito mais do que uma estrutura econômica e social, “moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita” (SCHWARCZ, 2019: 27-28). Questionando a ideia de que o escravismo no país teria sido mais brando ou “menos pior”, a autora destaca os altos índices de pessoas negras traficadas dos portos africanos para o Brasil, bem como os sofrimentos pelos quais os escravizados passavam diariamente. Por outro lado, um sistema severo significou uma série de resistências: as fugas, formações de quilombos, insurreições e revoltas com diversos meios e motivações não devem ser deixadas de lado.

A abolição foi adiada até onde pôde, e foi empreendida de forma gradual e conservadora, culminando na Lei Áurea de 1888. Contudo, isso não significou uma preocupação em ressarcir ou integrar a população recém-liberta à sociedade. Ainda, a adoção de teorias científicas deterministas representaram uma tentativa de substituir uma desigualdade por outra: antes estabelecida entre escravos e senhores, agora a desigualdade era legitimada pela biologia. Em seguida, a autora realiza uma análise da questão racial na contemporaneidade. Embora hoje não sigamos mais a ideia de raças biológicas nem a falácia de que cor determina conduta moral, nossa sociedade é estruturada pela “raça social”, que opera na cultura e nas mentalidades. No Brasil, a desigualdade social tem cor, e a população negra sofre uma dupla morte: o apagamento de sua memória e o genocídio que marca os indicadores sociais.

O segundo e terceiro capítulos são dedicados, respectivamente, ao mandonismo e ao patrimonialismo. Ambos os aspectos são centrais para entender a hierarquia social do Brasil colonial, fundamentada na concentração de grandes latifúndios monocultores nas mãos de poucos homens, que consistiam na “nobreza da terra”. Era esta aristocracia que detinha os privilégios sociais, políticos e econômicos, num sistema patriarcal onde o homem era o chefe de família e a mulher possuía um papel secundário. Esta forma de organização social acabou por contribuir para a criação da imagem do senhor de terras como a pessoa que distribuía benefícios aos mais próximos e poderia, eventualmente, cobrar por seus favores, aumentando sua influência política.

Tal estrutura perdurou no período republicano. O coronelismo é sua expressão mais relevante na República Velha, e marcou as relações entre os senhores de terras, governadores e a presidência da República. Esta personalização do poder acabou, ainda, por perpetuar o sistema desigual e excludente no meio rural da atualidade: as famílias tradicionais de ruralistas são as maiores beneficiadas pelo Estado, detém a maior parte das terras e ainda possuem considerável relevância nos cenários políticos regional e nacional. Tais clãs perderam algum espaço desde as eleições de 2018, contudo, a estrutura autoritária que os beneficia é a mesma, apesar das reformas políticas empreendidas desde a redemocratização. Ademais, a figura do pater familias, “autoritário e severo diante daqueles que se rebelam; justo e ‘próximo’ para quem o segue e compartilha das suas ideias” (SCHWARCZ, 2019, p. 65) ainda exerce grande apelo no imaginário popular.

Por sua vez, o patrimonialismo é conceituado pela autora como um extrapolamento da divisão entre as esferas pública e privada, quando o Estado é usado como ferramenta para fins particulares. Consequentemente, uma série de práticas, ideias e comportamentos de clientelismo, de conchavo, e de arranjos pessoais que atropelam os limites da regra pública, torna-se cotidiana nas movimentações e negociações políticas. A ideia do Estado como uma extensão do ambiente doméstico permite, então, que o poder político seja exercido pelos detentores do poder (homens, brancos, aristocratas) para fins pessoais. E, apesar das ações levadas a cabo para combater tais práticas existirem desde a Constituição de 1934 (e principalmente com a Constituição de 1988), as práticas patrimonialistas persistem. De acordo com Schwarcz, um dos maiores exemplos disso é a chamada “bancada dos parentes” no Congresso: em 2018, dos 567 parlamentares, 138 eram oriundos de clãs políticos, um aumento de 22% em relação a 2014 (SCHWARCZ, 2019, p. 83). O próprio presidente Jair Bolsonaro bem representa esta questão, já que três de seus filhos possuem cargos políticos. Estreita relação tem o patrimonialismo com a corrupção, tema do quarto capítulo. A autora reforça que, embora possa-se dizer que a corrupção existe no Brasil desde o período colonial, erramos ao simplificar este raciocínio afirmando que as práticas corruptas da contemporaneidade são as mesmas do passado. De fato, o termo “corrupção” tem sido ressignificado múltiplas vezes, assumindo diferentes concepções conforme a alteração dos contextos políticos.

Uma questão relacionada a isso é a recorrência ao combate à corrupção no discurso político para legitimar quebras da normalidade constitucional, como foi o caso do golpe de 1964 e da ditadura militar, que, apesar de assumir a bandeira da anticorrupção, utilizou de práticas ilegais em seus projetos e negociações. De todo modo, a autora conta que, com a redemocratização, o melhor funcionamento das instituições políticas permitiu que os escândalos ganhassem mais espaço nos jornais e no debate público, como foi o caso de Fernando Collor. Essa melhora na percepção da corrupção também se vê no caso do Mensalão. Apesar de afetar diretamente o Partido dos Trabalhadores (PT), então partido que ocupava a presidência, o Mensalão foi o primeiro caso em que as políticas de fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público Federal levadas a cabo nos últimos anos surtiram um efeito visível. A autora finaliza o capítulo fazendo uma reflexão sobre a corrupção hoje, em que a Operação Lava Jato tem investigado um complexo esquema que envolvia partidos e empresas. Schwarcz pontua que, apesar da relevância do tema no debate público, o combate à corrupção não pode tornar-se uma cruzada moralista focada em indivíduos, com um discurso raso e populista de “luta contra a roubalheira” (SCHWARCZ, 2019: 121). O que é necessário é investir em planos duradouros que combatam práticas cotidianas enraizadas no comportamento da sociedade e que não joguem fora os ganhos que tivemos desde a Constituição de 1988.

Na sequência, Schwarcz se volta às especificidades do cenário das extensas desigualdades sociais brasileiras. Partindo de um panorama estatístico dos níveis de concentração de riqueza no país, a autora estabelece uma série de ramificações, que envolvem desde um não acesso a serviços básicos até a impossibilidade de se consumir bens culturais e de ser uma pessoa plenamente inserida nas participações e nos diálogos políticos previstos pelo ideal de “república democrática”. Entre os elementos da ordem social brasileira que permitem a reprodução constante de tal assimetria, figuraria, em posição proeminente, a precariedade dos serviços educacionais públicos, não estendidos à totalidade da população infanto-juvenil em condições equânimes. Embora a obrigatoriedade de oferta de ensino público tenha sido instituída já em 1824, era irrisório o número de estabelecimentos constituídos. Assim, até meados do século XIX, o letramento consistiu em uma quase exclusividade das elites brancas, responsáveis por instituir proibições à formação educacional de pessoas negras escravizadas.

Na segunda metade dos anos 1800, o ensino seguia uma prática marginalizada, ainda que convenientemente exaltado como critério de seleção da parte do povo apta para votar. Conforme explica Schwarcz, o século XX trouxe transformações conservadoras a essa problemática — se o regime de Vargas pode ser reconhecido pela ampliação e concretização de um sistema de ensino efetivamente nacional, deve ser igualmente encarado como perpetuador de uma lacuna de possibilidades de formação individual entre alunos de famílias abastadas e descendentes da classe trabalhadora. A instituição de dois programas curriculares para o ensino secundário, um voltado à transmissão de saberes técnicos e outro à preparação teórica para ingresso em universidades, favoreceu a continuidade do exclusivismo do ensino superior aos estudantes que não precisavam iniciar suas trajetórias de trabalho ainda na adolescência. Na atualidade, a baixa democratização do direito à educação apareceria expressa em altos índices de evasão escolar e represamento, ocasionando, por consequência, a continuidade do ensino universitário e dos postos de maior remuneração enquanto privilégios de elite.

Relacionada às desigualdades sociais do país, a temática das múltiplas violências é pautada em seguida, com o estabelecimento de panoramas referentes à criminalidade urbana e aos conflitos agrários empreendidos contra comunidades historicamente resistentes à ordem colonial ou nacional. Envolvido naquela estão os altos índices de assassinato (30 homicídios/100 mil hab.), de armas de fogo em circulação e de receio da população em sofrer agressões por agentes policiais (SCHWARCZ, 2019: 156, 161-162). Schwarcz salienta que, apesar da vigência do Estatuto do Desarmamento desde 2003, observa-se, a partir do ano de 2014, aumentos expressivos no número de licenças para porte de armas por civis, bem como uma intensificação de lobbies políticos favoráveis à flexibilização de restrições colocadas pelo Estatuto (SCHWARCZ, 2019: 157-159). Assim, embora as armas de fogo sejam as principais ferramentas por trás da execução de mortes violentas (79,8% delas, aproximadamente), atendem a discursos de populismo autoritário que, diante dos reclamos populares contra a insegurança nas cidades, sugerem o fortalecimento de órgãos repressivos e letais — caso das polícias militares — e a simultânea individualização das políticas de segurança (SCHWARCZ, 2019: 161-164). Em decorrência do desvio de armas obtidas legalmente, seriam as milícias — grupos paramilitares compostos por agentes de segurança do Estado e políticos locais — as formações em mais próspera expansão na conjuntura de tráfico pela guerra às drogas.

Já a segunda esfera estaria dirigida a populações indígenas e quilombolas, usurpadas de seu direito à terra previsto pela Constituição de 1988, na medida em que órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) corroboram a morosidade dos processos de reconhecimento de suas terras enquanto áreas de válida demarcação. Aos indígenas, atribui-se um longo histórico de representações e de políticas delimitadas pelos ensejos dos grupos governistas brancos. Massivamente alvejados na colonização, foram, no século XIX, tornados matéria de inspiração à produção de obras artísticas financiadas por D. Pedro II, as quais objetivavam a materialização de uma identidade nacional apaziguadora, que via no grupo uma oportunidade de valorizar as raízes brasileiras diversas sempre mantendo a máxima de exaltação das contribuições europeias. No século XX, a adição de dispositivos legais prevendo garantias de preservação de seus territórios não mostrou efeitos práticos, legando os povos à vulnerabilidade frente a interesses capitalistas de ocupação territorial e de exploração de recursos. Os quilombolas, em contraponto, não chegaram a receber propostas de proteção pelo Estado antes de 1988, enfrentando dificuldades para a legalização da posse de suas terras.

A seguir, a historiadora aprofunda suas abordagens fazendo uso de uma perspectiva analítica delimitada, a interseccionalidade, traduzida, por sua vez, no uso dos chamados “marcadores sociais da diferença” como lentes de interpretação de estatísticas e de formas específicas de violência sucedidas no país. Aqui, nota-se a adesão da autora a um horizonte plural e complexificado de investigação das realidades nacionais, que vai ao encontro das perspectivas teóricas propostas por feministas negras estadunidenses desde o final dos anos 1980. Nas obras da jurista Kimberle Crenshaw, observa-se a defesa de uma ramificação das identidades de sujeitos sociopolíticos rumo a uma superação de modelos fixos e superficiais regidos apenas por reivindicações de gênero, de sexualidade e de raça em separado. A teórica argumenta que a densidade de problemáticas coletivas e de formas de existência exige que se leve em conta todos os eixos anteriores em conjunto (CRENSHAW, 1990: 1241-1245). Schwarcz converge com tal intuito, adicionando aos panoramas numéricos de raça e gênero fornecidos fatores regionais, etários e geracionais.

Entre as questões de raça e gênero pautadas, são destacadas algumas ocorrências: em primeiro lugar, a desigual propensão à morte por parte de pessoas negras. Se jovens pretos e pardos são desproporcionalmente atingidos pela violência policial e pelo encarceramento e massa, também seus familiares sofrem dificuldades pessoais — os homens mais velhos tendem a morrer cedo, sem acessar tratamentos de saúde e diagnósticos médicos. As mulheres adultas passam pelo mesmo, estando sujeitas (em percentual superior ao das mulheres brancas) à ameaça constante dos feminicídios. Esses constituem, junto às taxas de estupro, o segundo norte descritivo da autora no capítulo em questão. Para enfocar as violências de gênero, Schwarcz recupera algumas das explicações já delineadas acerca das origens patriarcais da sociedade colonial brasileira. Dialogando com os ideais de Judith Butler, acrescenta ao pano de fundo da tradição patriarcal escravista a heteronormatividade, padrão cultural de conduta que seria responsável pela imposição de hierarquias de poder hierárquicas às relações entre indivíduos dos gêneros feminino e masculino.

Denunciam-se, então, os altos números de feminicídios (50 mil entre 2001 e 2011, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA]) e de violações sexuais (cerca de meio milhão por ano) cometidos, sendo estas últimas uma forma de violência direcionada fortemente a crianças, violadas majoritariamente por pessoas próximas, no interior de suas casas (SCHWARCZ, 2019: 198). Motivados pela misoginia arraigada ao sistema de valores heteropatriarcais, ambos os crimes aparecem em registros de violência contra mulheres lésbicas, travestis e transexuais, agredidas em situações de não aceitação de manifestações de gênero e de sexualidade dissidentes. Passando a um olhar mais global das violações contra pessoas LGBTQIA+, Schwarcz atenta para as expressivas taxas de assassinato de integrantes dessa comunidade (aproximadamente 500 ao ano), com ataques mais direcionados a sujeitos trans e travestis, e para a precariedade das condições de coleta de dados voltados a essa população, destituída do foco de políticas públicas desde janeiro de 2019 (SCHWARCZ, 2019: 207-215). Segundo atestam pesquisadores da causa trans no Brasil (BONFIM, SALLES, BAHIA, 2019: 155-164), a ausência de estatísticas consistentes acerca das violências experienciadas particularmente por LGBT+s classifica-se como uma das faces da necropolítica de Estado contra tais corpos, uma vez que inviabiliza a execução de medidas protetivas e a oferta de serviços específicos, aspectos também pautados por Lilia.

Adentrando os dois últimos capítulos da obra, a autora desenvolve um balanço acerca da crise democrática sentida a partir do golpe parlamentar de 2016. Em sua avaliação, recorre às conjunturas de nações que, tal como o Brasil, transmitiam internacionalmente a imagem de “democráticos”, mas que, em decorrência da intensificação de polarizações, adentraram uma zona cinzenta classificada sob o epíteto de “democraduras”. Sem romper completamente a ordem institucional, países como Hungria, Polônia, Estados Unidos e Brasil experienciaram a consolidação de governos sustentados pela intensificação de ódios binários e por sentimentos de aversão a identidades de grupos que, até então, vinham adquirindo direitos básicos e relativo espaço político. A partir da reivindicação de que os setores populares tradicionais (famílias brancas, pessoas de classe média, homens trabalhadores) seriam aqueles autenticamente éticos e, ao mesmo tempo, os sujeitos deixados de lado por Estados que falharam em prover empregos, segurança e infraestrutura, teria se desenrolado um recrudescimento das práticas de intolerância.

A fim de sustentar a narrativa de validação exclusiva dos setores tradicionais (e reacionários), saberes científicos, discussões acadêmicas e jornalísticas passaram a sofrer frequentes ataques visando a seu descrédito. Junto a isso, pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres, indígenas e adeptos de religiões de matriz africana foram convertidos em alvos de campanhas que colocam como norma os pilares da doutrina cristã, dando prosseguimento, na verdade, a um histórico de aniquilação de diversidades instaurado ainda no período colonial, seja pelas violências da escravização de africanos, seja pela conversão e genocídio dos povos originários de terras brasileiras. Em face da adesão de significativos percentuais demográficos às propostas de retorno a um suposto passado idílico aos setores abastados e não minoritários, Schwartz conclui: não nos devemos contentar com garantias democráticas oficiais, mas sim apostar na construção de uma cultura de defesa de princípios de diversidade e de participação cidadã, possível de se estruturar por meio da inserção de tais valores em projetos dos ciclos básicos do sistema público de educação.

Para além do amplo espectro de discussões e de explicações históricas apresentado pela obra e sintetizado nas linhas anteriores, merecem destaque ainda alguns outros fatores que concernem ao contexto de produção e de circulação do livro. Publicado em maio de 2019, Sobre o autoritarismo… logra denunciar retrocessos e impactos desencadeados tanto pelo processo eleitoral de 2018, quanto pelos primeiros meses da gestão de Jair Bolsonaro. Mesmo sem mencionar explicitamente sua figura — em uma escolha intencional da autora, que buscou se evadir de uma escrita centrada no Presidente de modo a não recair em uma narrativa personalista (MOTA, 2019) — Schwarcz alerta para os brutais aumentos das taxas de registro de crimes de intolerância em setembro e outubro de 2018, bem como para as consequências da reorganização da agenda de promoção de direitos de minorias sob o esdrúxulo, patriarcal e heteronormativo Ministério “da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”. Influenciada por sua formação, tece diálogos com trabalhos de nomes importantes da Antropologia, a exemplo de Manuela Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, sem deixar de lado os referenciais historiográficos por vezes ausentes em livros que se pretendem contadores do passado brasileiro hoje. Utilizando-se de uma linguagem clara, distancia-se do ideal de livro acadêmico rebuscado em sua redação. Com isso, fornece uma opção de leitura comercialmente acessível, concisa, historicamente embasada e dotada de viés crítico ao público leigo interessado em compreender mais sobre as desventuras sociopolíticas que afligem o Brasil. Essas, conforme evidenciado por Lilia Schwarcz em diversos momento, devem ser percebidas pelos leitores como uma sombra constante, vinculada à longa duração histórica e às particularidades dos arranjos conservadores das elites de cada período.

Referências

BOMFIM, Rainer; SALLES, Victória; BAHIA, Alexandre. Necropolítica Trans: o gênero, cor e raça das LGBTI que morrem no Brasil são definidos pelo racismo de Estado. Argumenta Journal Law, Jacarezinho, Brasil, n. 31, p. 153-170, jul./dez. 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, n. 6, v. 43, p. 1241-1299, jul. 1990.

LILIA Schwarcz: “A todo momento, revelamos nossa raiz autoritária”. Fronteiras do Pensamento, Salvador, 29 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

MOTA, Camila Veras. Brasileiro abandonou “máscara” de cordial e assumiu sua intolerância, diz Lilia Schwarcz. BBC, São Paulo, 01 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

ROVANI, Andressa. Sempre fomos autoritários: Lilia Schwarcz diz que crise fez aflorar ressentimentos e que PT-PSDB falhou em não atender conservadores. UOL, São Paulo, 05 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

Bruno Stori – Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Andréa Carla Doré.

Rafaela Zimkovicz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Priscila Piazentini Vieira.


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: STORI, Bruno; ZIMKOVICZ, Rafaela. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.1, p.154-167, 2019. Acessar publicação original [DR]

Valsa brasileira: do boom ao caos econômico | Laura Carvalho

Os governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2010-2016), constituindo parte de um contínuo temporal e fazendo parte de um mesmo grupo político, o Partido dos Trabalhadores (PT), conformam um período de experimentações fiscais que, em um período de pouco mais de uma década, foram do crescimento à contração. Herdando um país estagnado e às voltas com a inflação, os dois presidentes aplicaram políticas de incentivo e austeridade para tentar contornar a situação inusitada das décadas de 2000 e 2010, com variados graus de sucesso. Chama a atenção, no entanto, a transformação de uma matriz social-democrática, principalmente entre os anos 2006 e 2010, para um extremo conservadorismo fiscal, entre 2015 e 2016, que marcam o colapso do período petista com o impeachment da ex-presidente Dilma. Laura Carvalho, ao analisar essas transformações constrói, em Valsa Brasileira (2018), um panorama das políticas econômicas adotadas entre 2003 e 2016, lançando luz às escolhas e circunstâncias que, em cerca de uma década, levaram o Brasil de um crescimento sustentado a uma recessão profunda.

A autora, bem distante dos bastidores em que reside a maioria dos trabalhos de economistas, faz das suas análises propostas públicas para construir um novo modelo econômico de crescimento ao Brasil. Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2006, se especializou em Economia da Indústria e da Tecnologia em 2008, pela mesma universidade, e em macroeconomia pela New School of Social Research, onde estudou os possíveis caminhos para a retomada de crescimento econômico após períodos de recessão. Foi professora na Fundação Getúlio Vargas (FGV) entre 2012 e 2015, quando se tornou docente da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. Atualmente, contribui para o debate público através de suas colunas em jornais de grande circulação, como a Folha de São Paulo e o Nexo.

Como chave de análise econômica dos 13 anos que constituem o período petista, a autora apresenta a matriz fiscal como os três passos de uma valsa, que marcam três momentos distintos, alusivos às políticas levadas a cabo nesse período. O primeiro, “um passo à frente”, representa o governo Lula II (2006-2010), articulando a distribuição de renda com o investimento público elevado. O segundo, “um passo ao lado”, foi o governo Dilma I (2011-2014), com a adoção da “agenda Fiesp”, denominada “Nova Matriz Econômica”, com incentivos fiscais para o setor industrial. Por fim, o terceiro, “um passo atrás”, conforma o curto período do governo Dilma II (2015-2016), em que foram adotados políticas de austeridade e arrocho fiscal que, em última instância, representou o desmonte do frágil Estado de bem-estar social construído nas décadas anteriores (CARVALHO, 2018: 11-12). O livro é dividido em cinco capítulos distintos: os três primeiros descrevem respectivamente os três “passos de dança” da economia brasileira; o quarto traz uma análise global da situação nacional e de seus possíveis caminhos para superar as dificuldades, considerando as nossas especificidades econômicas; o quinto, um breve epílogo sobre a emergência do autoritarismo a partir do desgaste econômico que, no mundo todo, foi provocado pelas décadas sucessivas de austeridade.

No primeiro capítulo, “O Milagrinho brasileiro: um passo à frente”, Carvalho analisa os oito anos do governo Lula da Silva, considerando, especificamente, a sua matriz econômica. Conforme investiga a autora, esse período foi marcado por guerras intestinas dentro do governo e do próprio Partido dos Trabalhadores, nas quais se opunham os que procuraram manter, num primeiro momento, as políticas herdadas de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com baixas taxas básicas de juros e a busca por manutenção do superávit primário, e os que acreditavam na necessidade de uma maior ousadia fiscal. Essa política marcou o seu primeiro mandato (2003-2006), embora tenha mantido o baixo crescimento do PIB. Para demonstrar esses primeiros embates, a economista lança mão de reportagens e discursos que, embora apresentem in loco os desencontros nesse período, são usadas indistinta e acriticamente, sem considerar, por exemplo, os intuitos e silêncios nos discursos oficiais e as linhas editoriais dos diversos periódicos consultados.

Para Carvalho, foi apenas a partir do segundo governo que a matriz econômica foi alterada, focando, especificamente, em três aspectos: “a distribuição de renda da pirâmide, […] maior acesso ao crédito e maiores investimentos públicos em infraestrutura física e social” (CARVALHO, 2018: 19). Esse período, denominado “Milagrinho”, constituiu o “passo à frente”, uma vez que foi marcado por sustentado crescimento econômico e distribuição de renda. É notório que, a despeito de colocar em dúvida a continuidade indefinida desse sistema, apresenta estes três sustentáculos como uma política bem-sucedida de inclusão e crescimento, sob uma luz extremamente positiva. Baseando-se em estudos na área econômica (uma diferença em relação à primeira parte), a autora argumenta que esse crescimento permitiu não só o incremento da renda média da população, mas o próprio consumo, uma tese já consolidada nos estudos recentes sobre o período.[2]

No segundo capítulo, “A agenda Fiesp: um passo ao lado”, Laura Carvalho passa a analisar o incongruente período do governo Dilma, uma clivagem em relação ao governo anterior, a despeito de ser apontada como sua herdeira e sucessora direta. Mais ainda, é um período de intensas pressões políticas que a fizeram mudar radicalmente o rumo da economia brasileira, assumindo uma postura ortodoxa que, ao fim e ao cabo, sufocou o Milagrinho e fez o governo cair em uma espiral de austeridade e desregulação a partir de 2015. Segundo o histórico construído pela autora, a pressão do empresariado nacional levou à adoção de uma política fiscal rigorosa, contracionista, próxima ao “crescimento centrado nos desenvolvimentos industriais nos moldes asiático” (CARVALHO, 2018: 55). Como base, aponta os diversos manifestos de economistas que, a partir de jornais e colunas, propunham uma mudança na matriz econômica. Conclui, em retrospecto, que essa política não apenas não trouxe os resultados esperados, como acarretou a adoção de políticas cada vez mais ligadas ao neoliberalismo: incentivos fiscais, linhas de créditos às grandes empresas, o freio nos investimentos públicos estatais. Em última instância, isso provocou não apenas a deterioração fiscal, mas o aumento da dívida pública, que pautou, de 2015 em diante, uma política ainda mais radical.

O panorama desenvolvido pela economista termina no terceiro capítulo, “A panaceia fiscal: um passo atrás”, o terceiro movimento, e talvez o mais significativo, dos treze anos ininterruptos do governo petista. As políticas de austeridade iniciais tomadas no primeiro mandato de Dilma, ainda marginais, se tornaram agressivamente presentes a partir de 2015, principalmente com a posse, no Ministério da Fazenda, de Joaquim Levy. A completa desestruturação dos dois elementos que constituíram o Milagrinho – as políticas de distribuição de renda e o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, que constituía financiamento público de obras de infraestrutura) – levou ao colapso de um modelo popular e sustentável da economia brasileira. Em especial, aponta a constante contradição nos discursos, mantendo a linha geral dos primeiros anos, com a política efetivamente aplicada, de estabelecimento de estímulos fiscais propostos pelo empresariado.

A falta de resultados, no entanto, com a estagnação do crescimento (embora a então presidente tenha aplicado à risca o receituário liberal), levou à criação de uma panaceia de todos os problemas: o impeachment. Apontada como a culpada pela estagnação, Rousseff foi derrubada pelo grande empresariado, articulado em torno da Fiesp, que explorou o peso político das “pedaladas fiscais”, uma vez que essas recaíam em uma das práticas vedadas pela Lei da Responsabilidade Fiscal. O resultado foi o colapso da era petista e a ascensão de Michel Temer (MDB), que assumiu de peito aberto o programa liberal por meio da então denominada “Ponte para o Futuro”. Objeto de análise por diversos campos, entre eles a Economia, a História e o Jornalismo, o fim melancólico de Dilma Rousseff é em geral apontado como fruto de políticas econômicas equivocadas somadas a uma intensa intriga palaciana, na qual a presidente foi considerada um entrave à adoção de políticas econômicas mais ortodoxas. À semelhança de Carvalho, diferentes autores buscam dramatizar esses dois anos de inflexão na política brasileira, como é o caso da economista Monica de Bolle (2016), com a crônica Como matar a borboleta azul, e da cineasta Petra Costa (2019), com o documentário Democracia em Vertigem.

A análise da autora se consolida nos dois últimos capítulos, em que, a partir do panorama construído nos três capítulos anteriores, busca estabelecer como criar uma economia que fuja da frágil ortodoxia liberal sem, entretanto, necessitar das circunstâncias que tornaram o Milagrinho possível. Em “Acertando os passos”, Laura Carvalho propõe que a matriz econômica adotada a partir de 2015 foi um “tiro no pé” por parte do empresariado, que nem de longe teve os retornos esperados. Propõe, portanto, a retomada dos elementos que, anteriormente, garantiram alguma inclusão social pelas políticas de Estado: o fim da austeridade, a retomada dos investimentos públicos, a reestruturação do Estado de bem-estar social, uma reforma tributária progressiva e o controle da taxa de juros.

O último capítulo, “Dançando com o Diabo”, é sintomático não apenas do momento em que a autora escreve, mas de seus propósitos políticos no que assumira vocalmente desde então. Não apenas ela aponta uma conformidade entre as políticas de austeridade e o aumento de tendências sociais autoritárias e populistas, um reflexo evidente nas eleições de 2018 (que, embora não seja citada diretamente, por certo influenciou a escrita de seu estudo), quanto propõe que um caminho democrático se dá pela inclusão e estabilidade dentro de um crescimento sustentado. Não à toa, muitas de suas políticas serviram de base para a construção das propostas políticas de Guilherme Boulos (PSOL), um dos candidatos mais à esquerda na eleição de 2018, da qual ela participou diretamente como consultora (NSC TOTAL – NOTÍCIAS DE SANTA CATARINA, 2018). Longe de ser um folhetim político, no entanto, Valsa Brasileira é um estudo do corolário de diferentes políticas econômicas que passaram do caráter popular ao de cópia do receituário liberal — levando, em última instância, ao colapso fiscal brasileiro em apenas três anos; assim como apresenta o desenrolar de uma nova perspectiva, heterodoxa, para a reconstrução do país no médio e longo prazo.

Nota

2. Com efeito, Samuels (2004), Marques (2005) e Singer (2010) apontam essas duas “facetas” do governo Lula, apontando não apenas a virada no primeiro para o segundo mandato, numa mistura de pragmatismo com políticas sociais, mas também a própria manutenção das bases econômicas liberais, contraditórias ao discurso socialista dos primeiros anos do Partido dos Trabalhadores.

Referências

ACTIS, Esteban. Del condominio a la dicotomía: las relaciones entre los gobiernos del PT en Brasil con el empresariado internacionalizado brasileño (2003–2016). Polis — Revista Latinoamericana, Santiago (Chile), n. 48, p. 175–199, 2017.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O governo Dilma frente ao “tripé macroeconômico” e à direita liberal e dependente. Novos Estudos, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 5–14, mar. 2013.

CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018.

CURADO, Marcelo. Por que o governo Dilma não pode ser classificado como novo-desenvolvimentista?. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 37, n. 1, p. 130–146, jan./mar. 2017.

DE BOLLE, Monica Baumgarten. Como matar a borboleta-azul: uma crônica da era Dilma. São Paulo: Intrínseca, 2016.

DEMOCRACIA em Vertigem. Direção: Petra Costa. Produção: Joanna Natasegara; Shane Boris; Tiago Pavan. Netflix, 2019. 1 vídeo (121 min). Acesso em: 24 set. 2020.

GURU econômico de Boulos, Laura Carvalho defende diminuir desigualdade como base do crescimento. NSC — Notícias de Santa Catarina, Florianópolis, 05 mai. 2018.

MARQUES, Luiz. Governo Lula: social-liberal ou social-reformista?. Porto Alegre: Veraz, 2005.

SAMUELS, David. From Socialism to Social-democracy: party organization and the transformation of the Worker’s Party in Brazil. Comparative Political Studies, v. 37, n. 9, p. 999–1024, nov. 2004.

SINGER, André. A segunda alma do Partido dos Trabalhadores. Novos Estudos, São Paulo, v. 29, n. 3, p. 89–111, nov. 2010.

Cláudio César Foltran Ulbrich1 – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. Realiza Pesquisa Individual sob a orientação da Profª Drª Andréa Carla Doré.


CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de: ULBRICH, Cláudio César Foltran. Cadernos de Clio. Curitiba, v.9, n.2, p.127-135, 2018. Acessar publicação original [DR]

O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista | Silvia Federici

Enquanto os homens enfrentavam a linha de frente nos campos de batalha durante a Segunda Guerra Mundial, as mulheres assumiram os postos de trabalhadoras e provedoras do sustento familiar. A autoconfiança adquirida através deste processo, junto a um ressentimento ocasionado pelas desagregações familiares decorrentes da alta mortalidade do conflito, incentivou a busca por trabalhos alternativos ao do lar, provocando um distanciamento do trabalho doméstico. Este novo aspecto social refletiu nos trabalhos feministas na década de 1970, cuja ausência do debate sobre a organização da casa se fez notável. [5]

As ideias expressas acima estão contidas na introdução da obra O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (2018), de Silvia Federici, filósofa, escritora e ativista por um feminismo anticapitalista. Nascida na Itália e radicada nos Estados Unidos, escreve principalmente sobre o trabalho reprodutivo no capitalismo sob uma perspectiva de reconhecimento dele como pilar de sustentação do sistema, junto a outras formas de trabalho não remunerado, como a servidão e a escravidão. Seu livro mais famoso é Calibã e a Bruxa (2017). Como uma das fundadoras do movimento Wages for Housework, em O Ponto Zero da Revolução…, a autora pretende realizar um resgate dos debates a respeito do trabalho doméstico e de sua importância no entendimento e no combate ao sistema capitalista e colonialista, questionando a natureza da imposição do trabalho doméstico às mulheres bem como suas implicações de subordinação e exploração às vidas sociais delas.

Na primeira parte do livro, o argumento central de Federici em relação à exploração das mulheres e do trabalho doméstico se dá em razão da ação de um Estado que acumula capital por meio da associação dessa atividade à natureza feminina. Através do pressuposto de que o trabalho doméstico é intrínseco à natureza da mulher, a lógica capitalista a coloca como uma base na organização do trabalho dentro da instituição familiar. Segundo Mariarosa Dalla Costa e Selma James, autoras que exerceram grande influência na constituição e no embasamento das ideias de Federici, a nuclearização da família constitui uma fábrica social, na qual a mulher como mão-de-obra não remunerada é fundamental para a produção da força de trabalho, através de funções produtivas e reprodutivas, que nesse ponto encontram-se indissociáveis. As autoras também argumentam sobre a necessidade de seguir um caminho cada vez mais subversivo à lógica do sistema, defendendo a autonomia dos próprios corpos, que foi confiscada pelo capital. Utilizando a biologia feminina a seu favor, além de ele transformar a relação das mulheres com seus maridos e crianças, converte suas criações em trabalho produtivo com finalidade de acumulação por parte do sistema.

Desse modo, nota-se que tanto Federici quanto Dalla Costa e James defendem a remuneração feita pelo Estado como uma medida essencial para que seja possível negar a naturalização do trabalho doméstico como feminino, minando então a lógica capitalista, dando autonomia às mulheres para recusá-lo e abrindo caminhos para uma superação do sistema.

Esta luta pelo salário pago pelo Estado, no entanto, foi tida como menor pelo feminismo, que se voltou para o direito de trabalhar fora, por exemplo. As liberais viam isso como a chance de obter uma carreira e as socialistas, de se incorporarem à luta de classes. A autora destaca, porém, que a luta deveria ser pela independência econômica, não pelo trabalho em si. As mulheres já trabalhavam em casa, necessitando, assim, de mais tempo, não de mais trabalho. Além disso, essa postura pode ter contribuído para um afastamento das donas de casa de movimentos feministas. [6]

Desse  modo, o problema do trabalho doméstico – compartilhado por todas as mulheres – não foi resolvido: poucas conseguiram realmente dividir as tarefas com os maridos, passando a exercer jornada dupla e ficando mais cansadas.

A “solução” para tal problema apareceu com o neoliberalismo e a Nova Divisão Internacional do Trabalho (NDIT), marcada pela globalização, em que o principal envio do “Terceiro Mundo” para o “Primeiro” é o trabalho via migração. Assim, enquanto mulheres europeias trabalham fora, contratam imigrantes para fazer o trabalho doméstico. Essa resolução problemática, além de criar uma relação criada-madame, acentua a tendência da má remuneração para esse trabalho e tira a responsabilidade do homem de fazê-lo. Ademais, é um processo doloroso para as empregadas, que abandonam suas famílias para cuidarem de outras. Teresa Lisboa [7] trata do tema com mais detalhes, destacando problemas como o abuso sexual por parte de patrões e a dificuldade de ter acesso a serviços públicos em virtude da imigração ilegal. Federici destaca que a política da NDIT visa a transferir a reprodução da mão de obra do Norte para as mulheres do Sul Global. Isso acontece nos processos de barrigas de aluguel, por exemplo, que permitem que mulheres do Norte tenham filhos sem interromper suas carreiras nem arriscar a saúde, além de beneficiar financeiramente os governos. A autora conclui que a NDIT não é emancipatória, pois explora as mulheres ainda mais e reabilita a imagem de reprodutora e objeto sexual, de modo que as políticas feministas precisam ser anticapitalistas e subverter essa nova divisão.

Na sequência, Federici aprofunda suas análises acerca do processo de estruturação do neoliberalismo [8] e de seu papel como desarticulador de direitos e serviços essenciais às mulheres: essa corrente se estabeleceu na década de 1970 como fruto das crises econômicas ocorridas no período, bem como da percepção de ameaça representada por movimentos sociais antissistêmicos (negro, anticolonial e feminista), que se opunham ao enriquecimento estatal através da remuneração nula ou irrisória às atividades (re)produtivas que exerciam. A resposta dos Estados se deu, contudo, em direção à acentuação da responsabilização dos indivíduos por suas necessidades de subsistência, bem como, no Sul Global, à intensificação de políticas arbitrárias de austeridade. Ou seja, serviços essenciais de saúde, educação e previdência deixaram de receber investimentos públicos, acarretando escalada da sobrecarga de serviços de cuidado já atrelados aos corpos femininos. Em relação a tais problemáticas, a autora suscita discussões teórico-conceituais e enfatiza o teor revolucionário da expressão “trabalho reprodutivo”, questionando os paradigmas marxistas tradicionais. Esses são criticados por Federici na medida que não só deixavam de considerar as tarefas de cuidado como parte do processo de produção das forças de trabalho, supostamente restrito ao consumo de mercadorias, como também centralizavam na figura do proletário europeu urbano o protagonismo da produção material e, consequentemente, das lutas anticapitalistas.

