Dimensões materiais da cultura escrita / Anais do Museu Paulista / 2020

Considerações sobre a materialidade da escrita e as três camadas de informação [1]

O texto é fruto de um trabalho intelectual manifesto sobre um suporte físico, da mesma forma como a realidade se expressa e se concretiza em ações materiais. As dimensões imaterial e material dos escritos são resultado de práticas, processos, métodos, saberes e técnicas. São indissociáveis e ambos decorrentes da existência humana. Desde o último quartel do século passado, estudiosos da cultura material têm destacado essa indistinção relativa aos objetos de uso cotidiano das sociedades, [3] na percepção de serem vetores e produtos das relações sociais. No que se refere aos textos, autores como Donald McKenzie, Armando Petrucci, e Francisco Gimeno Blay4 romperam com a perspectiva puramente técnica das disciplinas do campo da descrição material dos textos e de seus suportes. Nos seus estudos, os dados obtidos a partir dessas ferramentas eram aplicados na reflexão sobre inúmeras interfaces das relações sociais.

De fato, dados como a aparência, a constituição física ou a técnica de elaboração dos textos foram incorporados por autores de variadas áreas das humanidades no intuito de pensar suas condições sociais de produção, apropriação, circulação e preservação. Robert Darnton, Roger Chartier, Fernando Bouza Álvarez e Antonio Castillo Gómez,5 inspirados por Petrucci e McKenzie, consideram a associação entre as dimensões material e social suficientemente evidente, sendo prescindível a justificativa sobre suas opções metodológicas ou conceituais, embora estas sejam perceptíveis no conjunto de suas produções acadêmicas. Apesar dessas referências robustas, a perspectiva material da cultura textual não se consolidou em análises sistemáticas até a passagem do século XX para o XXI, sendo ainda hoje necessária a explicação sobre a vinculação do social com o material (e vice-versa) no campo de estudos sobre a produção e a circulação da escrita.6

É como procede James Daybell em trabalho consistente sobre a epistolografia na Inglaterra nos séculos XVI e XVII, dialogando com o campo de estudos textuais sintetizado por G. Thomas Tanselle como “processo social de publicação”.7 Preocupado com a percepção das realidades sociais nas quais os escritos existem, esse campo não descarta as diversas circunstâncias das interações físicas do sujeito com a obra, como os casos de autoria colaborativa a partir de anotações marginais ou a participação dos espaços de leitura e produção como condicionantes da experiência. Daybell tem como uma de suas principais ferramentas teórico-metodológicas a vinculação dos elementos materiais das cartas com as práticas sociais, culturais e intelectuais, dialogando com autores do campo da cultura material como Peter Stallybrass e com os estudos linguísticos, estilísticos e históricos. Dissociada dos métodos das antigas disciplinas, como a codicologia, a paleografia, a sigilografia e a diplomática, a materialidade ganha como atributo o adjetivo “social”. Nas palavras do autor, em referência direta a Donald McKenzie, a “materialidade se relaciona não apenas ao significado das formas físicas, mas também à materialidade social (ou ‘sociologia’) dos textos, que são as práticas sociais e culturais de manuscritos e impressos nos seus contextos de produção, disseminação e consumo”.8

Visto que as experiências de associação entre as dimensões materiais e sociais da escrita já vinham sendo praticadas há décadas por pesquisadores do campo da história da cultura escrita,9 o uso do conceito “materialidade social” nos suscita algumas reflexões acerca da existência de outros tipos de materialidade: sensorial, política, cultural, físico-química, utilitária, espacial… Os qualificativos podem ser inúmeros. As considerações serão sustentadas na ideia da categorização das camadas de informação contidas nos artefatos gráficos, conforme sugerido por Spiros Zervos, Alexandros Koulouris e Georgios Giannakopoulos.[10] De maneira geral, a primeira camada, seja de caráter textual ou visual, é aquela que está inscrita ou impressa sobre o suporte. É uma mensagem de captação direta, e sua compreensão depende da experiência intelectual do leitor / observador. A segunda constitui a forma do objeto e a sua configuração material, características determinadas pelas tecnologias aplicadas e pelos materiais usados para o registro da informação. Para compreendê-la, são necessários exames organolépticos e alguns instrumentos capazes de aumentar as percepções sensoriais do observador, para além dos conhecimentos sobre as tecnologias aplicadas. [11] A terceira camada de informação é a estrutura físico-química dos materiais usados (papel, tinta, couro, tecido etc.), podendo ser considerada o DNA – ou as “digitais” – do objeto, pois carrega dados sobre sua origem geográfica e datação, possibilitando autenticações, atribuições e estudos da passagem do tempo e da ação humana sobre o objeto.

A primeira camada de informação não contém apenas elementos de ordem mental ou intelectual, como se poderia supor. Da mesma forma estão envolvidos modos de percepção e recepção da mensagem, aos quais são agregados valores e sentidos que irão determinar as condições materiais da sua perpetuação no tempo. [12] A relação do corpo com a escrita necessariamente está incluída nessas experiências, não apenas quanto ao deslocamento físico e ao ambiente favorável a essa relação, mas também pelas eventuais repercussões sensoriais suscitadas no observador pelas palavras ou imagens. A visualidade, ou seja, a maneira como o objeto se apresenta ao mundo, que igualmente é um vetor de aproximação do corpo com o texto, é resultante das práticas criativas, das técnicas e das condições materiais pré-existentes. [13] Sensorial, visual e técnico, neste caso, poderiam ser atributos associados à materialidade.

Os elementos materiais são mais evidentes na segunda camada, mas nunca estão dissociados das relações sociais. Nela estão expressas as vinculações entre materiais, técnicas e processos de trabalho: por exemplo, a divisão de atividades em uma oficina ou entre oficinas, a correspondência e a hierarquização entre as diversas especialidades – como as funções do editor, tipógrafo, compositor, gravador e encadernador. Essas inter-relações nas atividades laborais foram tratadas através da materialidade da escrita em vários trabalhos de Darnton [14] ou, mais recentemente, no campo da bibliografia material, por Guadalupe Rodriguez Dominguez e por Ana Utsch, [15] pesquisadoras da área de filologia e de preservação de documentos gráficos. Com esses estudos, percebe-se a dimensão material do objeto como resultado das escolhas e possibilidades de interação das técnicas aplicadas, determinantes da sua tridimensionalidade, no caso dos livros e códices, à exemplo dos formatos e do uso de determinados dispositivos tipográficos. Em uma relação de vinculação interdependente, a própria seleção dos materiais usados é decorrente das capacidades técnicas e intelectuais pertinentes aos momentos históricos.

A vinculação interdependente está presente não apenas na etapa de produção, mas também nas de uso e preservação. O consumo dos objetos deixa marcas materiais impressas nos seus suportes, revelando as diferentes ações e intenções humanas. [16] A mesma atenção deve ser dada às modificações impostas aos objetos em processos de restauração, atualização ou renovação. Qualquer intervenção é movida por conceitos, necessidades, materiais e conhecimentos disponíveis; sobretudo, está vinculada às demandas dos grupos sociais envolvidos e a seus valores. [17] Uma vez mais está evidente que condições físicas registram, e portanto evidenciam, a relação do sujeito e de seu corpo com a escrita durante sua feitura, recepção e perpetuação.

A camada menos visível contém dados registrados nas estruturas físico-químicas constitutivas dos materiais; eles fornecem informações não evidentes sobre sua biografia, do nascimento até os momentos atuais. É a mais difícil de ser apreendida, pois está invisível a olho nu, mas é evidenciada quando os processos de degradação ocorrem e algumas funcionalidades do objeto começam a falhar. A composição química original e suas alterações revelam a deterioração do objeto, fator direta ou indiretamente relacionado aos processos de fabricação e às intervenções posteriores. De outro ponto de vista, a identificação dos índices de degradação do objeto levará a outras ações humanas, como a execução de medidas de engenharia ambiental para aplacar a inevitável decomposição do material.

As informações da terceira camada são reveladas em prática de pesquisa interdisciplinar, pois são necessários métodos das ciências da natureza para extrair seus dados, os quais serão interpretados conjuntamente com métodos das ciências humanas, pois muitas vezes o “visível” não é explicável pela experiência empírica, nem o “invisível” compreendido sem a interpretação histórica. Em análise paleográfica do manuscrito Discurso Histórico sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720, [18] descobriu-se um método ainda desconhecido de correção de letras e palavras já inscritas na folha: a aplicação de uma massa branca sobre o papel. A consulta a manuais de escrita e caligrafia publicados nos séculos XVII e XVIII não foi suficiente para identificar o procedimento, levando até mesmo a conclusões iniciais equivocadas. A revelação da técnica só foi possível com a descoberta dos materiais usados, por meio de microscopia ótica e de fluorescência de raios X (EDXRF): [19] tratava-se de uma massa feita com cera e pigmento branco de chumbo, combinação usada em uma pomada curativa de problemas de pele conhecida à época por “pomada de saturno”. Com esses dados, a pesquisa histórica localizou outras fontes usadas pelo autor gráfico do documento – as farmacopeias –, não só desvelando a invenção de um modo de fazer por um agente da escrita para solucionar determinado problema, mas também agregando outro dado informativo sobre sua cultura intelectual. Mais um exemplo de interação entre os métodos científicos é o empenho de químicos e cientistas da conservação em pesquisar sobre a constituição química das antigas tintas de escrita para compreender seu processo de deterioração; historiadores, por sua vez, os mesmos dados para interpretar as capacidades operativas dos sujeitos em determinadas épocas. A dificuldade encontrada pelos primeiros é a existência de uma grande variedade de combinações de materiais, sem dúvida resultantes de escolhas humanas feitas em determinados momentos. Aqui seria possível a separação entre materialidade “físico-química” e materialidade “social”? Algum objeto existe e sobrevive sem a ação humana em determinada situação histórica?

Quem definirá a abordagem das dimensões materiais do objeto é o sujeito: o investigador, o cientista, o poeta. Para quê qualificar a materialidade se a dissociação entre material e social é impossível? Algumas das discussões sobre as relações entre texto, matéria e vida social são perceptíveis nos artigos deste dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita. Os textos estão reunidos em três grupos: a) relação física entre leitores e escrita; b) recursos tipográficos como conformadores de leitura; e c) opções materiais para transmissão textual.

O artigo de abertura é de Rafael Climent-Espino. Em “Objetos-livro e escrituras expostas: novas paisagens textuais e literárias na América Latina e Espanha”, o autor discute os limites das visões sobre a materialidade dos textos com base na distinção necessária entre objetos-livro e livros-objeto. Climent-Espino parte da ideia de que não existe escrita sem seus suportes materiais; desta forma, não há texto sem objeto, e a percepção do conteúdo depende dessa vinculação. No entanto, se desde a Antiguidade o texto literário tem a capacidade de existir em suportes diferentes, como pedra, cerâmica, tecidos, ossos etc., a primazia do formato códice e do suporte papel reduziu a nossa compreensão, forçando uma separação entre objeto-livro e livro-objeto. A surpresa do artigo de Rafael Climent-Espino reside em defender a capacidade literária contemporânea de existir fora do formato de códice sem perder o estatuto de literatura. Suas explorações apresentam objetos criados para transmitir texto e, portanto, passíveis de serem considerados “livros” na acepção mais ampla do termo. São, na verdade, “objetos-livro” com formas materiais diversas, como caixa de fósforos, alimentos ou moradias, e convocam o leitor a fazer uma leitura dinâmica e multidirecional. Em algumas dessas experiências, a leitura exige não a manipulação do objeto, mas do próprio corpo.

O “objeto-livro”, ou a escrita fora do códice, já existia no século de ouro espanhol. Bules, copos, taças, lamparinas, sopeiras, capacetes, armaduras, joias, colares, lenços, vestidos, calções, sapatos, edifícios, paredes e tumbas, sem esquecer os papeis, são testemunhos dessa prática. Naquele momento, cancioneiros ampliaram o conceito de suporte do texto e, com isso, aproximaram a cultura textual da cultura material. “Poesía fuera del cancionero: la inscripción de lo cotidiano y lo sublime”, o artigo de Ana María Gómez-Bravo, nos convida a perceber a íntima relação entre cultura escrita, material e visual ao buscar as conexões existentes entre texto, imagem, objetos e sensações corporais na poesia do século XV. Suas reflexões destacam a capacidade do texto de representar e propagar sensações provocadas por objetos e, por outro lado, modificar o estatuto simbólico de artefatos com a simples presença da escrita. Além dos numerosos exemplos de relações estabelecidas entre objetos e lugares através dos elementos gráficos, outros dois enfoques da cultura escrita destacados pela autora não podem deixar de ser mencionados. Um deles é a capacidade técnica plural dos profissionais da escrita para lidar com suportes tão diferentes quanto o vidro, o metal, o papel e a pedra; o outro é a promoção do livro-objeto a veículo de fortalecimento de relações sociais. Gómez-Bravo discute alguns exemplos de como o uso de elementos gráficos – como os monogramas reais em objetos privados de diversas naturezas (arquitetônica, decorativa ou utilitária) – revelava relações de fidelidade entre os membros da nobreza. O termo “bibliopolítica” é usado pela autora para se referir a quando os livros eram o veículo dessa prática social.

