Cultura escrita no mundo moderno / Varia História / 2019

O tema da Cultura Escrita não é novo no mundo das Humanidades. No século XIX, o desenvolvimento das tecnologias mecânicas aumentou o interesse sobre as práticas manuais da escrita e movimentou a produção editorial com pesquisas que ressignificaram os manuscritos iluminados do medievo ocidental.[1] No entanto, se durante muitas décadas os estudos sobre os textos escritos se firmaram nas técnicas aplicadas para a escrita, já há algum tempo antigas disciplinas como a Paleografia e a Diplomática se renovaram e incluíram em suas preocupações as relações entre produtos, produtores e consumidores e entre tempos e espaços (Petrucci, 1999). Por outro lado, a revalorização dos aspectos materiais da escrita levou os pesquisadores de diversos campos a desenvolver diálogos interdisciplinares, cruzando saberes, métodos e tecnologias para resolver diversos aspectos da curiosidade científica. De qualquer forma, as principais questões tratadas no campo da cultura escrita não podem se esquivar de considerar que o mental somente pode se expressar a partir do material (Almada, 2018).

O dossiê Cultura Escrita no Mundo Moderno abriga temas ligados à produção escrita ocidental moderna, abordando os discursos, as práticas, as representações e os processos de produção, circulação, uso e preservação, incluindo os aspectos técnicos e materiais que revelam as relações sociais e os agentes envolvidos nesta produção. Os artigos apresentam pesquisas dos campos da História, da Literatura e da Bibliografia Material e privilegiam os impressos e manuscritos como tecnologias de propagação de ideias e conhecimentos no tempo e no espaço. Entendemos como era moderna o período compreendido entre o desenvolvimento da tecnologia da imprensa por tipos móveis e a consolidação das mudanças nas relações com o escrito que possibilitaram a propagação de outras formas de produção – ou seja, entre meados do século XV até fins do século XVIII. Este longo período inclui muitas fases do desenvolvimento tecnológico, científico, social e econômico, o que torna a investigação sobre as formas de comunicação extremamente desafiadoras.

Reunimos, neste dossiê, resultados de pesquisas recentes no campo da Cultura Escrita. Foram convidados pesquisadores dos dois lados do Atlântico que estão na linha de frente na proposição de novos caminhos e olhares sobre as formas da escrita na era moderna. Dispomos os trabalhos apresentados em dois grupos: o das escritas e o dos escritos, ou seja, o dos processos de produção escrita e o dos resultados deste processo, inspiração surgida a partir da leitura do artigo de Fernando Bouza.

O artigo de Roger Chartier, Mobilidade de textos e diversidade de línguas. Traduzir nos séculos XVI e XVII, abre o grupo dos escritos tratando do tema da tradução e explorando os motivos pelos quais este tópico se tornou uma preocupação compartilhada pela história literária, pela crítica textual, pela sociologia cultural e pela história global. A resposta que o autor propõe se firma em três aspectos. O primeiro é o histórico e se refere a uma primeira “profissionalização” da escrita nos séculos XVI e XVII através dos trabalhos de tradução que, mesmo sendo vista como uma atividade mecânica, viabilizou a sobrevivência de muitos escritores. O segundo é metodológico e localiza os estudos da tradução como elemento essencial da chamada “geografia literária”, que opera seguindo a cronologia e a cartografia das traduções de uma mesma obra. A geografia das traduções, porém, não é a cartografia dinâmica de uma entidade textual estável e deve levar em conta as várias mutações que transformam a obra com o acréscimo de novos textos. Deve também adentrar a perspectiva das “histórias conectadas”, que são aquelas dos tradutores, não apenas de idiomas, mas também de culturas. Desta forma, o estudo das traduções propõe uma abordagem em menor escala dessas histórias textuais interatlânticas conectadas, concentrando-se nos múltiplos significados do mesmo texto.