Complementando suas críticas às realidades neoliberais instituídas a partir dos anos 1970, a autora chama atenção para a posição assumida nesse período pela ONU. Em adição aos desmantelamentos de sistemas sociais e às espoliações de recursos naturais realizados, a instituição passou a exercer postura de controle indireto da radicalidade feminista por meio da cooptação de suas pautas e lideranças. A criação de espaços institucionais para debates de gênero, com o desenvolvimento de programas impulsionadores da agenda do Banco Mundial e a secundarização das lideranças de países não hegemônicos frente às “feministas profissionais” dos EUA, propiciou alinhamento de parte do movimento com causas neoliberais e decorrente afastamento da organicidade popular registrada inicialmente nas reivindicações feministas. Tal fenômeno é destrinchado por Veronica Schild, que argumenta que a fenda de serviços básicos deixada pelos Estados foi preenchida, no contexto latino-americano, por ONGs patrocinadas pela ONU. Essas, ao invés de dialogarem com organizações locais já existentes, priorizaram gestões de feministas acadêmicas e políticas, vinculadas a instituições estrangeiras, invalidando, com isso, possibilidades de ativismos regionais e autenticamente revolucionários.

Na terceira parte da obra, Federici apresenta uma das questões mais importantes às pautas de gênero e ao mundo do trabalho: o acesso à terra, eixo relevante para se pensar a construção de uma sociedade mais solidária e comunitária. A autora inicia sua abordagem sobre essa temática analisando historicamente as investidas dos setores capitalistas no sentido de retirar da população, especialmente feminina, o acesso à terra e, consequentemente, a sua subsistência. A partir desse momento, as comunidades locais empobreceram e tornaram-se dependentes de recursos pertencentes ao grande capital, os quais não são acessíveis a todos em uma sociedade desigual como a que é encontrada em diferentes níveis no planeta. Dessa forma, a partir de um posicionamento que identifica historicamente as mulheres como as agentes de vanguarda na luta pela manutenção das terras comunais e contra o capital, Federici infere que uma das mais eficazes formas de construção de uma sociedade mais equilibrada e que incentive a solidariedade e não a competitividade é a luta por terras comunais e práticas de subsistência.

Ademais, é importante mencionar que essa é uma pauta defendida tanto por diversos intelectuais e lideranças sociais [9] quanto por comunidades que, mesmo que alheias às discussões acadêmicas, entendem a importância da manutenção desses sistemas e da luta por mais áreas agricultáveis. O antropólogo Arturo Escobar, em sua obra La invención del Tercer Mundo: construcción y desconstrucción del desarrollo, analisa essa mesma problemática destacando a forma como as organizações internacionais e países desenvolvidos mantêm suas políticas neocoloniais por meio da expulsão de populações originárias de suas terras e do estabelecimento de relações de dependência dos mercados interno e externo, o que as aliena dos meios produtivos para sua subsistência. Dessa forma, ambos os autores, além de externarem suas críticas a essas práticas violentas, também ressaltam exemplos bem sucedidos de resistência e luta, apontando caminhos a seguir para garantir um melhor futuro, enfatizando, assim, os caminhos comunitários e solidários, não individualizados.

Tomando como base os principais pontos levantados neste texto, ponderamos que O Ponto Zero da Revolução… se revela uma obra extremamente relevante para os dias atuais, especialmente no Brasil, em que vemos um movimento amplo e articulado de desmonte das políticas públicas, direitos trabalhistas e implemento das faces mais radicais e violentas do neoliberalismo. Dessa forma, o livro nos fornece importantes discussões e exemplos concretos de populações que, enfrentando questões tão críticas quanto, rebelaram-se e lutaram por um futuro menos desigual e pela construção de uma sociedade que desnaturalizasse a competição, o lucro e a violência. Consideramos fundamental notar o papel renovador e transgressor que a obra exerce dentro de seu contexto de publicação ao se levar em conta, para além do cenário nacional, os horizontes de produção teórica feminista. Nas últimas décadas, por conta da difusão de discursos eminentemente reificadores do neoliberalismo do Norte — seja através de meios virtuais, seja pelo fortalecimento de uma cultura de “feminismo de advocacy” —, ainda que esse movimento social tenha alcançado maior aceitação entre diferentes parcelas populacionais, vem atravessando processo de banalização de suas pautas. Nesse sentido, as recuperações históricas levantadas por Federici, junto a suas elaborações acerca das problemáticas dos sistemas “piramidais” instaurados sob slogan de suposta “cooperação internacional” pela globalização e à sua marcante tese de necessidade de questionamento das estruturas de reprodução social normalizadas sob o capitalismo, permitem que os públicos leitores do Sul Global, como conjunto de indivíduos que partilha das heranças racistas, coloniais e patriarcais instituídas externamente, continuem e ampliem a articulação de mobilizações feministas capazes de subverter estacas político econômicas exploratórias. A busca por concretização das emancipações de grupos historicamente subjugados, com destaque para a efetiva liberação das mulheres, é nitidamente instigada por Federici, em um movimento que contribui para o fortalecimento das resistências feministas latino-americanas antissistêmicas. No passado e ainda hoje, essas têm estado voltadas à conquista de direitos reprodutivos, à redução da violência de gênero e à retomada dos “comuns” por amplas parcelas populares.

Notas

5. É importante ressaltar que, como será possível observar ao longo da obra, esta condição específica de abandono do lar rumo à independência financeira, à inserção e à relativa equiparação ao homem branco no mercado de trabalho refere-se à realidade de mulheres brancas de classe média. A vida das mulheres não-brancas, como destaca bell hooks, estrutura-se de uma forma totalmente diferenciada. Estas já ocupam o mercado de trabalho de maneira subalterna como empregadas, babás, secretárias, prostitutas. Ao criticar A mística feminina, hooks afirma: “Problemas e dilemas específicos de donas de casa brancas da classe privilegiada eram preocupações reais, merecedores de atenção e transformação, mas não eram preocupações políticas urgentes da maioria das mulheres, mais preocupadas com a sobrevivência econômica, a discriminação étnica e racial etc. Quando Friedan escreveu A mística feminina, mais de um terço de todas as mulheres estava na força de trabalho. Embora muitas desejassem ser donas de casa, apenas as que tinham tempo livre e dinheiro realmente podiam moldar suas identidades segundo o modelo da mística feminina” (Cf. hooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, p. 193-210, 2015).

6. Esse afastamento das donas de casa em relação ao feminismo, por sua vez, é um fenômeno predominantemente estadunidense e europeu. Nos anos 1970, muitos países latino-americanos, por exemplo, estavam sob brutais ditaduras militares. Verónica Schild, doutora em Ciência Política com pesquisas sobre mobilizações feministas e impactos do neoliberalismo no Chile, destaca que, nesses lugares, o feminismo adquiriu outros contornos: organizadas em diferentes grupos de mulheres, mobilizaram-se contra os regimes autoritários desde militantes de esquerda a ativistas católicas. Além de haver um engajamento com o feminismo “tradicional” devido à conjuntura política, há outra diferença fundamental: “Em contraste com a ‘dona de casa’ típica do pós-guerra nos países da OCDE, a maioria das latino-americanas trabalhava – na terra ou como empregadas domésticas –, enquanto as mulheres da elite eram liberadas do trabalho doméstico por suas criadas.” (2017: 101).

7. Teresa Kleba Lisboa é doutora em Sociologia e pesquisadora das áreas de violência de gênero, de participação das mulheres no mundo social do trabalho e de equidade de gênero nas políticas públicas.

8. No que se refere ao envolvimento teórico da autora com a temática do neoliberalismo, mostra-se interessante contextualizar suas produções em relação a demais obras que perpassam o tema: os capítulos de O Ponto Zero da Revolução que abordam aspectos do sistema neoliberal foram escritos entre os anos 1990 e 2000. Nesse período, e principalmente nos anos subsequentes a ele, registrou-se extensa produção acadêmica dedicada a analisar processos constitutivos do neoliberalismo e as consequências dele para o funcionamento de diferentes sociedades. Inserem-se aí obras de pensadoras estadunidenses como Nancy Fraser e Wendy Brown. Ambas apresentam pontos de confluência com as ideias de Federici, caracterizando esse sistema como extenso, não restrito a uma esfera econômica, mas sim permeador das diversas bases do cotidiano social, acarretando desmantelamento de serviços essenciais à coletividade, precarização do mundo do trabalho e a instituição de um modelo mental coletivo de “empresariamento de si mesmo” (ou “razão neoliberal”, nos termos da segunda autora). Fraser (2019) defende a superação da crise generalizada vivenciada hoje por meio de uma transformação sistêmica completa a ser encabeçada por mobilizações populares, nas quais estaria incluso um “feminismo para os 99%”, anticorporativo. Já Brown (2015), em contraponto às constatações de Federici acerca da necessidade de transformação absoluta do modo de vida capitalista e de sistemas políticos que não asseguram protagonismo às coletividades e acesso a recursos “comuns”, apresenta considerações mais reformistas, afirmando que as democracias liberais, apesar de burguesas, deveriam ser conservadas por servirem como propulsoras iniciais de anseios mais amplos por liberdade e direitos. Para saber mais, verificar: FRASER, Nancy. The old is dying and the new cannot be born: From progressive neoliberalism to Trump and beyond. New York: Verso Books, 2019; e BROWN, Wendy. Undoing the demos: Neoliberalism’s stealth revolution. New York: Mit Press, 2015.

9. É possível estabelecer relações entre essas reflexões da autora e as práticas de feminismo comunitário encontradas em países latino-americanos: o pensamento do feminismo comunitário é bastante amplo e tem diversas ramificações, como o empregado pelas mulheres trabalhadoras na Bolívia. Na comunidade Mujeres Creando, o feminismo comunitário começa epistemologicamente empregando a descolonização do próprio feminismo, partindo do pressuposto que esse carrega consigo diversas formas de opressão, principalmente originários do sistema capitalista de produção. Para além desse esforço, as próprias categorias de gênero e patriarcado são repensadas. Tal discussão relaciona-se ao conceito de comuns de Frederici, na medida em que, para se atingir as expectativas postas sob a construção de uma sociedade comunitária, devem-se rever os conceitos estruturantes que a sustentam. Para saber mais, verificar: PAREDES, Julieta. El feminismo comunitario: la creación de un pensamiento propio. Corpus, vol. 7, n. 1, 2017.

Referências

DALLA COSTA, Mariarosa; JAMES, Selma. The Power of Women and the Subversion of the Community. Bristol: Falling Wall Press, 1975.

ESCOBAR, Arturo. La invención del Tercer Mundo: construcción y desconstrucción del desarrollo. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana, 2007.

LISBOA, Teresa Kleba. Fluxos migratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da assistência. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 805-821, set./dez. 2007.

SCHILD, Verónica. Feminismo e neoliberalismo na América Latina. Nueva sociedad, Buenos Aires, Edição Especial, p. 98-113, jun. 2017

Eduardo Gern Scoz – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Pesquisa Individual sob a orientação da Profª Drª Ana Paula Vosne Martins.

Letícia Barreto Assad Bruel – Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Priscila Piazentini Vieira.

Rafaela Zimkovicz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR.

Vitória Gabriela da Silva Kohler –  Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR.


FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2018. Resenha de: SCOZ, Eduardo Gern; BRUEL, Letícia Barreto Assad; ZIMKOVICZ, Rafaela; KOHLER, Vitória Gabriela da Silva. Cadernos de Clio. Curitiba, v.9, n.1, p.133-143, 2018. Acessar publicação original [DR]

Breve contextualização arqueológica e etnohistórica de Porto Alegre e região | Fabrício José Nazzari Vicroski

Fabrício José Nazzari Vicroski é arqueólogo com doutorado em História pela Universidade de Passo Fundo e atualmente desenvolve seu pós-doutorado como pesquisador bolsista PNPD Capes. O atual livro tem como principal objetivo a divulgação científica da pesquisa arqueológica centrada em Porto Alegre e região metropolitana, e a delimitação temporal são os períodos pré-colonial e colonial com enfoque nos povos indígenas e afrodescendentes. O livro, assim como a pesquisa levantada para sua produção, são advindos da empresa Sírius Estudos e Projetos Científicos LTDA, com suporte do Núcleo de Pré-História e Arqueologia vinculado ao PPGH da Universidade de Passo Fundo.

A obra é dividida em duas partes, sendo a primeira sobre “O conhecimento arqueológico”. No início desse primeiro capítulo, o autor trata sobre a diversidade de fauna e flora na região, que propicia uma alta quantidade de sítios arqueológicos devido a grande movimentação sazonal desses grupos pesquisados. Pelo alto número de sítios arqueológicos na região (Vicroski dimensiona um número próximo a cem), o autor já levanta a pauta da importância da preservação dos mesmos pelas políticas públicas, questão levantada diversas vezes ao longo do livro.

Colocada a importância da preservação, o pesquisador demonstra a gama variada de pesquisas desenvolvidas por inúmeros colegas de ofício, delineando as que são de maior notoriedade: Gislene Monticelli, Júnior Domiks, Francisco Silva Noelli e outras instituições que apoiam e produzem pesquisas arqueológicas em Porto Alegre. A defesa do patrimônio arqueológico em conjunto com órgãos de fomento a cultura é um assunto extremamente importante levantado e defendido por diversos estudiosos da área, como Ulpiano Meneses (2007) e Ana Flávia Sousa Silva (2014), e também é uma discussão importantíssima dentro dos estudos históricos e percepção temporal, como escreve François Hartog (2006).

Vicroski indica que essas descobertas apontam para assentamentos humanos de ao menos 9000 anos de idade. Com essa grande periodicidade de tempo também é necessária uma divisão e classificação dos diferentes materiais a partir da cultura material, o que é feito em seguida. A distância temporal é utilizada para formular esta parte: o autor cita primeiro as mais distantes (com povos nômades caçadores e coletores) e por último as mais próximas, fazendo com que, no final do capítulo, o autor consiga estabelecer algumas trocas e relações culturais com o período colonial e com as culturas que perduram até os dias atuais, tal qual a cuia de chimarrão, que é uma herança do estilo de cerâmica e do consumo da erva de tribos jê e guarani.

Ademais, demonstra-se a disposição e movimentação geográfica destes povos nômades, posto que, a partir da organização e catalogação da cultura material, podemos identificar as informações necessárias através da cerâmica produzida e comparar com outras áreas e localidades onde peças com a mesma estrutura no formato e arte são encontradas. Desta forma, o autor cita povos indígenas de diversas áreas como a Argentina, Uruguai e até mesmo Amazônia, tornando explícitas as razões da região de Porto Alegre abrigar a vasta variedade arqueológica já citada anteriormente.

A segunda parte, “O conhecimento etnohistórico”, introduz questões acerca dos povos indígenas, africanos e afrodescendentes no período colonial, já se utilizando da história oral e escrita histórica preservada por esses povos ou relatos de contato com os mesmos. O autor deixa claro como os saberes indígenas foram de extrema importância para o início da colonização do local, já que tais populações possuíam vasto conhecimento da região que, por possuir extensa malha hidrográfica, necessitava de guias para a navegação fluvial.

A relação de conquista e demarcação territorial fez com que os grupos indígenas e europeus entrassem em conflito direto por todo o período colonial. Os indígenas se movimentaram sazonalmente e os colonizadores em contato acreditavam que eles estavam abandonando tais localidades e que não voltariam mais. Este desentendimento, assim como diversos outros problemas, provocou a guerra guaranítica, que levou vários indígenas à situação de cativeiro em missões sob regime de escravidão. Contudo, o pesquisador alerta que até hoje, através de resistências diversas, os indígenas nunca deixaram de frequentar a região de Porto Alegre e seus entornos. Logo, essa permanência pode ser traçada como contínua até os dias atuais, como exemplificado pelo artesanato e agricultura.

Os povos africanos e afrodescendentes também são apresentados, já no final do livro, como essenciais para um entendimento etno histórico mais aprofundado não somente da região porto alegrense, mas também do próprio estado do Rio Grande do Sul, posto que são encontrados quilombos em diversas regiões.

O autor explora como esses grupos resistiram e se apresentam até os dias atuais como produtores essenciais nos inúmeros setores econômicos da cidade, como as atividades domésticas nos meios rural e urbano. O autor ainda salienta que a luta de tais grupos tem sido frutífera, já que através delas conquistaram suas terras historicamente ocupadas. Vicroski dá enfoque ao Quilombo da Anastácia, pioneiro na luta pelos direitos a posse de propriedade quilombola e auxiliou diversos quilombos vizinhos a se estabelecerem formando uma cadeia de suporte mútuo.

A conclusão do livro se propõe a arrematar as reflexões e destacar a diversidade da região, além de ressaltar a etno-história, em conjunto com a arqueologia, como campos do conhecimento chaves para revelar essa diversidade, que torna não somente a sociedade mais tolerante por reconhecer seus traços culturais, históricos e genéticos, como mais perceptiva com sua própria história, reconhecendo esses grupos indígenas e afrodescendentes.

Vicroski obtém sucesso com o objetivo deste livro, demonstrando conhecimento da produção acadêmica sobre o assunto e explicando suas ideias com linguagem didática, lançando mão de imagens e raciocínios leves, para que quem não tem contato com o trabalho desenvolvido tenha um vislumbre básico, mas repleto de conteúdo substancial. O pesquisador se debruça sobre uma importante tarefa, cada vez mais necessária nos dias atuais: a divulgação das ciências humanas e a reafirmação da importância desses saberes. Em momentos não tão otimistas como os quais se vive atualmente, em que bolsas de estudo são cortadas (PORTARIA…, 2020) sem motivo justificável ou em que autoridades se manifestam contra a preservação de sítios arqueológicos em tom jocoso (SPERB, 2019), divulgar a importância da pesquisa na construção de um país mais igualitário é essencial.

Referências

HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 261-273, 2006.

SILVA, Ana Flávia Sousa. Complexo Arqueológico Serra do Morcego, Caxingó (PI): proteção, conservação e manejo de sítios arqueológicos de registros rupestres. 2014. 150 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia e Arqueologia) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2014.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Premissas para a formulação de políticas públicas em Arqueologia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 33, p. 37-57, 2007.

PORTARIA da Capes corta bolsas de diversos programas de pós-graduação. Andes, 24 mar. 2020. Acesso em: 08 jul. 2020.

SPERB, Paula. Cocozinho petrificado de índio barra licenciamento de obras, diz Bolsonaro. Folha de S. Paulo, 12 ago. 2019. Acesso em: 08 jul. 2020.

Bruno Stori –  Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do PET História UFPR.

Helena Putti Sebaje da Cruz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do PET História UFPR.

Kauana Silva de Rezende – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do PET História UFPR.

Walter Ferreira Gibson Filho – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do PET História UFPR.


VICROSKI, Fabrício José Nazzari. Breve contextualização arqueológica e etnohistórica de Porto Alegre e região. Porto Alegre: Sírius Estudos e Projetos Científicos, 2020. Resenha de: STORI, Bruno; CRUZ, Helena Putti Sebaje da; REZENDE, Kauana Silva de; GIBSON FILHO, Walter Ferreira. Cadernos de Clio. Curitiba, v.9, n.1, p.144-149, 2018. Acessar publicação original [DR]

A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena | José Luiz Del Roio

José Del Roio constrói sua narrativa a partir da leitura de historiadores especialistas em História Política, Social e Econômica, ligados ao movimento dos operários no Brasil, como Michael Hall e Suely Robles Reis de Queiroz a militantes intelectuais que viveram no período, como Everardo Dias e Astrojildo Pereira. Além disso, utiliza em seu arcabouço historiadores como Edgar Rodrigues, que se dedicaram aos estudos do anarquismo no Brasil, um campo que ainda carece de estudos e debates, sendo subjugado por uma memória oficial. Neste sentido, Del Roio dará voz a esses sujeitos anarquistas em seu livro “A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena”, (São Paulo: Alameda, 2017).

Com relação às fontes empregadas pelo escritor, mas antes propriamente de indicá-las, é necessário relatar a relação entre o autor e elas. José Del Roio, radialista, ativista do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na década de 60 e fundador, junto a Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi um dos que possibilitou a preservação do acervo de Astrojildo Pereira, durante o regime de ditadura militar. O acervo contém vários documentos reunidos sobre o “Movimento operário no Brasil”, folhetos, reportagens de jornais da época, canções, convocações e comunicados do Comitê de Defesa Proletária (CDP), que hoje permanecem no Centro de Documentação e Memória (CEDEM), em São Paulo e que foram utilizados como fontes para o livro.

Diante disso, em meio a um cenário brasileiro contemporâneo, marcado por passeatas, greves gerais e paralisações de várias categorias, no qual há luta por mais transparência política e direitos básicos dos trabalhadores, o livro escrito por José Luiz Del Roio cumpre papel relevante na divulgação de um acontecimento. Fenômeno que há cem anos sinalizaria o início das movimentações sindicais e da organização popular em torno de melhorias nas condições de trabalho do operariado paulista. O autor nos leva, através de sua interpretação, à análise e imaginação ao mundo dos trabalhadores nos bairros Brás, Mooca, e outros de São Paulo, que para ele representou a máxima do movimento sindicalista revolucionário, mas também o início de sua decadência.

Em sua obra, dividida em cinco capítulos, que totalizam cerca de 130 páginas, José Luiz Del Roio busca traçar, inicialmente, os elementos históricos que antecedem a eclosão dos protestos, modificações sociais em São Paulo que, desde o final do século XIX, possibilitaram um crescimento demográfico e industrial na cidade. Decorrente dessas transformações há consequências fundamentais ao contexto da greve. A vinda de imigrantes europeus após a abolição da escravatura, que circunscreveu a formação de uma mão-de-obra ainda com resquícios da escravidão e que, portanto, foi submetida muitas vezes ao trabalho compulsório, fator que elevou ainda mais a pauperização das relações de trabalho. Simultâneo a isso, o aumento e mudança de produção para suprir demandas durante a Primeira Guerra Mundial, o crescimento desordenado destas fábricas e das condições precárias impostas aos trabalhadores acabam propiciando o surgimento de movimentos anarquistas e anarcossindicalistas como resistência a este panorama, tornando-se alvo de discussão do autor no capítulo dois. Segundo o autor, o anarcossindicalismo, apresentando-se como uma cisão anarquista dos sindicatos socialistas, obteria uma atuação mais ampla e direta a favor do operariado através de uma luta mais insurrecional.

No capítulo três há uma maior ênfase na descrição pormenorizada destes protestos e de casos e indivíduos específicos que atuam no desenrolar das paralisações. O autor traz luz às dificuldades e toda a repressão que os grevistas passaram por parte do Estado. Também ganha destaque do escritor a contribuição dos jornalistas à greve, inclusive nas intermediações das negociações, uma vez que a maioria dos diretores do Comitê de Defesa Proletária eram vinculados a estes meios, a exemplo de Edgard Leuenroth, condutor de um meio de comunicação anarquista, a Plebe.

Por fim, nas últimas duas divisões do livro há elaboração de um balanço do movimento, entretanto, se por um lado são destacados os ganhos que o operariado adquiriu e a repercussão que a greve teve em outras regiões do país, por outro são elencadas as sucessivas ações repressivas que sofreram os líderes grevistas após julho de 1917, a estruturação de um sindicalismo moderno advindo da cisão do movimento anarquista no Brasil, além do montante de mortos e desaparecidos nos conflitos, dados que só podem ser discutidos pelo escritor por meio de fontes extraoficiais, visto que os anúncios e denúncias de desaparecidos geralmente eram publicados somente nos jornais anarquistas.

A resistência contra o Estado e a oficialidade dos fatos é algo marcante que permeia toda a obra de José Del Roio. Ele coloca os trabalhadores de 1917 como sujeitos ativos na luta pelos seus direitos e que resistem às forças em contraposição ao seu movimento. O autor faz parte dessa resistência que ainda permanece, também pela escolha de uma documentação não oficial. Apesar de não haver muito sobre as personagens femininas que participaram da greve – o que o autor reconhece e justifica devido à falta de uma documentação – elas são mencionadas como significantes, e as fotografias trazidas ao final do livro as mostram atuantes nas manifestações. Ele não as esquece, assim como também os anarquistas ou os mortos em confronto com a polícia. Logo, a história a contrapelo torna-se aqui presente.

Por fim, torna-se relevante neste trabalho de Del Roio o resgate da greve de 1917 a partir da demonstração das relações deste fenômeno histórico com o movimento anarquista. Evidenciar a relevância desta influência, que adveio da Europa, principalmente através dos imigrantes italianos, ressalta as relações culturais e sociais entre estes e o operariado brasileiro, corroborando o ecletismo dos trabalhadores paulistas no início do século XX. Atitude metodológica que apresenta esses sujeitos históricos de forma complexificada, demonstrando como compreendiam e sintetizavam os ideais anarquistas, aplicando-os em suas visões de mundo e no cotidiano em prol da luta social.

Deste modo, a obra atende bem ao seu propósito, pois a condensação das ideias em um livro menor e a utilização de uma linguagem acessível acabam permitindo uma exposição da greve de 1917 para além do âmbito acadêmico, atingindo um público mais amplo. Da mesma forma, o anexo de fontes ao final do livro, que contém de imagens à recortes de jornais anarquistas, também agrega para um maior envolvimento da obra com um público mais leigo, que talvez não fosse ter acesso a tal documentação por outros meios. Portanto, mesmo o autor não sendo historiador, sua experiência de vida, aliada à apresentação recorrente das fontes pelas quais Del Roio não se abstém, enriquece seu trabalho como pesquisa.

Kauana Silva de Rezende – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná

Pâmela de Souza Oliveira – Graduada em História (Memória e Imagem) pela Universidade Federal do Paraná.


DEL ROIO, José Luiz. A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena. São Paulo: Alameda, 2017. Resenha de: REZENDE, Kauana Silva de; OLIVEIRA, Pâmela de Souza. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.2, p.135-139, 2017. Acessar publicação original [DR]

Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800 | Ricard van Leeuwen

Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800 é o décimo primeiro volume de uma série de livros em contínua produção, Rulers & Elites, organizada por Jeroen Duindam. A série se propõe a analisar o poder dos governantes e das elites de períodos e espaços diferentes a partir de aspectos culturais, literários, econômicos, entre outros. No caso da obra selecionada, a concepção e a legitimação de uma realeza diretamente relacionada ao poder, sejam de um rei, sultão ou califa, podem ser encontradas em narrativas literárias como espelho-depríncipes e histórias de aventura.

O autor de Narratives…, Richard Van Leeuwen, é professor na Universidade de Amsterdã e atua na área de Estudos Islâmicos. Suas pesquisas são majoritariamente sobre história do Oriente Médio, a literatura árabe e o islã no mundo moderno. Algumas de suas publicações são Waqfs and Urban Structures: The Case of Ottoman Damascus (1999) e The Thousand and One Nights: Space, Travel and Transformation (2007).

Em sua Introdução, Leeuwen reconhece as dificuldades impostas pelo tema. As fontes selecionadas são histórias que sobrevivem ao tempo sofrendo algumas mudanças conforme o contexto perpassado. Um exemplo recorrente é a compilação de histórias de As Mil e Uma Noites, cujo título aparece por volta do século XII, mas alguns dos contos são de séculos anteriores e a obra completa permanece até a atualidade como uma grande referência literária. A sobrevivência destas narrativas e de seus temas permanece, também, devido às traduções e adaptações. Várias histórias criadas na Ásia, por exemplo, foram traduzidas para o árabe e turco pelos mamelucos e otomanos, permitindo que elas se difundissem por um grande espaço geográfico.[2]

As adaptações refletem os gostos e mentalidades de diversos períodos. O espaço e o período compreendidos pelas fontes, portanto, são demasiado vastos. Não foi possível aprofundar cada contexto de origem e de mudança das narrativas selecionadas separadamente. Mas o objetivo de Narratives… é outro: encontrar possíveis paralelos discursivos sobre poder e reinado em textos narrativos de impérios euroasiáticos entre 1300 e 1800. De acordo com Leeuwen, a literatura era um meio importante para a compreensão e divulgação dos símbolos de poder. Além disso, traços de tradições orais são encontradas mescladas com tradições escritas, significando um encontro entre o imaginário popular e o aristocrático.

A obra é dividida em seis capítulos, cada um tratando de um tema específico utilizando entre duas e seis histórias, sendo eles: os papéis do rei, dos vizires e das concubinas na trama; deuses e demônios em contato com o rei e sua influência na legitimação do governante; percepção divina e harmonia cósmica; a relação e diferenciação entre o cavaleiro e o rei; o amor e o poder soberano; e, por último, conselhos e críticas (desejados ou não) feitas ao governo. Para situar o leitor, o autor apresenta uma sinopse do conto seguida de uma análise aprofundada do mesmo. Devido aos limites instituídos pela quantidade de fontes e pelo tamanho da produção historiográfica, muitos detalhes do roteiro são explicados brevemente em meio à análise das obras.

A organização do texto é bem estruturada e clara, como descrevemos acima, cumprindo objetivamente o que é proposto no título e na introdução. Apesar de as sinopses serem extremamente breves – ponto que o próprio autor reconhece – alguns detalhes da narrativa são abordados conforme o tema, como a descrição de uma personagem ou uma cena específica que são determinantes para o argumento construído por Richard van Leeuwen. Estas amostras das histórias, porém, incitam o leitor a procurá-las e lê-las na íntegra. Os temas de cada capítulo se relacionam com as fontes e temas anteriores, criando uma rede de ligações entre os aspectos comuns às várias narrativas.

O primeiro capítulo, Kings, Viziers, Concubines, traz quatro narrativas cujos pontos comuns incluem o governante como a personificação dos valores do reino, o vizir como o sábio conselheiro a ser seguido, e a concubina real que traz o desequilíbrio do reino. Os contos abordados são Seven Viziers [3] e algumas de suas variações como Jali’ad of Hind and His Vizier Shimas, ambas de origem persa em sua versão de As Mil e Uma Noites, King Wu’s Expedition Against Zhou e Proclaiming Harmony, ambas de origem chinesa. As versões das duas primeiras histórias utilizadas pertencem ao século XVIII, enquanto as chinesas datam do século XIV.

As narrativas persas possuem um formato comum, em que os desejos carnais e a influência das mulheres no governante trazem a ruína do império, restando ao sábio vizir redirecionar a impulsividade do líder imperial. Portanto, o posicionamento das personagens é bem claro: o rei aparece como representante do reino, às vezes cedendo às paixões; o papel do vizir é manter a tradição e a sabedoria por meio do aconselhamento; e a mulher causa a desordem, a enganação, as emoções irracionais. Estas características se mantêm, mesmo atravessando limites culturais e temporais. O perigo atribuído às paixões e o papel sábio dos ministros também aparece nos contos chineses, porém de forma mais similar a um espelho-de-príncipe. A ficção não é tão presente quanto nas outras fontes: a história das dinastias é o principal elemento do roteiro, apresentando personagens e acontecimentos históricos.

Analisando o discurso de poder nestas fontes, Richard van Leeuwen destaca alguns pontos comuns. Em todas as narrativas, há uma ameaça de descontinuação da dinastia, seja pela falta de um príncipe ou pelo comportamento inadequado de um rei, obrigando a formação de novos princípios para o governo que visam o restabelecimento do império. Para isto, o rei deve ser iniciado na sabedoria e conhecimento acumulados na tradição humana, pois ele não apenas deve seguir seus princípios como deve personificá-los (LEEUWEN, 2017: 24).

No segundo capítulo, é abordada a relação entre a autoridade do governante e do vizir e a aparição de forças sobrenaturais na forma de deuses, demônios e espíritos, aparecendo como parte da iniciação da personagem. Para esta análise, foram utilizados contos sobre os reinantes Vikramaditya, Harun Al-Rashid e Wu, protagonistas semi-históricos. Os três ascendem ao poder de forma quase inevitável, como se forçados a assumir este papel. O autor afirma que de certa forma “eles são antiheróis, que atingiram sua posição apesar de si mesmos, como se obrigados por forças irresistíveis a assumir suas responsabilidades” (LEEUWEN, 2017: 76) [4].

Eles estão diretamente relacionados às forças sobrenaturais (encantamentos, objetos mágicos, demônios) e sua autoridade é concebida pelo divino. No entanto, é uma autoridade a ser conquistada de acordo com a disposição de ajudar a população. É interessante notar como os elementos sobrenaturais se alteram conforme o período e região, como a cosmologia e mitologia hindu na versão bengalesa e referências a práticas islâmicas em versões persas posteriores. O conhecimento esotérico e o esclarecimento divino também aparecem como determinantes para a formação do protagonista. Esta transformação possibilita perceber a influência do contexto do autor ou tradutor na obra sobre a qual ele trabalha.

Histórias como The Queen of Serpents (introduzida em As Mil e Uma Noites no século XVIII), The Sorcerer’s Revolt (um romance compilado pelo chinês Feng Menglong no século XVII) e Manuscrit Trouvé à Saragosse (escrito por Jean Potocki no século XIX) apresentam a iniciação do príncipe ou vizir ao conhecimento esotérico, visando a atingir o meio termo entre crença e superstição, entre morais extremas e entre os interesses humanos e divinos. A autoridade e legitimidade do governante, portanto, são situadas de acordo com suas relações com a religião e as forças sobrenaturais de forma bem ampla. Sua autoridade se naturaliza e harmoniza com forças cósmicas, denotando a importância do equilíbrio nas relações e atribuindo o nome do terceiro capítulo, Divine Insights, Cosmic Harmony.

Além de reis e ministros, outra figura é destacada por Leeuwen: o cavaleiro. O autor comenta: “Há dois temas que parecem estar presentes em literaturas pelo mundo inteiro: amor e guerra” (LEEUWEN, 2017: 109). No quarto capítulo, foram selecionados seis romances cavalheirescos variando geográfica e temporalmente, de tradições europeia, persa/urdu, chinesa, árabe, malaia e turca. Neles, a ascensão ao poder se dá não por um sucessor sanguíneo, mas por um guerreiro que passa por uma iniciação para se tornar o soberano. Os cavaleiros abordados são Tirante o Branco, Amir Hamza, Yue Fei, Hang Tuah, Al-Zahir Baybars e Sayyd Battal. Um conto apresenta uma inclinação para o aspecto biográfico, o Romance of Baybars, cujo protagonista é estrangeiro, forasteiro naquela sociedade e governo.

Richard van Leeuwen aborda Ron Sela, que pesquisou biografias com aspecto fictício de Tamerlão que apareceram no século XVIII em turco e persa. Sela compara estas biografias com a de Baybars, e Leeuwen concorda com a ideia de que ambas as narrativas encaixam na categoria literária semipopular, combinando elementos populares com discursos aristocráticos de poder. Os valores morais defendidos pela comunidade são determinantes para a legitimação destas duas figuras, tornando-as modelos de um líder ideal antes de colocá-las no poder. Estes valores apresentam uma conexão entre a cultura popular e a elitizada.

A figura da mulher muda nestas últimas narrativas: seu papel ainda é determinante, mas desta vez de forma positiva. Porém, ela nunca ocupa um lugar de poder, sua posição é de subordinação à das outras personagens nas narrativas abordadas. Leeuwen descreve os contos como misóginos, mesmo para o contexto em que se encontravam. Em Tirant lo Blanc e The Book of Amir Hamza o caso é mais complexo: a figura feminina está envolvida com a estrutura de poder e autoridade, atuando como referencial de virtude e lealdade. Há, portanto, um paradoxo, em que por um lado sua posição é marginal, mas por outro possui um poder simbólico forte. Ela atua como ruptura e ao mesmo tempo como continuidade.

As relações entre os gêneros são foco dos romances de amor, aprofundados no quinto capítulo do livro. Este é dividido em duas partes, uma analisando um agrupamento de uma rede de histórias de amor árabe-persa e hindu, e outra um agrupamento de romances de cavalaria que se tornaram contos de amor na Europa. Nos contos, percebe-se a conexão direta entre a realeza e o amor na busca pela pessoa amada na forma de uma aventura. Um padrão é identificado nas primeiras cinco fontes, pertencentes às tradições árabe, persa, hindu, indiana, e nas fontes europeias.