O fortalecimento de relações sociais entre a nobreza através dos livros é perceptível nas encomendas de manuscritos iluminados – sustentadoras da produção, comercialização e preservação desse tipo de obra20 – que posteriormente passaram a fazer parte de coleções bibliográficas reais. Este é o tema do artigo “Das mãos aos cofres: reflexões sobre transformações materiais e transferência de propriedade de livros devocionais do tardo-medievo”, de Márcia Almada. Após discorrer sobre circunstâncias da produção de códices iluminados na região da Europa central, a autora apresenta exemplos de como os objetos eram transformados materialmente para atender às demandas dos novos proprietários, cujas marcas distintivas de propriedade podem ser incluídas no conceito de “bibliopolítica” usado por Ana Gómez-Bravo. As galerias da Biblioteca de Mafra, em Portugal, são apresentadas para se compreender como a localização física e as condições de acesso no início do século XIX, além das alterações pontuais feitas ao longo do tempo, são elementos concretos para refletir sobre as diversas atribuições de sentido e possibilidades de experiências sensoriais do patrimônio bibliográfico. Afinal, como já afirmava Armando Petrucci, os modelos de bibliotecas acompanham os modos de ler e escrever,21 e a disposição espacial das estantes que guardam os livros revela muito sobre os modos como são utilizadas.

O segundo grupo de artigos discute a utilização dos recursos tipográficos como conformadores da leitura. Em “A primeira página da história: configuração material e funções da folha de rosto em livros de história alemães do século XVIII”, André de Melo Araújo reforça o coro de Gómez-Bravo e de Almada na perspectiva bibliopolítica sobre as ornamentações e técnicas aplicadas nos revestimentos externos do códice. Mas esse é apenas o argumento introdutório, pois o artigo está interessado em destacar a importância da folha de rosto como testemunha das inúmeras problemáticas envolvidas no trabalho editorial e a função desse dispositivo tipográfico de qualificar a obra comercial, social e intelectualmente. O historiador elucida, com exemplos concretos, a maneira pela qual as formas materiais dos livros impressos serviam para reforçar os vínculos do livro-objeto com a tradição cultural à qual se referenciava e com as práticas de leitura, pois formatos, dimensões e estilos tipográficos se adaptavam às demandas variadas dos consumidores, sendo estas escolhas determinadas pelo editor ou pelo autor. Araújo articula a análise visual, material e social do tratamento de obras impressas da era moderna, amparada pelas teorias que apreendem as escolhas técnicas e materiais como dimensões cultural e histórica. Predominam as referências bibliográficas de tradição alemã, proporcionando a oportunidade de ampliação da experiência de leitura no campo da história do livro, firmada predominantemente no viés francês ou britânico / estadunidense.

Kleber Clementino, em “Mina secreta, aríete forçoso: o livro na historicização da Guerra Holandesa (1625-1660)”, igualmente investiga os livros de história. No entanto, o foco dirige-se para as publicações sobre a Guerra Holandesa saídas de prelos da Península Ibérica. Sua problemática refere-se à utilização do gênero histórico como meio de propagar os relatos sobre a guerra, ao uso do livro como um “artefato bélico metafórico” e à percepção da atividade editorial como um evento da guerra. Essa batalha foi travada entre a fidalguia militar ibérica que retornava à Europa e a elite vinculada aos trópicos; do mesmo modo, ela existiu entre dois gêneros textuais: a relação de sucessos e a literatura histórica. Os conflitos foram tipificados materialmente pela concorrência da veiculação de panfletos ou de livros, e o uso desses dois produtos tipográficos revelou a descontinuidade não só de fórmulas discursivas, mas igualmente de forças políticas, favorecendo a promoção socioeconômica dos grupos sociais em ascensão nos domínios ultramarinos. O livro garantia a perpetuação duradoura dos relatos, a circulação mais restrita aos círculos elitistas da sociedade e a formação de camadas simbólicas. No entanto, ao requerer um juízo político e submeter-se à censura, o texto ou o autor poderiam ser envolvidos em uma disputa editorial, impedindo a impressão ou a circulação das obras.

O tema da guerra editorial também é explorado por Verônica Calsoni Lima em “Edição & censura: a materialidade dos panfletos de Sir Roger L’Estrange no início dos anos 1660”. A batalha descrita nesse caso se dá entre um escritor e censor e seus opositores. A personagem, em associação com seu editor, manejava os recursos tipográficos com habilidade para enfatizar passagens e mover as emoções do leitor no decorrer do texto. Por meio do exame textual e material das obras de L’Estrange, o artigo é construído sobre a perspectiva da dupla atuação literária da personagem e sua ascendência sobre as escolhas tipográficas das publicações. A manipulação desses dispositivos, na opinião da autora, facultava um trânsito entre as formas de comunicação textual, visual e oral, impactando a absorção do conteúdo discursivo usado no embate político-religioso. Outro trânsito de interesse é o deslocamento do corpo no exercício das atividades profissionais. Avaliando a instalação do escritório de L’Estrange na região londrina onde se aglomeravam as tipografias no século XVII, a autora procura compreender a relação física entre o censor e seus investigados e entre o autor e seu editor. Ademais, destaca a necessária interação entre condições de produção do autor, análise material e visual, e gênero textual, além de tecer considerações sobre as funções de autor e censor.

O terceiro tema do dossiê refere-se à disponibilidade de materiais e técnicas para a transmissão textual. Em “Um texto setecentista em três séculos: os conteúdos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de João Antonio Cabral Camello (XVIII-XX)”, Jean Gomes de Souza traça a biografia do relato textual sobre uma viagem fluvial de Sorocaba (SP) a Cuiabá (MT) ocorrida no ano de 1727. A história do escrito percorre o período de 1734, ano da primeira versão conhecida, a 1953, quando ressurge em obra organizada por Afonso d’Escragnolle Taunay – Relatos monçoeiros destaca-se entre as demais publicações do relato por ter se tornado referência para as publicações subsequentes no século XX. A compreensão das condições de produção de cada uma das edições é fundamentada na biografia de seus produtores, impedindo o deslocamento da obra textual das situações históricas nas quais é concebida, apropriada e preservada. A noção de versão utilizada pelo autor permite perceber o texto como uma obra em aberto, estando sujeita a desmembramentos, refazimentos e reajuntamentos que darão ao conteúdo condições diferentes de fruição e uso. Os métodos e as preocupações de disciplinas como a cultura material, cultura escrita, paleografia e bibliografia material são coordenados para perceber o texto escrito como representação histórica, social, linguística e material.

A questão material é evidente nos arquivos quando se lida com uma grande massa documental produzida pela administração pública dos Estados modernos. Diante dessa evidente e copiosa matéria, poucos foram os que se perguntaram: de onde vinha todo esse papel? Havia uma regulação do comércio desse material? Havia controle da administração quanto ao envio de papel para suas colônias? As tintas e as penas eram produzidas localmente ou compradas? Quem detinha esse saber: todos os capazes de escrever ou somente os especialistas? Quem era responsável pela produção de livros de notas, anotações e registros? E quem encadernava os “papéis vários”? Há muito a ser pesquisado sobre as atividades escriturárias e os saberes envolvidos além da leitura e escrita. Com um olhar de reconhecimento sobre as dimensões materiais das atividades humanas, Régis Quintão percebeu na documentação do Erário Régio do Arquivo Histórico do Tribunal de Contas de Portugal informações substanciais para iniciar um caminho para responder a algumas dessas questões. Em “‘Papel, penas e drogas para tinta’: materiais de escritório na administração diamantina no século XVIII”, o autor se debruça sobre registros textuais acerca dos insumos utilizados para a escrita administrativa. Como destacado, embora de uso corrente e necessário para as práticas administrativas, sociais e culturais, o dispendioso papel raramente é citado nas pesquisas sobre o comércio internacional, tampouco nos relatos de viajantes – talvez por ser óbvio demais. Mas, como disse José Newton Coelho Meneses,22 não se pode escusar de dizer o óbvio. Quem se interessa por essas questões encontrará algumas surpresas no artigo de Régis Quintão. São perguntas possíveis de marcar uma agenda de pesquisas necessárias no campo das dimensões materiais da cultura escrita.

Uma constante discussão no campo acadêmico, desde a predominância da digitalização de acervos como política de preservação e difusão de conteúdo, é referente à restrição do acesso presencial e seu impacto na análise material do objeto. Essa questão se tornou mais evidente durante o ano de 2020, quando a crise sanitária provocada pelo Sars-CoV-2, o novo coronavírus, impediu a presença física de pesquisadores nos acervos. A principal pergunta é: como analisamos materialmente um artefato através de imagens digitalizadas? Sem negar que o contato com o objeto é propulsor de questões, e levando em conta as experiências dos artigos publicados neste dossiê, pode-se desenhar algumas possibilidades. Quando a linha de estudo é de reflexão teórica / conceitual acerca das possibilidades materiais da expressão humana e da fruição de produtos, o contato físico com o objeto é voluntário; portanto, o uso de registros visuais dos artefatos não é proibitivo. O suporte teórico definirá as problemáticas de investigação. É o caso dos estudos de Rafael Climent-Espino, Ana María Gómez-Bravo e Kleber Clementino, que observam a existência de textos poéticos e narrativos em suportes materiais diferentes. Já Régis Quintão faz uso das fontes documentais para pesquisar sobre as possibilidades materiais da escrita. Nesse caso, os inventários, livros de registros de compras e livros de receita e despesa são ótimas fontes sobre as condições materiais existentes em determinadas épocas.

Outro caminho de pesquisa é aquele percorrido por André Araújo, Verônica Calsoni e Jean Gomes, firmado na análise visual para captar as condições materiais das escolhas técnicas e funcionais de agentes responsáveis pela produção textual, mesmo que eles tenham tido a oportunidade anterior de estar diante dos artefatos estudados e possivelmente tenham feito sua própria documentação por imagem. Usar a visualidade como um dado material exige do pesquisador um conhecimento aprofundado dos processos técnicos e das condições de produção para enxergar no produto final as ações implementadas e nelas encontrar as informações perseguidas.

Mais uma oportunidade de extrair dados das condições materiais de um artefato é a consulta aos catálogos e às fichas descritivas de bibliotecas, conforme feito por Márcia Almada. Segundo Armando Petrucci,23 durante o século XIX as bibliotecas nacionais viraram laboratórios de investigação no campo da cultura escrita. Nas minuciosas descrições feitas a partir dos métodos da bibliografia material, resgatam-se informações consistentes sobre aspectos técnicos e constitutivos, proveniência, posse e intervenções sofridas ao longo do tempo. A utilização e a elaboração desses catálogos devem ser estimuladas. Por outro lado, pesquisas recentes têm gerado trabalhos monográficos sobre objetos em particular e podem ser usados em análises paradigmáticas. A consulta às áreas dedicadas à produção de conhecimento sobre os aspectos constitutivos dos objetos pode ser um recurso extraordinário. Alguns centros de pesquisa disponibilizam resultados de projetos e de exames voltados para a análise material, como no caso do estudo sobre a cor nos manuscritos medievais portugueses realizado pelo Laboratório Associado para a Química Verde (LAQV-Requimte), formado por um grupo interdisciplinar de químicos e cientistas da conservação,24 e no caso do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, que recentemente disponibilizou sua base de dados sobre manuscritos medievais, com acesso aberto às fichas científicas dos manuscritos.25 Os relatórios de tratamentos de restauração também fornecem informações valiosas sobre a biografia dos objetos e podem ser usados como fonte.

O conjunto de artigos presentes no dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita nos apresenta resultados de reflexões e de pesquisas recentes sobre a presença material da escrita na história e na contemporaneidade. Da mesma forma, nos convida a visitar os suportes metodológicos dos autores vinculados à teoria que defende a materialidade como requisito fundamental para a existência dos textos e para a criação de condições específicas de recepção da mensagem. Como foi discutido, as três camadas da informação são interligadas, e não há como dissociar o material do mental ou do social, pois o processo criativo humano se concretiza concomitantemente nesses domínios. Torna-se desnecessário, portanto, qualificar o substantivo “materialidade”.