O terceiro aspecto do interesse dos pesquisadores pela tradução, para Chartier, é linguístico-estética e enfatiza o intraduzível (ou os textos e autores considerados como tais). Seu artigo propõe três estudos de caso que podem identificar três escalas nas pesquisas sobre o tema e três modalidades da transformação do significado dos textos quando migram de uma língua para outra, seja em função da dificuldade de traduzir certas palavras, seja na influência do contexto de recepção. Enfim, a tradução é aqui pensada como uma prática que deve tornar a alteridade compreensível e fazer do outro um semelhante.

Littérature de l’expérience au XVIIe siècle é o segundo artigo do dossiê, no qual Christian Jouhaud, em um tom bastante pessoal, trata da questão da “literatura de experiência” a partir de um manuscrito deixado por um cavalheiro, um valet de chambre de Luís XIV, chamado Marie Du Bois, que viveu de 1601 a 1679. O texto parece se situar na categoria historiográfica de “escritos do foro íntimo”, mas Jouhaud questiona o anacronismo dessa definição e a própria distinção entre escritos de “pessoas comuns” e de “escritores”, em um momento no qual a noção de literatura apenas começa a existir como potência de simbolização do mundo. O texto deixado por Marie Du Bois, ao resistir a todas as classificações, convida a enfrentar a questão da historicidade da prática da escrita que permitiu sua existência, antes de qualquer extrapolação concernente a uma “cosmovisão” ou a uma “sensibilidade” ou mesmo a um pensamento ou a representações.

Jouhaud convida a fazer uma reflexão mais ampla sobre a relação entre o ato de escritura de Marie Du Bois e o impacto da sua forma narrativa sobre um leitor-historiador que o recebe como narrativa de uma presença em um passado, o qual é seu campo de estudo. O autor aborda, de forma original, a narrativa do cotidiano na perspectiva de sua transmissão em tempos distintos: o tempo do escrito e o tempo do historiador contemporâneo, sem descuidar da preocupação com o processo da escrita, o correr da pena, a organização das folhas e a unidade material final do relato, que deixam transparecer a pessoalidade de quem escreve e a realidade sobre a qual se escreve. Como reflete Jouhaud, essa produção do passado por uma sucessão de narrativas exerce sobre nós efeitos que não são idênticos àqueles percebidos por seus primeiros receptores.

Em outra perspectiva dos escritos, o artigo de Guillermo Wilde e Fabián R. Vega intitulado De la indiferencia entre lo temporal y lo eterno. Élites indígenas, cultura textual y memoria en lasfronteras de América del Sur nos introduz o tema da cultura textual das missões jesuítas a partir da curiosidade despertada por um pequeno papel dobrado contendo um texto de caráter religioso escrito em três idiomas: o latim, o castelhano e o guarani. E é a partir deste pedaço de papel que os autores partem para a compreensão das complexas relações entre os missioneiros e as elites indígenas, revelando a fascinante miscigenação entre valores de duas culturas, uma estruturada pela escrita e outra pela oralidade. Wilde e Vega nos informam que a expansão das missões, inicialmente fundadas pelos jesuítas na região de Guayrá (atual Estado do Paraná, Brasil) por volta de 1609, levou à reestruturação do espaço das populações e ao rápido desaparecimento de outras línguas faladas na região e de numerosas variantes dialetais da língua Guarani, impondo-se uma “língua geral”.

Através da unificação da língua indígena propiciou-se a uniformização do projeto doutrinário com uma ampla produção textual deliberadamente orientada para reunir o espiritual e o temporal, como parte de um programa mais amplo de reforma dos costumes e padronização da subjetividade cristã. Segundo os autores, as produções textuais estimularam a hibridação de gêneros textuais que promoviam, num plano individual, um modelo de subjetividade com base na virtude cívica e na devoção cristã e, no plano sociológico, uma memória coletiva fundada nos marcos da expansão territorial, ordenados em uma narrativa cronológica e mitológica. Neste sentido, através de diversos exemplos de produção textual impressa e manuscrita, os autores apresentam a conjunção do espiritual e do temporal, conduzida pelas missões, como estrutura de conformação dos indivíduos indígenas à conduta do cristão civilizado.