O amor fornece não só um enredo dramático, mas também o paradoxo feminino tratado anteriormente: a interrupção da dinastia devido à paixão e a continuidade da mesma pela sexualidade. Entre a ruptura e a continuidade, há o período de busca e aventura por parte do príncipe. A ameaça de ruptura surge com o fato de o amor e de a sexualidade possivelmente quebrarem regras sociais e instituições. Desta forma, este sentimento se manifesta como destino, afetando não só as duas personagens envolvidas, mas também a comunidade inteira por meio de suas ações.

No sexto e último capítulo, Richard van Leeuwen apresenta narrativas ficcionais e semificcionais que criticam o usufruto do poder pelo governante. Seus autores eram indivíduos que voluntariamente tomaram a posição de vizir e tentaram corrigir o rei, mesmo que seu aconselhamento não fosse requisitado e muitas vezes oprimido. Eles são produzidos em períodos prósperos governados por poderes absolutos, podendo ser considerados “absolutismos esclarecidos” (LEEUWEN, 2017: 200), que incluem as dinastias Ming e Qing, os impérios Mogol e Otomano e as casas reais da Espanha, França, Inglaterra e Áustria.

Diferente das narrativas anteriores que visam a facilitar o discurso de poder, estas questionam sua efetividade e problematizam a relação entre comunidade e governante. A contestação se dá diretamente ao líder por meio da crítica ou pela recomendação de alternativas que diminuam seu poder absoluto. Obras do Oriente Médio e da Ásia contribuíram para as produções no Ocidente nos séculos XVIII e XIX, visto que o contato entre estes se intensificou, criando novas e mais complexas formas de visão de mundo.

Concluindo a obra, Leeuwen destaca como as narrativas funcionam sempre dentro da estrutura de poder e autoridade, dialogando entre a visão da corte e a visão popular. O hibridismo que permite esta conexão insere na imaginação coletiva valores que consolidam as estruturas de poder. A história serve como repositório de identidades, de valores culturais e morais, geralmente projetadas sobre uma figura específica, e como fonte de legitimação (LEEUWEN, 2017: 255). A religião também aparece com papel semelhante, fornecendo valores e um sentimento de experiência comum, junto da história. O que permite a permanência de uma narrativa através do tempo e do espaço, porém, é seu impacto e sua capacidade de se reinventar como fenômeno cultural e literário.

Narratives of Kingship in Eurasian Empires é uma ótima leitura tanto para interessados em história quanto em literatura, estabelecendo um rico diálogo entre as duas áreas. Como tratado nesta resenha, a quantidade de fontes narrativas é grande, fornecendo um panorama geográfico e temporal vasto para entender as manifestações literárias sobre discursos de poder entre 1300 e 1800.

Notas

2. Um exemplo seria o trabalho de Mamede Mustafa Jarouche, na tradução direta do árabe para o português da obra Livro das Mil e Uma Noites, publicada no Brasil em 4 volumes. JAROUCHE, Mamede Mustafa. O Livro das Mil e Uma Noites: volume I – ramo sírio. v. 1. São Paulo: Editora Globo, 2005.

3. Este título se refere a uma gama de traduções e adaptações, alguns exemplos sendo O Livro de Sinbad, na versão árabe, e The Seven Sages of Rome, como é chamado em vários outros idiomas.

4. Tradução de minha autoria.

Annie Venson Bogoni – Graduada no curso de História (Licenciatura e Bacharelado) da Universidade Federal do Paraná. Mestranda em História pela mesma instituição.


LEEUWEN, Richard van. Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800. Leiden: Brill, 2017. Resenha de: BOGONI, Annie Venson. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.2, p.141-150, 2017. Acessar publicação original [DR]

A Consciência Histórica Africana | Babacar Diop e Doudou Dieng

A Consciência Histórica Africana, organizado por Babacar Mbaye Diop (professor no departamento de Filosofia da Universidade Cheikh Anta Diop, Senegal) e Doudou Dieng (doutor em Filosofia pela Universidade de Rouen, França), é uma compilação de textos de autores das áreas de história, física, letras, entre outras, evidenciando a construção Ocidental sobre o que é a África, elucidando os processos que induziram à uma concepção de existência de um continente atemporal e ahistórico. Expondo esse processo, os autores da coletânea defendem caminhos para que essa imagem deixe de existir, sendo o principal deles a retomada da consciência histórica africana, fazendo jus ao título da obra.

A obra é iniciada evidenciando: a África Negra encontra-se em uma situação de precariedade e exposição perante o Ocidente, o qual busca manter seu controle sobre o povo negro por intermédio da falsificação e forjamento de fatos históricos. Ou seja, diante a constatação de que uma civilização como a egípcia seria fruto de um povo africano, e não do ocidente, os ocidentais – sabendo que a tomada da consciência histórica dificultaria as investidas de controle, manipulação e imposição – forjaram uma historiografia desfavorável aos nativos do continente africano. O resultado de tal embate é a concepção de uma África ahistórica, sem desenvolvimento, do homem africano como aquele que nunca contribuiu para a humanidade. Enquanto isso, os ocidentais se colocariam como recuperadores da história do continente por intermédio de missionários, militares, administradores e mesmo pesquisadores, como demonstra Thiago Stering Moreira da Silva, formado em História pela UFJF, que reafirmava a percepção eurocêntrica da África. Sob esse quadro, Diop defende que a verdade e a memória histórica poderiam engrenar revoltas e a formação de uma consciência histórica que inseriria o continente na história mundial, deixando de negligenciá-lo. O africano deve, portanto, analisar o passado de seu povo. A história da África deve ser apresentada não como a história de europeus no continente, mas partindo da experiência de populações africanas em contato com eles. Assim, a partir desta concepção historiográfica, outras obras africanas enriquecem o debate sobre a construção da história da África, como a Coleção da História Geral da África – Metodologia e pré‑ história da África, organizado por Ki Zebo, de oito volumes, além da obra Historiografia da História de África de Manuel Difula.

Bwemba Bong’, membro do Círculo Samory e do Groupe de Réflexion Sur la Culture Africaine pour la Renaissance du Peuple Noir, aponta que a decadência dos grandes impérios do continente – como a civilização egípcia – deve ser analisada em tal retorno ao passado e pode ser resumida tanto em causas internas quanto externas. O autor se volta à necessidade de escutar as narrativas de antigos eruditos e absorver seu saber. A quebra de tal silêncio, conclui, poderia salvar a África do poderio estrangeiro, e o sistema de transmissão de conhecimentos e tal tradição oral devem ser reformulados de forma a torná-los acessíveis para as novas gerações de historiadores da África. Além da importância da cultura oral, os povos africanos têm uma relação diferente da relação de dominação do homem sobre a natureza mantida pelos ocidentais: a concepção africana perpetuou a visão do ser humano integrado à natureza, não dominador dela. Além desses aspectos, a ética contra a acumulação de riquezas, a exclusão de promoção social, a crença de que ricos são abençoados por deus e a visão da morte como passagem para outra vida, quando comparados à cultura ocidental, passam a ser considerados outros fatores internos que geram uma inércia mediante os acontecimentos e devem, para o autor, desaparecer.

Diante de tais características, o autor evidencia a necessidade do africano de refletir sobre sua história. A falta de patriotismo, por sua vez, levaria a traições, à existência de uma prejudicial ganância e a uma confiança demasiada no estrangeiro que corromperiam a consciência histórica tão necessária para as sociedades africanas. Dentre tais formas de traição, a renúncia à independência e a subjugação às potências mundiais seriam outra prova de que os países africanos não podem ser mais um prolongamento destas. A garantia do futuro e da unidade política do continente, conclui o pesquisador, só ocorrerá por tal tomada de consciência e mobilização por parte do africano. Um exemplo desse processo de dominação externa sobre o povo africano trazido pelo historiador Momar Mbaye é a Guerra do Biafra, um processo de evolução política perpassado por extrema violência que marcou a Nigéria sete anos após a sua independência, analisando a cobertura que a imprensa internacional fez do conflito, manipulando as mídias do hexágono através de agentes pró-biafrenses.

O argumento central do livro é reforçado por Bernard Zongo, utilizando o intelectual senegalês Cheikh Anta Diop. Afirma que a restauração da consciência histórica do homem negro consiste numa luta constante contra as instâncias de dominação, que tentam de diversas maneiras preservar o seu estatuto. Seus exemplos são os “pseudo-científicos” ou “pseudo-humanistas” Voltaire, Hegel, Gobineau, Bruhl e Hume, que no século XIX se aplicaram a legitimar moral e filosoficamente a “inferioridade intelectual” dos negros, travestindo dados científicos para corroborar com uma ideologia de submissão e dominação desse povo. Analisando de um ponto de vista linguístico, o autor introduz o conceito de glatofagia: a ideia de que as línguas, culturas e comunidades dos outros existem apenas para provar a superioridade das línguas ocidentais, sendo fósseis da evolução das mesmas, afirmando que toda a linguística africanista francesa carrega os germes de uma ideologia glatofágica.

Reconstruindo a consciência histórica, a segunda parte da obra é denominada “As Origens egípcias da civilização africana”. Ressalta o trabalho de Cheikh Anta Diop, dedicado à uma análise sobre as relações do Egito com a África Negra que tanto foi impedida pelo colonizador. O contexto inicial é a “partilha da África” promulgada pelo pacto de Berlim, e a dominação de seu povo por países europeus. Diop mostra como se deram as relações de poder, especialmente o método dos europeus de legitimar seu domínio através da filosofia, além de todo o poderio econômico, militar e bélico que insultava a cultura existente nos territórios africanos. A construção do Egito branco demonstra a concretização de uma política racista que subjugou o negro como incapaz de construir e produzir avanços científicos. A consciência histórica africana é, portanto, uma forma de resistir às filosofias infelizmente fecundas que legitimou a opressão por parte dos brancos – que fizeram o indigno trabalho de produzir uma ciência que solidificou a desigualdade.

É necessário resgatar e reconstituir as relações Egito – “África Negra” para estimular a consciência histórica africana, além de buscar a relação África – Mundo. Cheikh Anta Diop separa vários aspectos que podem resgatar tal relação, como a origem do homem (no sentido antropológico), e os aspectos culturais, sociológicos, geográficos, evolutivohistóricos que aproximam a África-Negra do Egito e do mundo. Aponta também a importância do surgimento da Escola africana de Egiptologia para a resistência negra. O professor afirma ainda a existência de uma unidade entre as culturas egípcias e as da áfrica-negra realizando uma comparação lexical entre egípcio antigo e as línguas negro-africanas como fula, wolof, serer, soninquê, bamba, dogon.

Cheikh Anta Diop defende a necessidade de uma escrita sobre a história da antiguidade africana, que abranja as antigas sociedades, mas destaca a impossibilidade dessa narrativa ser realizada por indivíduos não-africanos. A construção da antiguidade dessas sociedades ocorreria a partir de documentos escritos egípcios, cartagineses e gregos, fontes arqueológicas localizadas principalmente no Vale do Nilo, e os quadros rupestres. Assim, o autor Babaccar Sall enfatiza a busca de uma história africana, contada por africanos, a partir de fontes africanas. E evidencia que o conhecimento das antigas sociedades é fundamental para a construção da consciência negra, e não uma busca por um passado grandioso forjado.

Por fim, a temática se volta para as teorias filosóficas africanas, que, segundo a pesquisa do Pr. Obenga, se inserem na história geral do continente a partir dos estudos do período faraônico egípcio – na criação de uma língua tão complexa quanto os hieróglifos e sua forma de pensar. Para o professor, diferente do que afirmam os pensadores ocidentais, o Egito e a Etiópia criaram formas de organização e sociedades muito particulares e desenvolvidas. O conhecimento destas teorias filosóficas africanas contribui para a construção de uma consciência própria, da mesma maneira que a antiga Grécia é um pilar para o conhecimento europeu, o antigo Egito se consolida para a África. Portanto é necessário inserir o pensamento africano dentro da história do pensamento mundial, não o tratar de maneira segregada ou inferior. Outras obras de pensadores africanos enfatizam a existência de uma filosofia própria africana e sua relevância tanto na construção da identidade do continente, como na discussão com a história europeia. Tal como a obra de Marcien Towa, um filósofo camaronês, denominada A ideia de filosofia negro-africana e o livro A Invenção da África de V.Y. Mudimbe.

Na terceira e última parte do livro, “O contributo da comunidade negra e do Egito para a civilização”, os autores trazem provas, baseados no conhecido filósofo Platão, de que o Egito sempre foi posto como parte da África. Primeiramente, Jean-Paul Mbelek afirma, como ideia recorrente em todo o texto, que a construção da Europa como uma cultura universal originariamente grega foi embasada em uma mentira cultural, assim como toda a história científica. Tal ato negligenciou, e ainda negligencia, toda a produção de conhecimentos africanos.

Quase ironicamente, ao discorrer sobre o Egito na obra de Platão, Théophile Obenga, outro autor da coletânea, expõe que os próprios gregos, retratados pelo Ocidente como gênese da civilização, atribuíam tal fato aos egípcios. Além disso, para evidenciar a omissão do continente africano como parte da História desde os primórdios das produções na Antiguidade, o autor cita um fato no mínimo curioso: 12, das 28 obras que incluem os Diálogos de Platão, cita o Egito. Porém, como tudo que envolve a África e serve para provar sua participação em produções filosóficas que a retiram do papel de inércia pintado pelos ocidentais, pouco se fala sobre tal inclusão. Tal crítica é realizada também pelo autor V. Y. Mudimbe, em sua obra A Ideia de África, em que traça uma conexão entre o mundo greco-romano ao continente africano, problematizando a tradução dos escritos de Filóstrato e a articulação feita pelos Europeus na construção de conceitos sobre a África.

Além disso, mais feitos são atribuídos aos africanos, segundo Obenga: a invenção das ciências matemáticas, a invenção do zero. A gênese da civilização mundial atribuída à África, como exposto no parágrafo anterior, é comprovada por fósseis encontrados não no Egito, como pode se imaginar numa primeira leitura, mas no Quênia, Etiópia e África do Sul. Sendo assim, Mbelek defende que o processo de hominização ocorreu somente na África por muito tempo.

Convergindo com a ideia central do livro – a retomada da consciência histórica como forma de resistência – consideramos de fundamental importância que o estudo sobre a história africana receba tanto mais investimento, como incentivos. Além das provas evidenciadas no livro, que demonstram os percalços para que tal empresa seja feita, o próprio grupo encontrou dificuldades ao pesquisar termos, conceitos e até mesmo as origens dos diversos escritores que produziram o livro. Quando muito, tais informações eram encontradas em outras línguas (não por acaso, majoritariamente a língua francesa, devido ao imperialismo Francês sobre a África). Portanto, os processos de domínio sobre o continente africano não estão delimitados apenas aos séculos passados, mas são recorrentes até os dias de hoje. Tanto na ocultação de informações sobre a África e as produções científicas que lá ocorrem, como na forma que ela é retratada dentro de livros escolares, que geralmente expõem apenas o Egito como grande civilização, retratando-o como branco e induzindo ao equívoco de considerá-lo europeu, negligenciando a formação de todo o continente Africano por diversos séculos, até que colonialismo o coloque como fonte de escravos.

Referências

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DIOP, Babacar Mbaye; DIENG, Doudou (Org.). A Consciência Histórica Africana. Luanda: Edições Mulemba da Faculdade de Ciências sociais da Universidade Agostinho Neto, 2014.

KI-ZEBO, Joseph (Org). História Geral da África: Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Editora Ática/Paris: UNESCO, 1982.

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde, Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.

MUDIMBE, Valentin Yves. A Ideia de África. Portugal: Edições Pedago, 2014.

SILVA, Thiago Stering Moreira da. Caminhos e descaminhos da historiografia da História da África (1840-1990). Trabalho Monográfico de Graduação em História – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010. Acesso em 4 set. 2018.

TOWA, Marcien. A ideia de uma Filosofia Negro-Africana. Trad. Roberto Jardim da Silva. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: NEABUFPR, 2015.

Eleonora Beatriz Ramina Apolinário – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Giulia Aniceski Manfredini – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Marcelo Augusto Farias – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Martins Mariana Mehl Gralak – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.

Rebeca Nogueira Vilodres – Estudante do sexto período de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela UFPR.


DIOP, Babacar Mbaye; DIENG, Doudou (Org.). A Consciência Histórica Africana. Luanda: Edições Mulemba da Faculdade de Ciências sociais da Universidade Agostinho Neto, 2014. Resenha de: APOLINÁRIO, Eleonora Beatriz Ramina; MANFREDINI, Giulia Aniceski; MARTINS, Marcelo Augusto Farias; GRALAK, Mariana Mehl; VILODRES, Rebeca Nogueira. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.1, p.115-123, 2017. Acessar publicação original [DR]

Fé, Guerra e Escravidão: Uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898) | Patrícia Santos

Em sua obra, Patricia Teixeira Santos abre caminhos para uma abordagem comparativa da história do Sudão ao analisar as relações entre cristãos e muçulmanos na região que compreende as atuais regiões do Sudão e do Sudão do Sul, focando nos alcances que os contatos entre diferentes grupos – que serão discutidos mais adiante – possibilitaram ou dificultaram. Para tanto, utiliza como fontes cartas e relatos de missionários católicos durante o período em que foram prisioneiros do governo da Mahdiyya. Santos contribui, com seu trabalho sobre fins do século XIX, para as perspectivas de análise das atuais discrepâncias e conflitos da região, objeto de interesse deste trabalho.

Santos escolhe o período da Mahdiyya (compreendido entre 1881 e 1898) como recorte temporal, porque o vê como um complexo cruzamento de universos histórico-culturais e como um momento de articulação de diferentes realidades políticas. Como sugere o título de sua obra, os caminhos pelos quais a discussão do governo do mahdi perpassa, são: fé, guerra e escravidão, aspectos estes considerados importantes para analisar a história do Sudão e a relevância desses três temas para suas questões políticas atuais. A autora coloca o mahdismo no caso sudanês como um movimento messiânico social e político, centrado na construção de uma ordem política e social baseada no poder carismático do seu líder (o mahdi). É importante observar o período deste Estado mahdista como significativo devido à sua continuidade na constituição do Estado nacional sudanês, pela permanência de formas de governabilidade, de redefinição de identidades e de redistribuição de poder e prestígio.

A região que hoje pertence ao Sudão e ao Sudão do Sul possui inúmeras “camadas” em sua história, tornando-se de uma enorme complexidade. Portanto, entendemos que para melhor compreendê-la hoje, é preciso compreender também as diversas formas que assumiu e assume. Assim, dos processos de migração árabe para a região, que tiveram maior intensidade durante o século XIV, percebemos o início de uma intensa interação entre as culturas e religiões muçulmanas e as sociedades cristãs sudanesas (Ibrahim, 2010, pp. 77-98), que viriam a refletir imensamente nas questões políticas futuras. Já nas primeiras décadas do século XIX, guerras locais e instabilidade política deram abertura para a incursão de Muhammad Ali, então vice-rei do Egito, que objetivava anexar o Sudão aos seus territórios. Patricia Teixeira Santos sugere, em seu primeiro capítulo, que Muhammad Ali teria se aproximado – em diferentes aspectos, como religião, economia e formas de poder – da França e de outras potências europeias, na tentativa de atingir uma autonomia inédita do Egito em relação aos impérios europeus. (2013: 34). Para Eve Powell (apud Santos, 2013: 36), esse momento de dominação egípcia tentou rearranjar o Sudão e dar à região uma nova cara, vendo o Sudão como uma colônia dentro de um projeto mais amplo de ações imperiais tentadas pelo Egito, que seriam suprimidas mais adiante. Com isso, o Sudão sofreu o primeiro período daquilo que se aproxima de uma forma de dominação colonial, com a imposição de um governo “turco-egípcio forte e de autoridade soberana e incontestada, pelo direito de conquista”, chamado de Turkiyya, compreendido entre 1821 e o início da década de 1880 (Mamdani, 2009).

Segundo Ibrahim, a intervenção turca modificou a sociedade sudanesa tradicional, suscitando descontentamento, mas por si só não conseguiu reverter ou reorganizar suas estruturas. Para este autor, seria somente com o mahdi que os sudaneses poderiam se rebelar em massa, dando lugar a um Sudão independente, que logo enfrentaria o imperialismo britânico. Ainda segundo Ibrahim, no sul, ataques de captura de escravos, pilhagens e rapinas prosseguiram de qualquer forma, tornando o que era uma estrutura de domínio socioeconômico em “uma estrutura de domínio racial que deu lugar a uma ideologia de resistência racial entre os africanos do Sudão Meridional” (2010: 433-444).

A partir do exposto por Ibrahim, é possível voltar ao texto de Santos a fim de estabelecer algumas conexões e distanciamentos a respeito do período inicial da Mahdiyya no Sudão. A autora lembra a distinção através da categoria de raça durante o domínio dos povos sudaneses pelos egípcios (estes se referiam àqueles como abd, que significa escravo/negro, ou núbio), iniciando um processo de diferenciação que segregava, produzindo um discurso de superioridade em relação ao “outro” construído (2013: 39). As distinções raciais, segundo a autora, eram feitas com base na cor da pele, no comportamento sexual e nas atitudes religiosas. Esse processo de submissão, marcado pela diferenciação racial, criou também a submissão em relação ao trabalho, onde as populações não muçulmanas eram coagidas ao trabalho na lavoura de exportação, gerando nas populações e lideranças locais um forte sentimento de descontentamento e revolta, como apontou também Ibrahim.

É nesse contexto que se estabelece, em 1881, o mahdi no Sudão. Santos lembra a busca de alianças do mahdi com os povos não muçulmanos em torno de um inimigo comum, que seria o domínio otomano-egípcio. No mesmo sentido de Ibrahim, Santos afirma que a estruturação do movimento mahdista, capitaneado por Muhammad Ahmad, criou um espaço de interação entre os povos sudaneses, fazendo convergir diferentes conflitos que, acompanhado da fragilidade do domínio otomano-egípcio, resultou em ações integradoras entre as diferentes populações. Desta forma, percebe-se que os grupos étnicos [2] são fundamentais para os processos destacados. Os relatos dos missionários, assim como os dados etnográficos de Evans-Pritchard citados por Santos, que viam os “nativos” ora como “belicosos e não confiáveis”, ora como “atrevidos e guerreiros” (Santos: 77), apontam para a ideia que a autora lança no início do texto, a de que a empresa colonial não tinha certeza dos rumos para os quais seguia, assim como para a noção de que o domínio colonial não era inexorável [3]. Santos aponta para a importância dessas populações locais nos processos de resistência e de luta, como por exemplo o papel dos nuer nas reações contra as razias otomano-egípcias, a proximidade maior dos povos dinkas com os missionários católicos, as redes de solidariedade que se estabelecia entre esses últimos contra outros povos, entre outras (Santos: 82-99).

Santos relembra os estudos de D. H. Johnson para afirmar a necessidade de se redimensionar o papel dos líderes religiosos sudaneses, a fim de analisar como conseguiram possibilitar a inserção e sobrevivência dos grupos nas três principais experiências políticas, religiosas e econômicas de controle sobre as populações, quais sejam: o domínio otomano, a Mahdiyya e o condomínio anglo-egípcio (2013: 84). É interessante pensar esses diálogos como uma forma de fugir à ideia generalizante de fundamentalismo, dando espaço às especificidades da região [4]. Santos afirma que as identidades étnicas e as relações de poder e de ocupação da terra ganharam diversas significações diante dos processos de interação, acomodação, sujeição e dos enquadramentos que foram realizados para a sobrevivência em contextos de grande interferência política como os aqui elencados. Assim, a escravidão pode ser vista como um elemento de convergência entre esses povos, a exemplo disso, a união dos dinka e shilluk contra os baggara, traficantes de escravos nômades (Santos, 2013: 87-88).

Ainda nesse sentido, o que se observa hoje ao se estudar as estruturas políticas sudanesas pode ter como uma das primeiras manifestações, de acordo com a autora, as zeribas [5] , que estabeleceram ou reforçaram fronteiras entre diferentes povos do sul do Sudão, concorrendo amplamente com as missões cristãs, que buscavam agrupar os grupos étnicos, principalmente os dinka, em torno do projeto civilizatório católico, que acabou por se desfazer devido à maior adesão desses povos à Madiyya, pelo forte caráter de pregação que o mahdi conseguiu estabelecer entre os povos não muçulmanos (Santos, 2013: 88) [6].

As divergências entre grupos religiosos, analisadas por grande parte da historiografia acerca da história do Sudão, também são analisadas por Patrícia Teixeira Santos. Parte dos grupos nuer e nuba recusavam o islamismo, uma vez que os baggara eram muçulmanos. De tal maneira, inicia-se o processo de consolidação de uma oposição, reforçada pelo missionarismo em sua prática cotidiana e em seus relatos, que é a de “povos negros” versus “povos islamizados”, levada adiante pelo domínio colonial anglo-egípcio (período entre 1898 e a independência do Sudão, ocorrida no início de 1956) e estendida até os dias de hoje [7]. De acordo com Mamdani, os processos de violência no Sudão atual, a exemplo do genocídio desenrolado durante os conflitos, têm como ponto de origem esse legado colonial de divisão em “tribos”. Outro motivo apontado pela autora, no decorrer do último capítulo, para o reforço dessa oposição pautada em conceitos de raça é o fato de que, durante o condomínio anglo-egípcio, oficiais de origem otomana, egípcia e do norte do Sudão ganharam postos comerciais e de “repressão ao tráfico” na província de Cordofan, ao mesmo tempo em que apoiavam o comércio escravista, gerando um aparato que potencializava o comércio de escravos. Além disso, lembra a campanha de combate à escravidão realizada por militares e agentes consulares europeus, que culpabilizava a figura do traficante “árabe muçulmano” como responsável por todas as questões relacionadas ao tráfico e à dominação dos povos africanos, ignorando a aparição, nas fontes, de personagens europeus – representantes oficiais ou não-oficiais da administração colonial – ligados ao tráfico.

Patrícia Teixeira Santos reforça, em sua conclusão, que dentro do contexto de transformações pelo qual passou o Sudão no período da Mahdiyya, sufis e cristãos europeus católicos conseguiram encontrar seu lugar em meio às disputas e interseções entre religião e economia no sul do Sudão. Essas interações se criavam de forma bastante porosa, permitindo movimentações e buscas de diferentes possibilidades, principalmente na negociação com o domínio otomano-egípcio (2013: 297). De qualquer maneira, a autora considera importante analisar o período do mahdi como um momento que conseguiu congregar e estabelecer uma série de relações entre diferentes grupos, como traficantes, povos nômades, ordens sufis e grandes comerciantes do Sudão, levando à constituição de um Estado que produziu ele mesmo essas diferentes categorias de sujeitos, que influenciavam na dinâmica da sociedade sudanesa. Isso possibilitou a integração de diversos elementos da experiência religiosa na política, ou seja, na criação de um estado islâmico, que levou à produção de “novas concepções a respeito de fronteiras, do sagrado e da assimilação e reelaboração de experiências políticas e culturais europeias”. Essas questões apontam, de acordo com Santos, para a singularidade do mahdi e à longevidade desse Estado (2013: 299). Cabe ressaltar, a fim de conclusão, a importância que as discussões provocadas pelo estudo de Patrícia Teixeira Santos podem adquirir para além das análises dos conflitos sudaneses e sul sudaneses, podendo ser utilizado para novos trabalhos quem pensem vieses mais globais, que engendram discussões envolvendo tradição e modernidade, ou o fundamentalismo atual, por exemplo. Estes temas aparecem, vez ou outra, com maior intensidade, principalmente quando retratados a partir de perspectivas engessadas, construídas fora do eixo sul-mundo, tornando necessárias novas análises, para as quais Patrícia Santos nos serve de exemplo.

Notas

2. Santos se refere às populações de origem dinka, nuer, shilluk, niam niam, nuba e bari (2013: 77), cuja discussão não cabe na proposta deste trabalho. Para aprofundar os estudos sobre grupos étnicos, suas definições e a forma como se explicam suas fronteiras, ver Barth. BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, pp. 25-67.

3. Para uma leitura sobre as intenções coloniais e suas políticas criadas nas colônias, ver COOPER, F. Repertorios imperiales y mitos del colonialismo moderno. In: Imperios: una nueva visión de la Historia universal. Barcelona, Crítica, 2011, pp. 391-446.

4. Mahmood Mamdani também se insere nessa discussão ao afirmar o erro das divisões coloniais, que categorizavam as populações sudanesas em grupos baseados na questão religiosa e de terra.

5. As zeribas eram fortificações utilizadas inicialmente para o estoque do marfim sudanês que seria levado para o Egito. Porém, com o aumento do tráfico de escravos, passaram a servir de local de pouso para os escravos, e com o rendimento desse negócio, os traficantes passaram a submeter as populações próximas aos impostos e ao trabalho nas zeribas (Santos, 2013: 87-88).

6. A autora destaca a relativa emergência das zeribas, as disputas regionais por mercado e poder e a deserção de soldados das tropas otomano-egípcias como fundamentais para uma maior adesão ao mahdi, que conseguiu criar uma nova forma de organização social, a fim de suplantar os laços entre otomanos, egípcios e outros povos do Sudão.

7. Com o acesso às fontes missionárias, no final do século XIX, destaca-se o uso de “categorias como “bárbaro”, “ansar”, “negro”, “árabe”, “branco”, criando novas e singulares enunciações que marcaram o processo genealógico do racismo que as práticas normatizadoras da administração anglo-egípcia incorporaram e reforçaram a fim de construir uma ordem, através da gestão de uma hierarquia de distinções raciais baseadas em pressupostos biológicos, religiosos e “civilizacionais” (Santos, 2013: 303). A Igreja, cumprindo seu papel como mediadora desses processos, cria, dentro do espaço da educação, a possibilidade de hierarquizar as diferentes populações do Sudão nas categorias supracitadas – às populações negras “não árabes” foram delegados os trabalhos manuais e agrícolas, e aos muçulmanos e cristãos do norte a integração na administração colonial, inserindo essa forma de controle na lógica do domínio colonial (Santos, 2013: passim). A partir disso, pode-se pensar como essas categorias, estáticas e em grande parte pautadas em definições racistas, são utilizadas até hoje, para definir e “entender” as diferentes formas de relações políticas e sociais no Sudão e no Sudão do Sul. Na obra citada anteriormente, Mamdani (2009: 06) cita o processo que chama de “racialização” realizado pela empresa colonial no Sudão, ao qual se pode responsabilizar o quadro da violência atual, que colocava a oposição entre “árabes de pele clara violentando negros africanos”, resultando na criação de oposições entre o que o autor chama de “identidades tribais”.

Referência

BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.

COOPER, F. Repertorios imperiales y mitos del colonialismo moderno. In: Imperios: una nueva visión de la Historia universal. Barcelona, Crítica, 2011.

IBRAHIM, H. Iniciativas e resistência africanas no nordeste da África. In: BOAHEN, A (org.). História Geral da África, vol. VII. São Paulo: Editora Ática, 2010.

MAMDANI, M. Saviours and Survivors: Darfur, Politics and the War on Terror. Cidade do Cabo: HSRC Press, 2009.

Suellen Carolyne Precinotto – Atualmente mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Graduanda na UFPR quando a resenha foi aceita.


SANTOS, Patrícia. Fé, Guerra e Escravidão: Uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898). São Paulo: Fap-Unifesp, 2013. Resenha de: PRECINOTTO, Suellen Carolyne. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.1, p.115-123, 2017. Acessar publicação original [DR]

Haji. The suicidal State in Somalia: the rise and fall of the Siad Barre Regime, 1969-1991 | Mohamed Ingiriis

A obra apresentada por Mohamed Ingiriis, pesquisador somali que atualmente está finalizando seu doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Oxford, é resultado de uma minuciosa pesquisa sobre o governo de Siad Barre. O trabalho reflete muito da trajetória acadêmica do autor, que tem seu campo de pesquisa concentrado nos estudos políticos sobre a Somália, apresentando uma abordagem focada na história da formação do Estado somali, perpassando a sociedade e cultura local. Sua pesquisa está ligada ao Centro de Liderança Africana (CLA) da Universidade de Oxford. O historiador somali é chefe de um projeto de pesquisa de construção da paz, dirigido pelo CLA, além ser também um especialista em Somália/Somalilândia nos temas relacionados à democracia, do Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, Suécia. Ademais, Ingiriis tem uma série de trabalhos publicados que versam os temas já abordados e que questionam a sociedade patriarcal na Somália, a relevância da mulher nesta sociedade, seu papel e a relação com os clãs.

Para expor sua proposta de análise do sistema político da Somália, no período em que Siad Barre governou (1969-1991), Ingiriis aponta que a base de sua pesquisa foram documentos do Estado, notícias de jornais, sobretudo, africanos, mas também telefonemas para indivíduos que estiveram ligados ao governo de Barre. As fontes que compõe a obra são vastas e retratam uma minuciosa pesquisa, que traz muitos elementos ainda pouco abordados sobre este período no país africano. Neste sentido, o autor afirma que seu objetivo neste trabalho é mapear e discutir como Siad Barre chegou ao poder, como ele construiu seu regime, apontando quem foram os agentes envolvidos nesta escalada ao poder e, essencialmente, qual o tamanho do legado do ex-líder somali e sua contribuição para as guerras clânicas que a Somália enfrenta ainda nos dias atuais. A obra esta dividida em cinco partes com onze capítulos, em uma narrativa que constrói uma sequência histórica dos eventos que permearam o país durante o regime militar e se encerra com uma conclusão que sumariza os argumentos e observações da obra. Ao longo dos capítulos o autor procura associar a narrativa histórica à série de fontes presentes no livro, buscando assim lançar as bases para a compreensão deste período aliando uma perspectiva crítica a historiografia sobre o tema.

A época observada compõe vinte e dois anos da história do país do chifre da África, e para Ingiriis modelou os conflitos que a Somália enfrenta ainda hoje. Valendo-se de modelos heurísticos de análise dos pesquisadores africanos Achille Mbembe [2] e Mahamood Mamdani [3] , o autor constrói uma narrativa histórica linear, que percorre a queda do governo civil em 1969, com um golpe de Estado dado pelo General Siad Barre, chegando até a fuga do líder em janeiro de 1991 da capital Mogadíscio. Focando, sobretudo, nos aspectos políticos da história da Somália, o pesquisador somali discute como este governo ditatorial configurou uma política baseada no clânismo e nas negociações com a URSS e com os Estados Unidos. Segundo o historiador somali, a União Soviética tem protagonismo na formação da Somália como uma República Democrática que se declarava socialista e era governada por um partido comunista liderado por Barre. No entanto, ao longo da obra ficam claras as contradições deste novo sistema político – tendo em vista que a Somália até 1969 adotava um sistema de eleições diretas para o parlamento e para os cargos de Primeiro Ministro e Presidente – ele assume, como frisa Ingiriis, uma posição comunista, baseada nos textos de Marx, mas também leva os escritos do Corão em consideração, respeitando uma série de costumes islâmicos que entram em contradição com o marxismo. Neste ponto, se expõem as problemáticas entorno da adesão dos pressupostos do comunismo soviético, em oposição aos costumes e práticas ligadas às tradições somalis (a forma de organização clânica [4]), sobretudo, a religião islâmica, que é maioria no país e rege muitas práticas sociais e até políticas na Somália.

Problematizar os desenhos do regime de Siad Barre é o ponto central do texto que apresenta uma quebra com uma série de trabalhos elaborados por historiadores sobre a Somália, particularmente, o período do regime do General Barre. Há muitas dissonâncias entre as pesquisas produzidas, alguns trabalhos como de Alice Hashim (HASHIM, 1997) exprimem a ideia de que o governo iniciado com o golpe de 1969 se tornou, gradualmente, fascista, pelas medidas que implementou e com o progresso do sufocamento da liberdade. Ahmed Samatar (SAMATAR, 1995), notório pesquisador do tema, declarou, em seus trabalhos, que o regime tinha poucas ideias socialistas e uma fraca ideologia. Conclusão que não foge à argumentação do historiador somali, que apresenta incongruências do regime quanto a sua posição ideológica. Entretanto, Ioan Lewis (LEWIS, 2008) reconhecido por suas pesquisas no chifre da África, especialmente, na Somália, argumenta em suas obras que o governo do ex-líder somali foi um período conturbado, porém que não é a raiz dos conflitos clãnicos enfrentados na região desde 1991. Desta forma, o antropólogo inglês vai à contramão da tese que Ingiriis apresenta, considerando que para ele é no governo de Barre que se perpetuam os privilégios que os grupos clânicos ligados ao governo vão desfrutar. Esta prática, de permitir que os clãs ligados à família do General Barre obtivessem uma série de regalias econômicas e políticas e ainda, desfrutassem de uma certa imunidade política, é a chave para, o historiador somali, de como compreender de que maneira, após a queda do regime, o país fragmentou-se em regiões lideradas pelos chefes de clãs.