Notas

  1. Agradeço a José Newton Coelho Meneses pela parceria acadêmica que tem permitido o aprofundamento dos questionamentos. Estas reflexões são fruto das pesquisas realizadas no âmbito do Convênio de Cooperação Acadêmica entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a University of West Attica (Uniwa) e do projeto Capes Auxpe nº 585 / 2015.
  2. Professora do Curso de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes da UFMG. Pesquisadora do projeto “A materialidade dos documentos pintados, entre a história e a preservação” (Capes Auxpe nº 585 / 2015).
  3. Alguns autores que devem ser mencionados são Ulpiano Bezerra de Meneses, Marcelo Rede, Daniel Miller, Arjun Appadurai, Peter Stallybrass, Amanda Vickery e Leila Algranti.
  4. McKenzie (1999); Petrucci (1999); Gimeno Blay (1986).
  5. Darnton (2009, 2012); Chartier (2007); Bouza Álvarez (2001); Castillo Gómez (2002).
  6. Recentemente Álvaro Antunes realizou uma breve discussão conceitual sobre o uso do termo “cultura escrita” e “cultura do escrito”. Em ambas as definições, no entanto, destaca que, para a história, os “efeitos sociais, políticos e culturais” são o que se busca, extrapolando a perspectiva de tecnologia da informação (Antunes, 2020, p. 623).
  7. Tanselle apud Daybell (2012, p. 15). No original: “the social process of publication”.
  8. Daybell (2012, p. 15, grifo nosso). No original: “materiality relates not only to the significance of physical forms, but also to the social materiality (or ‘sociology’) of texts, that is the social and cultural practices of manuscript and print in the contexts in which they were produced, disseminated and consumed”.
  9. Antonio Castillo Gómez (op. cit., p. 20) define o campo da “história social da cultura escrita” relacionado a três conceitos-chave – os discursos, as práticas e as representações – e afirma que o que a distingue de outras formas de fazer história é a “importância outorgada à materialidade dos objetos escritos” (no original: “es la importância outorgada a la materialidade de los objetos escritos”). Para uma apresentação mais ampla do campo da cultura escrita e da dissociação entre material e social, ver Chartier (op. cit.).
  10. Zervos; Koulouris; Giannakopoulos (2011).
  11. Cf. Almada (2018).
  12. Cf. Petrucci, op. cit.
  13. Cf. Elkins (2008).
  14. Cf. Darnton (2009, 2012).
  15. Rodríguez Domínguez (2018); Utsch (2020).
  16. Cf. Correia (2015).
  17. Cf. Campos (2019); Castro (2012).
  18. Discurso… ([1720?]).
  19. Almada; Monteiro (2019). Exames foram realizados no Laboratório da Ciência da Conservação da Escola de Belas Artes da UFMG pelo professor João Cura D’Ars e pela técnica Selma Otília Gonçalves.
  20. Para um estudo mais aprofundado sobre a manutenção da produção de manuscritos iluminados até a era moderna, ver Almada (2012).
  21. Petrucci, op. cit., p. 283.
  22. Meneses (2017)
  23. Petrucci, op. cit., p. 287.
  24. O laboratório tem inúmeras publicações no campo, entre elas a de Nabais et al. (2020).
  25. Cf. Morais (2017).

Referências

Fonte manuscrita

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NABAIS, Paula et al. A 1000-year-old mystery solved: unlocking the molecular structure for the medieval blue from Chrozophora tinctoria, also known as folium. Science Advances, Washington, DC, v. 6, n. 16, eaaz7772, 2020. DOI: 10.1126 / sciadv.aaz7772. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2020.

PETRUCCI, Armando. Alfabetismo, escritura, sociedad. Barcelona: Editorial Gedisa, 1999.

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ZERVOS, Spiros; KOULOURIS, Alexandros; GIANNAKOPOULOS, Gerofios. Intrinsic data obfuscation as the result of book and paper conservation interventions. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON INTEGRATED INFORMATION, 2011, Kos Island. Proceedings […]. Piraeus: I-DAS Press, 2011. p. 254-257. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2017.

Márcia Almada – Universidade Federal de Minas Gerais / Belo Horizonte, MG, Brasil.


ALMADA, Márcia. Introdução: considerações sobre a materialidade da escrita e as três camadas de informação. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.28, p.1-13, 2020. Acessar publicação original  [DR].

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História da Educação: sensibilidades, patrimônio e cultura escrita / Revista História da Educação / 2020

No ano de 2018, o 24º Encontro da ASPHE, organizado pela Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação, discutiu o tema “História da Educação: sensibilidades, patrimônio e cultura escrita”[3]. Atentando para as recentes temáticas que vêm sendo desenvolvidas no âmbito históricoeducativo, o encontro reuniu pesquisadores e pesquisadoras a partir desses três eixos.

Ao propor uma introdução ao tema da História Cultural, a historiadora Sandra Jatahy Pesavento (2005), com base em teóricos que fundamentam a discussão por ela tematizada – com destaque para Stone (1981), Certeau (1982), Chartier (1988, 1991), White (1994), entre outros presentes em sua obra –, fez um resumo dos principais conceitos norteadores de um conjunto de mudanças epistemológicas que proporcionaram um novo olhar a historiadores e historiadoras. A entrada em cena desses conceitos reorientou a escrita da história; nesse sentido, destacamos: representação, imaginário, narrativa, ficção e sensibilidades – todos esses presentes, de uma forma ou de outra, nos textos que compõem o dossiê que ora apresentamos. Leia Mais

Cultura escrita no mundo moderno / Varia História / 2019

O tema da Cultura Escrita não é novo no mundo das Humanidades. No século XIX, o desenvolvimento das tecnologias mecânicas aumentou o interesse sobre as práticas manuais da escrita e movimentou a produção editorial com pesquisas que ressignificaram os manuscritos iluminados do medievo ocidental.[1] No entanto, se durante muitas décadas os estudos sobre os textos escritos se firmaram nas técnicas aplicadas para a escrita, já há algum tempo antigas disciplinas como a Paleografia e a Diplomática se renovaram e incluíram em suas preocupações as relações entre produtos, produtores e consumidores e entre tempos e espaços (Petrucci, 1999). Por outro lado, a revalorização dos aspectos materiais da escrita levou os pesquisadores de diversos campos a desenvolver diálogos interdisciplinares, cruzando saberes, métodos e tecnologias para resolver diversos aspectos da curiosidade científica. De qualquer forma, as principais questões tratadas no campo da cultura escrita não podem se esquivar de considerar que o mental somente pode se expressar a partir do material (Almada, 2018).

O dossiê Cultura Escrita no Mundo Moderno abriga temas ligados à produção escrita ocidental moderna, abordando os discursos, as práticas, as representações e os processos de produção, circulação, uso e preservação, incluindo os aspectos técnicos e materiais que revelam as relações sociais e os agentes envolvidos nesta produção. Os artigos apresentam pesquisas dos campos da História, da Literatura e da Bibliografia Material e privilegiam os impressos e manuscritos como tecnologias de propagação de ideias e conhecimentos no tempo e no espaço. Entendemos como era moderna o período compreendido entre o desenvolvimento da tecnologia da imprensa por tipos móveis e a consolidação das mudanças nas relações com o escrito que possibilitaram a propagação de outras formas de produção – ou seja, entre meados do século XV até fins do século XVIII. Este longo período inclui muitas fases do desenvolvimento tecnológico, científico, social e econômico, o que torna a investigação sobre as formas de comunicação extremamente desafiadoras.

Reunimos, neste dossiê, resultados de pesquisas recentes no campo da Cultura Escrita. Foram convidados pesquisadores dos dois lados do Atlântico que estão na linha de frente na proposição de novos caminhos e olhares sobre as formas da escrita na era moderna. Dispomos os trabalhos apresentados em dois grupos: o das escritas e o dos escritos, ou seja, o dos processos de produção escrita e o dos resultados deste processo, inspiração surgida a partir da leitura do artigo de Fernando Bouza.

O artigo de Roger Chartier, Mobilidade de textos e diversidade de línguas. Traduzir nos séculos XVI e XVII, abre o grupo dos escritos tratando do tema da tradução e explorando os motivos pelos quais este tópico se tornou uma preocupação compartilhada pela história literária, pela crítica textual, pela sociologia cultural e pela história global. A resposta que o autor propõe se firma em três aspectos. O primeiro é o histórico e se refere a uma primeira “profissionalização” da escrita nos séculos XVI e XVII através dos trabalhos de tradução que, mesmo sendo vista como uma atividade mecânica, viabilizou a sobrevivência de muitos escritores. O segundo é metodológico e localiza os estudos da tradução como elemento essencial da chamada “geografia literária”, que opera seguindo a cronologia e a cartografia das traduções de uma mesma obra. A geografia das traduções, porém, não é a cartografia dinâmica de uma entidade textual estável e deve levar em conta as várias mutações que transformam a obra com o acréscimo de novos textos. Deve também adentrar a perspectiva das “histórias conectadas”, que são aquelas dos tradutores, não apenas de idiomas, mas também de culturas. Desta forma, o estudo das traduções propõe uma abordagem em menor escala dessas histórias textuais interatlânticas conectadas, concentrando-se nos múltiplos significados do mesmo texto.

O terceiro aspecto do interesse dos pesquisadores pela tradução, para Chartier, é linguístico-estética e enfatiza o intraduzível (ou os textos e autores considerados como tais). Seu artigo propõe três estudos de caso que podem identificar três escalas nas pesquisas sobre o tema e três modalidades da transformação do significado dos textos quando migram de uma língua para outra, seja em função da dificuldade de traduzir certas palavras, seja na influência do contexto de recepção. Enfim, a tradução é aqui pensada como uma prática que deve tornar a alteridade compreensível e fazer do outro um semelhante.

Littérature de l’expérience au XVIIe siècle é o segundo artigo do dossiê, no qual Christian Jouhaud, em um tom bastante pessoal, trata da questão da “literatura de experiência” a partir de um manuscrito deixado por um cavalheiro, um valet de chambre de Luís XIV, chamado Marie Du Bois, que viveu de 1601 a 1679. O texto parece se situar na categoria historiográfica de “escritos do foro íntimo”, mas Jouhaud questiona o anacronismo dessa definição e a própria distinção entre escritos de “pessoas comuns” e de “escritores”, em um momento no qual a noção de literatura apenas começa a existir como potência de simbolização do mundo. O texto deixado por Marie Du Bois, ao resistir a todas as classificações, convida a enfrentar a questão da historicidade da prática da escrita que permitiu sua existência, antes de qualquer extrapolação concernente a uma “cosmovisão” ou a uma “sensibilidade” ou mesmo a um pensamento ou a representações.

Jouhaud convida a fazer uma reflexão mais ampla sobre a relação entre o ato de escritura de Marie Du Bois e o impacto da sua forma narrativa sobre um leitor-historiador que o recebe como narrativa de uma presença em um passado, o qual é seu campo de estudo. O autor aborda, de forma original, a narrativa do cotidiano na perspectiva de sua transmissão em tempos distintos: o tempo do escrito e o tempo do historiador contemporâneo, sem descuidar da preocupação com o processo da escrita, o correr da pena, a organização das folhas e a unidade material final do relato, que deixam transparecer a pessoalidade de quem escreve e a realidade sobre a qual se escreve. Como reflete Jouhaud, essa produção do passado por uma sucessão de narrativas exerce sobre nós efeitos que não são idênticos àqueles percebidos por seus primeiros receptores.

Em outra perspectiva dos escritos, o artigo de Guillermo Wilde e Fabián R. Vega intitulado De la indiferencia entre lo temporal y lo eterno. Élites indígenas, cultura textual y memoria en lasfronteras de América del Sur nos introduz o tema da cultura textual das missões jesuítas a partir da curiosidade despertada por um pequeno papel dobrado contendo um texto de caráter religioso escrito em três idiomas: o latim, o castelhano e o guarani. E é a partir deste pedaço de papel que os autores partem para a compreensão das complexas relações entre os missioneiros e as elites indígenas, revelando a fascinante miscigenação entre valores de duas culturas, uma estruturada pela escrita e outra pela oralidade. Wilde e Vega nos informam que a expansão das missões, inicialmente fundadas pelos jesuítas na região de Guayrá (atual Estado do Paraná, Brasil) por volta de 1609, levou à reestruturação do espaço das populações e ao rápido desaparecimento de outras línguas faladas na região e de numerosas variantes dialetais da língua Guarani, impondo-se uma “língua geral”.

Através da unificação da língua indígena propiciou-se a uniformização do projeto doutrinário com uma ampla produção textual deliberadamente orientada para reunir o espiritual e o temporal, como parte de um programa mais amplo de reforma dos costumes e padronização da subjetividade cristã. Segundo os autores, as produções textuais estimularam a hibridação de gêneros textuais que promoviam, num plano individual, um modelo de subjetividade com base na virtude cívica e na devoção cristã e, no plano sociológico, uma memória coletiva fundada nos marcos da expansão territorial, ordenados em uma narrativa cronológica e mitológica. Neste sentido, através de diversos exemplos de produção textual impressa e manuscrita, os autores apresentam a conjunção do espiritual e do temporal, conduzida pelas missões, como estrutura de conformação dos indivíduos indígenas à conduta do cristão civilizado.

Introduzimos o grupo dos processos de produção, circulação e guarda dos escritos, com o artigo de Fernando Bouza, autor que costuma prender a atenção dos seus leitores já nas primeiras linhas. Em Escribir a corazón aberto: emoción, intención y expressión del ánimo em la escritura de los siglos XVI y XVII o historiador, desde o início, nos conecta com naturalidade às preocupações de Mário de Andrade e Lope de Vega sobre a produção de correspondências. Esta união de tempos históricos tão distintos é continuada com a apresentação de preciosos dados sobre a escrita de cartas em diversas épocas, oferecendo ao leitor a oportunidade de traçar conexões com seus próprios objetos de interesse.