Introduzimos o grupo dos processos de produção, circulação e guarda dos escritos, com o artigo de Fernando Bouza, autor que costuma prender a atenção dos seus leitores já nas primeiras linhas. Em Escribir a corazón aberto: emoción, intención y expressión del ánimo em la escritura de los siglos XVI y XVII o historiador, desde o início, nos conecta com naturalidade às preocupações de Mário de Andrade e Lope de Vega sobre a produção de correspondências. Esta união de tempos históricos tão distintos é continuada com a apresentação de preciosos dados sobre a escrita de cartas em diversas épocas, oferecendo ao leitor a oportunidade de traçar conexões com seus próprios objetos de interesse.

No tema da epistolografia, o argumento principal do autor é o de que, nos séculos XVI e XVII, a materialidade da escrita revela as estruturas das regras de conduta cortesãs e, nestas, os aspectos corporais não podem ser desdenhados. Cartas hológrafas ou autógrafas, por exemplo, evidenciam diferentes níveis de pessoalidade na relação do remetente e do destinatário. Bouza extrapola a questão da gestualidade e apresenta uma fisiologia mais particular, que associa o coração, a mão e a pena, sendo a escrita anímica capaz de revelar o pensamento mais íntimo de quem escreve.

Este foi o argumento usado por Sigismondo Arquer, célebre réu da Inquisição espanhola, doutor em Direito e em Teologia, para defender-se da acusação de heresia, feita pelo Santo Ofício em 1563, em função de supostas proposições luteranas encontradas em suas correspondências. Segundo Arquer, usando o argumento da “escrita de coração aberto”, suas palavras nunca poderiam defender o protestantismo, pois haviam partido de uma alma católica. O réu baseou-se na tradição bíblica que distinguia a escrita Intus, que usava o coração como instrumento, da escrita Extra, que necessitava apenas da pena e da mão.

Se o coração pode ser um dos instrumentos da escrita, a troca de informações deve ser um de seus motores. A produção, consumo e colecionismo de notícias na Alta Idade Moderna, com destaque para a experiência ibérica, é o tema de Escritos breves para circular: relações, notícias e avisos durante a Alta Idade Moderna (sécs. XV-XVII), artigo de Ana Paula Megiani. A autora nos apresenta um panorama complexo das diversas formas de circulação das notícias, que não só estruturavam os novos sistemas de governança, mas também saciavam a “curiosidade em se saber o que passa fora de casa”. Trata-se das relações de sucessos, avisos, arbítrios, e notícias, modalidades que mantêm sua especificidade mas que não podem ser classificadas de maneira estanque devido ao fato de não se tratarem de um gênero de escrita. Assim, qualquer pessoa que tivesse presenciado um acontecimento poderia se tornar um agente propagador de notícias, gerando um sem número de relatos, inclusive com diferentes desfechos. No entanto, cabe notar que, para além da efemeridade da notícia e da própria configuração material deste tipo de escrita, feita em pequenos pedaços de papel ou anexada a cartas ou cadernos, havia a possibilidade da sua sobrevivência graças à iniciativa de determinados sujeitos que se propuseram a organizar e a colecionar notícias.

Para estudar este assunto, Megiani tem se debruçado no conjunto formado pelo português Jerônimo Mascarenhas que, antes de assumir o Bispado de Segóvia, em 1667, esteve diretamente envolvido com a Casa Real espanhola, mantendo alguma proximidade com o monarca. Mascarenhas tornou-se um cronista régio de intensa atividade e igualmente um colecionador de relações de sucessos que compunha com originais ou cópias de cartas, relatos, documentos antigos e oficiais, entre outros papéis que reuniu, junto a escritos de sua autoria, em volumes organizados cronologicamente, entre os anos de 1558 e 1666. Este material saciou a curiosidade dos coetâneos e hoje serve ao historiador interessado na recepção dos fatos à época dos acontecimentos. Mas para cumprir esta função, como ressalta a autora, esse acervo deve ser tratado nas perspectivas das práticas escriturárias e de colecionismo, que é uma das chaves para o entendimento dos usos dos escritos em diferentes temporalidades.