Com efeito, Ingiriis traz à tona uma discussão ainda pouco elaborada no meio acadêmico, sobre as causas do “colapso” do Estado da Somália em 1991. Tendo em vista, que poucos trabalhos foram publicados após o fim do regime, muitas pesquisas foram elaboradas ainda na época que Barre governava o país, fato que tem relevância na análise, pois muitas fontes sobre o período só se tornaram acessíveis recentemente. É neste ponto, que o livro The suicidal state in Somalia: The rise and fall of the Siad Barre Regime afirma sua relevância, pois aponta muitos elementos significativos e desconhecidos, porque expõe como membros do governo viram ou, ao menos, afirmaram ver as medidas impostas e as consequências que determinadas atitudes do ex-líder somali teve para o país.

O autor evoca ainda, algumas discussões e comparações com outros líderes africanos, como: Mobuto Sese Seko ex-ditador do antigo Zaire e Idi Amin ex-ditador de Uganda, apontando a similaridade de determinados comportamentos e alianças, destes dirigentes com Siad Barre, que inclusive teve relações próximas com ambos. De forma relevante, Ingiriis tenta demonstrar como o comportamento destes líderes militares configura um núcleo de estudos importantes para compreender as ditaduras na África e os legados que estas deixaram. Como já afirmado, o historiador somali vai destacar a relevância que as relações com Estados Unidos e URSS, tiveram tanto na Somália como nos países dos líderes citados, apresentando uma análise comparativa do comportamento das duas potências mundiais e como elas, se valendo de novas alianças modificaram o cenário de algumas regiões da África, principalmente, na década de 70 e 80.

O trabalho permeia toda a vida política da Somália nos vinte e dois anos de administração do General Siad Barre, não obstante, o autor constrói a história da Somália tendo como pilar central a história do Estado. É nesse sentido, que questionamos a centralidade deste Estado como formador de um determinado tipo de história. Esta discussão, em torno de uma história centrada no Estado tem sua relevância, sobretudo, na escrita da história do continente africano, porque carrega consigo uma série de “valores” da escrita da história ocidental e na forma de organização política predominante no ocidente. Sendo assim, quando questionamos a posição do autor em escrever um texto focado na história política do país, estamos questionando a validade da formação de um Estado na Somália. Pensando no ponto levantado por Jean François Bayart (BAYART, 2009), de que os processos políticos africanos não necessariamente, independente das influências externas, deveriam terminar na conformação do Estado, argumentamos que focar a pesquisa apenas nas estruturas políticas do regime pode possibilitar que questões culturais e sociais estejam à margem das análises sobre a história da Somália. Relegando, desta forma, um papel primordial ao Estado e justificando a necessidade de uma organização política nos moldes de Estado europeu, herdado do período de colonização.

Revelando uma observação acurada dos eventos políticos que permeiam a Somália de Siad Barre The suicidal state in Somalia: The rise and fall of the Siad Barre Regime, compõe o panorama de trabalhos que problematizam a instituição e a permanência de uma determinada elite política, especialmente, no que tange a inserção dos militares na liderança de governos africanos. Focando na figura de um líder que se constrói enquanto protetor, carismático e onipresente, Ingiriiis levanta questões de grande pertinência, já que ainda hoje a Somália sofre as consequências de um governo que primou pela permanência através de privilégios e violências institucionais.

Notas

2. A análise oferecida por Achille Mbmebe na obra On the postcolony, é largamente utilizada por Mohamed Ingiriis no sentindo de apontar que um poder de inspiração colonial estava presente em muitos ambientes da África póscolonial. O filósofo camaronês assinala o conceito de commandent utilizado pelo autor somali para abordar a ideia de que Siad Barre havia sido um militar treinado pelo colonialismo que após assumir o governo continuou a perpetuar práticas colonialistas. Cf. MBEMBE, Achille. On the postcolony. California: University of California Press, 2001.

3. Mahmood Mamdani oferece uma modelo de análise que foca no Estado na África, o autor ugandense aponta para a ideia de que os Estados pós-coloniais africanos não são nada mais que uma extensão do controle colonial. É neste sentido que Ingiriis se vale do seu modelo heurístico para problematizar a conformação e consolidação do Estado na Somália independente. Cf. MAMDANI, Mahamood. Darle sentido histórico a la violencia política en el África poscolonial. In: ISTOR, Año IV, Nº 14, 2003, pp. 48-68.

4. A designação de grupo clânico, esta ligada a tradicional divisão somali, na qual indivíduos com ancestrais em comum ligam-se uns aos outros pelos laços familiares. A Somália atualmente possui seis grandes famílias clânicas, estas tem subdivisões internas, que dão origem a sub-clãs. LEWIS, Ioan. Understanding Somalia and Somaliland: Culture. History, Society. New York: Columbia University Press, 2008. 275p.

Referências

BAYART, Jean-François. The State in Africa: the politics of the Belly. Cambridge Press, 2009, pp. 1-40.

HASHIM, Alice Bettis. The fallen state: Dissonance, dictatorship and death in Somalia. London: University Press of America, 1997. 168 p.

LEWIS, Ioan. Understanding Somalia and Somaliland: Culture. History, Society. New York: Columbia University Press, 2008. 275p.

SAMATAR, Ahmed; LYONS, Terrence. Somalia: State Collapse, Multilateral Intervention, and Strategies for Political Reconstruction. New York: Brookings Institution Press, 1995. 112p.

Mariana Rupprecht Zablonsky – Graduanda do 8º período de História – Licenciatura e Bacharelado na UFPR. Bolsista PIBID e orientanda do Prof. Dr. Hector Hernandez Guerra. Link do Lattes http://lattes.cnpq.br/5021751592431335 .


INGIRIIS, Mohamed. Haji. The suicidal State in Somalia: the rise and fall of the Siad Barre Regime, 1969- 1991. London: University Press of America, 2016. Resenha de: ZABLONSKY, Mariana Rupprecht. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.2, p.129-136, 2016. Acessar publicação original [DR]

Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica | Maria F. C. Maranhão

A presente resenha é referente ao livro Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: Um estudo sobre restaurantes, rituais e (re)construção de identidade étnica, da autora Maria Fernanda Campelo Maranhão. A obra é uma dissertação de Antropologia social defendida na UFPR no ano de 1996 e publicada como livro em 2014, integrando a Coleção de Teses do Museu Paranaense. A autora possui graduação em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá (1986), no Rio de Janeiro e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (1996). É funcionária pública do Estado do Paraná desde novembro de 1987, estando locada no Museu Paranaense, e atualmente é responsável pelo Setor de Antropologia da instituição, onde atua na gestão, pesquisa, catalogação, e cadastramento de acervos Etnográficos e Imagéticos em banco de dados digital. Possui experiência em Etnologia Indígena, Acervos Etnográficos e História da Antropologia.

A obra é estruturada em cinco capítulos. Eles tratam, respectivamente, de descrever brevemente a imigração italiana no Paraná no âmbito do projeto nacional de formação de um campesinato; explorar a identidade italiana e realizar uma etnografia do bairro; apresentar o bairro como centro gastronômico; discutir sobre o estudo da comida na antropologia, evidenciando o caráter simbólico e de construção de identidade; e apresentar de que forma as políticas públicas interferiram na formação de identidade no bairro italiano.

Em sua introdução, Maranhão afirma que pretende se utilizar da comida típica e dos restaurantes de Santa Felicidade como recorte para discutir questões de etnicidade, relações interétnicas e transnacionalidade, sendo o foco principal de sua análise a comida italiana e seus restaurantes enquanto símbolos de etnicidade. Desta maneira, ela aborda também a influência das políticas públicas locais e transnacionais na (re)construção da identidade italiana no bairro, no âmbito das comemorações do aniversário de 300 anos de Curitiba, quando houve uma valorização das etnias europeias. Ainda na introdução, a autora explica sua metodologia, na qual trabalhou com entrevistas tanto com moradores quanto com turistas, além de fazer uso de matérias documentais de pesquisa histórica, como jornais e revistas.

No primeiro capítulo, Do Vêneto a Colônia de Santa Felicidade, a autora trata da formação histórica do bairro. Assim, ela aborda a questão do incentivo à imigração para o Brasil no século XIX, responsável por um grande fluxo imigratório. A partir da década de 1850, com a imigração a cargo das províncias que agiam por intermédio das companhias de imigração, ela comenta que, no caso do Sul do Brasil, se pretendia estabelecer um campesinato, baseado na pequena propriedade e no trabalho familiar. No Paraná, núcleos coloniais foram instalados próximos aos centros urbanos, para abastecer um mercado que não era autossuficiente.

Os imigrantes que se dirigiram para Santa Felicidade eram, no entanto, originalmente da região italiana do Vêneto, e haviam sido instalados na colônia Nova Itália, no litoral do estado, mas esse assentamento não progrediu, pois os colonos não conseguiram se adaptar, devido à falta de mercado consumidor para seus produtos, e também pela ausência de orientação sobre as doenças tropicais, assim como sobre o cultivo apropriado e sobre as pragas da lavoura. Dessa forma, as famílias decidiram se mudar para o planalto, seguindo as informações recebidas pelos tropeiros que passavam pela região. Quinze dessas famílias que deixaram a colônia Nova Itália adquiriram, no planalto, terras da portuguesa Felicidade Borges, e estabeleceram sua colônia, que passou a se chamar Santa Felicidade e a atrair mais colonos italianos. Estabelecidos, passaram a vender seus produtos no centro de Curitiba.

No capítulo Identidade italiana e etnografia do bairro, Maranhão fornece algumas informações acerca da transformação da colônia em bairro de Curitiba, fruto do crescimento da cidade. Também devido à legislação, a autora afirma que não é permitida a construção de edifícios com mais de dois andares no local, o que fez com que o bairro mantivesse algumas características da arquitetura inspirada no Vêneto. Ela comenta também a diferença entre o centro – próximo à Avenida Manoel Ribas – e a periferia do bairro – mais distante, e aborda o comércio, destacando o artesanato, o vime, o vinho, e dá ênfase para os restaurantes, que são um cartão postal da cidade.

Neste capítulo, Maranhão procura fazer uma diferenciação entre o que chama de italianos de Santa Felicidade, colocando-os em oposição aos outros italianos e aos curitibanos. Ela embasa essa ideia no conceito de grupo étnico de Barth, onde mais do que uma cultura comum, é necessária a autoatribuição e a atribuição pelos outros para que se reconheça esse grupo, baseando-se também no conceito de identidade contrastiva, no qual o indivíduo constrói a sua identidade afirmando-se como diferente diante de outros grupos, ou seja, identidade que surge por uma oposição. Neste tópico, a autora considera uma identidade de italianos de Santa Felicidade que se constrói em oposição tanto aos não italianos quanto aos italianos de imigração mais recente, que não passaram pela experiência do campo. Ela ressalta que nos dois casos a Igreja Católica teria apresentado um papel fundamental nessa construção de identidade. Para a autora, a configuração atual do bairro segue os moldes dos primeiros imigrantes, visto que muitas das famílias ainda vivem em lotes originais, só que agora divididos entre os membros herdeiros, configurando o que Maranhão chama de contradas. E a rede de parentesco, que é em maneira recorrente definida como endogâmica, faz com que muitos italianos de Santa Felicidade ainda se vejam como parentes. Ela também comenta sobre a chegada, em anos mais recentes, de outras famílias italianas ou de descendentes, que acabaram por se tornar donos de restaurantes de sucesso, mas que não fizeram parte da construção inicial do bairro. Maranhão diferencia ainda o bairro dos turistas daquele dos italianos, onde convivem os descendentes das famílias.

Um Bairro Gastronômico é como se intitula o terceiro capítulo da obra, no qual a autora discute a origem dos restaurantes. O primeiro deles teria sido o restaurante Iguaçu, estabelecido com o intuito de vender um prato feito para os caminhoneiros que por ali passavam, nos anos 1940. Constituíram-se outros estabelecimentos na sequência, e o bairro foi se tornando famoso pela gastronomia. Esses restaurantes são considerados empreendimentos familiares. Outra característica comentada pela autora é a de que além de servir refeições, estes lugares são palcos para eventos. Os restaurantes típicos são diferenciados dos demais estabelecimentos de Curitiba por serem informais, ambientes familiares, destaca Maranhão.

Tratando a maneira pela qual as famílias típicas se relacionam com os restaurantes, a autora comenta que são poucas as que os frequentam, pois muitas mantém a tradição culinária em casa. Porém, desde o sucesso dos anos 1970, recorrem a eles em ocasiões festivas. Como afirma Maranhão, o bairro é relacionado com o lazer dominical dos curitibanos, e a cidade é identificada e se identifica com o bairro turístico e gastronômico.

No quarto capítulo, A boa comida de Santa Felicidade, ela comenta que o interesse dos antropólogos no estudo da alimentação existe desde o surgimento dessa ciência, mas que o alimento analisado em relações simbólicas é algo feito por pesquisadores contemporâneos. A autora cita os estudos de Roberto Da Matta, pioneiro destas discussões no Brasil, fazendo uma distinção clara entre alimento – aquilo de que o corpo precisa para sobreviver – e comida – o que se consome com prazer. Outra questão apontada é de que se deve contextualizar a refeição, identificando o que se come em dias de semana ou finais de semana, no cotidiano ou em celebrações, além de se fazer a distinção entre comida de casa e da rua. Quanto à comida nos restaurantes, Maranhão afirma que ela é composta pelo frango a passarinho, polenta frita e risoto de miúdos. Esses pratos, ainda que alterados para o consumo local, legitimam uma culinária tradicional do Vêneto, que contribui para a reinvenção da identidade italiana e do bairro de Santa Felicidade enquanto reduto gastronômico. Essa reinvenção de tradição estabelece uma continuidade com o passado histórico da colônia. Esses restaurantes levaram a comida local ao gosto dos curitibanos, que até então, tinham reservas em relação a alguns deles, como a polenta.

A comida aparece também nas festas do bairro, sendo elas 4 Giorni in Italia, e as festas da Uva e do Vinho – a primeira, realizada em outubro, para dar visibilidade aos restaurantes, a segunda em fevereiro, em comemoração da colheita da uva, e a terceira em julho para celebrar a safra anual do vinho. Nelas, os italianos de Santa Felicidade reafirmam sua identidade, em detrimento dos outros italianos e dos curitibanos. Maranhão detém sua análise nas duas últimas. A organização dessas festas é de responsabilidade quase total dos descendentes de italianos, onde eles reforçam a sua identidade étnica, baseada nos valores de família, trabalho e religião. A abertura da festa é o momento onde se dá o encontro cultural entre os donos do evento – os italianos de Santa Felicidade – e os curitibanos – para quem ele é destinado. O consumo da polenta na festa é o que a autora chama de agregação, momento no qual todos comem juntos, italianos e visitantes. Ainda é relevante comentarmos que, de acordo com Maranhão, uma vez que a Festa da Uva teve início em moldes diferentes do que se estabeleceu depois, e que somente à medida que crescia e recebia mais pessoas ela se italianizou, não há continuidade histórica dela com práticas trazidas da Itália, mas se configura numa tradição inventada.

O quinto capítulo é Um bairro “italiano” na Curitiba dos 300 anos, onde a autora explora a relação entre Santa Felicidade e Curitiba, e o papel das políticas públicas na (re)construção da etinicidade do bairro. Para ela, a relação entre Santa Felicidade e Curitiba foi bastante clara em dois momentos distintos: o centenário de fundação da colônia, em 1978, e os trezentos anos da Capital, entre 1990 e 1993. Essa (re)construção de identidade intensificada desde os anos 1970 deve ser pensada em um contexto mais amplo, o de desaparecimento da identidade italiana, como no exemplo da repressão contra italianos, alemães e japoneses realizada pela política de nacionalização do Estado Novo, de Getúlio Vargas, nos anos 1930. Com essa repressão, grande parte das atividades culturais existentes em Santa Felicidade antes da guerra desapareceu. O renascimento cultural do bairro viria apenas no final dos anos 1970. Essa divulgação de imagem italiana se deu, para a autora, em dois momentos: em 1978, no ano do centenário, o bairro já era um atrativo turístico e gastronômico, quando recebeu investimento na divulgação de sua imagem italiana pela Prefeitura de Curitiba, além do investimento em transformações que pretendiam deixar o bairro com cara de cidade italiana. Outro momento de investimento deste tipo foi nos anos 1990, com o aniversário dos 300 anos de Curitiba. Desta data, dentre outas construções, se destaca o portal italiano. Ela ressalta que estes últimos investimentos estavam de acordo com um plano de estabelecer Curitiba como cidade de primeiro mundo, cosmopolita e multiétnica.

Em sua Conclusão, ela comenta que o bairro de Santa Felicidade constrói sua imagem de duas maneiras: na perspectiva externa, olhando as pessoas de fora do bairro como os outros, curitibanos e turistas, e a perspectiva interna, se reconhecendo como italianos, sendo a imagem externa unificadora, conferindo à Santa Felicidade o status de bairro italiano de Curitiba, com destaque para o apelo gastronômico. Já para os moradores italianos, o bairro ainda é uma colônia vêneta, e eles formam, segundo Maranhão, um grupo étnico em torno de um território comum, de fronteiras simbólicas, “de temporalidade e especificidades culturais singulares: ancestralidade comum, intensa sociabilidade, laços de vizinhança, uma complexa rede de parentesco e uma ativa participação nos rituais realizados no interior do grupo” (MARANHÃO, 2014, p. 212). Por fim, a autora reafirma o fato de como a comida italiana e a politização do grupo étnico nas celebrações dos 300 anos de Curitiba têm um papel fundamental na (re)construção dessa imagem italiana, da cidade que se quer afirmar como cosmopolita.

Há alguns pontos que podemos destacar acerca da obra de Maranhão. O fato de a autora lançar um olhar antropológico sobre os moradores nos parece bastante relevante, pois, ela traz novas ferramentas para a pesquisa, como as entrevistas com moradores e turistas que, embora já tenham sido incorporadas pela historiografia como história oral, são consideradas características também da Antropologia. Ainda na questão das fontes, é interessante percebermos que a utilização da arquitetura e da geografia do bairro enriquece o seu trabalho.

Outro ponto relevante para analisarmos é a estruturação da obra. Maranhão explica desde o princípio o propósito de sua pesquisa, e constrói uma base sólida para essa análise ao longo do texto, tratando de como o bairro se constitui antes de fazer a sua análise crítica. Desta forma, o livro se torna uma leitura bastante clara e objetiva, que pode ser considerada como uma boa referência para quem pretende estudar o contexto da imigração italiana no Brasil.

Podemos comentar, por fim, a importância dos conceitos nos quais Maranhão se embasa para sua pesquisa. Citando Barth e Hobsbawm, ela deixa claro que sua análise se pauta em conceitos já bastante estabelecidos na Antropologia e na Historiografia. Trabalhando com as duas áreas de conhecimento, ela faz uma análise antropológica que acaba bastante enriquecida pela utilização conjunta de outras ciências, como a História.

Bruno Ercole –  Graduando em História Licenciatura e Bacharelado pela UFPR.


MARANHÃO, Maria Fernanda Campelo. Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica. Curitiba: SAMP, 2014. Resenha de: ERCOLE, Bruno. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.2, p.145-153, 2016. Acessar publicação original [DR]

Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica | Ronaldo Amaral

O livro Santos imaginários, santos reais. A literatura hagiográfica como fonte histórica que aqui nos propomos a resenhar levanta problemáticas que concernem a relação entre hagiografia como fonte histórica e o Imaginário. O autor almeja no âmbito das manifestações maravilhosas do imaginário a mesma relevância histórica nas esferas referentes às expressões sociais, econômicas e políticas. À vista disso, Ronaldo Amaral nos propõe reflexões acerca das relações entre a História, a Literatura e o Imaginário, cuidando em seu livro de reafirmar a importância das hagiografias para que possamos vislumbra-las à luz do passado tardo-antigo e medieval, bem como mostrar alguns caminhos para que os historiadores possam recair sobre elas seus olhares e se atentar às riquezas socioculturais que esses escritos compartilham acerca de um imaginário, que bem nos conta o autor, é sempre coletivo.

Portanto, na introdução e no capítulo um intitulado A hagiografia como fonte histórica. O imaginário relegado nos é apresentada, e somos levados a entender, as discussões teóricas no campo da história e do imaginário onde ele se torna, por excelência, em ferramenta teórico-metodológico para análise da História. Os embates que concernem ao uso da literatura, em especifico a literatura sagrada, como fonte histórica foram propiciados pela descoberta de novos métodos e teorias, nesse sentido seria uma heresia não mencionarmos a importância dos bolandistas, que por sua vez, compilavam erudições críticas de textos dedicados a santos, mesmo que naquela instância almejavam dados concretos que afirmassem uma existência real. Amaral também trata neste capítulo a importância de Hippolyte Delehaye ao ampliar os métodos bolandistas em que impunham problemas ao histórico da vida dos santos e buscava fatos verdadeiramente históricos, ou seja, para além do “fictício”. Todavia, já teria esse autor chamado a atenção para a hagiografia como fonte histórica, mesmo que seus métodos o levassem para um viés positivista em almejar a verdade objetiva, por consequência, separando o histórico do imaginário, o que Amaral em seu livro não propõe a separação da vida sociomaterial do imaginário. No entanto, é impreterível analisarmos as inovações de Delehaye a sua época, possibilitando assim entender à hagiografia como fonte histórica.

Ainda neste capítulo o autor trata que a partir do imaginário surgem hábitos, costumes e comportamentos capazes de apresentar a razão humana para o homem medieval onde suas bases fundantes estão arraigadas nas sensibilidades, nas estruturas do pensamento simbólico e analógico ao invés de pensamentos idiossincráticos forjados. Nesse sentido, nos é apresentado críticas por parte do autor aos métodos de tratamento dos santos de existência literária como não históricos. No que tange ao refutamento dos santos criados pelo imaginário dos hagiográficos o autor rebate isso afirmando que todo santo fictício é um santo por excelência, pois cumpre sua razão a ausência que viria a responder, assim sendo, muitas vezes os santos são personagens ideais no caráter personificado da santidade e que os hagiógrafos não puderam lhe escolher, foram assim, impostos por suas circunstâncias espaço-temporais próprias buscando atender as necessidades materiais e mentais de seu período histórico. Desta forma, fica evidente para o autor que sua historicidade concreta pouco importa, mas sim os atributos supra-humanos do santo.

No capítulo dois A emergência do imaginário nas fontes hagiográficas o autor menciona a hagiografia como texto literário capaz de interessar ao historiador por lhe oferecer uma fonte ordenada, cujo estudo linguístico facilita o trabalho que contempla seu contexto dentro do fenômeno histórico. Amaral, tanto neste capítulo como em outros, irá inaugurar um debate historiográfico onde contrapõe historiadores que afirmam o sincero não ser histórico, mas sim o verdadeiro ser histórico. Nessa acepção o autor levará algumas páginas discutindo o que seria a verdade, sobretudo a verdade histórica, e defende que a “realidade” apresentada pelas hagiografias não devem ser julgadas por métodos, mas sim serem entendidas na categoria do verossímil ao invés do sincero e verdadeiro. Assim sendo, por tratar a hagiografia de uma história sagrada seu teor de verdade também não deve ser buscado nas circunstancias e ideários no lugar daquele que fala, senão no lugar do qual se fala. Como afirmação de seus entendimentos o autor nos diz que as realidades fundadas em imagens e situações maravilhosas concebidas pelo imaginário são uma realidade tão verdadeira como a histórica.

Amaral continua por acentuar que à hagiografia interessa ao historiador enquanto o ajude na compreensão da vida social de sua época, embora sempre esteja atrelada a um processo histórico mais amplo, visto que a hagiografia é sempre um “recriar”, no entanto, devem ser vistas para além das estruturas econômicas e políticas, ou seja, deve ser concebida pelo imaginário. No discorrer do capítulo encontramos novas críticas, tanto benévolas como nefastas, a renomados historiadores, como Peter Brown e Santiago Castellanos a exemplo, sendo este último mais questionado, pois é partidário que a hagiografia não atende ao caráter de documento histórico, mas, apenas, pode ser tratada como fonte marginal e ser “desmentida” a partir de documentos ditos “oficiais”. Para isso, o autor nos ensinou que o que se almeja nas hagiografias é uma realidade menos precisa do que a dos documentos oficiais, visto que é menos carregada de ideologias do que tais documentos. Por meio dessas considerações o autor entende que a hagiografia é uma realidade construída e constitutiva por seus autores, uma vez que o autor é sempre o porta-voz de seu meio, concretizando assim a função do imaginário coletivo e dos ideais da comunidade. Após direcionar seus entendimentos, Amaral defende que o imaginário é um modo de apresentar a História.

No capítulo Hagiografia, biografia e história o autor irá questionar em conjunto com Jacques Le Goff, Loriga, Schwob, Pierre Bourdieu e outros autores a realização das biografias antes da modernidade, pois essas não são capazes de apresentar significações históricas gerais no que concerne uma vida individual, nesse viés, o autor nos propõe utilizarmos para investigar o período medieval não a biografia, mas sim intentos biográficos. Assim, no que diz respeito ao “processo biográfico” da vitae dos santos, esse se ocupa mais com as pródigas realizações sagradas do que com o teor laico e a exatidão espaço-temporal, no entanto, Amaral não despreza que as vitae tragam informações de uma existência mais factível dos santos, porém toda informação “factível” nas hagiografias está mergulhada no imaginário, em circunstâncias fundamentadas e objetivadas no fabuloso, milagres, aparições demoníacas, curas e lugares estão ligadas por uma função simbólica que se remete mais a uma realidade transcendente do que factível. É ressaltado por Amaral que a inconsistência histórica acerca do personagem hagiográfico, quando se deseja a biografia, não está na fonte mesma, mas sim na abordagem do historiador, desta forma, a hagiografia trata de homens que deixam de sê-lo ao se tornarem, por sua escrita, santos, ou nas palavras do autor:

“O hagiógrafo cria o santo e para tanto recria sua personalidade histórica, ou seja, aquela, talvez a única, dada a conhecer pela história; assim, haverá na hagiografia sobretudo um santo e, portanto, um homem cuja história ficará, em grande medida, identificada mais com uma existência fabulosa que eminentemente profana” (p.75).

Seguindo esse pensamento, nos é apresentado uma crítica do autor acerca da pretensão da hagiografia como biografia, pois entende que seria algo faltoso, visto que é inviável “resgatar” uma personalidade histórica factível e dá-la a conhecer posteriormente, mesmo munido de fontes. É muito latente no livro a questão de quando nos referimos a vida dos santos devemos nos ater mais ao espírito do discurso do que em sua letra, pois é neste que se emerge significados mais precisos da escrita e é ainda mais arraigado quando investigado pela ótica do imaginário.

O autor utiliza esse capítulo terceiro para assentar seu modus cogitare em que à hagiografia é constituída por verdade, sinceridade e realidade, isso porque, suas narrações se assentam em tempos, lugares e acontecimentos que antes de tudo são representações, portanto, as hagiografias são constituídas de lugares e situações ideais apresentadas por signos de transcendência, estruturas simbólicas e espaços do mítico e não por meros dados factíveis e positivos. Outro ponto fulcral tratado neste livro é quando o hagiógrafo é hagiografado, ou seja, quando descreve a si mesmo, para isso o autor traz exemplos de Valério do Bierzo, monge eremita que atribuía a si virtudes das vidas de outros padres do deserto. Para Amaral, esses eremitas mostravam tanta admiração por aqueles santos de sua mesma profissão monástica que imitá-los seria algo grandioso. Há também que se considerar a apropriação literária no âmbito hagiográfico na Idade Média, que seria mais do que uma subtração de textos e palavras das fontes, seria o que o autor chama de “aggiornamento” com adequações do lido e apropriado pelo autor vivido.

Referente ao capítulo quatro A natureza do tempo e do espaço na hagiografia, é explicitado a percepção do tempo e espaço profano/sagrado no imaginário de monges primitivos onde as noções de espaço geográfico – deserto, árido ou floresta – é mais do que um lugar, é um não lugar, isto é, um lugar que rompe com lugares humanos e seu próprio mundo temporal. Desta forma, os lugares assentados nas hagiografias sempre se remetem a imagens de caráter divino transcendental do que propriamente em espaços geográficos materiais. Portanto, o autor vislumbra que os lugares mais importantes nas hagiografias são os lugares da santidade, os lugares se tornavam santos pela presença do santo propriamente dito que não carregava consigo pecados e por essa sua santidade tornava os lugares sagrados. Nesse intento, somos levados a entender que os lugares apresentados pelas hagiografias são mais do que descrições de lugares concretos passam a ser símbolos que revertem significantes profanos os tornando sagrados com efetiva participação dos santos, como os desertos.

Nos é apresentado ainda neste capítulo o quão os espaços geográficos de desconhecimento dos homens medievais eram concebidos por uma dimensão mítica e fabulosa, com isso, o autor quer ressaltar em sua obra que o espaço era pensado mais em totalidade do que parcialidade. Amaral diz ser “auspicioso” buscar nas hagiografias um estrito espaço geográfico exato, visto que na Antiguidade Cristã os espaços serviam para separar o eremita da sociedade, portanto essa cisão de espaços dentro das hagiografias é interpretada como uma cisão para com a realidade cósmica. Nesse sentido, Amaral defende neste capítulo que os santos conseguem romper com o tempo ordinário ao se transportar miraculosamente no tempo e no espaço presenciando assim lugares distintos e longínquos em tempo curto. Desta forma, cabe ao escritor da vida do santo solitário demonstrar o lugar que ele não está, ou seja, extramundano, longe da sociedade e do pecado. O autor encerra este capítulo com a reflexão em que a vida e feitos de santos se desenvolvem em uma temporalidade da santidade, e não obedecem uma dinâmica aberta, portanto, os santos estão acima e além do espaço mundano.

No que concerne ao quinto e último capítulo Hagiografia: a tradição da escrita, a escrita da tradição, o autor nos coloca como latente a perícia que historiador tem para fazer emergir de um texto uma realidade, todavia, isso é possibilitado, e Amaral defende essa possibilidade, por meio de uma interpretação hermenêutica dos textos onde se objetiva atingir e extrair o espírito do texto, ou seja, a “vivência subjetiva do autor” que corresponderia ao seu meio sociocultural e mental. Nesse sentido, entendemos que para compreensão de um texto ou uma fonte deve-se levar em consideração todas as suas possibilidades de interpretação, ou seja, a intenção do leitor, a do próprio texto e a do autor. Outro pródigo ponto do capítulo são os apontamentos acerca da dificuldade de apreender o fato histórico em si, ou seja, compreende-lo em sua essência, pois cada apreensão, seja do leitor ou do autor, deforma-o, modela-o. Em consonância a isso é discorrido pelo autor que a realidade hagiográfica tem menos uma visão positiva e materialista da história, pois não almeja suas análises dos fenômenos religiosos por meio historicista, mas sim por meio de seus símbolos, metáforas, alegorias e outros meios que constituem a linguagem religiosa.

Ainda no que diz respeito a este capítulo quinto nos é explicitado que todo santo recriado por uma nova hagiografia, antes mesmo disso, já era um santo consagrado pela tradição, todavia ao ser recriado ganha um novo corpo individual e social ao se inserir em um outro homem histórico e o hagiógrafo fica responsável por inseri-lo em um novo espaço-temporal. Esse processo, segundo o autor, se desemboca por um produto da imaginação que busca alicerçar insuficiências mundanas do presente. Esse modelo de santidade que se almeja é sempre uma construção baseada no coletivo, pois a imaginação é o ato de um ser social e obedece a esquemas de reorganização que são comuns a um grupo. O autor enfatiza que o imaginário gesta as hagiografias e exerce sobre elas um poder de realização, o poder da retomada. Amaral nos conta que todo modelo de santidade, seja qual for, partirá de Cristo, dessa forma a fonte de seu trabalho será as Sagradas Escrituras, portanto, ressalta que na Antiguidade Cristã havia interesses ideológicos, e que os seus contemporâneos leram as Sagradas Escrituras impelidos pelos acontecimentos da época, sobretudo em visões de mundo que estavam permeadas pelo maligno e influídas pela filosofia antiga – neoplatônica e escatológica.

Levando-se em conta o que foi observado, podemos entender o quão profícuo é considerar o imaginário como pedra angular de um entendimento mais pleno acerca da Antiguidade Cristã, visto que o imaginário é interdisciplinar e compreende a vida humana em seu sentido mais amplo e profundo, pois tece seu entendimento no simbólico. Portanto, essa obra de Ronaldo Amaral enalteceu as considerações, maneiras de pensar, críticas e novas caminhos para pesquisas no campo da História. Nesse sentido, sua obra torna-se por si só uma ferramenta teórica aos interessados em vislumbrar as razões sensíveis dos homens nas hagiografias, sobretudo vistas à luz do imaginário.

José Walter Cracco Junior – Graduando do curso de História da UFMS-CPTL, bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID).


AMARAL, Ronaldo. Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013. Resenha de: CRACCO JUNIOR, José Walter. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.1, p.129-138, 2016. Acessar publicação original [DR]

Plutarco e Roma: O mundo Grego no Império | Maria Aparecida de Oliveira Silva

Maria Aparecida de Oliveira Silva – historiadora ligada à Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora no campo da História Clássica, língua e literatura da Grécia antiga, autora de outra obra sobre o autor em questão denominada Plutarco Historiador: Análise das Biografias Espartanas, de 2006, pela Edusp – expõe o papel de ligação e distanciamento entre as culturas grega e romana, desempenhado por Plutarco e sua obra, isto a partir de um extenso trabalho de doutoramento em História Social, desenvolvido entre 2003 e 2007, na Universidade de São Paulo. Trabalho este, amparado por amplas pesquisas em fontes primárias e correntes historiográficas. Assim, o livro Plutarco e Roma: o Mundo Grego no Império, de 2014, publicado pela Edusp, nasce como resultado da já citada pesquisa, abordando a forma como Plutarco (45 d.C. – 120 d.C.), um grego de Queronéia, trata a função da cultura grega e seus desdobramentos, durante o Principado, no Império Romano.

Entre os eixos em pauta, divididos em três partes, inicia-se, no capítulo I, a tratativa da relação entre Plutarco, Roma e os romanos; a partir da historiografia moderna, ressalta-se a conjuntura do período, a qual os gregos tinham um status positivamente diferenciado em relação a outros povos sob domínio romano. Desse modo, Plutarco surge com um discurso integrador entre ambos os povos, criando, principalmente em territórios helenizados, ou seja, em regiões a oriente do império, uma visão estabilizadora que converge para uma sociedade greco-romana. A autora, entretanto, observa o caráter de superiorização do pensamento e conceito de civilização grego em relação a Roma, perceptível na obra plutarquiana, como, também, a influência grega nas políticas imperiais e na questão identitária do império eram fundamentais . Por outro lado, a afirmação pode ser exagerada, pois a Prof.ª Maria Aparecida enfatiza, de modo perspicaz que “[…] outros povos também exerceram influência nas decisões tomadas pelo imperador” (p.41).

Ainda assim, a relação entre Grécia e Roma é tema de diversos estudos por parte de especialistas que pesquisam Plutarco. Não obstante, é comum a tais estudos acabarem por reforçar uma ideia de cooptação da elite grega, por parte do império, com o intuito de sustentar o poder romano por meio da intelectualidade local, , ponto relativizado pela autora. Porquanto, segundo ela, é improvável um processo de domínio cultural ter ocorrido sem alguma resistência.

Para compreender o pensamento plutarquiano é necessário ressaltar a questão literária, pois a importância de Plutarco se propagou pelo império por influência de sua obra, cujo acesso a sua literatura era possível, em especial, para a elite. Com efeito, os romanos estavam habituados desde o século III a. C. “[…] com temas e estilos literários dos gregos”. “Ainda que no primeiro século antes de nossa era a tradição literária grega tenha passado por uma época de rupturas […]”,manteve-se viva através da intelectualidade romana (p. 53). Essa manutenção da tradição literária, mesmo em período de afastamento oficial, permitiu um ressurgimento literário durante o principado, o qual foi chamado de Segunda Sofística, já que a primeira havia surgido há séculos, durante a Grécia clássica. O período, ainda, é colocado como a Renascença grega, isso porque intelectuais gregos encontraram um modo de evocar seu passado mesmo estando sob domínio romano.

Ainda sobre a Segunda Sofística, termo cunhado por Filóstrato décadas após a morte de Plutarco, a autora considera plausível reputar ao movimento certo exagero historiográfico e literário, pois tal enquadramento nasceu da necessidade de construir um conceito de continuidade nos acontecimentos históricos.