No tema da epistolografia, o argumento principal do autor é o de que, nos séculos XVI e XVII, a materialidade da escrita revela as estruturas das regras de conduta cortesãs e, nestas, os aspectos corporais não podem ser desdenhados. Cartas hológrafas ou autógrafas, por exemplo, evidenciam diferentes níveis de pessoalidade na relação do remetente e do destinatário. Bouza extrapola a questão da gestualidade e apresenta uma fisiologia mais particular, que associa o coração, a mão e a pena, sendo a escrita anímica capaz de revelar o pensamento mais íntimo de quem escreve.

Este foi o argumento usado por Sigismondo Arquer, célebre réu da Inquisição espanhola, doutor em Direito e em Teologia, para defender-se da acusação de heresia, feita pelo Santo Ofício em 1563, em função de supostas proposições luteranas encontradas em suas correspondências. Segundo Arquer, usando o argumento da “escrita de coração aberto”, suas palavras nunca poderiam defender o protestantismo, pois haviam partido de uma alma católica. O réu baseou-se na tradição bíblica que distinguia a escrita Intus, que usava o coração como instrumento, da escrita Extra, que necessitava apenas da pena e da mão.

Se o coração pode ser um dos instrumentos da escrita, a troca de informações deve ser um de seus motores. A produção, consumo e colecionismo de notícias na Alta Idade Moderna, com destaque para a experiência ibérica, é o tema de Escritos breves para circular: relações, notícias e avisos durante a Alta Idade Moderna (sécs. XV-XVII), artigo de Ana Paula Megiani. A autora nos apresenta um panorama complexo das diversas formas de circulação das notícias, que não só estruturavam os novos sistemas de governança, mas também saciavam a “curiosidade em se saber o que passa fora de casa”. Trata-se das relações de sucessos, avisos, arbítrios, e notícias, modalidades que mantêm sua especificidade mas que não podem ser classificadas de maneira estanque devido ao fato de não se tratarem de um gênero de escrita. Assim, qualquer pessoa que tivesse presenciado um acontecimento poderia se tornar um agente propagador de notícias, gerando um sem número de relatos, inclusive com diferentes desfechos. No entanto, cabe notar que, para além da efemeridade da notícia e da própria configuração material deste tipo de escrita, feita em pequenos pedaços de papel ou anexada a cartas ou cadernos, havia a possibilidade da sua sobrevivência graças à iniciativa de determinados sujeitos que se propuseram a organizar e a colecionar notícias.

Para estudar este assunto, Megiani tem se debruçado no conjunto formado pelo português Jerônimo Mascarenhas que, antes de assumir o Bispado de Segóvia, em 1667, esteve diretamente envolvido com a Casa Real espanhola, mantendo alguma proximidade com o monarca. Mascarenhas tornou-se um cronista régio de intensa atividade e igualmente um colecionador de relações de sucessos que compunha com originais ou cópias de cartas, relatos, documentos antigos e oficiais, entre outros papéis que reuniu, junto a escritos de sua autoria, em volumes organizados cronologicamente, entre os anos de 1558 e 1666. Este material saciou a curiosidade dos coetâneos e hoje serve ao historiador interessado na recepção dos fatos à época dos acontecimentos. Mas para cumprir esta função, como ressalta a autora, esse acervo deve ser tratado nas perspectivas das práticas escriturárias e de colecionismo, que é uma das chaves para o entendimento dos usos dos escritos em diferentes temporalidades.

Fechando este dossiê, e selando a perspectiva interdisciplinar dos estudos, somos presenteados com Primeros vagidos de tipografia y biblioiconografía mexicana del siglo XVI, de Guadalupe Rodriguez. Pertencendo à área de Filologia Hispânica, a autora nos instiga com um artigo no qual faz uso dos métodos da Bibliografia Material para revalorizar o período de instalação e expansão da imprensa no México, a partir de 1539. Sua abordagem dá protagonismo aos editores / tipógrafos, profissionais que enfrentaram uma diversidade de problemas para realizar o seu trabalho e sanar a carência de insumos como papel, tinta, prensas, tipos, adornos e xilogravuras. A partir de breve revisão bibliográfica acerca das prototipografias mexicanas, Rodriguez expõe a vulnerabilidade de pesquisas anteriores que, embora tenham conseguido determinar, em boa perspectiva, o estoque de materiais e equipamentos das diversas tipografias, não puderam estabelecer relações entre as suas demandas devido à falta de estudos sistemáticos e análises comparativas dos acervos materiais de cada casa tipográfica.

Para sanar esta carência, Rodriguez se dispõe a realizar esta empreitada tendo como base o novo repertório da tipobibliografia mexicana do século XVI, desenvolvido sob sua coordenação. Com este material, reflete sobre as redes de sociabilidade desenvolvidas entre os quatro primeiros tipógrafos mexicanos (atuantes entre 1539 e 1593) e esclarece sobre os mecanismos de transferência (venda, aluguel ou empréstimo) e reutilização de insumos tipográficos entre familiares e profissionais. O artigo revela a habilidade da autora em manipular as fontes visuais e materiais dos acervos bibliotipográficos e em traçar a biografia dos insumos e das matrizes imagéticas em busca do entendimento das relações sociais envolvidas na sua utilização. Ao expor com clareza e generosidade os procedimentos metodológicos adotados, sua contribuição se torna ainda mais valiosa para os estudiosos da história da tipografia.

Agradecemos a dedicação dos autores e das autoras na construção de seus artigos tão originais e instigantes e esperamos que este dossiê possa contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre Cultura Escrita no Mundo Moderno. Desejamos que os diálogos travados a partir destes excelentes textos sejam profícuos e tragam bons ventos para a área, gerando novas perspectivas de abordagem a temas imprescindíveis em tempos de profundas mudanças das relações sociais promovidas por nova mutação das práticas de comunicação escrita.

Nota

  1. CURMER, Léon (Ed.). Le livre d´Heures de la reine Anne de Bretagne traduit du latin et accompagné de notices inédites par M. lÁbbé Delaunay. Paris: Léon Curmer, 1841; CURMER, Léon (Ed.) Les evangiles des dimanches et fetes de lánne. Suivis de prières à la Saint Vierge er aux Saints. Paris, Léon Curmer, 1864.

Referências

ALMADA, Márcia. Cultura material da escrita ou o texto como artefato. In: CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da; MEIRELLES, Juliana Gesuelli (Orgs). Cultura Escrita em Debate: Reflexões sobre o Império português na América, séculos XVI ao XIX. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. p.19-42. [ Links ]

PETRUCCI, Armando. Alfabetismo, escritura, sociedad. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999. [ Links ]

Guiomar de Grammont – Instituto de Filosofia Artes e Cultura Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: letras.ouro@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-8170-3258

Márcia Almada – Escola de Belas Artes Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: marcia.almada@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-9046-9229


GRAMMONT, Guiomar de; ALMADA, Márcia. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.35, n.68, mai. / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Cultura escrita no mundo ibero-americano: identidades, linguagens e representações / Cantareira / 2019

Segundo Lucien Febvre e Henri Jean-Martin, o livro moderno surgiu a partir do encontro de dois fatores que, apesar de distintos, mantêm alguma ligação. Primeiro, foi necessário que o papel se firmasse enquanto mídia, o que não aconteceu antes do século XIV. Até então, as técnicas empregadas na produção das folhas, faziam com que seu preço fosse alto e sua qualidade inferior, mais frágil e pesado, com a superfície rugosa e repleto de impurezas. Concorrendo com o já estabelecido pergaminho de pele de carneiro, o novo material não oferecia aos copistas um suporte adequado para a transcrição de manuscritos, sugando a tinta, mais do que o necessário, e com possibilidades de duração limitada.[4]

O segundo fator apontado é a técnica de impressão manual, composta pela tríade: caracteres móveis em metal fundido, tinta mais espessa e prensa. Deixando a alquimia das tintas de lado, pela facilidade com a qual era possível produzi-las então, o grande avanço da época foi a composição em separado dos tipos móveis. Para cada signo fabricava-se uma punção de metal duro – composto de uma liga de chumbo, estanho e antimônio que variava de proporção conforme a região –, sob a qual se demarcava a matriz em relevo. Em metal menos duro moldavam-se as imagens em côncavo. A seguir, colocadas em uma forma se podia produzir os caracteres em quantidade suficiente para imprimir uma ou mais páginas. Sob a pressão do torno, o velino – pergaminho de alta qualidade, feito a partir de pele de bezerro ou cordeiro – não resistia à tensão imposta pela placa de metal que guardava os tipos. O papel, por sua vez, forçado à mesma pressão, continha a tinta mais espessa, apresentando uma nitidez regular de impressão. Eis o surgimento da indústria tipografia.[5]

Dos incunábulos impressos na oficina de Johann Gutemberg, em Mogúncia, até o final do século XVIII, o trabalho dos tipógrafos e impressores permaneceu o mesmo, com algumas pequenas alterações. A realização da segunda edição da Encyclopédie, a exemplo, seguia os “ritmos de uma economia agrária”, dependente da sazonalidade dos recolhedores de trapos e dos papeleiros.[6] Segundo Robert Darnton: “No início da Era Moderna, as tipografias dividiamse em duas partes, la casse, onde se compunham os tipos, e la presse, onde se imprimiam as folhas.”[7] Na composição alinhavam-se de forma manual e solitária um a um os tipos, formando linha a linha as placas. No trabalho de impressão eram necessários ao menos dois homens: um deles entintava as formas que estavam encaixadas sobre uma caixa móvel, com a prensa ainda aberta; o outro colocava a folha sobre uma armação de metal, onde eram fixadas as presas, e puxava a barra da prensa, fazendo o eixo girar em parafuso, produzindo uma das páginas. Terminada a resma, a atividade começava novamente, com a impressão no verso das folhas. Uma operação que requeria enorme esforço físico, tanto mais se tratando de uma tiragem grande. [8]

Portanto, até que se introduzissem efetivas mudanças técnicas, o período tratado compreende uma era de manufatura do livro. Entre o trabalho realizado pelos monges nos scriptoria e pelos copistas profissionais, que se instalaram sobretudo ao redor dos grandes centros e das universidades,[9] e a tecnologia adotada em 1814, com a prensa cilíndrica, e da força do vapor, a partir de 1830,[10] existe um intervalo de tempo no qual o trato com o livro é peculiar. Para os homens da época moderna, a relação com este objeto é diametralmente outra, opondo-se tanto daquela adotada pelos medievais, quanto da praticada hoje. O exame cuidadoso dos aspectos físicos era um expediente comum aos leitores do Antigo Regime. À qualidade das páginas era essencial uma espessura fina, de um branco opaco, com a impressão devidamente legível e em caracteres de bom gosto.[11] Uma preocupação material, de consumo, secular.

Junto à difusão dos livros, ocorreu a difusão dos formatos. Pouco a pouco, os pesados in fólio foram dando espaço a novos tamanhos, mais leves e com caracteres menores. Em pleno século XVII, quando a indústria já estava suficientemente estável, os impressores Elzevier lançaram uma coleção minúscula para a época, in-12, o que causou o espanto dos eruditos.[12] A partir de então, as pequenas edições invadiram o mercado com publicações in-12, in-16 e in-18. A predominância da literatura religiosa não cessou, mas o interesse por temas como Literatura, Artes e Ciências, nos circuitos legais, e literatura pornográfica, sátiras, libelos e crônicas escandalosas e difamatórias, que corriam nos circuitos clandestinos, só fez aumentar.[13]

A popularização de material impresso e a diversificação dos temas foram acompanhadas de um aumento do público leitor. A Europa experimentou um crescente processo de alfabetização entre os séculos XVII e XVIII. Analisando países como Escócia, Inglaterra e França, e regiões como Turim e Castilla (Toledo), o historiador Roger Chartier apontou, a partir de assinaturas em registros cartoriais, que a alfabetização demostrou avanços contínuos e regulares nesse período. E, na América, Nova Inglaterra e Virgínia, o movimento seguiu ritmos muito parecidos. Os ofícios e as condições sociais eram fatores determinantes para o ingresso, mesmo que de forma superficial, no mundo da escrita e da leitura. É quase certo que um clérigo, um notável ou um grande comerciante soubesse ler e escrever. Bem como, é quase certo que um trabalhador comum não dominasse essas habilidades.[14]