Fechando este dossiê, e selando a perspectiva interdisciplinar dos estudos, somos presenteados com Primeros vagidos de tipografia y biblioiconografía mexicana del siglo XVI, de Guadalupe Rodriguez. Pertencendo à área de Filologia Hispânica, a autora nos instiga com um artigo no qual faz uso dos métodos da Bibliografia Material para revalorizar o período de instalação e expansão da imprensa no México, a partir de 1539. Sua abordagem dá protagonismo aos editores / tipógrafos, profissionais que enfrentaram uma diversidade de problemas para realizar o seu trabalho e sanar a carência de insumos como papel, tinta, prensas, tipos, adornos e xilogravuras. A partir de breve revisão bibliográfica acerca das prototipografias mexicanas, Rodriguez expõe a vulnerabilidade de pesquisas anteriores que, embora tenham conseguido determinar, em boa perspectiva, o estoque de materiais e equipamentos das diversas tipografias, não puderam estabelecer relações entre as suas demandas devido à falta de estudos sistemáticos e análises comparativas dos acervos materiais de cada casa tipográfica.

Para sanar esta carência, Rodriguez se dispõe a realizar esta empreitada tendo como base o novo repertório da tipobibliografia mexicana do século XVI, desenvolvido sob sua coordenação. Com este material, reflete sobre as redes de sociabilidade desenvolvidas entre os quatro primeiros tipógrafos mexicanos (atuantes entre 1539 e 1593) e esclarece sobre os mecanismos de transferência (venda, aluguel ou empréstimo) e reutilização de insumos tipográficos entre familiares e profissionais. O artigo revela a habilidade da autora em manipular as fontes visuais e materiais dos acervos bibliotipográficos e em traçar a biografia dos insumos e das matrizes imagéticas em busca do entendimento das relações sociais envolvidas na sua utilização. Ao expor com clareza e generosidade os procedimentos metodológicos adotados, sua contribuição se torna ainda mais valiosa para os estudiosos da história da tipografia.

Agradecemos a dedicação dos autores e das autoras na construção de seus artigos tão originais e instigantes e esperamos que este dossiê possa contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre Cultura Escrita no Mundo Moderno. Desejamos que os diálogos travados a partir destes excelentes textos sejam profícuos e tragam bons ventos para a área, gerando novas perspectivas de abordagem a temas imprescindíveis em tempos de profundas mudanças das relações sociais promovidas por nova mutação das práticas de comunicação escrita.

Nota

  1. CURMER, Léon (Ed.). Le livre d´Heures de la reine Anne de Bretagne traduit du latin et accompagné de notices inédites par M. lÁbbé Delaunay. Paris: Léon Curmer, 1841; CURMER, Léon (Ed.) Les evangiles des dimanches et fetes de lánne. Suivis de prières à la Saint Vierge er aux Saints. Paris, Léon Curmer, 1864.

Referências

ALMADA, Márcia. Cultura material da escrita ou o texto como artefato. In: CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da; MEIRELLES, Juliana Gesuelli (Orgs). Cultura Escrita em Debate: Reflexões sobre o Império português na América, séculos XVI ao XIX. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. p.19-42. [ Links ]

PETRUCCI, Armando. Alfabetismo, escritura, sociedad. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999. [ Links ]

Guiomar de Grammont – Instituto de Filosofia Artes e Cultura Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-8170-3258

Márcia Almada – Escola de Belas Artes Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-9046-9229


GRAMMONT, Guiomar de; ALMADA, Márcia. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.35, n.68, mai. / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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