Silva expõe a ocorrência de um movimento de retorno à tradição literária grega, a Segunda Sofística, composta por um grupo de intelectuais, inclusive Plutarco, que convivia e participava da administração imperial acrescido o fato de possuírem, também, a cidadania romana. Assim, a literatura grega não seria apenas um modo de promover o conhecimento e a habilidade retórica helênica, mas principalmente para que Roma reconhecesse nos gregos a têmpera diferenciada, elemento imprescindível para a manutenção política e cultural romana. Desse modo, o povo desprovido “[…] (p.78), de pátria no sentido geográfico e político[…]”, poderia manter-se vivo por uma unidade consolidada em sua literatura.

A obra de Plutarco é analisada ou tida como […] uma manifestação cultural-identitária de um grego no império (p.79), revelando, assim, um sentimento de pertencimento ao período, outrora glorioso, da Grécia clássica.

Outra característica de Plutarco, apontada a partir do capítulo II, foi sua fundamentação da cultura grega em uma estrutura monolítica, na qual as variações se davam por diferenças de habilidades técnicas de cada cidade-estado. Por outro lado, as diferenças perceptíveis na variação geográfica grega – a Grécia ia além da Ática e do Peloponeso – eram relativizadas, sendo que identidade convergia para o plano linguístico-cultural.

Não obstante, a Grécia era parte do império e por mais que sua cultura estivesse presente no mundo romano, os gregos ainda estariam subordinados ao poder imperial. Nesse âmbito, Plutarco teria reestruturado a história de seu povo. Como colocado pela autora, a obra plutarquiana traça um paralelo entre a história grega e a romana, buscando pontos comuns em seus mitos fundadores, Teseu e Rômulo, ligando o último genealogicamente aos gregos. Também procura explicar a absorção do mundo grego por Roma e a maneira como os padrões helênicos ajudaram a construir a própria civilização nascida no Lácio. Assim, segundo Silva, Plutarco destaca que as duas civilizações estão em um nível à parte, no qual os gregos são a sabedoria do império e os romanos a força bruta e militar, relegando ao restante dos povos ligados a Roma um papel dispensável em termos contributivos. Haveria uma constituição cultural de povos irmãos, mas, discretamente, ressalta que os romanos não se aprofundavam em suas práticas como os gregos. Sintetizando, a autora traça, na página 130, o contexto acima citado como uma relação de proteção dos romanos das práticas culturais gregas, utilizando-as para fortalecer as suas tradições e organização, bem como para diferenciarem-se dos bárbaros presentes no império.

Ainda no capítulo II, como forma de demonstrar o verdadeiro motivo da derrocada grega, a autora cita a alusão de Plutarco sobre a Grécia clássica e as causas que levaram à sua fragilidade e dominação por parte de Roma. Dentre os fatores explicitados, ele aborda as guerras citadinas, tendo como expoente máximo o conflito do Peloponeso e a corrupção e suborno personificados na figura de Alcibíades. Porém, algo ainda mais grave no discurso plutarquiano é a não manutenção da tradição, principalmente no tocante à questão étnica, ligada ao discurso filosófico. Por ter um pensamento higienista e eugênico, ele considerava a participação de estrangeiros ou mestiços um risco à sociedade grega, e imputa a Alcibíades, um homem de linhagem desconhecida, a desgraça ateniense e espartana. Além de relacionar a origem desse líder grego ao seu desvio de caráter, segundo os preceitos plutarquianos regidos por normas amparadas na tradição, Silva destaca que “O julgamento moral que Plutarco induz o leitor a fazer é inevitável, pois ele usa a história para mostrar o quanto a recusa pela disciplina filosófica guia os homens para acontecimentos funestos” (p.170).

Para a autora, Plutarco é diacrônico, ou seja, busca entender os fatos históricos de acordo com a evolução dos mesmos. Com tal visão, desenvolve uma narrativa esclarecedora para todo o período clássico grego e seus conflitos até a conquista macedônica – partindo sempre da obra do pensador objeto central de seu livro e autores diversos que tratam sobre a temática –, chegando, por fim, ao “quadro de debilidade que surgem os romanos, fortes e vigorosos, a destruir e dominar a combalida Grécia” (p.199). Lembra, sempre, que o conceito de Grécia antiga não é baseado em um estado-nação e sim em cidades-estados agregadas em pequenas ligas que tinham em comum uma consistente matriz linguística, religiosa e cultural.

No capítulo III, ao tratar do mundo grego no império, Silva descreve o próprio conceito de Grécia antiga como uma criação moderna, ao passo que na Antiguidade a região consistia em várias cidades-estado agregadas em ligas. Embora haja essa fragmentação, o conceito de ser grego era existente, de modo que rechaça uma ideia bem difundida e defendida, inclusive, pela renomada Susan Alcock (1994), de que o triunfo romano teria criado a Grécia. “A noção de Grécia, portanto, não nasceu após a conquista romana; já havia entre os escritores gregos a necessidade de estabelecer traços característicos e distintivos dela.” (p.208).

Outro ponto que leva a distinguir as culturas em questão é o próprio início de uma realidade greco-romana, principiada no século III a. C., quando os gregos influenciam a organização institucional da Sicília e Magna Grécia com a adoção de um calendário comum, sistema de pesos e medidas e festas à moda grega, como descrito no terceiro capítulo. A autora sublinha tais elementos como alguns dos responsáveis pela familiaridade dos romanos com as práticas helênicas.

Em contrapartida, é destacado na pesquisa que os gregos que ocupam a antiga Grécia conservam suas práticas afastadas do modo de vida dos romanos, recusando-se a absorver algo do império. Um ponto interessante, pois a autora expõe que a maior ferramenta de helenização do império, por parte dos romanos, é o latim.

A dominação, porém, é relativa se analisada a partir de Plutarco, de modo que o mesmo aponta: “o quadro político romano não apenas expõe ao romano o que é ser grego, como ainda aponta o que há de grego nos romanos” (p.224).

Mesmo traçando paralelos diversos entre Grécia e Roma, como a analogia entre a Guerra do Peloponeso e as Guerras Púnicas, a obra plutarquiana também critica, mesmo que veladamente, o que a seu ver são distorções da sabedoria helênica, como o uso romano da geometria, destinado a construção de artefatos e máquinas bélicas. Ou então, ao evidenciar a dificuldade de Roma em aceitar o pensamento político grego ao mesmo tempo em que o exalta, como observado nas páginas 233 e 234.

Outra maneira, de se observar a resistência da cultura grega em pleno principado, apontada pela Prof.ª Maria Aparecida, é a manutenção do idioma em territórios helenizados, mesmo com a concessão de cidadania romana aos gregos.

Ao caminhar para o final do capítulo III, e consequentemente do livro, a autora destaca que Plutarco tenta demonstrar o quanto os romanos são devedores da filosofia e de Platão, pois ao buscar latinizar territórios conquistados, não se define um sistema pedagógico, além do mos maiorum, cabendo a paidea a responsabilidade de educação no império, em geral. Assim, a filosofia assumia no mediterrâneo, segundo a autora, um papel preponderante, coroado pela escola de Platão. Vale ressaltar que o próprio Plutarco convergia ideologicamente com Platão.

Em síntese, o desafio de Plutarco é relacionar-se com Roma sem comprometer sua identidade grega (p.289), ao passo que o ressurgir da tradição literária beneficiou os romanos que acabaram por encontrar em seus dominados a preservação de parte importante de sua memória. Assim, ao tratar da contribuição grega na formação de Roma, a autora ressalta o caráter híbrido na composição do próprio império romano.

Em relação ao livro de Maria Aparecida de Oliveira Silva, salienta-se, como considerações finais, o rico conteúdo que sua pesquisa sobre Plutarco traz à tona. A partir desta, vislumbra-se as relações que permeavam a multifacetada ligação entre romanos e gregos, isto a partir da percepção de um erudito grego, que além de ser cidadão romano, possui certo prestígio no império do qual sua terra natal depende política e economicamente. Para mais, é possível compreender como um povo sitiado foi capaz de manter sua cultura e influenciar os costumes de seu dominador de forma decisiva.

Ressalva-se que o período do Principado Romano é extenso e com muitas peculiaridades que vão além das relações entre Grécia e Roma, incluindo a participação de diversos povos com distintas condições culturais. Acrescenta-se a isso que a obra em questão é um estudo do discurso e do olhar de um grego sobre seu conquistador. O texto de Silva é cativante e insere o leitor no monumental legado helênico e na formação de uma matriz greco-romana na Antiguidade.

Hélio Gustavo da Silva Andrade – Formado em jornalismo pela Universidade do Oeste Paulista e aluno do curso de História e da especialização em História, Cultura e Poder na Universidade do Sagrado Coração, em Bauru/SP. Atua profissionalmente na área da educação em uma escola Waldorf.


SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Plutarco e Roma: O mundo Grego no Império. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. Resenha de: ANDRADE, Hélio Gustavo da Silva. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.1, p.139-147, 2016.  Acessar publicação original [DR]

Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina | Pilar Calveiro

Pilar Calveiro nasceu na Argentina em 1953. Envolvida em militâncias sociais e políticas, foi presa pela ditadura civil-militar que governou o país no período de 1976 a 1983. No prelúdio do livro, o poeta Juan Gelman, descreve:

“Em 7 de maio de 1977, um comando da Aeronáutica sequestrou Pilar Calveiro em plena rua e a levou ao que ficou conhecido como “Mansão Seré” […]Naquele dia começou seu percurso de um ano e meio num inferno que continuou em outros campos de concentração” (p.19)

Ao contrário da enorme maioria dos detidos em campos de concentração argentinos (cerca de 90% dos 15 a 20 mil pessoas que por isso passaram, segundo a própria autora), Pilar Calveiro sobrevive. Mais tarde, realiza doutorado em ciência política pela Universidade Nacional do México, parte da qual resulta nesse livro, lançado na Argentina em 2001. Atualmente, é professora e pesquisadora na Universidade Autônoma de Puebla (México).

Apesar dessa vivência, Calveiro não baseia seu livro unicamente no seu depoimento. Suas principais fontes são o testemunho de cinco outros sobreviventes. De acordo com ela

“Cada depoimento é um universo completo, um homem completo falando de si e dos outros. Seria suficiente tomar apenas um deles para abarcar os fenômenos aos quais quero me referir. Ainda assim, para mostrar a vivência a partir de diferentes sexos, sensibilidades, militâncias, lugares geográficos e capturadores, e mesmo fazendo referência a outros depoimentos, tomarei basicamente os seguintes: Graciela Geuna (sequestrada no campo de concentração de La Perla, Córdoba, correspondente ao III Corpo do Exército), Martín Gras (sequestrado na Esma, Capital Federal, correspondente à Marinha da República Argentina), Juan Carlos Scarpatti (sequestrado e foragido de Campo de Mayo, província de Buenos Airese, campo de concentração correspondente ao I Corpo do Exército), Claudio Tamburrini (sequestrado e foragido da Mansão Seré, província de Buenos Aires, correspondente à Força Aérea) e Ana María Careaga (sequestrada em El Atlético, Capital Federal, correspondente à Polícia Federal)”. (p.42)

O livro de Pilar Calveiro não se resume, contudo, à transmissão desses testemunhos, mas à, a partir deles, refletir sobre os desaparecimentos na ditadura argentina e sobre o fenômeno repressivo em si. Retomando o prelúdio de Gelman “este livro é uma façanha. Pilar Calveiro atravessou a situação mais extrema do horror e teve a difícil capacidade de pensar a experiência” (p.20). Ao fazê-lo, “Sua leitura contribui para a reflexão sobre a história não só da Argentina, mas dos outros países do Cone Sul, que não pode ser relegada ao esquecimento”, escreve a historiadora da USP Maria Helena Capelato, na orelha do livro.

A edição brasileira do livro tem apresentação da pesquisadora de pós-doutorado em História Social da USP Janaína de Almeida Teles intitulada “Ditadura e repressão no Brasil e na Argentina: paralelos e distinções”. Nesta, aponta algumas semelhanças e diferenças entre os processos ocorridos nos dois países. Se em ambos os casos havia uma noção de que os militares estariam salvando o país de uma ameaça inimiga, o “poder desaparecedor” descrito por Calveiro para a Argentina seria no Brasil mais um “poder torturador”. Em alguns casos, em especial no combate a guerrilha do Araguaia, a ditadura brasileira também usou a tática de eliminação total do “inimigo”. Porém, em geral, se caracterizava por “seu caráter centralizado e seletivo, permeado por preocupações com sua legitimidade institucional” (p. 14). Assim, no Brasil, o governo se preocupava em dar um ar de legitimação legal, mesmo que manipulada, às suas ações, enquanto na Argentina estava mais cristalizada a ideia de que diante de um inimigo tão perigoso, métodos excepcionais poderiam ser utilizados. Portanto, na Argentina

“o eixo do mecanismo desaparecedor era a obtenção de informação necessária para multiplicar os desaparecimentos até acabar com o ‘inimigo’”. No modelo brasileiro, por sua vez, o foco era a seletividade e a obtenção de informações para desestruturar grupos oposicionistas.” (p. 17)

Pilar Calveiro divide o livro em duas partes. A primeira, mais curta, “Considerações Preliminares”, fornece um panorama do contexto prévio ao golpe que levou o general Jorge Videla ao governo em 1976. A segunda parte, “Os campos de concentração” descreve e discute o funcionamento, a lógica e o significado dos campos de concentração argentinos.

“Considerações Preliminares” apresenta primeiramente a ascensão das forças armadas, e depois a situação das guerrilhas, vistas pela ditadura como o principal inimigo interno. Desde a década de 1930, as forças armadas cresciam em peso político e autonomia.

“Assim, ao longo de 45 anos os militares reiteradamente “salvaram” o país – ou melhor, os grupos dominantes do país. Por outro lado, setores importantes da sociedade civil também reclamaram e exigiram essa salvação. Em 1976, não havia nenhum partido político na Argentina que não tivesse apoiado algum dos numerosos golpes militares ou dele participado.” (p. 25)

Assim, o apelo às forças armadas ao reestabelecimento da ordem (e as características fundamentais de um governo militarizado) não era inédito na Argentina de 1976, quando a crise do peronismo fazia em especial as classes médias clamarem por serem “salvas”.

As guerrilhas, cujos membros formariam grande parte da população sequestrada proliferaram nos anos 1970, sejam de caráter guevarista ou peronista. Calveiro, porém, tece críticas ao autoritarismo interno a elas, o que teria colaborado, junto à repressão por parte do peronismo de direita a partir de 1974, para que já estivessem bastante enfraquecidas em 1976.

A segunda e mais extensa parte do livro inicia-se com uma ideia fundamental do texto: “Sempre o poder mostra e esconde, e se revela tanto no que exibe quanto no que oculta” (p. 38). Portanto, os mecanismos de desaparecimentos deviam ser escondidos (já que não eram legais), mas somente parcialmente. Para Calveiro, “para disseminar o terror, cujo efeito imediato é o silêncio e a inação, é preciso mostrar uma fração daquilo que permanece oculto”. (p. 53). A autora então esclarece que o sequestro, a tortura e o desaparecimento já eram prática corrente ao menos desde 1966, mas a partir de 1976, o desaparecimento deixa de ser uma das formas para se tornar a própria definição da repressão na ditadura argentina.

Uma característica importante é que os campos de concentração não eram operados por um grupo seleto. Pelo contrário, havia um esforço em incluir grande número de oficiais, de modo a implicar a todos no processo, em cumplicidade geral. O resultado disso era, além de evitar delações, que seres humanos sem “natureza assassina” participassem ativamente de “um maquinário, construído por eles mesmos, cujo mecanismo os levou a uma dinâmica de burocratização, rotineirização e naturalização da morte” (p. 45). O relato de Calveiro nos remete, ao conceito de banalidade do mal, desenvolvido por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, autora com cuja obra o livro de Pilar Calveiro está em constante diálogo.

Nas páginas seguintes, Calveiro descreve os procedimentos do desaparecimento. A iniciar pelo sequestro, realizado por grupos que geralmente desconheciam o motivo da operação e a tortura (choques elétricos e abusos sexuais eram comuns). Cabe salientar que a missão principal da tortura (que começava antes mesmo da inserção do prisioneiro no campo) era “”alimentar” o campo com novos sequestrados” (p. 67). Seguidas as primeiras seções de tortura, ocorria o confinamento no campo (novamente, os guardas geralmente não sabiam quem eram os prisioneiros, somente sabiam que eram “perigosos”), período no qual podiam ocorrer novas torturas, e finalmente o assassinato e desaparecimento dos corpos. Esta é a parte menos conhecida. Um dos métodos envolvia a aplicação de soníferos e o despejo dos corpos (ainda vivos) no mar. Ao longo de todo o processo, imperava a burocracia, a impessoalidade e a divisão de tarefas. Em Modernidade e Holocausto, Zygmunt Bauman afirma que

“O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim dissociados da avaliação moral dos fins. […] A dissociação é, de modo geral, resultado de dois processos paralelos, ambos centrais ao modelo burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do trabalho […] o segundo é a substituição da responsabilidade moral pela técnica.” (BAUMAN, 1998, p. 122)

Atenta a essas semelhanças, Calveiro afirma que isso não se deveria a uma cópia ou inspiração nos campos nazistas ou stalinistas mas consequência de serem poderes totalizantes.

Outra característica apontada pela autora que reforça esse caráter totalizante é a auto-representação de muitos torturadores como deuses, ao ponto de impedirem o suicídio mesmo de prisioneiros cujo destino (morte) já estava selado. Havia uma necessidade de reafirmar o poder da repressão sobre cada mínimo aspecto da vida (e da morte) dos sequestrados.

O aspecto fragmentário do processo, com diferentes grupos operativos trabalhando em paralelo e até concorrendo entre si causava uma sensação de completa ausência de lógica (por exemplo, na escolha de quem iria morrer e quando) e desarmava tentativas de resistência. No entanto, “O fragmentário não se opõe ao totalizante; pelo contrário, eles se combinam e se sobrepõe, sem encontrar nenhuma consistência ou coerência.” (p. 82). Tal afirmação é reforçada por Hannah Arendt, quando afirma, sobre a burocracia nazista que “todos esses organismos, enormemente poderosos, competiam ferozmente uns com os outros – o que em nada ajudava suas vítimas” (ARENDT, 1999, p. 85).

Analisado o funcionamento concreto do “poder desaparecedor”, Pilar Calveiro se dedica ao componente ideológico que o sustenta, ao qual chama de “Um universo binário”.

“As lógicas totalitárias são lógicas binárias, que concebem o mundo como dois grandes campos contrários: o próprio e o alheio. […] entende que o diferente constitui um perigo iminente ou latente, que deve ser extirpado. [..,] pretende, em última instância, eliminar as diversidades e impor uma realidade única e total representada pelo núcleo duro do poder, o Estado.” (p. 88) “Na concepção militar, a Argentina estava em guerra: uma guerra contra a subversão, travada dentro e fora das fronteiras nacionais. Os militares se apressaram a declará-la, e a guerrilha aceitou o desafio.” (p, 89)

Assim, na ótica militar, não desapareciam pessoas, mas sim subversivos, que seriam sempre: guerrilheiros, servindo interesses estrangeiros, perigosos, imorais; se mulheres, cruéis e sem moral sexual. No caso dos mais perigosos não só sem religião, mas judeus. “Reduzidos, como todos os outros objetos de gerenciamento burocrático, a meros números desprovidos de qualidade, os objetos humanos perdem sua identidade.”(BAUMAN, 1998, p. 127)

Portanto, os campos de concentração procuravam retirar por completo a humanidade do prisioneiro. Calveiro, porém, defende que “apesar da eficiência da técnica concentratória, quase sempre há uma parte do homem que é devastada e outras que resistem; essas são as partículas que escapam” (p. 102). Isso permite problematizar o universo binário e mais, possibilita formas de resistência e fuga. Em relação a esses mecanismos, Calveiro afirma que

“É preciso acrescentar que existiram diversas formas de fugir do dispositivo concentracionário, não apenas a fuga física, sendo que todas elas estiveram associadas à preservação da dignidade, à ruptura da disciplina e à transgressão da normatividade, sabotando os objetivos do campo.” (p. 108)

Assim, a autora descreve várias formas de fuga e resistência, desde a fuga concreta, a colaboração falsa ou parcial, a solidariedade interna, até o riso como reafirmação da vida.

Aproximando-se da parte final do livro, Calveiro reafirma, tal como Hannah Arendt teve que fazer no caso Eichmann, que “Ao encarar os desaparecedores como parte do cotidiano social, sua responsabilidade não se esfuma; apenas os situa num lugar que envolve e questiona toda a sociedade.” (p.134). Arendt completaria que “essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas” (ARENDT, 1999, p. 299).

Essa reflexão faz com que a análise não possa se prender somente aos que participaram diretamente nos desaparecimentos, devendo se estender a sociedade toda: “O campo de concentração, […], só pode existir numa sociedade que escolhe não ver, por sua própria impotência; uma sociedade “desaparecida”, tão siderada como os próprios sequestrados.” (p. 135). Calveiro descreve como o golpe teve respaldo social. “Se havia algo que não tinha como ser alegado naquele momento era o desconhecimento” (p. 136). A tortura, os sequestros e a necessidade de eliminação do Outro não eram novidade e já estavam até certo ponto naturalizadas. “A noção do Outro, perigoso, que deve ser destruído, estava profundamente enraizada nas representações e práticas políticas.” (p. 138).

Poder e desaparecimento, portanto, está muito distante de ser somente um testemunho da ditadura (o que já seria válido). Tampouco se limita a uma análise do “poder desaparecedor” na Argentina no período 1976-1983, o que realiza brilhantemente. Pilar Calveiro é capaz, apesar ou talvez justamente por ter sido vítima da repressão autoritária de analisar, a partir da experiência argentina, o fenômeno do autoritarismo totalizante, o que, levando em conta seus paralelos e particularidades, colabora para a compreensão das ditaduras civis-militares que assolaram o Cone Sul nas décadas de 1960,70 e 80.

Ao final do livro, Calveiro afirma:

“a melhor forma para desconhecer que a realidade dos campos de concentração esteve estreitamente relacionada com a sociedade de então e com a atual é esquecê-los, decidir que o mundo e o país deram voltas suficientes a ponto de chegar a outro lugar. Anistia, como amnésia, vem de a-mnses-is, “esquecimento”” (p. 151).

A mensagem não poderia ser mais evidente para um Brasil que ainda se debate em relação à memória e aos aspectos ainda hoje remanescentes da sua ditadura mais recente.

Referências

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Tradução Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013.

Michel Ehrlich –  Estudante de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).


CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Tradução Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013. Resenha de: EHRLICH, Michel. Cadernos de Clio. Curitiba, v.6, n.1, p.197-206, 2015. Acessar publicação original [DR]

A Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II – VIII) | Renan Frighetto

Publicado no ano de 2012, o livro A Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II – VIII), escrito por Renan Frighetto [2], é o resultado de 25 anos de estudo e especialização do autor, que realizou um mestrado na área de História Antiga e Medieval (UFRJ, 1990) e um doutorado em História Antiga (Universidad de Salamanca, 1996). Frighetto, quando do lançamento do livro, já fora autor de dois livros e mais de 40 publicações de artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior. Especialista em Antiguidade Tardia, Frighetto atua como Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação da UFPR, professor associado de graduação da UFPR e também na linha de pesquisa Cultura e Poder desde 1998. É participante do NEMED, Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR, onde desenvolve suas pesquisas.

Renan Frighetto, em sua obra, se junta ao coro de notáveis historiadores que muito contribuíram para o desenvolvimento e defesa do conceito de antiguidade tardia, como Peter Brown, Henri Irineé Marrou, Jean-Michel Carrié, dentre outros. Tal conceito não é universalmente aceito pela academia, uma vez que parte de uma perspectiva diferente na abordagem do período em questão (séculos II – VIII). Por isso, Frighetto, em introdução ao livro, descreve o conceito de Antiguidade Tardia, com um breve histórico de seu desenvolvimento e seus principais temas e abordagens.

Na introdução do livro, A Definição de Antiguidade Tardia: Espaço e Tempo, Frighetto situa seu trabalho numa obra maior, e explica sucintamente diversos aspectos que caracterizam a Antiguidade Tardia como um período singular. Para isso, o autor aborda questões de caráter principalmente político, institucional e ideológicos. O período trabalhado no livro é, de acordo com o autor, não um período de crise e decadência sócio-política, mas sim uma época de intensas transformações nos âmbitos já citados; trata-se, portanto, de um período marcado pela “Reformulação, readequação e interação: três conceitos que fazem da Antiguidade Tardia um período histórico único, autônomo e dotado de identidade própria” (FRIGHETTO, 2009, p. 121).

A Antiguidade Tardia, segundo o autor, é também um período de intensas interações entre romanos e outros povos bárbaros. Tal interação foi marcada não somente por guerras e sobreposições culturais e militares, mas muito mais por um intercâmbio constante de pessoas, políticas, culturas, entre outros. Deste modo, não se observa, durante a Antiguidade Tardia, uma decadência cultural e social do Império Romano necessariamente, mas muito mais a formação paulatina de uma nova civilização romano-bárbara.

No âmbito religioso, Frighetto aponta para a crescente importância da religião – pagã, e depois também cristã – como base ideológica para a legitimação dos poderes imperiais e régios, principalmente depois dos éditos de liberdade religiosa no início do Século IV.

Apesar de a crise do Império Romano tradicionalmente ser relacionada ao terceiro século, é já no século II d.C. que se pode notar, de um ponto de vista político-institucional, o início de uma estrutura de longa duração histórica que permaneceria até o século VIII e caracterizaria toda a Antiguidade Tardia: a constante divisão da autoridade imperial através de diferentes maneiras: burocratização, reformulação ideológica, da formação de diarquias, tetrarquias, divisão entre impérios ocidental e oriental, ou até mesmo pela concessão de autoridade a reis e chefes militares bárbaros.

O Capítulo I, intitulado Os Antecedentes: O Principado e os primeiros sinais de crise político-institucional no mundo romano, aborda o “Período de Ouro” do Império Romano (98-198), relatando sobre os antecedentes da Crise mencionada, a Crise em si e suas conseqüências. Nesse capítulo, Frighetto aponta para várias medidas que foram sendo tomadas durante o período em questão que deram início aos grandes problemas a serem resolvidos no século III: O crescente número de incursões bárbaras que obrigaram as legiões a se tornarem fixas e começarem a praticar o recrutamento local, permitindo, desse modo, a inserção de bárbaros nas legiões romanas; o crescimento do poder das províncias, que passariam a reivindicar maiores poderes e participar do Senado, causando certa instabilidade política; e crescimento da burocratização para um maior controle de todo o território, o que inevitavelmente acarretou em um aumento de impostos e do número de cargos administrativos, ao mesmo tempo em que os príncipes procuravam concentrar mais poderes em suas mãos, reduzindo a importância do Senado de modo sutil. Além do mais, o príncipe passava a exercer cada vez mais um poder de cunho militar, e com o tempo a eficiência de um príncipe começou a ser medida não somente por sua capacidade administrativa, mas também pela sua capacidade militar em conter os avanços bárbaros. Trajano quebrou com a sucessão imperial por meio da hereditariedade, o que deu início a um efeito cascata de instabilidades na sucessão, que culminariam na chamada “Anarquia Militar”, abordada no capítulo seguinte.

O Capítulo II, A Crise do Sistema Polis/Civitas, a regionalização e a fragmentação do poder político imperial no século III, inicia tratando da Dinastia dos Severos (193-235 d.C.) e depois da Anarquia Militar (235-284 d.C.). A Dinastia dos Severos foi marcada por um grande aumento na importância da aceitação do príncipe por parte das legiões, tanto que muitos benefícios – aumento de soldo, oportunidades de ingresso no Senado a partir do exército, recrutamento de bárbaros, dentre outros – foram concedidos aos exércitos durante esse período. Também durante o principado dos Severos se deram as primeiras divisões do poder imperial pela nomeação de mais de um Augusto – sendo um sênior e os outros juniores – numa tentativa de se manter uma presença imperial ativa em um território tão vasto. Também foi realizada uma extensão da cidadania romana, que passou a contemplar todos os homens e mulheres livres, para aumentar a arrecadação de impostos, necessária para a manutenção dos exércitos.

No entanto, insatisfações legionárias acabaram culminando na “Anarquia Militar”, período em que houve uma grande quantidade de usurpações, assassinatos de príncipes, aclamações por parte das legiões e instabilidade política no Império Romano: o príncipe que apresentasse debilidades militares era rapidamente eliminado e substituído. Dentre os muitos assassinatos e reposições de príncipes, os setores políticos e ideológicos seguiram se readequando, sendo que paulatinamente se observa uma sacralização definitiva da figura do príncipe, seguida de editos que obrigavam o culto imperial e a perseguição e confisco de bens dos que se recusavam a realizar tal culto. De um ponto de vista político, observa-se finalmente a tolerância da existência de usurpadores por parte do Augusto romano, diante de sua incapacidade de reconquistar territórios perdidos: atitude que depois culminaria na partilha definitiva e igualitária dos poderes entre mais de um Augusto, configurando a renovação imperial que viria para acabar com a “anarquia”.

No capítulo III, A Renouatio Imperii: Diarquia, Tetrarquia e a nova configuração do Império Romano Tardio, Frighetto explica que a “renovação”, num ponto de vista político e ideológico, se baseava sempre em tradições antigas, já que “(…) cada uma delas [as renovações] tinha a intenção de recuperar a grandeza do passado imperial romano, travestindo-o com o manto de “novas” interpretações políticas e ideológicas” (FRIGHETTO, 2012, p. 93). Num primeiro momento (entre 286 e 293), observa-se a divisão do poder imperial em dois (diarquia), sendo os dois imperadores escolhidos de acordo com sua capacidade militar, exercendo lideranças regionais. Num segundo momento (após 293), um imperador secundário (César) é escolhido por cada imperador principal, formando a tetrarquia. Com a formação da tetrarquia, a divisão entre Ocidente e Oriente romano ocorre de modo irreversível, e o Império Romano adota uma atitude conservadora, e não mais conquistadora, em relação aos seus territórios. O cristianismo, em 313, com a promulgação do Édito de Milão, passa a ganhar nova projeção e se torna uma ferramenta política unificadora: no ano de 380 foi promulgado o Édito de Tessalônica, que definia o cristianismo católico como verdadeiro e a obrigatoriedade de submissão de todas as igrejas a tal, e depois em 392, outro Édito de Milão foi promulgado, que proibia cultos pagãos.

No Capítulo IV, intitulado Da Barbárie à Civilização: os bárbaros e a sua integração no mundo imperial romano (séculos IV-VIII), Frighetto aborda a tomada dos territórios ocidentais pelos reinos bárbaros, e explica sucintamente os eventos que juntos resultaram na configuração política que caracterizaria o início da Idade Média. Tais reinos, já desde fins do século IV, apresentavam maior organização política, militar e diplomática, e a partir do século V passarão a interagir com o Império Romano de modo muito mais colaborativo, em oposição ao antagonismo intenso de séculos anteriores. Alguns reinos passarão, no período abordado no capítulo, a adquirir autonomia em relação à autoridade imperial, como os Visigodos, estabelecendo-se em Tolosa (atual Toulouse, França).

A reformulação religiosa passou a legitimar o agora Príncipe Cristão Sacratíssimo, e tal legitimação foi depois estendida aos reis bárbaros que viriam a aparecer e adotar o cristianismo como porta de entrada para as boas relações com a autoridade Imperial. O Papa, principal bispo católico de Roma, já surge como uma autoridade; não ainda com todo o prestígio que viria a ter em séculos futuros, mas já importante do ponto de vista político e ideológico: um bom exemplo disso foi a participação do Papa Leão I nas negociações de paz com Átila, o Huno, em 452.

Os Ostrogodos se instalaram na Itália após a desaparição da figura imperial o ocidente, em 476. Depois, foram derrotados com dificuldade pelo Oriente Romano, que se encontrou, após a vitória, em uma frágil situação econômica, uma vez que sua vitória, veio a custo de muitas mortes e recursos, abrindo espaço para que os Lombardos, que haviam lutado ao lado do Oriente Romano, se instalasse na Itália e fundasse uma série de ducados regionais.

Os Francos, antes fragmentados em várias tribos, elegeram um rei em 481, que procuraria unificar seu povo e se converteria ao catolicismo. Visto como um concorrente dos Visigodos pelo Império Romano Oriental, os Francos rapidamente fizeram aliança com o Oriente Romano, e participaram de diversas campanhas ao lado do Oriente, como na derrota dos Lombardos, em 756. Nos séculos VII e VIII os Francos obtiveram grande projeção e deram início a um processo de restauração da autoridade imperial do Ocidente, só que desta vez, cristão.

Como algumas considerações finais sobre o livro de Frighetto, pode-se dizer que o mesmo é sem dúvida um ótimo ponto de partida para o estudo da Antiguidade Tardia: contém mapas políticos dos principais momentos históricos, um índice onomástico e glossário, para que o leitor esteja ciente dos conceitos principais. O fim do livro conta também com uma tábua cronológica, para que o leitor se situe com mais facilidade, a partir dos principais eventos, num período complexo e muitas vezes confuso que é a Antiguidade Tardia. O livro também possui um anexo de extratos de fontes manuscritas, que permitem ao leitor ter uma noção dos tipos de documentos que eram escritos, a partir dos quais os estudos sobre a Antiguidade Tardia são feitos.

Vale relembrar que a Antiguidade Tardia é um período extremamente complexo, amplo, e aborda uma territorialidade imensa, e que o livro de Frighetto tem seu foco em questões políticas, institucionais e ideológicas; é de se esperar, portanto, que muitas questões de cunho social não estejam presentes no livro. No entanto, Frighetto deixa uma boa lista de referências que podem ser consultadas para o leitor interessado em expandir seu conhecimento para tais questões. Ademais, levando em conta as dificuldades do tema abordado, seria impossível que um livro só contivesse tanta informação. Tal complexidade presente na Antiguidade Tardia, no entanto, é o que cativa alguns historiadores, que, como Frighetto, percebem neste período único oportunidades de pesquisa intrigantes e virtualmente infinitas.

Notas

2. Mais informações sobre o autor disponíveis em seu currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/4817986767304134 .

Josip Horus Giunta Osipi – Estudante de História – Licenciatura e Bacharelado na UFPR.


FRIGHETTO, Renan. A Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II – VIII). Curitiba: Juruá, 2012. Resenha de: OSIPI, Josip Horus Giunta. Cadernos de Clio. Curitiba, v.5, p.327-334, 2014. Acessar publicação original [DR]

A bolsa e a vida: a usura na Idade Média | Jaques Le Goff

Jacques Le Goff nasceu em janeiro de 1924 em Toulon, França. Sentiu-se atraído pela história desde o colegial e cursou a École Normale Supérieure, depois a École Pratique des Hautes Études, de 1962 a 1993. É considerado um dos maiores medievalistas do mundo e pertence à velha tradição francesa que une história à geografia. Inspirado por Fernand Braudel e Maurice Lombard, tornou-se uma figura-chave da escola dos Annales por ter conseguido integrar a reflexão sobre o espaço e o tempo da dimensão humana. Escreveu diversos livros que se tornaram clássicos, impondo um novo estilo de pensar sobre a história. Em 1972, sucedeu Fernand Braudel na École des Hautes Études em Sciences Sociales e nela permaneceu até 1977, cedendo seu lugar a François Furet (LE GOFF, 2005: 1). Jacques Le Goff participou da Escola dos Annales em sua terceira geração, muito lembrada pela pluralidade, pois é nessa geração que ocorre a entrada de mulheres historiadoras, como Christiane Klapisch e Arlette Farge, por exemplo (BURKE, 1991: 56-57).

No livro “A Bolsa e a Vida”, Le Goff debruça novamente sobre a época medieval, dessa vez concentrando-se no fenômeno da usura. A usura pode ser considerada um dos grandes problemas do século XIII. A irrupção e difusão da economia monetária ameaçava os velhos valores cristãos. Um novo sistema econômico estava a ponto de se formar. Para sua arrancada inicial, era necessário o intenso uso de práticas até então condenadas pela Igreja. Como poderia uma religião que opõe tradicionalmente Deus e o dinheiro justificar a riqueza? Numa perspectiva de longa duração, Le Goff reconhece no usurário a qualidade de precursor de um novo sistema econômico: o capitalismo.