A imprensa não desbancou de imediato os textos manuscritos. A função e utilização dada à cópia e o público para quem ela se destinava, amplo ou restrito, condicionaram a forma de reprodução durante muito tempo. A sua imposição ocorreu devido à possibilidade de um aumento considerável da reprodução, ao barateamento do custo das cópias e a diminuição do tempo de produção de um livro. Cada leitor individual passou a ter acesso a um número maior de títulos e cada título atingia um número maior de leitores. Estes argumentos, porém, não justificam ou não explicam, por si, as “revoluções da leitura” experimentadas pelo Ocidente na época moderna. A mudança e aprimoramento das técnicas tiveram um papel relevante, mas não são as únicas determinantes.[1]5 Ao mesmo passo em que elas ocorriam, alteravam-se os paradigmas sobre as práticas de leitura e a epistemologia em relação aos livros. A revolução passou por dois movimentos. No final do século XIV, a leitura silenciosa se converteu em prática comum, ganhando um número cada vez maior de adeptos, e a escolástica foi perdendo força, tornando o livro um objeto dessacralizado, um instrumento de trabalho e de conhecimento das coisas do mundo. Segundo Chartier: “Essa primeira revolução na leitura precedeu, portanto, a revolução ocasionada pela impressão, uma vez que difundia a possibilidade de ler silenciosamente (pelo menos entre os leitores educados, tanto eclesiásticos quanto laicos) bem antes de meados do século XV”.[16]

Passou-se, gradualmente, do predomínio de uma forma de leitura intensiva, ler e reler várias vezes um número limitado de obras, decorando trechos, recitando e memorizando com um sentido pedagógico, até outra forma, extensiva. Tornava-se cada vez mais comum possuir alguns livros ou uma pequena biblioteca particular para estudo ou para lazer. Textos curtos, alguns efêmeros, impressos e manuscritos de hora, o comércio ambulante de livretos… em tudo contribuíram para esse novo costume. É sabido que as duas modalidades ocuparam o mesmo espaço de tempo e uma não fez desaparecer a outra, no entanto, as descrições, as pinturas, os escritos e outros testemunhos tendem a sublinhar a vulgarização dessa prática.[17]

Em estudo recente, publicado pelos psicólogos Noah Forrin e Colin M. MacLoad, do Departamento de Psicologia da University Waterloo, no Canadá, constatou-se que a palavra lida em voz alta aparece como uma atividade com “efeito de produção”. Ler e ouvir o que se está lendo, uma medida duplamente ativa – “um ato motor (fala) e uma entrada auditiva autorreferencial” –, faz com que os trechos ganhem distinção, fixando suas marcas na memória de longo prazo. Esta ação, realizada repetidas vezes operacionaliza a memorização de passagens longas.[18] Poemas da antiguidade ou do medievo, possuíam um sem número de versos que eram recitados, em maior ou menor proporção, por diversas pessoas e em diferentes locais. A leitura silenciosa (e extensiva), porém, implica em um vestígio distinto à lembrança, mais próximo da anamnese do que da fixação mnemônica.[19]

O resultado da pesquisa de Forrin e MacLoad pode ajudar a desvendar desencadeamentos que ocorreram no passado e que mudaram nossa relação com o livro. Por um lado, novos gêneros aparecem, uma forma narrativa mais alongada e menos rimada fez sentir sua presença: o romance.[20] Este, possui todos os aspectos necessários para agradar um leitor voraz, que folheasse um volume para seu entretenimento sem a preocupação de decorar passagens, mas, em alguns casos, o efeito foi justamente o contrário. Na lista dos best sellers da época moderna estão Nouvelle Héloise, Pâmela, Clarissa, Paul et Virgine, Souffrances du jeune Werther, Les aventures de Télémaque, dentre outros, novelas com capacidade de prender seus leitores por mais de uma sessão repetidas vezes.[21] Por outro lado, encadernados de caráter mais informativo, como os guias, as enciclopédias, os atlas históricos e geográficos, as cronologias, os almanaques, os catálogos, etc., ganharam cada vez mais espaço. Situação que provocava a queixa dos eruditos, como é o caso do suíço Conrad Gesner, que cunhou a expressão “ordo librorum”, mas não deixou de reclamar da “confusa e irritante multiplicação de livros”, provocada pelo significativo aumento dos números de títulos disponíveis no mercado.[22]

É sob esta arquitetura histórica que debruçam os estudos apresentados para a trigésima edição da Revista Cantareira, compondo o dossiê “Cultura escrita no mundo ibero-americano: identidades, linguagens e representações”. Fisicamente distante das metrópoles europeias, os súditos ibéricos instalados ou nascidos no continente americano não se furtaram a experimentar as consequências dessa nova invenção. Mais do que ler, eles refletiram sobre as ideias trazidas pelos livros e por outros impressos, transportados, muitas vezes, clandestinamente – “sob o capote”. Alguns assumiram uma postura conservadora diante das novidades; outros utilizaram as palavras como motivação para contestar a ordem social, a religião ou as autoridades estabelecidas. A historiografia brasileira avançou significativamente, nos últimos anos, sobre as temáticas abordadas aqui. Portanto, esses textos, ao mesmo tempo em que apresentam novidades relacionadas às pesquisas de historiadores em formação, nível mestrado e doutorado, também caminham por terreno consolidado.[23]

No artigo “A cultura epistolar entre antigos e modernos: Normas e práticas de escrita em manuais epistolares em princípios do século XVI”, Raphael Henrique Dias Barroso aborda os códigos e normas da escrita epistolar que circulavam os ambientes cortesãos do início do Quinhentos. Com base nas obras de Erasmo de Roterdã e Juan Luis Vives, o autor demonstra a presença destes códices nas missivas diplomáticas trocadas entre o embaixador D. Miguel da Silva e D. Manuel, monarca português entre 1469 e 1521.

O segundo artigo, intitulado “A incorporação de elementos da cultura escrita castelhana nas histórias dos códices mexicas dos séculos XVI e início do XVII” de Eduardo Henrique Gorobets Martins, mostra a importância que a cultura escrita possuía nas relações de poder no mundo ibero-americano. Longe de considerar os índios como vítimas passivas da colonização, o autor evidencia como diversos grupos indígenas, que se aliaram aos espanhóis contra os mexicas, se apropriaram da cultura escrita castelhana tanto com o objetivo de reescrever suas histórias a partir de novos vocábulos como se inserir na colonização para obter cargos e privilégios juntos aos espanhóis.

O artigo seguinte, de autoria de Caroline Garcia Mendes, também demonstra a importância da cultura escrita no campo político em um outro espaço: a monarquia portuguesa nos anos seguintes à Restauração de 1640. Intitulado “As relações de sucesso e os periódicos da Península Ibérica na segunda metade do século XVII: imprimir, vender e aparecer nos materiais de notícia sobre a Guerra”, a autora analisou duas dimensões do processo de profusão das notícias impressas em Portugal: a política e a econômica. Para tal, destaca a conflituosa relação entre impressores e cegos no que dizia respeito à circulação dos impressos. Do lado político, enfatiza a importância que certos feitos de alguns personagens adquiriam ao serem difundidos pela cultura escrita. No fundo de tal preocupação, estava a preocupação de se fazer ver diante de todos, especialmente do rei.

Em “Da devoção à violência: a atribuição da mentira como estratégia de discurso na Guerra Guaranítica”, escrito por Rafael Cézar Tavares, o exame recai sobre as estratégias discursivas de ambos os lados partidários dos eventos. Para tanto, o autor analisou três conjuntos documentais difusos: as cartas dos Guarani enviadas aos funcionários coloniais na iminência do enfrentamento; o relatório pombalino escrito já ao fim dos conflitos; e o Cândido de Voltaire, novela em que o protagonista visita o Paraguai no contexto da Guerra. Um estudo relevante acerca de um episódio pouco visitado pela historiografia geral, abordado pela chave da retórica como fonte de análise.

O artigo de Anna Beatriz Corrêa Bortoletto tem como centro a cultura escrita ao avaliar a confecção e a trajetória de um documento do século XVIII redigido por Luís Rodrigues Villares, um comerciante envolvido com a expansão da colonização no atual Centro-Oeste brasileiro. Inicialmente pensado como uma instrução para os comerciantes que atuavam na região, a autora demonstra com tal documento foi ressignificado a partir de sua trajetória e materialidade. Ao fazê-lo, destaca que, atualmente, o documento se encontra num códice com diversos documentos de autoria de Custódio de Sá e Faria, um engenheiro militar que também atuou na América portuguesa do século XVIII, em outras palavras, o documento era importante para a administração colonial. A partir disso, o artigo analisa que, provavelmente, o manuscrito analisado circulou até chegar às mãos do Morgado de Mateus, então governador de São Paulo, cujo um dos descendentes vendeu o códice que hoje pertence à Biblioteca Mario de Andrade em São Paulo que o adquiriu de um bibliófilo com o objetivo de preservar documentos que pudessem responder diversas questões referentes à história do Brasil, ou seja, diferentes temporalidades históricas conferiram diferentes significados ao manuscrito. Natalia Casagrande Salvador, em artigo intitulado “Cultura Escrita para além do texto: percepções materiais e subjetivas do documento manuscrito”, destaca a importância dos estudos da cultura material e da codicologia para a interpretação dos documentos históricos. A partir do Livro de Termos da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência de Mariana, nas Minas Gerais, a autora analisa o papel enquanto suporte, os instrumentos e a escrita, o conteúdo e as posteriores rasuras e correções.

O último artigo deste dossiê intitula-se “Entre Livros, Livreiros e Leitores: a trajetória editorial e comercial da Guia Médica das Mãis de Família” escrito por Cássia Regina Rodrigues de Souza. A autora borda os manuais de medicina doméstica por meio do Guia Médica das Mãis de Família, publicado em 1843 pelo médico francês Jean Baptiste Alban Imbert com o objetivo de instruir mães e gestantes. Ao investigar a trajetória editorial e comercial, a fim de discutir os possíveis leitores da obra, a autora demonstra que seu alcance ultrapassou os limites da elite alfabetizada imperial e penetrou, de diferentes formas, na vida de mães recém-paridas, comadres e parteiras.

Por fim, encerra nosso dossiê entrevista gentilmente concedida pela Dra. Ana Paula Torres Megiani, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Livre Docente em História Social pela Universidade de São Paulo. Em resposta a quatro diferentes provocações, ela nos contou primeiro sobre sua trajetória e formação, indicando os caminhos que levaram às suas escolhas temáticas e as tendências da historiografia principalmente nos anos 1990. Na sequência, abordou a questão da circulação dos livros manuscritos na época moderna, salientando a recente atenção recebida por essa fonte. Para, então, tratar das influências do desenvolvimento da cultura escrita, entre os séculos XVI e XIX, no mundo iberoamericano como uma das bases de sustentação da administração imperial. E, no último bloco falou sobre os chamados “escritos breves para circular”, atribuição de tipologia documental que, segundo nossa leitura, evidência o surgimento de um novo “regime de historicidade”, como classifica François Hartog, ou uma nova “experiência de tempo”, conforme Reinhart Koselleck.

Esta edição conta ainda com dois artigos livres e uma resenha. O primeiro, intitulado “O materialismo histórico e a narrativa historiográfica”, escrito por Edson dos Santos Junior, aborda o problema da narrativa e do pensamento materialista histórico a partir da obra de Walter Benjamin. No segundo, intitulado “Aleia dos Gênios da Humanidade: escutando os mortos”, Cristiane Ferraro e Valdir Gregory tratam da comunidade conscienciológica sediada em Foz Iguaçu e os lugares de memória do grupo que a compõe. Mathews Nunes Mathias resenhou a obra Coração civil: a vida cultural sob o regime militar (1964-1985): Ensaios históricos (2017), escrita pelo historiador Marcos Napolitano.

Notas

  1. FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do livro. São Paulo: Ed; USP, 2017, p. 76-80.
  2. Evidentemente, o processo histórico não é tão linear e simples quanto esta exposição, apresentando múltiplas inconstâncias. Nossa intenção, porém, objetiva explicar de forma sintética o aparecimento de uma ferramenta que transformou o mundo de variados modos. Para uma exposição mais cuidadosa, cf.: Ibidem, p. 105-108ss
  3. DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio: A história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 14.
  4. Ibidem, p. 176.
  5. Idem.
  6. VERGER, Jacques. Os livros. In: Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EdUSC, 1999; FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do Livro… Op. cit., p. 59-63.
  7. DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio… Op. cit., p. 189.
  8. Ibidem, p. 150.
  9. WILLEMS, Afonso. Les Elzevier: histoire et annales typographiques. Bruxelles: G. A. van Trigt, 1880, p. 109.
  10. CHARTIER, Roger. As revoluções da Leitura no Ocidente. In: ABREU, Márcia (org.). Leitura, história e história da leitura. São Paulo: FAPESP, 1999, p. 95-98.
  11. Chamamos genericamente de “registros cartoriais”, os documentos analisados por Chartier, cuja tipologia varia de certidões de casamento até contratos comerciais. CHARTIER, Roger. Práticas de escrita. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao século das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 114- 118.
  12. CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura… Op. cit., p. 22-23.
  13. Ibidem, p. 24.
  14. CHARTIER, Roger. Uma revolução da leitura no século XVIII? In: NEVES, Lucia Maria Bastos P. (org.). Livros e impressos: Retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009, p. 93-95.
  15. FORRIN, Noah; MACLEOD, Colin M. This time it’s personal: the memory benefit of hearing oneself. Memory, [s.n.t.].
  16. Utilizamos “anamnese” no sentido expresso por Platão no Fédon, que é o mesmo retomado pela medicina moderna, no qual a experiência é reconstituída pela consciência individual, por meio dos sentidos, como uma ideia; ao contrário da mnemônica, que se refere a um conjunto de técnicas para gravar de forma mecânica um conteúdo.
  17. CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura… Op. cit., p. 26.
  18. Ibidem, p. 95-96
  19. BURKE, PETER. Uma História Social do Conhecimento. Vol I: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 97; BURKE, Peter. Problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação nos primórdios da Europa moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 44, p. 173-185, abr. 2002, p. 175; CHARTIER, ROGER. A ordem dos livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da UnB, 1994.
  20. Por ser profusa, evitamos listar a produção de historiadores brasileiros. O ato de enumerá-los, mesmo considerando somente os mais relevantes, seria exaustivo e injusto, pois em toda seleção sempre há esquecimentos por descuido ou por cálculo. O leitor interessado, de todo modo, estará bem informado consultando a bibliografia apresentada em cada artigo publicado adiante.

Claudio Miranda Correa – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Gabriel de Abreu Machado Gaspar – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Pedro Henrique Duarte Figueira Carvalho – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense


CORREA, Claudio Miranda; GASPAR, Gabriel de Abreu Machado; CARVALHO, Pedro Henrique Duarte Figueira. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.30, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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A Cultura Escrita em Perspectiva / Revista Maracanan / 2017

Cultura escrita – conhecimento e poder: duas faces da mesma moeda?

Mesmo que não sejamos exclusivamente uma sociedade baseada na cultura escrita e embora tenha perdurado no Brasil uma forte tradição oral, resultante do persistente alto índice de analfabetismo – estimado em 82,3% da população no primeiro censo oficial realizado em 1872 e ainda parte do cenário nacional no ano 2000, registrando a marca de 16,7% [1] –, já foi extensivamente demonstrado pelos estudos historiográficos o papel crucial exercido pela escrita, seja ela manuscrita ou impressa, no processo de construção do Brasil. Ademais, sua produção, assim como o seu posterior arquivamento possibilitaram aos historiadores do século XX expandir suas indagações acerca de diversos objetos, acompanhando de perto a produção historiográfica mundial, principalmente a partir dos anos 1970, quando se iniciou a expansão dos programas de pós-graduação no país.

Assim, se por um lado os manuscritos, atualmente tomados como fontes históricas, têm sido crescentemente explorados e problematizados pelos historiadores dedicados ao período anterior à permissão oficial para a instalação de tipografias no Brasil (entre 1808 e 1820), também os impressos produzidos em território nacional, a partir do Oitocentos, têm sido alvo crescente de investigações. Ademais, foi ao longo do século XIX que a palavra (então impressa), no Brasil, conseguiu alçar uma mentalidade abstrata [2] que lhe conferiria legitimidade, permitindo-lhe ocupar um lugar estratégico nesta sociedade. Além do mais, a produção de conhecimento, enquanto base de uma cultura fortemente influenciada por uma mentalidade iluminista [3] − perpassada pela cultura escrita −, passou a ocupar um papel central também no Brasil a partir do XIX, com o efervescente processo de criação de instituições como museus, faculdades, bibliotecas e etc.

Tanto através de instituições forjadas pelo Estado, como por meio de iniciativas particulares de cunho comercial – a exemplo das casas tipográficas e livrarias – foi se construindo um ambiente crescentemente familiar a essa cultura escrita, conhecida pela população diretamente ou indiretamente, “por ler, ouvir ler ou ouvir falar”. Pois, como destaca Marialva Barbosa, mesmo aqueles indivíduos analfabetos faziam parte do mesmo universo comunicacional dos letrados, através de um imbricamento entre o oral e o escrito.

De forma geral, como asseveram autores dedicados à história do livro e da leitura, como Robert Darnton e Roger Chartier, foi “revolucionário” o impacto da invenção de Gutenberg para a cultura escrita nas sociedades ocidentais. A impressão, ao possibilitar a reprodução, cada vez mais eficiente e barata, de vários exemplares idênticos ao mesmo tempo, possibilitou uma aceleração do processo de circulação de ideias nacional e internacionalmente. Processo que se intensificou com a agilização dos transportes terrestres e marítimos no século XIX. As novas tecnologias tipográficas e de transportes possibilitaram, portanto, uma intensificação das trocas de informações e conhecimentos entre intelectuais e cientistas de diferentes países do hemisfério.

Ao mesmo tempo, a cultura escrita adquiria, paulatinamente, mais importância nas dinâmicas societárias de poder, associadas ao desenvolvimento científico, cultural, político e econômico. Cultura escrita, conhecimento e poder passaram a constituir “faces de uma mesma moeda”, faces em constante interação e sobreposição com diferentes resultantes de acordo com os variados atores e contextos em questão.

Tendo em vista as questões sumariamente apresentadas, vamos tratar dos artigos que compõem a Edição nº 16 da Revista Maracanan, cujo tema proposto para o dossiê foi Cultura escrita em perspectiva. Pretendíamos com esta chamada reunir trabalhos inéditos, resultantes de pesquisas que versassem sobre a cultura escrita em suas mais diversificadas manifestações, focando em manuscritos ou impressos, e com atenção para as correlações entre a cultura escrita e a política, a cultura, a economia e a ciência, sob diferentes enfoques teóricos e metodológicos.

Na atual edição conseguimos reunir, após rodadas de avaliações dos textos submetidos à pareceristas ad hoc, 14 artigos, sendo: 7 pertencentes ao Dossiê, 3 à seção de artigos livres, 2 notas de pesquisa e 2 resenhas.

Abrindo o dossiê, trazemos o artigo do historiador Ronaldo Vainfas que apresenta um balanço historiográfico de uma produção bibliográfica nacional sobre a colonização do Brasil, em especial sobre o período filipino (1580-1640), abarcando obras clássicas de autores como Francisco Adolfo de Varnhagen, Capistrano de Abreu, Pedro Calmon, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior (entre outros), até pesquisas universitárias mais recentes. Intentando “reforçar a importância do estudo da colonização no período filipino como problema de investigação relevante e não apenas como acidente de percurso cronológico”, argumenta se tratar de um período histórico crucial, devido à relevante inflexão produzida pela governação filipina na formação colonial do Brasil com a introdução do “exclusivo comercial”.

O artigo oferece panorama completo e atualizado para todos aqueles que intentam enveredar por essa temática, além de apresentar as premissas defendidas por um historiador bastante experiente e premiado, autor de livros e artigos sobre a história ibérica e ibero-americana na época moderna. O segundo artigo, de autoria de Maria Cristina Bohn Martins, intitulado Cultura escrita e projetos coloniais: “A Descrição da Patagônia” de Thomas Falkner, apresenta uma análise sobre um manuscrito produzido pelo jesuíta Thomas Falkner, acerca de um período de quase 40 anos em que morou na região do Rio da Prata, em especial nos territórios da Pampa-Patagônia da atual República Argentina. O livro analisado, publicado em 1774, a partir deste relato, apresentava um “quadro de informações inéditas ao público europeu, especialmente inglês, sobre territórios que mesmo os espanhóis pouco conheciam”. Martins destaca a singularidade deste texto em comparação aos produzidos contemporaneamente por religiosos jesuítas (interessados no trabalho de evangelização dos nativos). Falkner veio para a América comissionado pela Royal Society de Londres, como os viajantes naturalistas típicos de sua época e seu interesse era decodificar o mundo a partir da ciência, não rememorar o trabalho missionário dele e de seus colegas. A contribuição da autora vai, no entanto, além de uma análise dos aspectos que perfazem a obra, já que ele atenta para questões relacionadas à sua edição, publicação e recepção, se constituindo como um bom exercício de aplicação de uma metodologia bem embasada nos debates concernentes ao campo da história do livro e da leitura.

O artigo de Felipe Cittolin Abal, O Relato como vingança: as memórias de Stanislaw Szmajzner, consiste numa análise do livro Inferno em Sobidor: a tragédia de um adolescente judeu de Stanislaw Szmajzner, escrito por um ex-prisioneiro do campo de extermínio de Sobibor na Polônia que, posteriormente, passou a residir no Brasil onde publicou suas memórias. A escrita e a publicação desta obra autobiográfica, escrita por um sobrevivente sobre os horrores dos campos de concentração nazista, evidenciam, para Abal, o desejo do autor de imortalizar-se como um herói e vítima dos horrores nazistas. A publicação de suas memórias atenderia ao seu sentimento de vingança frente às humilhações e agressões sofridas, ao passo que pretendia servir como uma lição, um alerta para que os horrores não mais se repetissem. Ao que conclui que Szmajzner teria feito um bom uso dos abusos da memória, ao fazer de seu livro uma forma de buscar justiça ao genocídio cometido contra os judeus. Apesar de se tratar de um tema denso, o autor busca aporte em uma extensa discussão bibliográfica acerca da escrita autobiográfica para analisar a obra em questão, problematizando-a.

Saindo das fronteiras nacionais, trazemos a pesquisa de Madalina Elena Florescu. As autobiografias também são o seu tema no artigo “Autobiografias angolanas”: um gênero em questão. A autora desenvolve um interessante esforço de debate teórico e metodológico com foco nas potencialidades e problemáticas associadas à análise de memórias autobiográficas angolanas. O ponto fulcral de sua proposta consiste na utilização da metáfora do “palimpsesto” para pensar a textualidade como uma forma de memória. Tal metáfora, segundo Florecu, busca evitar os “guetos etnolinguísticos ou etnográficos” dos discursos nativista ou pós-colonial. Além de apresentar relevante contribuição concernente ao debate sobre a produção e análise de memórias históricas, memórias autobiográficas e biografias, a autora mergulha em um estudo de caso através da análise da obra intitulada Minhas origens e aprendizagem: uma autobiografia, do cardeal angolano Alexandre do Nascimento, publicada pela imprensa do governo de Angola em 2006.

Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior, em Memórias de um pornógrafo: a revista Hustler, liberdade de expressão e a política nos Estados Unidos (1970 – 1980), analisa as memórias do polêmico Larry Flint, fundador e editor-chefe da Hustler magazine, sobre o período de lançamento e consolidação da revista no mercado pornográfico norte-americano nos anos 1970-1980. Enfatiza, por outro lado, a sua atuação na revista como um meio de atuação política e cultural estadunidense, haja vista que Flint alcançou, nos anos 1990, o status de militante pela defesa da liberdade de expressão e imprensa nos Estados Unidos. Suas conturbadas memórias evidenciam como mesclou a luta pela liberdade de expressão e de imprensa com business, passando por diversas polêmicas, processos judiciais e até mesmo por um atentado à bala que o deixou numa cadeira de rodas.

Fernando Cezar Ripe e Giana Lange Do Amaral analisam um conjunto de obras publicadas em Portugal (de fins do XVII ao XVIII) que tratavam dos cuidados relativos à infância, no artigo intitulado O dispositivo da cultura escrita na constituição do sujeito infantil moderno: evidências em impressos portugueses do século XVIII. A partir do arcabouço teórico construído por Michel Foucault, defendem que “foi somente com a modernidade que a população se tornou objeto tanto de interesse de diferentes campos do saber como de gerenciamento do Estado”. Tal interesse se traduziria, pois, pela utilização de impressos como dispositivos estratégicos de busca de homogeneização dos comportamentos da sociedade portuguesa no que concernia às questões morais, religiosas e políticas. Tais dispositivos são legitimados, segundos os autores, por uma extensa lista de publicações que colocavam as crianças como alvos de cuidados, proteção e educação a serem implementados por uma sociedade paulatinamente pautada por códigos disciplinares.

Fechando o dossiê, trazemos o artigo de Antônio Sérgio Pontes Aguiar e Ruben Maciel Franklin, intitulado Romantismo nos trópicos: motivos literários no Brasil Oitocentista. O texto apresenta o resultado de reflexões acerca da emergência do romantismo no Brasil, a partir dos debates promovidos por romancistas e críticos ao longo do século XIX. Analisam, assim, as principais obras lançadas no Oitocentos, visando compreender o romantismo como um movimento literário e artístico que trouxe à tona uma série de questões concernentes à afirmação de uma identidade nacional, num contexto de afirmação da Nação recém-independente.

Iniciamos a seção de artigos livres com o texto de Carlos Augusto Bastos intitulado Demarcações e circulações nas fronteiras da Amazônia ibérica (c.1780-c.1790). Com ele, retornamos ao tema das disputas entre Portugal e Espanha, agora no tocante à demarcação das fronteiras ultramarinas, no século XVIII. Na América do Sul, conforme destaca Bastos, a Amazônia figurava como uma das áreas de conflitos fronteiriços entre as duas coroas ibéricas e as demarcações de limites realizadas na região pelas comissões demarcadoras, entre 1780- 1790, procuraram definir as soberanias territoriais hispano-portuguesas, assim como viabilizaram diferentes formas de circulação na região de fronteira. Neste âmbito, são exploradas pelo autor, as relações permeadas por tensões e auxílios, aproximações e desconfianças, alianças e competições entre as comissões demarcadoras de Portugal e Espanha que, ao mesmo tempo em que cumpriam seus trabalhos de demarcação (com vistas ao controle de áreas confinantes), alimentavam interações e circulações nessa região do continente.