“Uma andorinha não faz verão. Um usurário não faz o capitalismo. Mas um sistema econômico substitui um outro apenas no final de uma longa corrida de obstáculos de todas as espécies. A história são os homens. Os iniciadores do capitalismo são os usurários, mercadores do futuro, mercadores do tempo que, desde o século XV, Leon Battista Alberti definirá como do dinheiro” (LE GOFF, 2004: 91).

O historiador Jacques Le Goff pretende em “A Bolsa e a Vida” mostrar como um obstáculo ideológico pode travar, ou retardar, a criação de um sistema econômico diferente, que, como ele acredita, seja possível compreender melhor perscrutando os homens. Para tanto, o livro traz os conceitos de usura e como ela era vista durante o século XIII. Apresenta diversos bispos, teólogos, filósofos, poetas que escreveram sobre a usura como forma de abordar o quanto sua ação era contra as leis de Deus. A posição da sagrada escritura sobre a usura está essencialmente em cinco textos, sendo quatro deles pertencentes ao Antigo Testamento (LEVÍTICO apud LE GOFF, 2004: 17)

Se o teu irmão que vive contigo achar-se em dificuldade e não tiver com que te pagar, tu o sustentarás como a um estrangeiro ou hóspede, e ele viverá contigo. Não tomarás dele nem juros, nem usuras, mas terá o temor do teu Deus, e que o teu irmão viva contigo. Não lhe emprestarás dinheiro a juros, nem lhe darás alimento para receber usura (Levítico, XXV, 35-37).

Outra referência empregada pelo autor, que trabalha a questão da usura, é Dante Alighieri em sua obra “A Divina Comédia. ” Dante posiciona em seu Inferno os usurários junto aos sodomitas, conhecidos por pecarem contra a natureza.

e pois no menor giro vão penando

os filhos de Caorsa (caorsinos = usurários)

e de Sodoma e os que vivem contra Deus clamando

(DANTE apud LE GOFF, mando 2004: 48).

Por fim Jacques Le Goff referencia Jacques de Vitry. Em seu sermão modelo ad status 59, descreve de maneira interessante a relação que tem a usura com Satã, afirmando que esta profissão foge à natureza criada por Deus (sociedade trifuncional).

Deus ordenou três categorias de homens, os camponeses e outros trabalhadores para assegurar a subsistência dos outros, os cavaleiros para defende-los, os clérigos para governa-los, mas o Diabo ordenou uma quarta, os usurários. Estes não participam do trabalho dos homens e não serão castigados com os homens, mas com os demônios (VITRY apud LE GOFF, 2004: 54).

Bastante renegado durante este período, o ato da usura era considerado mais do que um crime, um pecado. A mentalidade neste período da história é fortemente ligada aos valores pregados pela Igreja, por isto, o ato de usura era tão condenável. Diversos documentos foram escritos demonstrando a pecaminosa ação de usurar. Descreviam o pecado da usura ou apresentavam histórias de pessoas que se transformaram em usurários, a fim de obter ganhos próprios.

O primeiro capítulo “Entre o dinheiro e o Inferno: a usura e o usurário” apresenta o contexto sobre a usura. Considerada como impulso inicial do capitalismo comentado por Le Goff (2004: 5) no trecho “a formidável polêmica em torno da usura constitui de certo modo o parto do capitalismo” a usura foi um dos grandes problemas do século XIII. Aponta sobre as justificativas da igreja a respeito da prática da usura, demonstrando a concepção de pecado e penitência que mudou profundamente durante os séculos XI a XIII. O usurário aparece como protagonista de vários documentos. Um dos documentos citados por Le Goff “Os exempla” eram histórias curtas, fáceis de serem lembradas, tidas como verídicas para serem inseridas nos sermões, comuns na época. Tudo isto para trazer a resposta para os problemas, para entregar a chave do paraíso se compreendida.

No segundo capítulo “A bolsa: a usura” Le Goff comenta de forma minuciosa sobre várias fontes documentais que trazem o conceito da usura. Coloca que a usura é “arrecadação de juros por um emprestador nas operações que não devem dar lugar ao juro” (LE GOFF, 2004: 14). Demonstra que as práticas de usura só eram aceitas contra o adversário em guerra ou entre judeus e cristãos, mas nunca o contrário. Apresenta diversos personagens que incluíram em decretos sobre a prática da usura, passagens de Bispos sobre a rejeição do paraíso ao usurário, a proibição da usura entre clérigos e laicos e ainda a visão de cônegos que consideraram o usurário como ocioso. A ociosidade era vista como a mãe de todos os vícios. Papas e grandes filósofos deram sua palavra sobre usura e acabaram por decretar que mais do que um crime, era um pecado e o usurário iria para inferno.

No terceiro capítulo “O ladrão de tempo” apresenta a ideia de bolsa e tempo. O homem da bolsa seria o usurário e esta bolsa seria cheia de moedas, dinheiro. O tempo pertence a Deus. Há alguns comentários sobre a ligação do judeu com usurário, já citados anteriormente pela possibilidade de judeus cometerem usura e não o contrário. Porém, com a mudança no século XII houve um impulso econômico, gerando um crescimento enorme da circulação monetária e no desenvolvimento do crédito, houve o aparecimento de usurários cristãos. A Igreja apresentava os usurários como piores que judeus, pois os judeus não cometiam a usura entre os irmãos. Como nos outros capítulos, Le Goff apresenta vários trechos de obras da época que condenavam a usura. Finaliza abordando o perigo em ser amigo de um usurário, pois este seria tão pecador quanto aquele.

No quarto capítulo, ‘’O usurário e a morte’’, Le Goff primeiramente apresenta a ideia de que a profissão do usurário é considerada a mais pecaminosa dentre todas as profissões com essa conotação. No século XIII, devido ao novo sistema teórico, a escolástica, essas profissões foram divididas entre aquelas que realmente eram ilícitas daquelas que o eram por acidente. A profissão da usura permanece, durante o século XIII, pecaminosa, não cabendo argumentos para desculpá-la. Le Goff, então, apresenta o usurário como parceiro terreno do Diabo, até que chega o leito de morte e com ela o desejo do Diabo de possuir mais uma alma. Para que isso seja possível, Satã usa de artimanhas para evitar a confissão e a restituição do dinheiro roubado, mandando, assim, a alma para o inferno.

No quinto capítulo, ‘’a bolsa e a vida: o Purgatório’’, o autor inicia voltando ao ano mil, para trabalhar as mudanças pelas quais passou a sociedade nessa época. Se inicia o período chamado de feudalismo, onde as desigualdade se atenuam, mas a população encontra um situação um pouco melhor do que a registrada anteriormente. Em um primeiro momento, o usurário continuou a ser excluído e discriminado como pecador. Em seguida, nota-se que a usura passa a ser vista mais brandamente e o usurário não seria, em todos os casos, mandado diretamente ao Inferno. Le Goff descreve que haveria duas vias que conduziriam à aceitação do usurário: “…a moderação na prática e a aparição de novos valores no domínio das atividades econômicas” (LE GOFF, 2004: 68). Isso indica que a usura não era por completo pecaminosa, o que era considerado pecado era a taxa que ultrapassava a taxa de juros determinada. Com isso chegamos a ideia de Purgatório, criado em um período em que a Igreja já não mais podia sustentar a ideia que havia apenas o Paraíso e o Inferno. O usurário moderado, então, poderia se livrar do destino de ser mandado ao Inferno, para se redimir de seus pecados no Purgatório e ascender, assim, ao céu.

No sexto e último capítulo, intitulado “o coração também tem suas lágrimas”, o autor trabalha acerca da remissão dos pecados dos usurários. Para ascender ao Paraíso, o usurário deveria cumprir três passos: a confissão, a contrição e a satisfação (por satisfação, no caso do usurário, deveremos entender a restituição de tudo que por ele fora roubado). No caso da contrição, essa não pode ser apenas composta por palavras da boca para fora, deve sair do coração do usurário, uma confissão verdadeira. Tirando raras exceções, a única esperança que tem um usurário é a de ser enviado ao Purgatório, pois, como sintetiza Le Goff: “…a esperança do Purgatório conduz à esperança do Paraíso” (LE GOFF, 2004: 91). Ao dar ao usurário uma esperança de não ser mandado ao Inferno, na forma de Purgatório, o capitalismo encontra a possibilidade de ser instalado como novo sistema econômico.

A temporalidade do texto de Le Goff baseia-se em personagens do século XII e XIII, assim como em estudiosos contemporâneos (século XX). Ele emprega diferentes documentos para explicar sobre a usura, como pensavam sobre este ato e de que forma a transformação monetária afetou os interesses econômicos e políticos. O texto apresenta longa duração.

Antes da construção da ideia de purgatório, o usurário iria direto para inferno. A prática da usura ficou de tal maneira comum e necessária para movimentação econômica, que a abordagem de um novo “local”, o purgatório, fez com que o usurário tivesse chances de ir para o céu, já que o purgatório seria o local que poderia “limpar” seus pecados. O autor retrata a usura como um elemento chave na mudança da mentalidade do baixo medievo, cada vez mais era premente a necessidade de tolerar o usurário, em função das transformações econômicas que se verificava na sociedade. Le Goff soube retratar a usura na Idade Média de forma simples e direta. A utilização de documentos oficiais, summas, exempla, as narrativas de confessores, servem para dar respaldo ao seu trabalho, melhor definindo o que era a prática de usura na Idade Média.

Referências

BURKE, Peter. A Revolução Francesa na Historiografia: a Escola dos Annales 1929 – 1989. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.

LE GOFF, Jaques. A bolsa e a vida: a usura na Idade Média. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

LE GOFF, Jaques. A civilização do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2005.

Kassia Amariz Pires – Graduanda do 2º ano do curso de licenciatura em História pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Integrante da iniciação científica da mesma instituição, trabalhando com criação de imagem de Júlio César através de seus escritos. Orientadora: Adriana Mocelim de Souza Lima. E-mail: [email protected]

Natália de Medeiros Costa – Graduanda do 2º ano do curso de licenciatura em História pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

Adriana Mocelim de Souza Lima – Professora de História antiga e medieval da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Orientadora de iniciação científica com temas de construção de imagens na idade antiga e média. E-mail: [email protected]


LE GOFF, Jaques. A bolsa e a vida: a usura na Idade Média. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. Resenha de: PIRES, Kassia Amariz; COSTA, Natália de Medeiros; LIMA, Adriana Mocelim de Souza. Cadernos de Clio. Curitiba, v.4, p.387-394, 2013. Acessar publicação original [DR]

Magia e Poder no Império Romano: A Apologia de Apuleio | Semíramis Corsi Silva

Semíramis Corsi Silva, autora do livro, é Doutoranda, Mestre e Graduada em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca, onde defendeu a Dissertação de Mestrado: Relações de Poder em um Processo de Magia no século II d.C – uma Análise do Discurso “Apologia” de Apuleio, do qual este livro é fruto.

A obra foi lançada ano passado (Marco/2012), em uma parceria da editora Annablume com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), do qual Silva é bolsista desde sua Iniciação Científica até seu Doutorado, que está em andamento. O livro possui 213 páginas, divididos em quatro capítulos, mais as considerações finais; a autora indaga e elucida sobre a acusação e o julgamento de Apuleio, um autor romano do século II d.C., por prática de magia. É nesse contexto que Silva propõe analisar a acusação e julgamento de Apuleio, um membro da elite do Império Romano no período do Principado, que se casou com uma rica viúva chamada Pudentila da cidade de Oea, no norte da África Romana.

O casamento se concretizou através de uma “negociação” do filho mais velho de Pudentila, Ponciano, que era amigo de Apuleio. Pudentila esteve prometida em casamento a seu cunhado Sicinio Claro (irmão de seu falecido marido), mas acabou casando-se com Apuleio, por intermédio de Ponciano. Após dois anos do conúbio e Ponciano já falecido, Apuleio é acusado pelo filho mais novo de Pudentila, Pudente (irmão de Ponciano, enteado de Apuleio), de ter praticado magia amorosa para conquistar Pudentila, interessado em sua situação financeira. Pudente teve como seu assessor Sicínio Emiliano (tio do acusador e irmão do Sicinio Claro e do falecido marido de Pudentila). A família de seu marido falecido era formada por membros da elite local da cidade de Oea. Quem moveu a ação contra Apuleio foi Emiliano, irmão do falecido marido de Pudentila. Porém, a acusação foi feita em nome do filho mais novo da viúva, Pudente, que não tinha ainda maioridade jurídica e foi assessorado pelo tio.

Visto que o casamento era algo de extrema importância política nesse contexto, servindo como forma de estabelecer alianças entre famílias e sendo fundamental para a carreira de homens públicos, é que podemos contextualizar o enredo que envolve Apuleio, um filósofo aristocrático, adepto ao médio-platonismo, orador, romancista, advogado, decurião e escritor de diversas obras literárias, entre elas o principal objeto de estudo que a autora se propõe a investigar: a obra “Apologia”. Esta fonte documental consiste na transcrição da autodefesa do filósofo, redigida anos mais tarde do desenrolar do processo do qual foi acusado.

Como principal objetivo em sua pesquisa, a autora procura romper com os paradigmas e as visões reducionistas a respeito do mundo simbólico e religioso das sociedades antigas, analisando os motivos, as razões e os conflitos pelos quais o filósofo teria sido acusado e relacionando estes com as questões de disputa e relações de poder que envolvem Apuleio e os acusadores.

Para melhor explicitar sobre como a autora desenvolveu sua pesquisa, na qual o livro é resultado, será apresentada uma síntese de cada capitulo e a proposta que a autora estabelece em cada um deles, através de sua investigação e análise.

No primeiro capítulo denominado: Em Torno de Apuleio, a autora nos apresenta aspectos biográficos de Apuleio que, como a maioria das biografias da antiguidade clássica, há controvérsias sobre seu nascimento, origem e posterior falecimento. O capitulo é dividido em subtítulos que ressaltam a vida e as obras de Apuleio, sua trajetória como um homem público, seu contexto político-geográfico-cultural e a opulência dos personagens que figuram na obra analisada (Apologia), no qual a autora considera estes fatores determinantes para compreender a posição do sujeito na sociedade romana e suas relações de poder.

Em O Discurso Apologia e a Historiografia, segundo capítulo do livro, a autora dedica-se a analisar a obra literária Apologia e inicia uma discussão historiográfica acerca do processo de magia. Ao analisar o discurso Apologia, a autora verifica alguns aspectos do discurso, tais como, possível datação da escrita da fonte, razões da elaboração da obra, denominação do discurso, modificações do discurso pronunciado para o discurso escrito. Em seguida, realiza uma discussão historiográfica a respeito do tema, onde é possível compreender as novas indagações, as críticas feitas à historiografia corrente sobre o tema, as lacunas apontadas nos estudos já realizados e a contribuição de sua pesquisa.

No terceiro capítulo, Magia, Filosofia, Casamento e Poder no Principado Romano, a autora busca enfatizar e analisar os temas que acredita dar subsídios para a sua pesquisa: da magia, da filosofia e do casamento no século II e os seus vínculos com as relações e disputas de poder no Império Romano. Nesta análise, Silva questiona a posição de pesquisadores que refutam a abordagem filosófica de Apuleio e por meio de uma solida discussão bibliográfica, apresenta o papel desempenhado por Apuleio como filósofo médio-platônico. Ainda no capítulo, as práticas mágicas de Apuleio, as relações entre poder e magia, o casamento romano como forma de famílias aristocráticas de Roma contraírem alianças políticas e a situação jurídica e financeira de Pudentila, são refletidas, discutidas e ponderadas pela autora.

É no ultimo capítulo, Acusação e Defesa na Apologia, que consiste na análise detalhada de sua principal fonte, o discurso Apologia. A autora começa citando todos os envolvidos no processo, identifica os pontos de acusação direcionados à Apuleio, para então, agrupá-los em três categorias analíticas que acredita estarem relacionadas aos motivos de acusação: a questão da magia, o papel de Apuleio como filósofo e orador e as acusações relacionadas ao seu casamento com a rica viúva. Para cada categoria é dedicado um subtítulo em que Silva expõe e relaciona, através da analise documental, as motivações, as razões, os conflitos e as relações que se estabeleceram entre Apuleio e os envolvidos no julgamento. Encerra o capítulo com uma investigação minuciosa sobre a estrutura da obra Apologia, na qual é possível compreender que o processo que envolve Apuleio e os seus acusadores é apenas um paliativo das relações e disputas de poder político e financeiro no âmbito do Principado Romano.

Segundo a própria autora, os estudos historiográficos tradicionais que versam sobre as razões do processo, fundamentam-se em mostrar possíveis confusões dos acusadores em relação às práticas místicas de Apuleio, típicas da filosofia médio-platônica, com a magia e razões de interesse de Apuleio e dos acusadores na riqueza da viúva como causa do processo.

Partindo das inquietações do momento presente, Silva nos apresenta a singularidade de sua pesquisa ao expor uma proposta de leitura das motivações da acusação infligida contra Apuleio no âmbito das relações de poder, em torno de algumas características que envolviam o acusado e que estão, conforme a análise de Silva, presentes na acusação, tais como: a representação do filósofo como homem público capaz de desenvolver atividades relacionadas à política neste contexto, as relações da magia com o poder e a política e os casamentos da elite romana como formas de alianças políticas entre famílias. Elementos que até então não tiveram a devida atenção dos pesquisadores sobre o tema e que trás o diferencial da pesquisa de Silva.

A autora faz uso da História Cultural, como sua abordagem teórico-metodológica para realização de sua obra, que fornece subsídios para identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é constituída e pensada. O método que é utilizado em sua análise sobre as representações sociais, tem se constituído nos últimos anos como uma das principais formas de investigação histórica.

Em suma, o livro Magia e Poder no Império Romano é voltado para área acadêmica, mas, particularmente, acredito que qualquer pessoa interessada em temas sobre magia, antiguidade e poder, conseguirão realizar a leitura sem grandes dificuldades. A obra possui um toque de investigação policial associado ao rigor metodológico da pesquisa histórica que, com isso, faz um convite ao leitor sobre as facetas desse Império, que ainda instiga admiração e curiosidade.

Filipe Cesar da Silva – Graduando em História pela Universidade do Sagrado Coração – USC – Bauru/SP. Resenha realizada sob a orientação da Profª Drª Lourdes Madalena Gazarini Conde Feitosa.


SILVA, Semíramis Corsi. Magia e Poder no Império Romano: A Apologia de Apuleio.  São Paulo: Annablume; FAPESP, 2012. Resenha de: SILVA, Filipe Cesar da. Cadernos de Clio. Curitiba, v.4, p.395-400, 2013. Acessar publicação original [DR]

São Paulo nos séculos XVI-XVII | José Jobson de Andrade Arruda

A Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em parceria com a Organização Social de Cultura POIESIS, publicou recentemente a Coleção História Geral do Estado de São Paulo, de cinco volumes, coordenada por Marco Antonio Villa. Além de uma produção gráfica capaz de embelezar as prateleiras de qualquer biblioteca, cada volume inclui uma apresentação do ex-governador paulista José Serra, um prefácio produzido pelo empresário e então secretário da Cultura Andrea Matarazzo, e algumas considerações escritas por Villa e pelo diretor-presidente da IOESP, enfatizando o caráter didático da coleção. O teor político da iniciativa assemelha-se a diversos outros projetos que nos últimos dois séculos foram pensados para contribuir à construção de identidades regionais favoráveis aos interesses daqueles que os governam, o que demonstra a vocação dos atores já citados como representantes de uma classe dominante no Brasil: tratar-se-ia de estabelecer os traços distintivos do espaço e da população paulista (cosmopolitismo, pluralidade demográfica, dinamismo econômico etc.), mostrar aos líderes estrangeiros “a história e a pujança do estado” (p. VII), sustentar a condição e o valor de São Paulo no conjunto do país.

Não obstante, o objeto de reflexão da presente resenha não é a referida coleção em seu conjunto, mas apenas o primeiro volume que a compõe, intitulado “São Paulo nos séculos XVI-XVII” e escrito por José Jobson de Andrade Arruda, conhecido sobretudo por suas contribuições aos debates marxistas que entre as décadas de 1960 e 1980 refletiram sobre a realidade colonial brasileira, advogando com Fernando Novais a favor da tese do Antigo Sistema Colonial.

A influência teórica do materialismo histórico sobre o autor é sensível já no primeiro capítulo de seu livro. Intitulado “O longo século do sertanismo paulista”, sintetiza a história de São Paulo nos dois primeiros séculos desde o primeiro contato de ameríndios e europeus, e propõe uma temporalidade que não se enquadra nos limites cronológicos formais da categoria século (enquanto rígido intervalo de cem anos). Se, por um lado, a maior parte das expedições dos moradores paulistas ao sertão ocorreu durante o século (cronológico) XVII, por outro lado a prática deitou raízes no século anterior, prolongando-se por algumas décadas além de 1700. Já por volta de metade da obra, Arruda esclarece:

Se identificarmos o sertanismo como movimento organizado, constituído por expedições de caráter oficial, privado ou misto, das mais ou menos abrangentes, sem se considerar se estão à procura de ouro ou do apresamento de índios, poderíamos demarcá-lo, grosso modo, entre 1522 e 1722: da infausta incursão do náufrago Aleixo Garcia ao Peru até a expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o Moço, que vagueou pelo sertão no rumo das Gerais, tentando lembrar-se do roteiro que seu pai percorrera 40 anos antes, e do qual ele participara, acabando por encontrar amostras de ouro nas proximidades de Goiás. (p.85)

Nem a passagem reproduzida, nem o capítulo mencionado são explícitos quanto à conceituação exata de “longo século do sertanismo paulista”, cuja compreensão de suas páginas requer certo grau interpretativo. Tal como o assim chamado sertanismo, o conjunto da história de São Paulo nos séculos XVI e XVII não equivale, conforme sugere Arruda, ao recorte 1501-1700, mas se iniciaria com a chegada de Martim Afonso em 1532 e se encerraria entre 1709 e 1711, com a criação da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro e com a elevação da vila São Paulo de Piratininga à condição de cidade, o que basicamente corresponde à periodização sertanista descrita acima. Duas conclusões são disso decorrentes: em primeiro lugar, que a história geral de São Paulo nos séculos XVI e XVII equivale à história particular das expedições sertanejas, ambas constituintes do “longo século” de sertanismo no planalto. A outra conclusão é a de que “o movimento ondulante da história não obedece à compartimentagem astronômica do tempo” (p. 2). É certo que, neste ponto, o autor não considera que o que chamou de “compartimentagem astronômica do tempo” constitui também referencial socialmente construído, não sendo simples dado natural e não podendo, portanto, ser apresentado como deslocado da própria história. De qualquer maneira, o ângulo de percepção relacionado ao uso da expressão “longo século” deve remeter o leitor às interessantes controvérsias historiográficas travadas no interior do materialismo histórico sobre as diferentes formas de se caracterizar (como “breve” ou “longo”) o século XX, envolvendo intelectuais como Eric Hobsbawm e Giovanni Arrighi.

O autor demonstra notável capacidade para transportar-se livremente entre as diferentes esferas de nosso passado colonial: da procura europeia pelo maravilhoso e pelo desconhecido (capítulo 2) aos primeiros esforços de ocupação e colonização do Novo Mundo, particularmente das terras de Piratininga (capítulos 3 e 4); da tentativa e posterior fracasso em fazer emergir a economia açucareira exportadora no litoral vicentino (capítulo 5) às relações entre os principais agentes históricos dos séculos XVI e XVII paulista – basicamente jesuítas como Nóbrega e Anchieta e colonizadores como João Ramalho, cujos principais detinham poder exclusivo na câmara municipal – (capítulo 6); do complexo de atividades sertanistas (capítulo 7) à configuração espacial e econômica do planalto (capítulo 8); por fim, dos costumes domésticos e familiares (capítulo 9) ao produto cultural resultante da interação entre saberes e práticas de portugueses e nativos (capítulo 10).

Tudo isso sustentado num conjunto documental e bibliográfico extenso, especialmente se comparado ao de outras obras voltadas à divulgação para o público iniciante. São mencionadas cartas, descrições, relatos e memórias de viajantes e missionários que viveram ou estiveram na América ao longo dos primeiros dois séculos após o contato (Anchieta, Nóbrega, Cardim, Gandavo, Léry, Staden, Thevet etc.). Cita igualmente produções historiográficas consagradas (como, por exemplo, a de Afonso de E. Taunay, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Jaime Cortesão e Richard Morse), artigos diversos e dissertações não publicadas.

No plano geral do livro, o saldo de sua abordagem que procura sintetizar as conclusões de um amplo material de pesquisa historiográfica sobre São Paulo colonial é positivo. Segundo o autor, a prática sertanista condicionara a dinâmica espacial, política, econômica e cultural da região meridional da América Portuguesa, ou seja, “foi a mola mestra de sua propulsão histórica, a energia vital que conferiu um sentido de formação a São Paulo de Piratininga” (p. 7). Arruinada a maior parte dos engenhos e plantações de açúcar no litoral vicentino, devido à escassez de mão de obra nativa (fruto das epidemias que assolaram a região entre 1559 e 1562), restava aos moradores repor essa força de trabalho a partir de novas investidas ao sertão, dada a dificuldade de “reprodução organizada da população nativa” (p. 57). Especialmente em torno dos índios conduzidos à povoação através dos descimentos, se estabeleceu a oposição entre jesuítas e colonos. Para estes, tratar-se-ia de arrematar braços para a lavoura; para os outros, em linhas gerais, possibilitar o seu trabalho missionário. O mote de toda a vida no planalto resultaria do contato entre brancos e nativos e do uso da mão de obra indígena, o que condicionara a São Paulo uma “experiência [histórica] absolutamente nova” (p.121), definida no intercurso cultural entre as duas partes. Aqui, porém, reside grave exagero, já que a interação social entre índios e europeus como elemento central da evolução histórica está longe de ser aspecto particular do caso paulista, sendo patentemente análogos os exemplos paraense e de outras tantas áreas coloniais então pertencentes à Coroa espanhola.

Passagens com explanações lacônicas, ainda que de dimensão meramente localizada, também estão presentes no volume produzido por Arruda. Por exemplo, no quinto capítulo Arruda explica que a substituição do trabalho autóctone pelo dos negros de origem africana nas áreas centrais da colônia, a partir de fins do século XVI, se deveu a dois aspectos primordiais. Em primeiro lugar, o impacto sofrido pelos negros em seu deslocamento ao continente americano, o que teria impedido sua resistência organizada. Em segundo, o comércio de africanos, vendidos a exorbitantes preços, representou uma atividade cuja lucratividade atraiu fortemente os mercadores europeus e, posteriormente, brasílicos. “Lucratividade que se tornou elemento importante no circuito ampliado de acumulação de capitais” (p. 57).

Todavia, quando o autor transporta sua análise ao espaço periférico paulista, apenas justifica a necessidade de expedições sertanejas pela impossibilidade de reprodução endógena da população escrava nativa já submetida ao cativeiro. Inexiste, neste ponto, qualquer esclarecimento sobre por que não se considerou naquele momento, como de fato se considerou em outras regiões, a possibilidade de reposição da força de trabalho com cativos provenientes do tráfico ao invés de índios ainda em condição tribal. Percebido o problema, Arruda poderia tê-lo atribuído, por exemplo, à oferta relativamente parca de cativos pelo comércio negreiro ainda em expansão, que devia privilegiar as áreas produtivas mais rentáveis, e à riqueza insuficiente dos paulistas para adquirir negros africanos, aspectos talvez pressupostos, mas ainda assim ausentes da análise do autor.

A questão poderia perfeitamente passar despercebida pela maioria dos leitores, sem lhe resultar qualquer incômodo. Mas há algo que dever causar grande desconforto a todos nós, aspecto que não se localiza propriamente no conteúdo da obra, mas no plano geral de sua linguagem. A fim de instrumentalizar a exposição da análise, Arruda faz largo uso de recursos metafóricos, especialmente aqueles de teor mecânico, técnico e biológico: “dilatação”, “contração”, “mola mestra” e “propulsão histórica” (pp. 4 e 7); “vigas mestras”, “peças fundamentais” e “suporte” (pp. 63, 67 e 73); “energia vital”, “eficiência adaptativa”, “semente” e “fruto”, “atmosfera” (pp. 7, 22, 49 e 90). Quando utilizada para descrever a dinâmica de funcionamento e/ou os processos de mudança a partir dos quais interagem coletivamente homens e mulheres no tempo e no espaço, esta forma de linguagem figurativa é benéfica por ser capaz de ilustrar o movimento concreto da história, o que em alguns casos pode ser difícil realizar-se de outra maneira. Porém, quando aplicada à caracterização de personagens ou, no limite, de grupos sociais determinados, o procedimento transforma-os em mero monumento, passando-se a defini-los não pela relação com os diferentes agentes históricos, mas por meio de um retrato formal, um estereótipo.

José Jobson Arruda transita entre uma e outra forma de utilização das figuras de linguagem. Quando as utiliza para caracterizar os colonizadores paulistas dos séculos XVI e XVII, elabora construções como as seguintes: “Figuras estranhas, envoltas em densas brumas” (p.31); “Homens temerários.” (p.90); “Seres rústicos. Mais feras que homens. Aculturados às avessas, surgiam em seus trajes mateiros como bestas pré-históricas.” (p.90); “Um povo em marcha, em busca de remédio para sua existência” (p.91); “Os paulistas eram feras” (p.111). Se, por um lado, o autor se distancia dos historiadores que no início do século XX atribuíam aos bandeirantes feições de uma verdadeira aristocracia europeia, por outro deles se aproxima no procedimento de explicação histórica pela construção de “tipos” artificiais para caracterizar populações determinadas. Seja pela projeção do nobre europeu, seja pela do selvagem pré-histórico aos paulistas, trata-se de caricaturas românicas que pouco ou nada dizem a respeito da realidade que se busca descrever.

É certo que o autor não compartilha a gama de preconceitos étnico-raciais que marcaram, por exemplo, a obra de Afonso de E. Taunay no início do século XX. Isso fica claro no epílogo do livro, no qual são discutidas as relações de poder expressas na preservação de imagens construídas pelo homem branco vencedor através dos museus, da literatura e da arte. Porém, Arruda ignora o fato de não ser apenas uma ou outra imagem cristalizada na memória social que impõe barreiras à compreensão do passado, mas também os procedimentos em si de produção e divulgação de imagens estáticas da história (ainda que se trate de imagens estáticas caracterizadas pelo movimento, como é o caso da noção “sertanismo”- noção à qual, aliás, não atribui sentido específico, aparecendo ora como categoria auto explicativa, ora simplesmente como fenômeno característico de uma época). A própria imagem do paulista rústico e bestializado pelo meio, caso absorvida inteiramente pelo público-alvo (vale recordar, iniciantes no assunto), favorece a sedimentação social de estereótipos diversos.

Internamente, tais construções não desvalorizam por completo o conjunto da obra, pois ocupam parágrafos isolados e frases passageiras que não estabelecem relação necessária com o restante do livro. Todavia, é precisamente em tais passagens que se cumpre a função política da coleção à qual pertence o volume analisado, a de divulgar uma identidade regional idealizada por expoentes da classe governante. Das tintas carregadas com que, nesses trechos, Arruda pinta o paulista feroz, parece ressurgir a aristocrática figura de Taunay, trajado agora como fidalgo da moderna sociedade industrial.

Gustavo Velloso – Graduando em História pela FFLCH – USP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).


ARRUDA, José Jobson de Andrade. São Paulo nos séculos XVI-XVII. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; POIESIS, 2011. Coleção História Geral do Estado de São Paulo, v.1. Coordenação Geral: Marco Antonio Villa. Resenha de: VELLOSO, Gustavo. Taunay ressuscitado: São Paulo nos séculos XVI-XVII. Cadernos de Clio. Curitiba, v.4, p.379- 386, 2013. Acessar publicação original [DR]

Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração | Pedro Prado Custódio

Seu nome assinala o fim de uma época e o começa de uma nova” Johann Gustav Droysen (Droysen, 2010: 37).

A máxima do historiador alemão Johann Gustav Droysen sobre Alexandre, o Grande, bem ilustra a magnitude em torno da figura do conquistador macedônico. Desde contemporâneos como Cúrcio e Arriano, passando por acadêmicos como o próprio Droysen no século XIX, e chegando aos dias atuais com a obra resenhada, muitos tentaram compreender como apenas uma pessoa conseguiu feitos tão soberbos que assumiram contornos lendários.

O gênio militar. O líder nato. O piedoso com os derrotados. Mas, também, o soberbo. Aquele que se entregou às opulências orientais, que ultrapassou os seres mitológicos.

As lendas em torno de Alexandre são infindáveis e recriadas em consonância com a época que as traz à tona [2]. A obra “Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração”, de Pedro Prado Custódio, toma a assertiva acima como base para analisar as interpretações em torno do filho de Felipe da Macedônia durante o Medievo, a partir do poema Roman d’Alexandre – na versão compilada de Alexandre de Paris – e datada de cerca de 1180-1189.

Pedro Prado Custódio possui formação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo com a tese “As Múltiplas Facetas de Alexandre Magno no Roman d’Alexandre” e é membro da Associação Brasileira de Estudos Medievais. Como é dedutível, sua especialização faz com que o livro adquira matizes mais medievais do que Antigas, ou seja, seu objetivo precípuo não é descrever Alexandre em sua contemporaneidade e sim suas interpretações no Mundo Medieval e a forma como seus mitos adquiriram uma tintura da época: “O passado evocado no Roman d’Alexandre é mais uma representação idealizada e moralizante do presente (século XII)” (Custódio, 2006: 25). Portanto, Custódio enumera quatro das principais facetas alexandrinas e que dão os títulos para os eixos temáticos de sua obra: “Alexandre como soberano/suserano”, “Alexandre como desbravador/cruzado”, “Alexandre como messias/herói mítico”, “Alexandre como um rei orgulhoso: presunção e castigo?” Todos estes tropos estão representados no Roman d’ Alexandre e têm a intenção primordial de apresentar Alexandre como modelo ideal para a incipiente ordem cavaleiresca.

O capítulo “Alexandre como soberano/suserano” se inicia com uma salutar descrição do surgimento de uma literatura vernácula, voltada aos ignorantes em latim, em concomitância com o nascer da ordem supramencionada. Estes dois elementos se unem no Roman d’Alexandre – escrito em francês – e explicam alguns dos porquês de a obra ter desfrutado de grande penetração entre a alta e baixa nobreza e a nascente burguesia. Nesta primeira representação, Alexandre é descrito como um cavaleiro ideal: corajoso, leal, justo, generoso com seus pares e clemente com os vencidos (Custódio, 2006: 27). Ademais, é o precisar lembrar que a figura alexandrina também: “representa os interesses da nobreza em processo de fusão com a cavalaria, buscando sustentação ideológica para sua existência e demonstra muita preocupação com as alterações políticas e sócio-econômicas em curso, temerosa de ter seu status quo ameaçado” (Custódio, 2006: 37).

A partir destas elucubrações, pode-se aferir que havia um norte definido para a reconstrução do conquistador macedônico: a idealização do cavaleiro medieval, dotado de virtudes irrefragáveis, e que tinha suas raízes fincadas no Mundo Antigo. Eis a longa duração, e que possuía, não obstante, devires da burguesia e nobreza medievais. Isto leva à outra das facetas presente no Roman d’Alexandre: a de senhor feudal, por conta da capacidade de Alexandre em equilibrar forças antagônicas e interesses dissonantes dentro de seus domínios (Custódio, 2006: 57). Sendo assim, Alexandre é, a um só tempo, cavaleiro e nobre [3].

No eixo “Alexandre como desbravador/cruzado”, Custódio apresenta a fisionomia do filho de Olímpia como “campeão de Deus” (Custódio, 2006: 31). Partindo do pressuposto que o Mundo Medieval era marcado pela belicosidade e a pujança das práticas religiosas – que se uniram em eventos como as Cruzadas e a Inquisição – Custódio argumenta que: “No Roman d’Alexandre, ele (Alexandre) representa um cristão lutando contra inimigos identificados com muçulmanos, demônios, povos diabólicos do Gog e Magog e com o Anticristo” (Custódio, 2006: 99). Contudo, as associações entre Alexandre e os cruzados possuíam um viés idiossincrático: elas o apresentam mais como um desbravador que ruma ao desconhecido do que como um “missionário” que carrega o estandarte de sua fé, mesmo porque o macedônico não era cristão: “as viagens de Alexandre, no âmbito do cristianismo medieval, podem ser entendidas como peregrinações religiosas em busca de algum tipo de manifestação divina. Seriam como um sacrifício, uma penitência em troca de salvação” (Custódio, 2006: 132).

Destarte, chega-se a mais um dos apanágios do Roman d’Alexandre: uma tentativa de “cristianizar” seu protagonista, notadamente pagão, com o objetivo de aproximá-lo da realidade medieval.