Henrique Pinheiro Costa Gaio, em Entre passado e futuro: pessimismo e ruína em Retrato do Brasil de Paulo Prado, volta suas atenções para a obra de Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928), em especial ao seu Post-Scriptum. O autor propõe um novo olhar sobre esse clássico, pois considera equivocada a leitura corrente que enfatiza somente o aspecto pessimista de sua interpretação do Brasil. Assim, considerando o seu Post-Scriptum argumenta que neste texto Paulo Prado muda a sua postura frente a um passado pouco edificante apresentado em Retrato do Brasil, revelando uma “disposição combativa que visa romper com o peso do passado e com o que acredita ser o equivocado desenrolar da história nacional”.

O trabalho de Gustavo Granado, A Ascenção da Extrema-direta na França, é o terceiro e último texto da seção de artigos livres. Nele, o autor analisa o fortalecimento da Frente Nacional (partido de extrema-direita francês), principalmente após a posse de François Hollande. Partindo de sua fundação em 1972, quando surgiu como um partido político “cuja ideologia era lutar contra a imigração, internalização da economia e a valorização constante do nacionalismo francês”, vai demonstrando como que, mesmo de forma tímida, o partido foi ganhando representatividade no cenário nacional a ponto de se tornar um partido político temido pelos partidos tradicionais a partir de 2014.

Entre as notas de pesquisa temos os artigos de Raphael Silva Fagundes e Mariana Albuquerque Gomes. Fagundes, em Uma nação fundada com lágrimas: uma análise da retórica nas cerimônias fúnebres do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1848), analisa a estratégia retórica utilizada por membros do IHGB “para a promoção de um projeto político que visava à construção de uma identidade nacional una e indivisa”. Centrando-se na Revista do IHGB, distribuída em diversas províncias do Império do Brasil, analisa os discursos fúnebres, argumentando que eles se constituíam como um investimento numa retórica ligada às emoções. Assim, pretendiam construir um discurso unívoco, face à possibilidade de dispersão, enfatizando uma retórica da nacionalidade que procurava forjar a existência da nação com base na figura de “brasileiros” exemplares, ali alçados a representantes da nação.

Mariana Gomes, por outro lado, propõe compreender as experiências estéticas simbolistas que pensaram o corpo no final do século XIX, no Brasil. Em Pierrot, entre risos e zombarias: notas sobre a tendência coloquial-irônica das experiências estéticas simbolistas, a autora apresenta resultados parciais de uma análise centrada no hebdomadário literário e ilustrado Pierrot, publicado no Rio de Janeiro a partir de 1890. Pierrot, segundo a autora, “apresentava uma proposta de crítica irônica e irreverente, valendo-se dos temas do cotidiano, da oralidade e dos signos da cultura popular como motes de zombaria e sátira” o que fazia com que suas matérias reverberassem em outras publicações como A Tribuna, Cidade do Rio e Gazeta de Notícias. Destaca, assim, a importância da independência desta publicação que não contava com vínculos institucionais, anúncios ou formas de financiamento, para a atuação autônoma tão fundamental para os escritores simbolistas do período.

Encerram a edição as resenhas dos livros de Robert Darnton, Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura (2016), e de Emília Salvado Borges, A Guerra da Restauração no Baixo-Alentejo (2015), respectivamente de autoria de Fabiano Cataldo de Azevedo e Luiz Felipe Vieira Ferrão.

Não poderíamos dar por encerrada esta apresentação sem antes nos manifestar sobre a grave crise pela qual passa a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A Universidade é, sem dúvida, o corolário de uma sociedade pautada pela cultura escrita. Ela é a base de toda a produção e divulgação acadêmica. É através da escrita que trazemos à tona as pesquisas que desenvolvemos na Universidade, tornando-as públicas e por isso, passíveis de serem incorporadas pela sociedade. É também a cultura escrita a base do ensino e da extensão de toda Universidade. Portanto, tratar dessa cultura escrita em um momento de completo descaso com uma Universidade como a UERJ nos faz refletir sobre a importância, ou melhor, sobre a falta de importância conferida pela sociedade ao ensino e à pesquisa no nosso país, no atual contexto político e econômico. Esta é, com certeza, uma oportunidade de refletirmos sobre a importância desse conhecimento construído nas fronteiras universitárias e sobre a relação que o poder estabelece com esse conhecimento.

As condições em que essa edição vem ao ar são deploráveis. Salários e bolsas de professores e estudantes envolvidos atrasados, além de uma estrutura física completamente sucateada pela falta de interesse do poder público pela manutenção deste espaço de excelência em ensino, pesquisa e extensão.

A capa, com detalhes pretos, é a expressão do sentimento de luto compartilhado pela comunidade acadêmica neste triste momento. A publicação desta revista um ato de resistência. Mas até quando isso será possível?

Notas

  1. É importante destacar que somente no Censo de 1960 foi registrado um índice de analfabetismo inferior a 50%, perfazendo 46,7% da sociedade brasileira.
  2. BARBOSA, Marialva. A história cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.
  3. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A imprensa como uma empresa educativa do século XIX. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n.104, p.144-161, jul. 1998. Para uma visão mais geral sobre o conhecimento ver: BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

Monique de Siqueira Gonçalves – Doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz) e atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UERJ, como bolsista Nota 10 FAPERJ.

Tânia Bessone – Doutora em História pela USP, professora Associada da UERJ / IFCH / Departamento de História, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História, Procientista, Pesquisadora Bolsista do CNPq, sócia Honorária do IHGB.


GONÇALVES, Monique de Siqueira; BESSONE, Tânia. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.16, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Práticas letradas / Embornal / 2015

A historiografia contemporânea já vem enriquecida pelo menos a três décadas por estudos no campo da cultura escrita. Cada vez mais a literatura, a imprensa, o livro, os intelectuais, entre outros elementos relacionados ao letramento, têm mostrado que as sociedades fizeram uso das atividades do intelecto como ferramentas de poder, reinvindicação, inserção e afirmação de experiências ao longo da história.

Desta feita, o presente número da Embornal – Revista Eletrônica da ANPUH-CE se ateve ao exercício das “práticas letradas” ou as ações cotidianas de letramento, compreendidas como aquelas realizações em torno da difusão das ideias e visões de mundo e de sociedade.

Trata-se da leitura e dos leitores, da impressão e circulação dos livros, revistas e jornais, dos debates realizados nas associações e grêmios literários, científicos e filosóficos, bem como, da produção intelectual ordinária que são as experiências, práticas e realizações do saber letrado [1].

Estes são territórios de lutas, embates e disputas por exercício de poder e capital simbólicos [2].

Em geral, os artigos que ora se apresentam compõem a produção científicas realizada no seio do eixo de pesquisa “Práticas Letradas” [3] do grupo “Práticas Urbanas” [4] (GPPUR-DGP/ CNPQ).

Fruto dos debates em comum entre os eixos “Práticas Letradas” e “Governamentalidade e Dispositivos de Controle Social” do GPPUR, em torno das ideias políticas, da imprensa e dos intelectuais, o artigo “Os Ecos do Discurso Liberal nos Domínios da Precariedade Estrutural: o Jornal Libertador e a Defesa da Liberdade na Província do Ceará”, assinado pelo Professor Érick Assis Araújo e Francisco Paulo Mesquita, traz a discussão em torno dos temas debatidos na imprensa abolicionista cearense, sobretudo, o que o que fora tratado no jornal abolicionista Libertador.

O texto “‘Uma República na Esquina das Trincheiras’. Cidade, Imprensa e Política na Construção do Regime Republicano em Fortaleza (1889 – 1892)”, por Gleudson Passos e Taynara Rodrigues dos Anjos, trata da circulação de ideias em torno do modelo republicano, entre os órgãos de imprensa que disputavam o público leitor da cidade de Fortaleza, palco de conflito entre as facções políticas do período.

“A ‘Soberania da Lei’: A Função Civilizatória do Direito nas Práticas Letradas dos Bacharéis da Academia Cearense (1894-1914)”, texto que leva a pena do Professor Allyson Bruno Viana e Lucas Araújo Gomes Frota, aborda a inserção dos intelectuais de Fortaleza na virada entre os séculos XIX e XX, quando estes se ocuparam da produção intelectual em torno de uma racionalidade das leis que deveriam reger o país, durante os primeiros anos do regime republicano.

O artigo “Sob o Domínio da Oligarchia que Opprime, Rouba e Envergonha”: A Atuação Letrada Denunciativa de Antônio Sales através da Obra O Babaquara, da autoria do Professor André Brayan Lima Correia, retrata a inserção intelectual junto ao debate político no início do século XX.

Da Professora Rafaela Gomes Lima, o texto “‘Aqui publicam-se livros’: os Intermediários da Literatura na Fortaleza do final dos Oitocentos” faz alusão ao mercado livreiro e aos círculos de leitores na capital cearense aos fins do século XIX.

“Os Pedreiros Livres do Império: Em Defesa da Humanidade na Imprensa Cearense (1873 – 1875)”, assinado pelo Professor Paulo Freire Sá, analisa o papel da maçonaria na cidade de Fortaleza, através do jornal Fraternidade em combate às ideias ultramontanas do jornal Tribuna Catholica.

“‘Os Frutos do Progresso’: Análise de Rachel de Queiroz sobre as transformações urbanas promovidas pela modernização conservadora” é o artigo da Professora Lia Távora Moita, a respeito da escrita de Rachel de Queiróz, sobre os seus posicionamentos em torno da urbanidade vivenciada nos anos de ditadura civil-militar instalado no Brasil, entre 1964 e 1985.

O texto “‘A Vitória da Verdade’: Histórias e ‘Posse’ da Verdade em Sobral”, assinado pelo Professor Thiago Braga Teles da Rocha, alude aos combates pela história e pela memória, das apropriações discursivas e narrativas em torno da cidade de Sobral, a partir das referências do Bispo Dom José Tupinambá da Frota.

Por fim, o artigo “‘Pedrada em casa de marimbondo’: Práticas Letradas, Capitalismo e Civilização no livro O Canto Novo da Raça”, do Professor Thiago da Silva Nobre, traz uma reflexão sobre o exercício das práticas letradas em torno da experiência urbana pela qual passava a cidade de Fortaleza, no início do século XX.

Que os leitores e as leitoras se sintam convidados a trilhar por esses caminhos da pesquisa que têm as práticas letradas como possiblidade de investigação no campo da pesquisa histórica.

Boa leitura!

Notas

1. Sobre “Práticas Letradas” ver CHARTIER, Roger (Org). Práticas da Leitura. – São Paulo: Estação Liberdade, 1996. Ver também: CHARTIER, Roger. História Cultural. Entre Práticas e Representações. – Lisboa: Difel, 1994.

2. BOURDIEU, Pierre. Poder Simbólico – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

3. O eixo temático “Práticas Letradas e Urbanidades” tem produção científica no âmbito da pós graduação através das dissertações de mestrado defendidas e/ ou em andamento no Mestrado Acadêmico em História/ MAHIS-UECE pelos discentes Roberta Kelly Maia (2013), Ariane Bastos (2013), Rafaela Gomes (2014), Paulo Freire Sá (2016), Thiago da Silva Nobre (2017), Lia Mirelly Távora Moita (2017) e Thiago Braga Telles da Rocha (2017). Alguns projetos foram amparado por agências de fomento com os seguintes bolsistas de Iniciação Científica: Thiago Nobre, Danielle Almeida, Taynara dos Anjos (PIBIC-CNPQ); Ariane Cordeiro, Albertina Paiva, Tessie Reis (PROVIC-UECE); Francisco Cavalcante Neto, Jéssica Cardoso, Irlas Prata, Thaís Medeiros, Daiane Silva (FUNCAP); Rafael Pinheiro, Victor Dantas e Rubens Sousa (PRAE/ UECE).

4. O grupo de pesquisa “Práticas Urbanas” (GPPUR-DGP/ CNPQ) abrange os seguintes eixos temáticos: “Governamentalidade e Controle Social”, “Ética, Hábitos e Costumes”, “Produção e Consumo de Bens Domésticos” e “Práticas Letradas e Urbanidades”.