O próximo tópico da obra é “Alexandre como messias/herói mítico”. Segundo o autor, a figura do herói místico é um processo de longuíssima duração, presente em diversas culturas e épocas e que possuía características como a capacidade de rechaçar a ameaça dos povos estrangeiros, repelir a anarquia interna e afastar as catástrofes naturais (Custódio, 2006: 151). Mas, neste caso do Roman d’Alexandre, houve uma readaptação destes ditames à realidade cristã e medieval, de forma que Alexandre apresenta uma ambigüidade em torno de sua origem, fruto de pais humanos e divinos – do ponto de vista do mito, – e que, por fim, acabam por impedi-lo de chegar à sonhada imortalidade (Custódio, 2006: 159).

A lenda do bravio herói e redentor de um povo é recontada mais uma vez, contudo, com um final diferente: “No momento em que Roman d’Alexandre foi produzido buscava-se um denominador comum que unisse as diversas camadas sociais que compunham a cavalaria, e havia também a pretensão de conter o avanço da burguesia ascendente, ameaçadora dos privilégios feudais. Por esse motivo, um herói já mitificado como Alexandre foi adaptado ao contexto da época e transformado no soberano e cavaleiro ideal” (Custódio, 2006: 161).

O último dos capítulos principais, “Alexandre como um rei orgulhoso: presunção e castigo?”, é também o mais exíguo, por se tratar de um sutil traço do conquistador macedônico. Nele, Custódio retoma as formas através das quais as antigas interpretações de um Alexandre desregrado, soberbo por suas conquistas militares, de atos intempestivos regados a vinho, adquiriram um certo verniz moralizante no poema do século XII. Nele, a grandeza dos feitos de um homem nunca deve se dissociar da parcimônia de seus atos.

Alexandre não seguiu este conselho e foi vítima do mais hediondo dos crimes para a sociedade medieval: a traição. Não apenas isso: os traidores – Antipater e Divinuspater – só levaram o crime a cabo por estarem sob os entorpecentes efeitos do vinho, em mais uma das opulentas celebrações daquele que se proclamou descendente do próprio Dionísio. A mensagem é clara: a grandeza de um homem não está apenas em seus atos e conquistas. Está em sua altivez. À glória da imortalidade só estão destinados aqueles de caráter inflexível. Em suma, Alexandre era: “um herói que encarna virtudes cavaleirescas e até messiânicas, mas que perdeu tudo por causa de seu orgulho e ambição, sendo punido com uma morte trágica e precoce” (Custódio, 2006: 231.

“Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração” se encerra com a redescoberta do conquistador macedônico em épocas modernas, nas quais adquiriu contornos que vão do monarca absolutista (Custódio, 2006: 235) ao super-homem nietzschiano (Custódio, 2006: 236). Neste ponto se encontra um dos grandes méritos do livro de Custódio: a sugestão para pesquisas que tomem estas redescobertas com objeto de estudo. Sabe-se que toda história, quando (re)contada adquire vieses dos períodos contemporâneos. Não foi diferente com as lendas em torno do arauto do Helenismo durante o Medievo. Alexandre é uma criatura de quatro faces: suserano, cruzado, herói mítico e até mesmo rei orgulhoso. Entretanto, estas quatro faces se encontram e se harmonizam no ideal do cavaleiro medieval: ele é justo, leal com seus pares, piedoso com os inimigos, defensor de sua fé, desbravador dos mais longínquos rincões, redentor de um povo e paladino da paz, de modo que sua feição adquire traços de herói místico. Contudo, as virtudes supracitadas de nada adiantam quando não estão na presença da sobriedade e da parcimônia. Aquele que ignorar este alerta encontrará uma morte precoce. O Roman d’Alexandre é, pois, um manual de cavalaria. Afinal: “a literatura cavaleiresca é mais prescritiva do que descritiva” (Custódio, 2006: 43).

Concluí-se que Pedro Prado Custódio apresenta uma obra sobremodo pertinente, de boa leitura, grande erudição – os trechos citados do Roman d’Alexandre em francês são traduzidos pelo autor – e densidade, em particular no que diz respeito às muitas fábulas de Alexandre em outras partes do mundo, mencionadas diversas vezes. Além de servir como modelo e base para outras pesquisas que trabalhem com a mitificação de Alexandre em determinado recorte temporal, os escritos de Custódio nos recordam de algo que o historiador jamais pode se esquecer: o passado é construído de acordo com os interesses do presente. Descobrir quais são tais interesses é nosso papel e missão fundamentais.

Agradecimentos

Agradeço meu orientador, Prof. Pedro Paulo Abreu Funari, pelo apoio acadêmico e pelos comentários feitos a respeito deste texto. Menciono, também, o suporte financeiro do CNPq em minha pesquisa de Iniciação Cientifica. As idéias apresentadas são de minha responsabilidade.

Notas

2. Segundo o próprio Pedro Custódio, tais lendas são recontadas: “assumindo feições diversas de acordo com o momento de sua reaparição” (Custódio, 2006: 19).

3. A seguinte citação ilustra bem este viés: “Cavalaria e nobreza têm seus antagonismos escamoteados e harmonizam-se mediante a sublimação dos interesses divergentes” (Custódio, 2006: 41).

Referências

CUSTÓDIO, P. P. Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração. São Paulo Annablume, 2006.

DROYSEN, J. G. Alexandre o Grande. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

Thiago do Amaral Biazotto1 – Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.


CUSTÓDIO, Pedro Prado. Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração. São Paulo: Annablume, 2006. Resenha de: BIAZOTTO, Thiago do Amaral. Cadernos de Clio. Curitiba, v.3, p.323-331, 2012. Acessar publicação original [DR]

Heaven Upon Earth: Joseph Mede (1586-1638) and the Legacy of the Millenarianism | Jeffrey Jue

O livro Heaven Upon Earth: Joseph Mede (1586-1638) and the Legacy of the Millenarianism de Jeffrey Jue, publicado em 2006, é um estudo acerca dos trabalhos de Mede, em especial aqueles voltados para o milenarismo, e de seu legado no pensamento profético. Esta pesquisa de Jue sobre Mede iniciou, segundo o autor, com sua dissertação de doutorado em Teologia desenvolvida na University of Aberdeen, na Escócia (JUE, 2006), posteriormente, sua tese foi publicada como o livro Heaven Upon Earth. Atualmente, Jeffrey Jue é professor de História da Igreja no Westminster Theological Seminary, na Filadélfia (EUA), sendo assim, sua análise, no livro, partiu da Teologia, mas é interessante notar que, além disso, o autor também se preocupou com as perspectivas historiográficas sobre o século XVII na Inglaterra.

Seu trabalho se insere em um debate acerca do milenarismo inglês. Admitindo uma postura revisionista, Jue tentou desvincular os discursos religiosos sobre o Milênio e o Apocalipse do contexto revolucionário na Inglaterra, bem como tentou dissociar as perspectivas escatológicas de uma suposta motivação para o processo colonizador da América do Norte. Assim, para Jue, o milenarismo não deve ser identificado com uma postura política radical de alguns de seus adeptos. Com o caso de Mede, o autor mostrou que o Apocalipse era um tema de discussão intelectual e acadêmico e que, mesmo depois do período das Guerras Civis inglesas, este continuou a ser uma questão sobre a qual muitos pensadores se debruçaram até meados do século XVIII.

Neste sentido, o autor indica que o estudo sobre o pensamento de Mede pode auxiliar na compreensão do milenarismo britânico. Para tornar compreensível seu objeto de estudo, Jue fez uma breve biografia de Joseph Mede, situando-o no período em que viveu. A contextualização oferecida pelo pesquisador, ainda, apresentou os debates e estudos sobre o Apocalipse na Época Moderna. A seguir, Jue procurou identificar o legado de Joseph Mede, isto é, a repercussão de seus escritos no pensamento escatológico na Inglaterra, na América do Norte e na Europa.

Como dito anteriormente, para abordar o assunto, Jeffrey Jue voltou-se em certa medida para a historiografia, desta forma na introdução de Heaven Upon Earth, ele expôs um balanço historiográfico acerca da Grande Rebelião e do milenarismo inglês no século XVII.

O milenarismo no século XVII – conforme o teólogo – era a concepção escatológica mais popular, ainda que fosse considerada como uma posição herética pelos ortodoxos. Esta corrente de pensamento foi reforçada com a publicação de Diatribe de Mille Annos de Johann Heinrich Alsted e de Clavis Apocalyptica de Joseph Mede, ambos em 1627. A partir da análise dos textos de Mede que tratavam ou não sobre o Apocalipse; de suas correspondências; e da sua biografia, intitulada Works, feita, provavelmente, por John Worthing e John Alsop, o autor identificou o período compreendido entre 1625 e 1632 como uma fase de conversão do pensamento de Mede ao milenarismo. De acordo com a perspectiva de Jue no livro, o milenarismo pode ser compreendido como uma análise sobre as profecias bíblicas que identifica no futuro o início de um reino de Cristo, o qual seria marcado por mil anos de felicidade, antes da derradeira vitória de Jesus sobre o Demônio.

Jeffrey Jue demonstrou no capítulo seis, “The Origins of the Clavis Apocalyptica: A Millenarian Conversion”, as reflexões de Mede acerca do Apocalipse. Seu pensamento foi bastante influenciado pelo puritanismo, ainda que de uma corrente bastante conservadora e favorável ao arcebispo William Laud. Inicialmente, Mede partia de uma “more symbolic or spiritualized interpretation of the duration and the nature of the millennium” (JUE, 2006, p.93). Sua percepção do milenarismo começou a se alterar em 1625 e, mais tarde, com a segunda edição de Clavis Apocalyptica em 1632, pode-se perceber uma conversão completa a esta corrente de pensamento.

A partir disso, Joseph Mede trabalhou em uma cronologia das monarquias do Livro de Daniel. Além disso, ele sincronizou as profecias de I Timóteo, Daniel e Apocalipse, seguindo o princípio protestante da analogia fidei. Foi este sincronismo – que concebeu as três profecias como ideias sobre um mesmo evento – que o aproximou do milenarismo. Neste sentido, Jue concluiu que Mede não se tornou um milenarista devido ao contexto europeu e inglês do século XVII, como se costumava pensar, mas sim por conta de seus estudos bíblicos.

Baseando-se nos escritos dos primórdios do cristianismo, Mede caracterizou o Milênio como uma profecia a ser interpretada literalmente e não mais espiritualmente. Assim, para ele, a ressurreição prevista na Bíblia seria corporal. Além disso, Joseph Mede também se apoiou em estudos do judaísmo. Desta maneira, concentrando diversas influências, Mede entendia que o retorno de Cristo representava a queda do Anticristo e um milhão de anos de perfeição e felicidade, até o Dia do Julgamento, quando ocorreria uma batalha contra os exércitos demoníacos (Mag e Magog) e, posteriormente, se daria a ressurreição universal.

Depois de situar o leitor sobre as origens do pensamento milenarista de Mede e de seus estudos sobre o tema, Jue traçou um panorama do seu legado, indicando que o milenarismo não estava atrelado a um contexto revolucionário, sendo assim, não acabou em 1660 com o fim da Rebelião, mantendo-se um tema de debate até o século XVIII.

Na Inglaterra, o Jue citou uma série de autores, incluindo Hugo Grotius, Henry Hammond, Richard Baxter, Henry Moroe, Drue Cressner, Isaac Newton e William Whiston, que discutiram o assunto. Influenciados pela produção de Mede, pensadores como estes alimentaram o debate até o século XVIII na Inglaterra, concordando ou discordando das propostas de Joseph Mede. O principal aspecto de embate ocorreu entre os favoráveis a Mede e os adeptos do New Way, iniciado por Grotius, o qual concebia o Milênio como um evento do passado e não do futuro.

Neste sentido, o autor demonstrou que o interesse dos letrados no milenarismo permaneceu. Este interesse, ainda, estendeu-se para a América do Norte, com os escritos de Thomas Goodwin, John Cotton, John Davenport, Cotton Mather, Samuel Sawell, Nicholas Neyes e John Elliot. Alguns autores viam a América como uma terra do Satã, habitada por homens e mulheres que não tinham conhecimento de Deus e que não usufruiriam dos benefícios do Milênio; enquanto outros concebiam a América como um local tão abençoado quando o Velho Mundo, o qual também estaria incluído no Milênio. Ainda que muitos puritanos tenham chegado ao Novo Mundo com concepções milenaristas, Jue não partilha da visão de pesquisadores como Perry Miller, os quais compreendem na colonização o anseio da construção de uma Nova Jerusalém. Segundo o autor, Mede influenciou outras regiões da Europa. Sabe-se, por exemplo, que Clavis Apocalyptica chegou à Dinamarca, a cidades italianas e germânicas e à Holanda.

Depois de tratar sobre todas estas questões, Jeffrey Jue estabeleceu algumas conclusões. Primeiramente, para ele, o milenarismo não está necessariamente associado ao radicalismo político e social. Também, o interesse no Apocalipse, enquanto um tema de estudo e reflexão, não se resumiu às décadas de 1640 e 1660. O milenarismo não foi um fenômeno exclusivamente inglês, este deve também ser pensado em relação à Europa e à América do Norte. O milenarismo na Inglaterra, na Europa e na América Inglesa foi influenciado por Mede. Por fim, o autor apontou que são necessárias mais pesquisas sobre Joseph Mede e seu legado, o qual perdurou por muito tempo.

A obra de Jeffrey Jue revela aspectos interessantes dos estudos sobre o milenarismo. É fundamental que se perceba que este é um fenômeno independente dos contextos revolucionários, entretanto, não é possível deixar de considerar que momentos de crise, tais como a Grande Rebelião ocorrida na Inglaterra entre 1640-1660, indiquem especificidades no pensamento milenarista. As ideias não podem ser desvinculadas de seus próprios contextos e, neste sentido, o período revolucionário e a subsequente restauração do governo foram apropriados pelos milenaristas. Como observou Bernard Capp, em 1971, para o caso do pentamonarquistas, as crises e guerras na Inglaterra eram vistas pelos Homens da Quinta Monarquia como esforços de Deus contra o Demônio para acabar com os reinos terrenos (CAPP, 2008).

Joseph Mede não escreveu Clavis Apocalyptica ou outros de seus textos pensando em uma revolução, entretanto – como o próprio pesquisador notou – muitos puritanos apropriaram-se das teorias de Mede, as interpretaram e utilizaram a partir de um viés radical. A tentativa de Jeffrey Jue de isentar Mede de qualquer relação com a Rebelião, caracterizando-o a todo o momento como um homem reservado e cauteloso em suas afirmações acerca de assuntos polêmicos, acaba por colocar em segundo plano outro aspecto fundamental de seu legado: a sua influência sobre os milenaristas radicais e a apropriação de suas leituras das profecias bíblicas durante a Grande Rebelião.

Depois, ao indicar a extensão do legado de Mede no restante da Europa e na América, Jue restringiu-se a alguns poucos puritanos que fizeram parte das primeiras gerações de colonos na América Inglesa e também se fixou apenas nos debates holandeses acerca do Apocalipse e do Milênio.

Em relação à sua apreciação da influência de Mede na América do Norte, Jue descartou totalmente a hipótese de que muitos colonos pensassem na configuração de uma Nova Jerusalém no Novo Mundo. Aparentemente, as novas tendências historiográficas, sobretudo, norte-americanas vêm criticando as concepções de autores como Perry Miller de que a ocupação das treze colônias foi motivada e permeada por perspectivas escatológicas. Este é um tema de grande debate na historiografia atual, visto que outras análises permanecem destacando o papel fundamental do milenarismo e das ideias de Apocalipse no processo de colonização da América. Inclusive os debates seiscentistas em relação à conformação do governo civil na Nova Inglaterra estavam imbricados nestas profecias. Em colônias como Massachusetts Bay e Rhode Island, houve centralidade na atuação de protestantes.

Tanto no caso dos comentários sobre a Inglaterra, a América como sobre a Holanda, Jue apenas apresentou um recorte do pensamento dos letrados, o que deixou de lado aspectos sociais e culturais que poderiam relevar outras questões interessantes para a compreensão do milenarismo.

Todavia, Jue apresentou grande esforço em mostrar que o milenarismo britânico foi de ampla circulação e provocou reflexões que não se limitavam ao espaço da Grã-Bretanha. É necessário estabelecer relações e articulações com outros espaços, tais como a Europa e a América. Também, a concepção de que as interpretações acerca do Milênio não se concentraram em um período único da história da Inglaterra são interessantes para entender o milenarismo como algo mais amplo do que um fenômeno passageiro, o qual só pode ser percebido em momentos críticos.

Neste sentido, o autor apresentou grandes interpretações sobre o Milênio ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, que foram fundamentais para localizar as ideias de Mede em uma tradição mais longa do pensamento apocalíptico inglês. Da mesma forma, os debates travados entre Mede e outros pensadores demonstraram um ambiente de profundas reflexões sobre o milenarismo que perpassavam diversas esferas do universo intelectual do século XVII. Desta forma, o estudo de Jue não deixa de ser uma grande contribuição para os estudos do milenarismo ao longo da Idade Moderna.

Referências

CAPP, Bernard. The Fifth Monarchy Men: a study in a Seventeenth Century Revolution. Georgia: Mercer University Press, 2008.

JUE, Jeffrey K. Heaven Upon Earth: Joseph Mede (1586-1638) and the Legacy of the Millenarianism. Netherlands: Springer, 2006.

Verônica Calsoni Lima – Estudante do 8º termo da graduação em História da Universidade Federal de São Paulo, bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=S1732559 . Orientador: Prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima.


JUE, Jeffrey K. Heaven Upon Earth: Joseph Mede (1586-1638) and the Legacy of the Millenarianism. Netherlands: Springer, 2006. Resenha de: LIMA, Verônica Calsoni. O Milenarismo de Joseph Mede. Cadernos de Clio. Curitiba, v.3, p.333-342, 2012. Acessar publicação original [DR]

O Espírito das Roupas: A Moda no Século XIX | Gilda de Mello e Souza

A presente resenha não possui pretensões de trazer novas interpretações da obra de Souza, que é bastante conhecida no meio intelectual da disciplina de sociologia, especialmente quando tratamos das grandes universidades paulistas como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Porém, pretendemos trazer uma contribuição historiográfica ao propor a leitura de “O Espírito das Roupas” também pelos historiadores, proporcionando uma nova dimensão às discussões de moda e estética, campos em constante crescimento na historiografia da cultura.

Gilda de Mello e Souza (1919-2005) nasceu em São Paulo, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP graduando-se em filosofia em 1940, ano em que obteve licenciatura e passou a dar aulas na mesma instituição. Em 1943 foi assistente do sociólogo francês Roger Bastide na cadeira de Sociologia I. Sob a orientação do mesmo, defendeu a tese de doutorado “A moda no Século XIX: Ensaio de Sociologia Estética” em Ciências Sociais na USP em 1950.

A tese referida trata-se do mesmo texto aqui resenhado, porém, publicado 37 anos depois da defesa, momento em que a autora recebe o devido reconhecimento. Isso dá elementos para considerarmos esse trabalho “bastante aferente de sua época”. É evidente que suas reflexões estavam inseridas no contexto de seu mundo cotidiano, porém, a academia brasileira ainda não enfatizava os estudos culturais, dando preferência aos estudos políticos e econômicos.

Em 1951, ao conseguir publicar um artigo com o mesmo titulo da tese na Revista do Museu Paulista, recebe alguns comentários favoráveis, mas ainda cheios de críticas. Dentre eles está o de Florestan Fernandes:

Poder-se-ia lamentar, porém, a exploração abusiva da liberdade de expressão (a qual não se coaduna com a natureza de um ensaio sociológico) e a falta de fundamentação empírica de algumas das explanações mais sugestivas e importantes. (FERNANDES apud PONTES, 2004, pp. 02)

Através dessa severa crítica mostra-se evidente que a autora foi na contramão de toda a corrente historiográfica e sociológica da época. Segundo a comentadora Heloisa Pontes, é possível interpretar algumas nuances dessa crítica de Fernandes. A primeira é de nível estilístico. Souza, antes de entrar para a academia, tentou carreira como escritora [2], isso lhe rendeu uma fluência particular com o uso das palavras muitas vezes assemelhando suas assertivas a um escrito literário. Essa capacidade, atualmente louvável, foi muito criticada na época da publicação de seu artigo, uma vez que seu estilo de escrita dava às suas publicações “um tom de ensaio”. Por isso a crítica de Florestan se mostra tão enfática uma vez que sua preocupação era de consolidar um panorama intelectual que desse à sociologia um potencial de “explicar” os fatos em sua veridicidade, longe da subjetividade e da hermenêutica como nos textos de Souza.

A partir das críticas recebidas pela autora podemos perceber certa tendência a uma abordagem cultural, porém não posso afirmar que ela negue categoricamente a interpretação materialista, embora que tece críticas ao materialismo histórico especialmente o de teor frankfurtiano [3]. Para a autora, há sim um elemento de “fetichização” e “mercadorificação” também na moda, mas isso não afeta seu status de arte ou de passível de ser estudada enquanto uma manifestação cultural.

Por isso, se é possível situar a autora em alguma “corrente historiográfica” me parece coerente inscrevê-la como uma historiadora da cultura. Suas influências são claramente visíveis: citações de Jacob Burkhardt são constantes em sua obra, porem ela parte de uma interpretação mais refinada que a do historiador da cultura do século XIX, muito mais semelhante com a de Carlo Ginzburg. Essa aproximação é comprovada por Otília Beatriz Fiori Arantes:

Há exatamente vinte anos saía o livro do historiador italiano Carlo Ginzburg, “Mitos, emblemas, sinais”. Lembro-me de Gilda comentar o quanto se sentiu lisonjeada reencontrando num autor famoso uma explicação erudita de dois métodos de abordagem da obra de arte que lhe eram por assim dizer desde sempre como que congenitamente próprios e que, além do mais, não gozavam de muito prestígio entre os críticos locais, a saber: a arqueologia visual dos mestres da escola de Warburg e o método indiciário praticado pelos connaisseurs, notadamente pelo mais conhecido deles, o médico italiano do século XIX, Giovanni Morelli (ARANTES, 2006, pp.1)

Não que eu me permita analisar a escola de Warburg ou o método indiciário dos connaisseurs, mas essa afirmação mostra a afinidade teórica da autora com o historiador italiano.

Além da presente obra, Souza se concentrou em diversos outros estudos, publicando obras de estética, crítica literária e sociologia como “O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma” (1979), “Exercícios de leitura” (1980) e “A idéia e o figurado” (2005), esse último publicado no ano de sua morte aos 86 anos.

Tratando mais especificamente do livro “O Espírito das Roupas”, delinearei alguns detalhes que me pareceram interessantes. A obra, como o próprio nome explica, busca interpretar a moda no século XIX e suas significações sociais.

Sua abordagem é pautada em fontes das mais diversas e próprias, a utilização de pranchas de moda, ilustrações, pinturas e inúmeras fotografias permitem que a autora demonstre ao leitor os detalhes e as configurações da moda no século XIX. Outra metodologia, portadora de muita inovação para a época, é a utilização de trechos literários e testemunhos de romancistas enquanto fontes históricas ou sociológicas. Passagens de José de Alencar, Machado de Assis, Balzac, Proust são magistralmente utilizados para descrever de forma mais detalhada possível as nuances daquela sociedade. Dessa forma, utilizando-se de um extenso e detalhado corpo documental a autora – diferentemente do que afirma Fernandes – faz sim uma rigorosa pesquisa sociológica e histórica ao abordar a moda no século XIX.

No primeiro capítulo, intitulado “A Moda como Arte” a autora lança seus pressupostos teóricos acerca da moda classificando-a como uma arte, com suas próprias nuances e particularidades, que se liga com as outras artes da época, especialmente a arquitetura, a escultura e a pintura, graças à espacialidade, às texturas e às cores em comum. Com isso, baseada no sociólogo e historiador da moda Cunnington, Souza traça os quatro vetores que expressariam a linguagem da moda, a saber: a forma, a cor, o tecido e a mobilidade. Através da articulação desses elementos é possível estabelecer as geometrias estéticas que definiram o belo masculino e o feminino do século XIX, sendo o primeiro definido pela proximidade de aparências a uma letra “H” onde os ternos, as calças e a sobriedade das roupas lhe dão essa aparência. Já as mulheres cada vez mais se vestiam em um formato semelhante à letra “X”, sendo influenciadas pelos vestidos, chapéus e espartilhos. A autora encerra seu capítulo com uma afirmação bastante instigante:

Não é possível estudar uma arte, tão comprometida pelas injunções sociais como é a moda, focalizando-a apenas nos seus elementos estéticos. Para que a possamos compreender em toda sua riqueza, devemos inseri-la no seu momento e no seu tempo, tentando descobrir as ligações ocultas que mantém com a sociedade (SOUZA, 1987, pp. 50-51)

É interessante essa afirmação, pois demonstra uma influência historicista da necessidade de contextualizar historicamente a arte “no seu momento e no seu tempo”. Outro aspecto interessante é a afirmação de tentar descobrir “as ligações ocultas que mantém com a sociedade”: trata-se de interpretar as significações da cultura muito semelhantemente com o que postula Clifford Geertz em sua obra “A Interpretação das Culturas”. Segundo ele, a função do antropólogo seria de interpretar a cadeia de significados sociais – passiveis de ser observada através dos diversos signos sociais – de forma a perceber os significados expressos por eles. É uma teorização muito próxima da prática de Souza, me parece ser exatamente uma “descrição densa” que a autora faz no decorrer de seu livro, pois cada traço\detalhe das roupas, dos comportamentos ou dos sinais sociais são interpretados pela autora que busca “compreender [a sociedade] em toda sua riqueza”.

Já no segundo capítulo intitulado “O Antagonismo” a autora se centra na diferenciação sexual [4] ocorrida no século XIX onde a moda mostrou-se como um dos principais índices de tal separação. Antecipando diversos estudos de gênero feitos atualmente, a autora tratou de forma relacional os modelos de representação da masculinidade e da feminilidade através da significação da vestimenta. Embora mal compreendida pela primeira geração de estudiosas de gênero (décadas de 70 e 80), foi receber seu devido valor no fim da década de 80, justamente por abordar os sexos de forma complementar, e não contraditória, em suas palavras “Cada sexo é a imagem dos desejos do sexo oposto […] Os grupos masculino e feminino acabam se completando. A barreira que os separa não é intransponível”. (SOUZA, 1987, pp. 83). Trata-se de uma abordagem de gênero inédita até o final da década de 80.

Em sua argumentação, a roupa masculina no século XIX foi perdendo todos os traços de exibicionismo centrando-se cada vez mais na seriedade dos tons de preto e cinza. Em completa oposição o traje feminino se enriquece com rendas, enfeites, babados e fitas, perpassando as mais diversas cores, em especial o branco e os tons claros. Refletindo nas próprias nuances daquela sociedade e das distinções de gênero já que os homens incorporavam a seriedade e o ascetismo nessas sóbrias roupas escuras e a mulher incorporava a docilidade da esposa e mãe através das vestimentas claras.

Em seu terceiro capítulo intitulado “A Cultura Feminina” [5], a autora se delonga na moda e nos sinais da vestimenta feminina. Parece-me que é precisamente essa abordagem que fez com que seu estudo tenha sido tão mal aceito pela academia da época e ao mesmo tempo com que ele tenha sido editado e reeditado 37 anos depois de sua defesa. Segundo Pontes (2004), na década de 40 a USP ainda estava criando o curso de sociologia que era orientado pela escola francesa. Baseada em modelos estruturalistas e muitas vezes positivistas, buscava atingir uma suposta cientificidade no conhecimento sociológico. Os temas privilegiados eram as grandes estruturas sociais, tirando a prioridade aos aspectos mais peculiares da cultura, como as relações de gênero ou a moda. Já no fim da década de 80, com a renovação dos “woman studies” sua obra foi reconhecida enquanto portadora de uma refinada análise de gênero. Isso permitiu que seu estudo fosse publicado e que sofresse diversas edições, lançadas até o ano de 2005, sendo que todas já se encontram esgotadas.

Em seu quarto capítulo, intitulado “A Luta das Classes”, a autora se opõe à historiografia marxista ortodoxa ao estudar a diferenciação das classes do século XIX não por fatores econômicos, mas por uma peculiaridade cultural: a moda. Outro aspecto de oposição a essa historiografia é com relação a sua interpretação das classes enquanto diversas, maleáveis e portadores de uma “identidade, de usos e costumes, de hábitos e mentalidade” não sendo uma estrutura dicotômica binária exploradores-explorados. Trata-se, no meu ver, de uma sensibilidade analítica somente proposta posteriormente pela terceira geração da escola dos Annales, com sua “História das Mentalidades” ou pela “New Left Revew” de estudos de classe focados por perspectiva cultural.

Outra sensibilidade ímpar da autora foi a de perceber a transitoriedade das influências estéticas da moda entre o meio urbano e o rural. Para a autora, tradicionalmente a sociedade rural não havia se distinguido socialmente através das vestimentas, mas o contato com as elites urbanas proporcionou uma mudança nesse padrão e a sociedade rural passou a adquirir esse “espírito das roupas” que, antes de um princípio estético, servia como um índice de distinção social. Ou melhor, a moda é interpretada por Souza em duas utilidades aparentemente antagônicas, a primeira é que a moda poderia servir como índice de distinção social, mostrando quem tem capacidade e polimento de possuir um traje caro e desconfortável [6] e ao mesmo tempo a moda poderia aproximar as classes, que agora se vestiam cada vez mais semelhantes, a ponto de muitas vezes serem confundidas graças aos trajes usados.

A autora comenta sobre a reação da nobreza que, ao ver a “confusão” de classes ocasionadas pela vestimenta, se apega em novos distintores sociais como a auto-contenção, a utilização das “boas maneiras”, na elaboração dos gestos e no polimento das palavras. Isso dá pressupostos para seu capítulo seguinte, intitulado “O Mito da Borralheira”. Segundo Souza, talvez baseada em teorias psicanalíticas, comenta que o ascetismo do século XIX precisava encontrar escapes para sua seriedade, talvez o principal deles fosse a festa, local onde as pessoas poderiam, nesse momento de exceção, exaltarem a fantasia e a imaginação. O erotismo era expressado por sutilezas na vestimenta feminina, inspirando os galanteios ou as trocas de olhares e suspiros. É nesse momento de exceção que havia a possibilidade das classes não nobres se inserirem nesse desejado meio, pois o uso apropriado das roupas possibilitava o encontro entre as mais diversas classes em um espaço de sociabilidade comum a todas: os salões. Nesse momento a autora se utiliza da argumentação antropológica para considerar a festa enquanto um ritual de reorganização da sociedade. A expressividade das roupas, unidas aos gestos apropriados, permitiam que em raros momentos houvesse a incorporação de algum membro pela classe alta, possibilitando a reorganização e a permanência das elites pela introdução de novos membros considerados capazes. A boa utilização da moda dentro de uma festa pode-se entender como uma “tática” [7] das classes não nobres, pois isso lhes dá a possibilidade astuta de ascensão social. São aliviadas as tensões sociais graças à possibilidade dos membros das classes menos nobres de tornarem-se nobres. Não por acaso o capítulo chama-se “O Mito da Borralheira”, pois uma vez descidas as cortinas da festa, o rigor do distanciamento entre as classes retornava e a antiga “ordem” social era restabelecida, lançando de volta os considerados “não aptos” das classes não nobres à obscura realidade de seu mundo cotidiano.

A inovação da abordagem e da problemática que essa obra representa é muito expressiva, dado suas opções teóricas e metodológicas. Isso dá um impressionante ar de juventude e contemporaneidade a um trabalho com mais de 50 anos de idade. A erudição da autora pode ser uma chave pela qual alguns comentaristas consideram que “O Espírito das Roupas” conseguiu suspender o tempo e “no lugar de envelhecer, ganhou um frescor e uma atualidade inquietantes” (PONTES, 2004, pp. 10). Trata-se de uma clara demonstração do que Henri-Irenée Marrou quis dizer com: “a riqueza do conhecimento histórico é diretamente proporcional à da cultura pessoal do historiador”. A vida intelectual de Souza transparece em uma linguagem fluida e bem direcionada, segundo Alexandre Eulalio o livro “não consegue esconder […] a sensibilidade literária perspicaz” (EULALIO apud SOUZA, 1987, pp.14). Suas referências: Simone de Beauvoir, Johann Huizinga, Bronislaw Malinowski, Marcel Mauss, Michel de Montaigne, Georg Simmel (todos citados no original) mostram a sensibilidade teórica da autora pelas tendências teóricas da época. É uma das formas mais brilhantes de se utilizar de sua bagagem intelectual para escrever uma obra ainda hoje digna de exclamações como as de Pontes: “é uma jóia de ensaio estético e sociológico” (2004, pp. 10).

Notas

1. Trabalho apresentado quando o autor estava na graduação em História – UFPR.

2. Incentivada por seu primo Mário de Andrade.

3. que considera uma parte das artes do século XX, inclusive a moda, enquanto “indústria cultural”.

5. Numa evidente referência ao estudo de Georg Simmel que possui o mesmo título.

6. Apontando que o usuário não labora e tem posses para pagar.

7. Uso o termo “tática” na concepção de de Certeau (1994) quando o autor se refere à forma astuta de resistência do mais fraco.

Referências

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Notas sobre o método crítico de Gilda de Mello e Souza. In: Estudos Avançados, São Paulo, v. 20, n. 56, 2006. Acessado em: 6/11/2008

CERTEAU, Michel De. A invenção do Cotidiano vol.1. Petrópolis: Vozes, 1994. GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Capitulo 1.

MARROU, Henri-Irenée. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1978.

PONTES, Heloisa. Modas e Modos: uma leitura enviesada de o espírito das roupas. In: Hildete Pereira de Melo, Adriana Piscitelli, Sônia Weidner Maluf, Vera Lucia Puga (organizadoras). Olhares Feministas. Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2006. 510 p. Acessado em: 6/11/2008

______ A paixão pelas formas: Gilda de Mello e Souza”, In: Novos Estudos Cebrap, n.74, março de 2006, pp.-87-105. Acessado em: 6/11/2008

SOUZA, Gilda de Mello e. O Espírito das Roupas: A Moda no Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Fernando Bagiotto Botton – Graduação em História – UFPR.


SOUZA, Gilda de Mello e. O Espírito das Roupas: A Moda no Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Resenha de: BOTTON, Fernando Bagiotto. Cadernos de Clio. Curitiba, v.3, p.343-356, 2012. Acessar publicação original [DR]

História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) | Glaydson José da Silva

Glaydson José da Silva é historiador com doutorado pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente é professor da Universidade Federal de São Paulo e diretor associado do Centro de Estudos e Documentação do Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica (CPA/UNICAMP). Também é avaliador do Ministério da Educação para fins de reconhecimento de cursos de História. Seus principais temas de pesquisa concentram-se nas relações entre antiguidade e modernidade, nas tradições interpretativas em História Antiga, direcionando para o estudo das leituras acerca do mundo antigo no caso da França contemporânea e extremas direitas.

O pesquisador possui várias publicações dentre artigos e capítulos de livros e participou da organização de diversas obras. O livro História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944), de 2007, recebeu auxílio publicação da FAPESP e trata-se de uma versão revisada de sua tese de doutorado defendida em março de 2005 sob orientação do Professor Doutor Pedro Paulo Funari. A partir de sua leitura notamos como o historiador constrói uma História crítica e analisa como a modernidade pode usar o passado. O estudo das apropriações da Antiguidade no regime de Vichy é a maneira pela qual o autor nos evidencia isso.

O livro está dividido, além da introdução e conclusão, em quatro capítulos, cada um com duas partes e iniciando com um breve prólogo que contextualiza o tema a ser tratado. O assunto geral é o regime de Vichy e o objeto de análise o passado gaulês, romano e galo-romano usado para justificar a dominação alemã e o colaboracionismo francês com a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. As fontes são materiais da época, como livros acadêmicos, livros de vulgarização científica, manuais de História e de Arqueologia, jornais, revistas, discursos, textos oficiais, correspondências, cartazes, moedas e outros.

Como os capítulos iniciam com um pequeno prólogo, possuem bastante autonomia em relação à totalidade da obra. No primeiro Silva realiza uma discussão teórica acerca da instrumentalização do passado e defende ser preciso percebermos que na historiografia do mundo antigo, as imagens e lógicas históricas são produzidas dentro de tradições interpretativas atreladas, mais ou menos, ao contemporâneo.

Nesse capítulo o autor também discute as noções de herança e legado para explicar como se constituem os mitos fundadores, os quais perpetuam valores e imagens da vida nacional, objetivando criar identidades pelo uso da ideia de permanência. Dessa forma, com o intuito de resgatar a memória nacional, a História e a Arqueologia assumem um papel importante: estão a serviço do Estado e permitem qual tipo de memória se pode (re)construir. Essa tradição de apropriação do passado em prol do governo assume dimensões gigantescas no século XIX e continua ainda no XX, principalmente no contexto das duas grandes guerras – do qual Silva retira seus exemplos de instrumentalização do passado, a Itália fascista e a Alemanha nazista.

Silva ainda trata do caso francês a partir do nascimento do herói Vercingetórix na escrita da História francesa após a sua Revolução. O autor reflete sobre como na França a disciplina histórica está atrelada a memórias construídas durante a elaboração da identidade nacional e, também, constitui-se em uma História mitológica – afinal, cria mitos de origem – encontrada principalmente na escola, espaço ideal de divulgação e popularização, e possuindo na política sua primeira finalidade já que são controladas por discursos desse gênero.

O mito consolida-se a partir de 1814 e 1815 com a invasão da França por prussianos e cossacos. Nesse contexto cresce o apelo a Vercingetórix, líder gaulês vencido pelos romanos na antiguidade, que simboliza a luta pela liberdade e é um verdadeiro herói. Segundo o autor, os historiadores e escritores colocam-no em evidência para retornarem a oposição entre romanos e gauleses e, assim, justificar as lutas políticas da época. Novamente em 1870 a França é derrotada pelos alemães e a imagem de Vercingetórix, que se rende diante de César, mas sem ser humilhado, preserva para os republicanos algo essencial: a honra da França vencida. E, também, na primeira grande guerra a imagem do herói gaulês aparece.

No segundo capítulo “A Antiguidade a serviço da colaboração: nas trilhas da memória, a reescrita da História da França dominada (1940-1944)” Glaydson José da Silva contextualiza no prólogo o momento histórico estudado, fornecendo informações importantes sobre o debate governamental francês acerca da derrota. Silva também nos explica o que é a Revolução Nacional (R.N.) e como Vichy torna-se um Estado autoritário, explanando o papel da propaganda na sua legitimação.

O autor termina tal introdução do segundo capítulo nos explicando a importância de seu estudo. A pesquisa desse período da França até as décadas de 1970 e 1980 eram poucas, mas desde então isso mudou. Contudo, questões sobre o colaboracionismo e o estatuto da História e da Arqueologia durante o Regime ainda não foram muito trabalhadas. Dessa maneira, seu livro pretende contribuir com esse domínio tão pouco explorado.

Na continuidade da leitura, observamos o retorno do mito de Vercingentórix. O autor inicia a primeira parte do capítulo explicando o conceito de memória coletiva que surge com os estudos de Maurice Halbwachs e a partir do qual reflete sobre a ideia de um patrimônio histórico e cultural comum aos franceses, amparando a R.N. e o Regime de Vichy. A memória coletiva proporciona as bases necessárias à compreensão da derrota, à justificativa da dominação e à colaboração com estrangeiros.

O patrimônio histórico e cultural comum é buscado por meio da História e da Arqueologia a serviço de um Estado autocrático e, por isso, estão comprometidas com ideologias legitimadoras, pois o governo propõe uma releitura das origens coletivas que atende aos seus próprios interesses. Essa interpretação do passado é baseada em uma ideologia política de fundo revisionista: procura difundir a ideia “de que os gauleses não foram vencidos pelos romanos, mas, sim, beneficiados pela inserção da Gália nos domínios do Império, e que da união desses dois povos nasceram os franceses.” (SILVA, 2007: 91).

A justificativa da dominação tanto romana como alemã, em épocas diferentes, então, é fundamentada em uma ideologia da derrota, ou seja, no entendimento de que os gauleses e depois franceses (mesmo sendo povos brilhantes) mereciam o castigo da ocupação por causa de seus desvios disciplinares. Dessa forma, como nos mostra Silva, a recuperação do passado gaulês para a propaganda de Vichy possui dois aspectos: o de homenagem aos gauleses por sua luta heróica contra as legiões de César e pelo reconhecimento da superioridade romana. E com essa noção de que a associação com o outro (romano ou alemão) propicia o avanço e o progresso, o colaboracionismo também se justifica.

O próximo capítulo do livro nos traz o caso específico de Jérôme Carcopino, historiador, arqueólogo e epigrafista do mundo romano, secretário do Estado e ministro da educação entre 1941 e 1942. No prólogo observamos a preocupação do autor em explicar a discussão que existe em torno desse estudioso em saber se teria sido mais um intelectual do que um político ou se o contrário. Para Silva, sua função no governo não justifica suas escolhas na elaboração do passado, porque a própria função é uma escolha e o importante é notarmos as interfaces entre o historiador e o político na figura de Carcopino. As escolhas desse pesquisador constroem uma História política factual focada nos grandes homens do passado, o que o autor percebe a partir de trechos dos seus escritos. Nesses escritos, também notamos a emissão de juízos de valor a respeito de indivíduos, situações e momentos históricos.

Com essas considerações sobre Carcopino, o autor passa a analisar a partir de Stéphane Corcy-Bebray e outros autores, sua inserção no cenário político vichysta. Carcopino é favorável ao armistício e evolve-se com o colaboracionismo. A partir de 1940 recebe diversas nomeações, como diretor da École Normale Supérieure onde empreende grande reforma: reforço do poder do diretor, exclusão das mulheres e dos judeus, entre outros; ao mesmo tempo em que defende junto ao Regime a manutenção de bolsas para alunos judeus e de advogar em favor de seus amigos e colegas do meio universitário, Mare Bloch por exemplo. É a partir desse estudo da relação de Carcopino com o poder que Silva tece algumas considerações acerca da aproximação de suas obras políticas com as suas obras acadêmicas e realiza uma importe reflexão sobre qual é o lugar dos historiadores da Antiguidade, um dos assuntos abordados no próximo e último capítulo.

No prólogo do quarto capítulo, o autor desenvolve o que é extrema direita e o que é a extrema direita francesa, tratando do caso específico da França no pós-guerra, a qual teria esses grupos de radicalização política como herdeiros do Regime de Vichy. De acordo com o autor, elas são ditas como Nouvelle Droite e são uma resposta ao fracionamento da direita, além de estarem ligadas a uma prática historiográfica na qual a História Antiga é comprometida com ideologias de justificação e legitimação de direitos, desigualdades raciais e de grupo social.

Na sequência, Glaydson José da Silva nos traz as discussões mais recentes, da nossa contemporaneidade, em torno do F.N. e a luta contra os imigrantes e a violência. Para o partido, a imigração se inscreve no mais atual aspecto dos debates identitários na França. Porque gera problemas como: a falta de segurança pública, desemprego, saúde e decadência moral; ocasionando uma noção de crise social advinda da perda de identidade. Portanto, o F.N. defende uma delimitação de fronteiras sólidas, a qual exclua os países não europeus e assegure a proteção contra os imigrantes. A noção tida é, por exemplo, de que Roma caiu ao se unir com os povos instalados aos poucos no Império.

Segundo o autor, atualmente o mito gaulês continua sendo veementemente defendido pelo F.N. A sua juventude nacionalista e racista, um exemplo, orgulha-se em exaltar suas origens gaulesas na internet, em camisetas, prospectos, letras de músicas e outros. E esse uso que o partido faz do passado ainda é pouco estudado. Por isso, Silva propõe a pesquisa de historiadores do mundo antigo nesse campo, combatendo o racismo, o elitismo, a xenofobia e outros discursos característicos de partidos como o F.N. Dessa maneira, convida o estudioso da antiguidade a assumir uma pesquisa, em nossa opinião, de muita relevância, mostrando-nos, com um exemplo bastante atual, a aproximação dos estudos antigos com discursos políticos e ideológicos. Por fim, no fechamento do livro, Silva nos deixa a pergunta: qual lugar a antiguidade ocupa em nossas sociedades?

Essa questão nos permite pensar sobre o ofício do historiador, principalmente o do mundo antigo, e se encaixa nas recentes discussões sobre o presentismo da História. A importância de indagar acerca desse lugar nos permite notar a utilização da História a serviço de certa lógica justificadora e legitimadora de questões identitárias, nacionais, raciais e políticas. Além de nos mostrar a História como um discurso do passado que representa as perspectivas nas quais foi construído.

No Brasil, estudos como esse de Glaydson José da Silva estão, aos poucos, ganhando espaço com a formação de grupos de pesquisa dentro do tema da instrumentalização do passado. Um exemplo é o grupo de pesquisa “Antiguidade e Modernidade: História Antiga e Usos do Passado” formado nesse ano de 2010 e cujos líderes são o próprio Silva e a Professora Doutora Renata Senna Garraffoni.

Mesmo que tenhamos resumido a obra História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) e tecido algumas considerações sobre a sua leitura, destacamos somente aquilo que mais nos interessou. O livro todo possui outras explanações e questionamentos, porém, certamente, a indagação principal é sobre o lugar dos estudos antigos. Para refletir mais profundamente no assunto recomendamos sua leitura integral que, como comenta o Professor Doutor Leandro Karnal na apresentação, não é destinado apenas aos especialistas em Antiguidade, mas “a todos que manifestem alguma preocupação sobre os usos e abusos do passado histórico.” (SILVA, 2007: 16).

Camilla Miranda Martins –  Bolsista PIBIC/CNPq.


SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007. Resenha de: MARTINS, Camilla Miranda. Cadernos de Clio. Curitiba, v.2, p.295-304, 2011.Acessar publicação original [DR]

Agincourt: o Rei, a Campanha, a Batalha | Juliet Barker

O livro Agincourt: O Rei, a Campanha, a Batalha da autora inglesa Juliet Barker foi publicado pela primeira vez na Inglaterra em 2005, pela editora Little Brown; foi traduzido para o português e publicado no Brasil em 2009 pela editora Record. Em uma vasta análise bibliográfica e de fontes, a autora descreve todo o processo, desde o início da Guerra dos Cem Anos até a batalha de Agincourt.

Juliet Barker nasceu em 1956 na cidade inglesa de Yorkshire, onde vive até hoje. É historiadora especialista em Idade Média e em literatura bibliográfica. Obteve seu doutorado em História Medieval em St Anne’s College, Oxford e, em 1999, obteve um doutorado honorário de Letras pela Universidade de Bradford. Foi curadora e bibliotecária no Bronte Parsonage Museum [2] e também é membro da Real Sociedade de Literatura inglesa.

A batalha de Agincourt (1415) é um ponto da História muito estudado e que faz parte sem dúvida do imaginário histórico inglês. Incluída no calendário da Guerra dos Cem Anos, assim como Crécy (1346) e Poitiers (1356), os ingleses triunfariam sobre os franceses embora estivessem com um exército consideravelmente menor. Agincourt também foi imortalizada na literatura mundial por ninguém menos que William Shakespeare em seu livro Henrique V. É sem dúvida um tema de relevância altíssima para ser abordado.

O livro foi estruturado em três partes que têm seus respectivos focos, mas todos organizados em seqüência cronológica. Na primeira parte “A Estrada para Agincourt”, há uma breve descrição do contexto inglês e francês dos séculos XIV e início do XV, bem como dos preparativos para a campanha. A segunda parte “A Campanha de Agincourt” trata da campanha que os ingleses empreenderam na França, desde Harfleur até a batalha de Agincourt em si. A última parte “As Consequências da Batalha” versa sobre o que ocorreu posteriormente a esse confronto e o impacto que a batalha teve nos anos seguintes.

Barker destaca o rei Henrique V da Inglaterra. Ela tenta, através de documentos e bibliografia a respeito do monarca, traçar um perfil de como ele teria sido e como foi sua liderança para a campanha na Normandia. Resgatando todo seu histórico, a autora mostra um rei influenciado pelas experiências militares vividas; os contatos pessoais – estes que declara imprescindíveis para o sucesso da campanha de Agincourt, tanto com grandes políticos como com os próprios guerreiros que lutavam por seu exército; enfim, como Henrique V se tornou um ícone, uma inspiração para a hoste inglesa que lutaria pela seqüência da legitimação do poder real inglês sobre a França.

Tem-se também o perfil religioso de Henrique. Como relatado nas fontes, o rei buscava dentro da Bíblia orientações para sua campanha, como no momento em que diz aos sitiados em Harfleur que Deus autorizaria, segundo o livro de Deuteronômio da Bíblia, que saqueassem a cidade se esta não fosse entregue.

A autora faz ainda uma extensa análise para todos os empreendimentos, levantamento de recursos, organização de guerreiros, mercenários, ferreiros, armeiros, cavalos, enfim, tudo o que era necessário para se realizar uma campanha na França. Também se detém no relato do sítio de Harfleur – ponto inicial de um viés prático da campanha. Após isso, só interessa a marcha dos ingleses e tudo o que girava em torno destes até culminar na grande batalha de Agincourt.

Barker analisa o porquê de os ingleses, em um número tão inferior, terem vencido a batalha de forma “simples”: eram um exército muito mais coesos, unidos em torno do rei Henrique V e se sentiam encurralados. Já os franceses estavam subdivididos de forma desorganizada em senhores feudais e nobres egoístas que não tinham como idéia principal unirem-se para vencer. Eram numerosos e julgavam a vitória certa – e a matança fácil. Essa desorganização foi o que os levou à derrota.

Mesmo realçando o papel de Henrique V na batalha, a autora não elabora uma narrativa estritamente política. Ainda sim, é a partir dessa figura que Barker tece uma teia de relações sociais e econômicas, conseguindo quase que contar de forma romântica a história. Embora as fontes tratem majoritariamente da sociedade nobre da época, Barker se permite estudar como agiam todos os membros que compuseram a hoste inglesa e toda a movimentação por trás dela.

É possível identificar ainda as diferenças entre os guerreiros ingleses e franceses, sobretudo focando no aspecto do corpo militar inglês formado em sua grande maioria por arqueiros. Há uma boa análise, embora pudesse ter sido mais explorada, da identidade que caracterizava o exército inglês por sua tática de batalha fundamentada no arco e flecha.

Isso não é um fator que desmereça a obra. Barker fez um trabalho exaustivo de leitura de fontes e análises bibliográficas baseada em diversos autores especialistas no assunto, como Anne Curry [3] e Robert Hardy [4] . É um livro que não relata apenas a batalha de Agincourt em si, pode servir de base para diversas pesquisas dentro do período, e, sobretudo, sobre a Guerra dos Cem Anos.

No Brasil, ainda que o mercado editorial seja tão inconstante a respeito das escolhas por boas traduções, mais sobre uma “História que não nos pertence”, potencialmente haveria um público alvo para o tema. Com a difusão de jogos, filmes e romances que tratam de temas históricos e grandes batalhas cresce cada vez mais o interesse a respeito. Assim, a tradução e publicação em menos de quatro anos desde seu original em inglês é um avanço grandíssimo e que pode servir de exemplo para que mais e mais tenhamos contato com diferentes culturas e Histórias, além de dar suporte a quaisquer estudos que estejam relacionados a esses conhecimentos.

Notas

2. Uma das mais antigas sociedades literárias de língua inglesa do mundo.

3. Historiadora britânica, especialista na temática envolvendo a Guerra dos Cem Anos, especialmente a batalha de Agincourt.

4. Ator inglês, também é especialista em estudos sobre o arco-longo inglês e Comandante da Ordem do Império Britânico (Ordem de Cavalaria inglesa fundada em 1917).

Guilherme Floriani Saccomori1 – Graduando e bolsista do PET-História desde 2009, com pesquisa individual orientada pela Prof. Dra. Marcella Lopes Guimarães intitulada “Arqueiros Ingleses na Guerra dos Cem Anos: a Transição Militar na Baixa Idade Média”.


BARKER, Juliet. Agincourt: o Rei, a Campanha, a Batalha. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: SACCOMORI, Guilherme Floriani. Cadernos de Clio. Curitiba, v.2, p.305-309, 2011. Acessar publicação original [DR]

A construção social da masculinidade | Pedro Paulo de Oliveira

Focar a masculinidade enquanto objeto de reflexão de gênero, ainda pode ser considerada uma perspectiva inovadora. Esse conceito foi sistematicamente tangenciado na medida em que se fixava a idéia da existência de uma masculinidade hegemônica inquestionável, baseada na irrestrita dominação masculina. Os esforços para pôr em discussão esse conceito antes “despercebido” são bastante recentes na sociologia e ainda mais recentes na historiografia. É visto que uma das mais ricas formas de abordar a masculinidade é através do diálogo teórico-conceitual dentre os diversos campos das ciências humanas, em especial: História, Sociologia, Antropologia, Letras, Filosofia e Psicologia. No intuito de se transitar dentre essas diversas disciplinas se apresenta a obra de Pedro Paulo de Oliveira. Embora “A Construção Social da Masculinidade” (2004) seja fruto de sua tese de doutorado defendida no Departamento de Sociologia da USP, seus diálogos transcendem as fronteiras disciplinares ao passo que o autor realiza as mais diversas incursões teóricas, perpassando inclusive pela historiografia.

É nesse sentido que a presente resenha propõe uma leitura, também por parte de dos historiadores, dessa obra que trilha diversos caminhos das Ciências Humanas, criando um dos mais ricos panoramas teóricos acerca do assunto no Brasil.

Oliveira define, ainda que provisoriamente, masculinidade enquanto “um lugar simbólico\ imaginário de sentido estruturante nos processos de subjetivação […] que aponta para uma ordem de comportamentos socialmente sancionados” (2004, pp. 13). Partindo desse pressuposto, o autor passa a vasculhar os conhecimentos históricos, filosóficos, psicológicos, antropológicos e sociológicos em busca da “construção social da masculinidade”.

No primeiro capítulo intitulado “Macho divinizado” há um diálogo entre as pesquisas do historiador George Mosse e do sociólogo Norbert Elias que estabelece “uma sociogênese moderna” da masculinidade. Oliveira contrasta o ideal masculino do bravo, ousado, destemido, rude e passional cavaleiro da idade média com o comedido e autocontido cavalheiro burguês da idade moderna. Dessa relação eleva-se o ideal moderno de masculinidade, incentivada pelo estado nacional e por diversas instituições sociais, como as religiões, a família nuclear, as leis, os esportes, a psicanálise, a medicina e a própria ciência iluminista.

No segundo capítulo que o autor intitulou “Capitalismo cósmico”, podemos encontrar ampla discussão acerca dos paradigmas norteadores da pós-modernidade. Para Oliveira, a ascensão de tal pós-modernidade proporcionou instabilidade, incertezas e crises da maioria dos valores nacionais e burgueses que amparavam o discurso mitificador da masculinidade. A compreensão da fragmentação e das mudanças promovidas por essa nova configuração social, cultural e econômica seria fundamental para que se pense em uma “crise da masculinidade”, ou seja, uma decadência contemporânea dos fabulosos valores masculinos junto dos ideais modernos que os sustentavam.

Delineada essa suposta crise dos valores masculinos, possibilitou-se questionar ou reafirmar tais valores: destoantes discussões acadêmicas e políticas são delineadas no terceiro capítulo do livro. Os discursos dos conservadores, dos cristãos, do movimento Gay, dos “homens vitimizados”, são indiciados a fim de se mapear os contornos e proporções que essa suposta crise da masculinidade havia tomado. Oliveira tece suas “Críticas Teóricas à Visão Vitimaria” afirmando que as posições teóricas que sustentam a menção de uma crise nos valores masculinos estão baseadas em argumentos “psicologizantes”, desprovidos de uma base empírica sólida. A proposição do autor é a de relativizar ou até mesmo abandonar a perspectiva da crise da masculinidade, pois “Antes de ser vítima, o homem é beneficiário do sistema de gênero vigente” (OLIVEIRA, 2004, pp. 190). A hipótese de que a masculinidade não sofreu, necessariamente, uma crise estrutural desencadeia a arguição do quarto capítulo, no qual Oliveira aborda as permanências da masculinidade sobrevivente a todas as crises do século XX. O argumento é que a interação social é um elemento relativizador da concepção de masculinidade decadente, pois nos baixos estratos sociais mantêmse a visão valorativa dos elementos constitutivos do discurso masculino, diferentemente das crises presentes nos homens das classes médias e altas, freqüentadores de consultórios psicológicos. Oliveira se utiliza do conceito Deleuziano de “falocentrismo” ao argumentar que as relações de gênero apontam para uma cultura supervalorizadora da simbologia do falo e da virilidade, causando um desequilíbrio na balança do poder em que o sujeito enquadrado nas prescrições da masculinidade é beneficiado, em detrimento de todos os sujeitos alheios a tais prescrições.

No quinto e último capítulo, Oliveira dá seqüência à sua argumentação na medida em que traça as relações e vivências intersubjetivas masculinas. Isso abre espaço para a utilização de seu conceito de masculinidade enquanto um “lugar simbólico\imaginário de sentido estruturante” (OLIVEIRA, 2004, pp. 245). A identidade masculina passa a ser uma construção subjetiva baseada em signos de honra, prestígio e dominação, que se afirma através das vivências interacionais e intersubjetivas. Tais vivências são propiciadas através de condutas específicas, muitas vezes violentas, perigosas e excludentes. A legitimação da identidade masculina é reproduzida pela mídia, pelas “fofocas” e por diversas outras formas de comunicação, que por sua vez, funcionam como formas de controle social, a partir do momento em que estabelecem determinados códigos masculinos assumidos como legítimos e adequados. Trata-se de uma opinião compartilhada que deve ser reiterada por todos os agentes a serem considerados estabelecidos [87]. Isso possibilita a satisfação existencial desses, ao passo que categoriza os alheios a tais normas enquanto “outsiders”.

Consecutivamente, Oliveira defende a hipótese de um “inconsciente sexuado” em que todos os homens confiscam um valor positivo em relação aos próprios signos constitutivos da masculinidade, ainda que alguns desses homens não os defendam conscientemente. Isso dá vazão à convergência entre “masculinidade” e “poder simbólico”, reafirmando o argumento da “Dominação Masculina” de Bourdieu (1999).

O autor encerra seu livro discutindo sobre a necessidade de se fugir dos estereótipos e se estudar mais profundamente a masculinidade, enquanto uma perspectiva de gênero. Oliveira reitera sua posição de que há uma disparidade entre os gêneros que ainda não foi superada, sendo necessária ampla reflexão desses a fim de reduzir as disparidades sociais.

Há muitas contribuições apresentadas por essa obra, delimito duas: a primeira, e mais específica, é a argumentação teórica utilizada que proporciona instrumentalização às pesquisas que se pretendam focar no estudo da masculinidade. A segunda contribuição, essa mais ampla, é a própria abordagem acerca da “Construção Social da Masculinidade“, trazendo a compreensão de que a masculinidade não é uma edificação sólida ou um conceito a priori [88] , antes disso, é literalmente uma construção social, passível de questionamentos, de discursos, de desconstruções. Essa abordagem, problematizadora, transporta a masculinidade para o centro das discussões acadêmicas das ciências humanas, uma vez que traz à tona um importante e delicado debate que articula a masculinidade com as construções subjetivas e com as relações de poder intergêneros.

Notas

87 Uso o termo de acordo com a concepção de Norbert Elias (2000), ao passo que os estabelecidos, como o próprio nome já diz, é um grupo identitário que se auto-afirma através da utilização de significações sociais comuns. Tal auto-afirmação serve como uma ferramenta de exclusão dos outsiders, ou seja, dos que não compartilham dos mesmos códigos propostos pelos estabelecidos.

88 Uso o conceito “a priori” em stricto sensu como “independente de qualquer experiência empírica”.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade, Rio de Janeiro: Zahar, 2000. pp.17-50.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 20.ed. Rio/Brasília: José Olympio/INL, 1980.

Fernando Bagiotto Botton86 – Bolsista PET\MEC-SESU e graduando do curso de História da Universidade Federal do Paraná.

OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004. Resenha de: BOTTON, Fernando Bagiotto. Cadernos de Clio. Curitiba, v.1, p.121-123, 2010. Acessar publicação original [DR]

Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão | Selma Pantoja

Escrito pela historiadora Selma Pantoja, o livro Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão, aborda alguns elementos da história de Angola durante o século XVII. Com o prefácio de Alberto Costa e Silva, a obra mostra o mito da rainha Nzinga que ascendeu ao poder rompendo as normas estabelecidas pelas linhagens tradicionais, que não admitiam uma mulher no poder. Além de também, dentre outras questões, Selma Pantoja traz as especificidades da escravidão dentro do continente africano.

As peculiaridades da história da África Negra trouxeram desafios para a historiografia. Sobre as fontes escritas percebe-se uma visão estereotipada dos africanos e suas sociedades, são relatos feitos por viajantes europeus carregados de superioridade. Com uma população ágrafa temos a tradição dos testemunhos orais que necessitam de uma técnica especial.

A obra traz um extenso relato sobre as características do povo Mbundu, bem como as especificidades da escravidão africana que tanto difere da praticada nas Américas. Deixa claro que ela é muito mais antiga do que se pensa, que era imanente naquele continente, mas de nenhuma forma benévola. E permeando toda a obra está a presença de Nzinha Mbandi que bravamente lutou contra o domínio português no Ndongo.

Sobre a escravidão africana vale ressaltar algumas características relativas à ela como o sistema de parentesco, os direitos pessoais, o escravo como propriedade, e este como sendo um dos tipos de dependência.

A autora também destaca a importância da mulher na sociedade africana, onde ela é o principal trabalhador agrícola e está diretamente ligada a produção e reprodução.

Selma Pantoja diz não ser adequado identificar a escravidão a partir do atributo propriedade, pois justifica que seus direitos são negociáveis, que tanto pessoas livres como escravos poderiam se negociados como propriedade.

Nota-se como característica marcante dos escravos africanos a ausência de parentesco, a não-integração com a linhagem ou etnia local. Para tanto era necessário que este indivíduo fosse retirado de local de origem, enfatizando sua procedência estrangeira. A guerra, o seqüestro, as razias eram as formas mais comuns de escravização e ao contrário que se imagina, aqui, o escravo não trabalhava somente em atividades produtivas, poderia este desempenhar cargos políticos e sociais.

E como o escravo está presente na estrutura econômica de uma sociedade africana? A autora mostra que, quando esta mesma sociedade depende do escravo, temos uma sociedade escravista. Porém a simples presença da escravidão e do escravo não necessariamente a define desta maneira.

Selma Pantoja dedica um capítulo de seu livro mostrando a organização e características da sociedade na África Central Ocidental. Primeiramente os povos de língua bantu onde há apenas uma breve amostra de características dessa sociedade, tais como prática da agricultura e da metalurgia, que possuíam um regime de descendência matrilinear, patrilinear e até de descendência dupla.

Após a autora enfatiza os povos coletores, existentes na África Central Ocidental, chamado de bosquímanos. Estes foram grupos nômades e tiveram sua população absorvida pelos povos de língua bantu, que resultou em um violento impacto no modo de vida dos povos caçadores.

Importante ressaltar que com a relevância da introdução do ferro na agricultura, facilitando na abertura de clareiras, que foi ideal para o cultivo de banana, tão importante na dieta bantu, fez com que o ferreiro tivesse muito prestigio dentro da sociedade, tornando-se o mais importante artesão da aldeia. Uma unidade política organizada em confederação de linhagem é mostrada como exemplo dentro da complexidade do sistema político da região, os Mbundu.

Uma característica marcante desta população eram os laços de parentesco além de muitos dependentes. Como no caso da mulher, que vivendo em uma sociedade polígama, tinha seu trabalho apropriado pelo homem.

A região do litoral da África Central criou estados que se apoiavam na autonomia de linhagem. Eles baseavam-se em uma relação social ou de parentesco consanguíneo, neste ultimo podendo ser matrilinear ou patrilinear. No caso dos Mbundu são predominantemente matrilineares, porém patriarcal, ou seja, segue-se a linhagem materna, mas sempre representado pelo homem.

Há um trecho onde podemos tornar a imagem de Angola mais real, com os aspectos geográficos da região. No que diz respeito às demarcações do domínio dos povos, estas eram feitas pelos rios e mares. O mar litorâneo era de domínio dos reis africanos, já o alto mar pertence aos europeus. O clima angolano é descrito como sendo intertropical, com o índice pluviométrico aumentando quando se afasta do litoral, já ao sul o clima é árido devido ao deserto.

Agora a autora adentra na história do Congo e do estado do Ndongo, onde viviam os Mbundu.

O Congo era divido entre cidades e a população das aldeias, sendo os títulos pertencentes aos habitantes das cidades. Quanto à religião houve um processo de cristianização que se operou somente à elite congolesa.

O governo central era mantido pela cobrança de impostos, estes eram pagos com tecidos, marfim ou cativos.

Uma expedição vinda de Portugal vinda de Portugal, em 1482, estabeleceu contato com o Congo, com interesses comerciais, os lusos introduziram na costa africana o comércio de manufaturas. No início esta relação luso-bakongo era amistosa, até a cristianização ter sido posta de lado pelo interesse no comércio de escravos.

O escravo era utilizado como pagamento no estudo dos africanos em Portugal. Sua venda rendia também impostos para o Manikongo, chefe do Congo. Em 1512 este comércio tornou-se monopólio real.

Durante o século XVII o Congo foi invadido pelo grupo dos yagas, que foi na verdade um golpe para os chefes locais, os Manikongos e comerciantes portugueses, estes guerreiros lutaram ao lado dos Mbundu. Foi então que resultou na hegemonia do Ndongo na região.

Os Mbundu era inicialmente organizado em forma de aldeia constituído por grupos de filiação. Os membros destes grupos tinham o controle das terras para o seu cultivo.

Sobre o soberano, era chamado de Ngola, este passava por um ritual relacionado à posse de objetos considerados sagrados.

Toda a população, aparentemente, estava submetido ao Ngola, mas havia diferença na forma de submissão, dentre as mais comuns formas de dependência estavam os prisioneiros de guerra, escravos por dívidas ou por punição de algum crime, estes não estavam inseridos em nenhum sistema de parentesco. Eram os cativos e as mulheres que se dedicavam à produção agrícola.

E é neste contexto que surge a figura de Nzinga Mbandi, e foi durante seu governo que o Ndongo sofreu sua fase mais tensa, a luta contra os lusos no comércio de escravos e o ataque dos Mbangalas. Nzinga destaca-se por conseguir equilibrar-se neste período de crise no governo.

Nota-se que o mito da rainha Nzinga também serve para autora enfatizar por várias vezes a importância da mulher na sociedade africana, tanto no poder como o principal produtor agrícola.

Voltando ao assunto do contato Portugal-África, foi em 1540 que os lusos tiveram contato com os soberanos Mbundu, e foram estes que buscaram contato com os europeus. O Ngola pediu aos portugueses que enviassem ao Ndongo padres e comerciantes. Mas quando o capitão Novais, enviado pelo reino português, chegou a região e o novo Ngola não quis recebê-lo e após alguns meses de espera o capitão avançou para o interior. O Ngola não apenas se recusou a ser convertido ao cristianismo, como prendeu Novais juntamente com o padre Gouveia.

Para incrementar o comércio de escravos os portugueses combateram contra os Mbundu ao longo do século XVII, e esta tarefa foi difícil pois os portugueses encontraram a resistência de Nzinga Mbandi.

Os portugueses usavam diversos pretextos para iniciar uma campanha militar com intuito de capturar mais escravos. Mas sem o apoio dos africanos os portugueses não poderiam ter acesso às rotas de comércio. A resistência de Nzinga vai dificultar todo comércio de escravos por todo século XVII.

Com a morte de Ngola Mbandi em 1617, houve uma disputa pelo poder entre Kia Mbandi e Nzinga. Ela fugiu para Matamba, onde não poderia mais reivindicar o título, já que para as linhagens tradicionais não aceitavam uma mulher no poder.

Seu irmão teve um governo marcado por inúmeras guerras, devastando o Ndongo. O governador empreendeu uma campanha militar contra o Ndongo e acabou que com sua capital destruída.

Para que a paz fosse restabelecida precisou de alguém com habilidade de negociação, Nzinga, uma mulher com capacidades não só diplomáticas como de guerra como demonstrou dentro de seus quilombos.

O Ngola Mbandi entra em contato com sua irmã Nzinga, que desempenha as negociações entre Ndongo e Portugal na negociação de paz entre os dois estados. Durante a década de 20 os portugueses conseguiram estabelecer aliança no Ndongo. O Ngola Mbandi falece e Nzinga detentora das insígnias reais apodera-se do poder.

Os dois últimos capítulos são onde Nzinga Mbandi está mais presente na obra de Selma Pantoja.

Nzinga adotou os costumes dos Mbangalas, e não aceitou a proposta dos portugueses para que o Ndongo tornassem seus tributários. Ela pediu em carta à Portugal, que enviassem padres ao Ndongo e em troca devolveria os escravos que haviam fugido dos portugueses e refugiaram-se no quilombo.

Porém os portugueses expulsaram Nzinga e colocaram um chefe submisso aos interesses lusos, Aire Kiluanji, que abriu as rotas comerciais do Ndongo. Os chefes Mbundu não reconheciam o Ngola, por ele não pertencer à linhagem. O que permeava esta resistência era o sentimento anti-português da região.

Após um assalto à ilha de Kwanza empreendido pelo governador, Nzinga foge para Matamba e ela passa a adotar os costumes e as formas militares dos Mbangalas.

O confronto militar do Ndongo com os portugueses resultou na demolição das bases do estado, além da propagação da varíola que despovoou aldeias inteiras.

É sempre recorrente falar em escravos que eram acolhidos pela Nzinga e este fato servia de argumentação para justificar a guerra contra a rainha Mbundu. Nzinga era soberana no Matamba, rompeu com as regras estabelecidas, sendo uma mulher no poder usando de força militar para consegui-lo.

Em 1641, Nzinga apóia a ocupação de Luanda pelos holandeses, o qual deseja seu apoio político. Nzinga usou a presença dos holandeses para expulsar de vez os portugueses e reaver o Ndongo. Os portugueses foram reduzidos à posição de intermediários ao comércio de escravos. Em 1648 os holandeses unidos a Nzinga avançaram contra os portugueses.

Os maiores rivais dos portugueses passaram a ser Matamba e o Congo. Foi durante o governo de Vidal de Negreiros que ocorreu o golpe fatal ao Congo deixando-o enfraquecido, mas este continuaria existindo até o século XIX.

Sobre Matamba, foi assinado um acordo de paz com os portugueses, para tal os lusos teriam  que libertar a irmã de Nzinga e ela comprometia-se em entregar alguns escravos. A rainha Nzinga se e converteu ao cristianismo e aceitou a presença dos missionários na região. Neste momento era impossível lutar mais contra os portugueses, pois não havia possibilidade de reorganizar um exercito no Ndongo, já despovoado.

Foi durante o século XIX que a África tornou-se mais vulnerável as invasões européias, pois antes a malária era uma espécie de barreira natural, e neste século foi descoberto o quinino, que ajudou os portugueses a driblar esta barreira.

Nzinga faleceu em 1663, ela foi temida por não só ter sobrevivido a varíola como por ter adotado os ritos Mbangalas.

As conseqüências da disputa pelo comércio de escravos foram grandes, como a redução da população local, o aumento do numero de cativos, a redução da população local e a escravização de pessoas livres.

O Ndongo foi o principal fornecedor de escravos para Luanda, em um momento em que tive uma relação estreita com o comercio atlântica durante o século XVII.

Segundo Cavazzi, na região do Ndongo existiam três tipos de escravos: os quísicos, que eram filhos de outros escravos; os prisioneiros de guerra, que poderiam ser usados em sacrifício; e os escravos de fogo, que viviam em perpetuo serviço até a morte de seu proprietário.

Aos escravos eram negados direitos e privilégios, diferenciados dos demais membros da sociedade devido à ausência de parentesco. Tanto os escravos como as mulheres estavam subordinados aos mais velhos da linhagem.

Foi por meio do apoio destes escravos que Nzinga Mbandi conseguiu subir ao poder no Ndongo e tornar-se um mito não só no continente africano, mas para todos os afrodescendentes.

Nota

Resenha apresentada à Disciplina de História da África, ministrada pela Professora Dra. Fabiane Popinigis na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC.

Mariana Ouriques – Graduanda do curso de História – UFSC.


PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Brasília: Editora Thesaurus, 2000. Resenha de: OURIQUES, Mariana. O universo negro-africano e suas peculiaridades: a escravidão, o tráfico e o mito da Rainha Nzinga. Cadernos de Clio. Curitiba, v.1, p.116-120, 2010. Acessar publicação original [DR]

Clio | UFPR | 2010

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Cadernos de Clio (Curitiba, 2010-) é um espaço de publicação que objetiva divulgar a produção de conhecimento histórico/historiográfico realizado pelo alunos de graduação dos cursos superiores de História.

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