Gleudson Passos Cardoso

Organizador

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Cultura escrita, educação e instrução no antigo regime português / História – Questões & Debates / 2014

Este número da Revista História: Questões & Debates traz o Dossiê “Cultura escrita, educação e instrução no Antigo Regime português”, organizado por integrantes do Grupo de Pesquisa Cultura e Educação na América Portuguesa, que reúne pesquisadores de vários estados brasileiros e de Portugal. O Grupo vem atuando desde 2010, com o propósito de verticalizar discussões sobre a cultura escrita entre o século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, em diferentes vertentes que integram os interesses de pesquisa da equipe. Essas vertentes vêm se dedicando ao estudo (i) dos projetos educacionais no Império português, particularmente na América, (ii) das relações entre instrução e educação na formação dos quadros administrativos, nas atividades econômicas e na formação profissional, (iii) das relações entre Iluminismo e cultura escrita, e entre esta e práticas culturais e educativas como mediadoras de sociabilidades, e (iv) das instituições e de seus componentes num mundo supostamente Ilustrado. São temáticas fundamentais para documentar e discutir a passagem do domínio político ao império da língua, assim como para perceber a presença e a importância do elemento letrado, sua demografia, geografia, formação, formas e mecanismos de sociabilidade. Em vista deste programa de pesquisa, o Grupo entende que, para a compreensão dos fenômenos relacionados a este processo, é necessária uma visão que combine, ao mesmo tempo, a atenção às especificidades de cada uma das partes com o entendimento das dinâmicas mais gerais que estiveram em ação no momento em que o Estado português procurava soluções para os seus dilemas políticos, econômicos e culturais, e que as estruturas do Antigo Regime iam dando lugar a novas formas de organização e exercício do poder.

Estas preocupações também surgem por se considerar que a segunda metade do século XVIII foi uma época de profundas mudanças no reino de Portugal e em seus territórios ultramarinos. A área educacional foi particularmente atingida, verificando-se um desejo de transformação na mentalidade dos portugueses, principalmente dos jovens. A reforma dos Estudos Menores (1759 e 1772), a criação da Aula de Comércio (1759) e do Real Colégio dos Nobres (1761), além da reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772), são as faces visíveis desse processo que, em certos aspectos, precedeu a diversos outros estados europeus, como a Prússia, Áustria e França, e mostrou uma sintonia entre reformas e o “espírito” daquele século.

Paralelamente às tentativas de impulsionar a educação, a vigilância sobre o que era publicado e lido ganhou novos contornos, com a criação da Real Mesa Censória, em 1768. Neste âmbito, o Tribunal da Inquisição também foi objeto da ação reformista empreendida no reinado de D. José I. Na área da cultura escrita, a própria atividade editorial foi, em muitos momentos, patrocinada pela própria Coroa, interessada em tornar seus jovens “bons cidadãos”, em consonância às ideias então propaladas em obras de intelectuais portugueses influenciados pela Ilustração. Diversos textos foram também publicados pela Imprensa Régia e, mais tarde, pela Imprensa da Universidade de Coimbra. Não menos importante, deve-se considerar que o comércio de livros produzidos fora de Portugal manteve-se muito ativo, como demonstram os inventários de diversas bibliotecas. Ainda nesta perspectiva, a relativa ampliação do ensino das primeiras letras e das gramáticas latina e portuguesa trazia outras populações para o mundo da escrita, com impactos culturais e sociais importantes, sobretudo na América. Estas atividades tiveram continuidade nos reinados de D. Maria e de D. João VI, matizando os efeitos da propalada “Viradeira”.

Assim, os textos apresentados neste Dossiê procuram discutir a importância da cultura escrita e suas relações com a educação e a instrução no Antigo Regime português. Os textos percorrem diferentes temas e investem em abordagens que recorrem a fontes e orientações teórico-metodológicas ainda pouco exploradas pela historiografia, verticalizando discussões sobre o contexto reformista que marcou o mundo luso-americano a partir da segunda metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX. Esse movimento renovador também é tributário da interlocução mais frequente entre historiadores e pesquisadores de áreas limítrofes, como Estudos Literários, Sociologia e Educação. É nesta perspectiva que se vislumbra a contribuição destes estudos e sua articulação com um programa de pesquisa mais ampliado.

O primeiro texto, de autoria de Thais Nívia de Lima e Fonseca, a par de apresentar uma concisa discussão acerca dos caminhos da historiografia da educação voltada ao período colonial brasileiro, mostra os resultados do investimento em um novo veio documental, a correspondência trocada entre professores régios, governadores de capitania, bispos, funcionários da Junta da Diretoria Geral de Estudos e o Conselho Ultramarino, a partir da qual são discutidas as relações estabelecidas entre os professores régios e os responsáveis pelo controle administrativo do ensino régio na América portuguesa. A autora destaca, assim, os interesses e conflitos dos sujeitos envolvidos com a educação no contexto colonial, abordando também aspectos do funcionamento cotidiano das escolas régias instituídas, a partir de 1759, com as reformas pombalinas da educação.

A seguir, Antonio Cesar de Almeida Santos revisita o conjunto dos diplomas legais que instituíram as reformas pombalinas da educação, apontando para o tipo de estudante e, consequentemente, para o “profissional” desejado pelos propositores das tais reformas, considerando que elas estiveram orientadas pelo interesse em desenvolver uma mentalidade que se coadunasse à nova realidade que se queria construir. Assim, seu interesse maior é o de perceber os nexos entre as novas ideias que permeavam o ambiente intelectual europeu e os conhecimentos e as metodologias de ensino que foram propostos para a instrução dos jovens portugueses.

Por sua vez, Justino Pereira de Magalhães aborda a administração municipal pela ótica de sua ordenação por intermédio do uso da escrita administrativa, apontando para uma crescente formalização, profissionalização e especialização desse domínio. Enfocando a figura do escrivão, sujeito responsável pelo registro escrito dos atos municipais, mostra como ocorreram a adequação e a legitimação de uma escrita municipal, particularmente a colonial, ao longo do século XVIII, frente às instâncias decisórias do centro. Conforme o entendimento do autor, a escrita municipal é instituidora do próprio município, desvelando-se como texto, e é como tal que precisa ser interpretada.

Em um registro de longa duração, Ana Rita Bernardo Leitão aborda a instrução dos indígenas da América Portuguesa, especialmente no que concerne à introdução do idioma português entre estes sujeitos. Aqui, a atividade educacional, especialmente aquela promovida pela Companhia de Jesus, mistura-se à missionária, vislumbrando-se estratégias de incorporação das populações autóctones à fé católica e à cultura portuguesa. Apesar da relativa eficácia da ação de civilização das populações ameríndias, no que se refere especialmente ao domínio da língua portuguesa, não ficam ausentes os obstáculos enfrentados, em destaque aqueles que serão objeto de atenção do gabinete pombalino.

Ana Cristina Pereira Lage trabalha com dois conceitos essenciais para os estudos que o Grupo de Pesquisa Cultura e Educação na América Portuguesa vem desenvolvendo: letramento e cultura escrita. Em seu artigo, a autora busca compreender, a partir destes conceitos, a produção e a utilização de livros devocionais pelas mulheres que seguiam a Regra de Santa Clara na América Portuguesa. Assim, a partir de uma análise que conjuga a interpretação da Regra, das práticas de leitura, da escrita e dos livros que orientam para o caminho da perfeição religiosa, aponta para o caminho que essas mulheres pretendiam seguir: a busca de uma vida exemplar. A partir da documentação, torna-se possível identificar o estilo literário predominante nos conventos que seguiam a Regra de Santa Clara, estabelecendo padrões para o letramento religioso conventual e que circulava entre Portugal e a América portuguesa, em meados do século XVIII.

Sílvia Maria Amâncio Rachi Vartuli discute os usos sociais que mulheres de Minas Gerais fizeram da escrita, no período de 1780 a 1822, considerando que as relações com a escrita ultrapassam em muito a capacidade de redigir de “próprio punho”. Aborda, assim, os fenômenos da alfabetização e do letramento nas sociedades do período colonial brasileiro, realizando também uma breve discussão acerca da cultura escrita, privilegiando a observação das elaborações discursivas empregadas por aquelas mulheres no momento de redação de seus testamentos. Trata-se, enfim, de um trabalho que destaca a autoria de textos, mesmo que redigidos por mãos alheias, mas que mostram a utilização da escrita no referido contexto.

Completando esta incursão sobre a cultura escrita e suas relações com a educação e a instrução no mundo luso-brasileiro das décadas finais do século XVIII e das décadas iniciais do século XIX, Lucia Maria Bastos Pereira das Neves enfoca os esforços da Coroa portuguesa em criar, no Rio de Janeiro, uma sociedade mais conforme aos hábitos de uma Europa culta e ilustrada. Assim, discutem-se certas ações do governo joanino que permitiram a criação de escolas e a edição de livros por intermédio da Impressão Régia, buscando difundir uma cultura escrita e propiciando a instrução dos jovens que acompanharam suas famílias na transferência da corte. A circulação de novas ideias permitiu, como aponta Lucia Bastos, o surgimento de novas formas de sociabilidade e de um espaço público que, mais tarde, sediou o questionamento de alguns valores tradicionais, como o governo absoluto e a expressão retórica.

Completando este sexagésimo número da Revista, temos os artigos de Moisés Antiqueira, que empreende um estudo sobre a leitura que Tito Lívio fez do julgamento de Cesão Quíncio, na Roma republicana; de Patrícia Falco Genovez e Flávia Rodrigues Pereira, que abordam políticas de saúde voltadas ao combate da hanseníase e as memórias que a doença provoca em uma comunidade da região leste de Minas Gerais, na década de 1980; e de Coral Cuadrada, que trata da transmissão de saberes medicinais entre mulheres na Catalunha, em um estudo de longa duração (sécs. XV a XX). Também é apresentado artigo de Ray Laurence, sobre a exploração turística das ruínas de Pompeia, em tradução de Pérola de Paula Sanfelice e Daphne de Paula Manzutti.

Desejamos uma boa leitura!

Thais Nívia de Lima e Fonseca

Antonio Cesar de Almeida Santos


FONSECA, Thais Nívia de Lima e; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.60, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e Cultura Escrita / Tempo e Argumento / 2013

Desde a década de 1990, a História da Cultura Escrita – entendida como o estudo das diferentes formas de produção, uso e conservação do universo textual – centra-se na interpretação das práticas sociais de ler e escrever. Nesse aspecto, converteu-se em um campo de investigação singularmente produtivo e dinâmico que pode ser reconhecido como uma das chaves para os estudos que versam sobre a memória escrita, de uma dada sociedade, apresentados em variados suportes.

Com o objetivo de aprofundar o conhecimento de seus objetos de análise e suas abordagens na clave da História do Tempo Presente, o volume 5, número 9 (2013) da Revista Tempo e Argumento (que a partir desta edição passa a utilizar a numeração sequencial em suas publicações) apresenta, inicialmente, um conjunto de seis (6) artigos que se situam entre a reflexão e o debate em torno de uma série de questões teóricas e metodológicas sobre a História da Cultura Escrita que emergem no Tempo Presente e que vêm modificando as bases de nossa experiência no mundo e os parâmetros nos quais nossa sociabilidade é construída. Neste número, apresentamos também ao público leitor uma seção temática bilíngue (francêsportuguês), composta por sete (7) artigos que versam sobre arquivos. Parte desses artigos foram apresentados no evento Sombres Archives: Journée d’études, realizado em Toulouse (França), em abril de 2012.

Dessa maneira, é possível refletir, nos dois artigos iniciais, sobre assuntos como o poder de publicações brasileiras que evidenciaram importantes empreendimentos editorais, suas disputas e seus processos para a organização de coleções, ambas comprometidas com a produção de um novo conhecimento sobre o Brasil. Giselle Martins Venâncio e André Carlos Furtado estudam a Coleção Brasiliana, publicada entre os anos de 1956 e 1972. Fábio Franzini analisa a Coleção Documentos Brasileiros, publicada entre os anos de 1930 e 1960. As historiadoras e museólogas Carla Rodrigues Gastaud e Cristiéle Santos Souza enunciam seus discursos sobre lugares de produção e publicização de acervos autorreferenciais em um contexto contemporâneo e o fazem através das trajetórias de constituição de dois conjuntos documentais: as cartas de D. Joaquim, bispo de Pelotas (RS), escritas entre os anos de 1915 e 1940, em cotejo com as cartas da baronesa Amélia, escritas entre 1889 e 1918 e depositadas em arquivos pelotenses.

Pensar sobre o processo de constituição de uma historiografia sobre a cultura e a arte marginais, no Piauí, e discutir as maneiras como tais produções se configuram, é o que objetiva o trabalho de Edwar de Alencar Castelo Branco e Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, os quais analisam como esta escrita historiográfica piauiense se relaciona com a que é produzida em âmbito nacional. No mesmo movimento, Marilane Machado faz uma análise de dois cadernos de alunas da Educação de Jovens e Adultos (EJA), produzidos em 2008 em Florianópolis. Através deles a autora aprofunda interpretações sobre a produção e a materialidade desse material na perspectiva das “escritas ordinárias”, consideradas nas abordagens da cultura escrita como documentos privilegiados para o conhecimento do cotidiano e dos fazeres de pessoas comuns.

Um estudo que pretende contribuir para o conhecimento das relações entre escrita, espaço e paisagem no âmbito do saber histórico é oferecido por Roberg Januário dos Santos e Lucilvana Ferreira Barros. Os autores problematizam a produção da paisagem dos verdes carnaubais da cidade do Assú, localizada no sertão do Rio Grande do Norte, mediante a construção da escrita de escritores e poetas locais sobre esta paisagem.

Na seção Artigos, dois instigantes textos fecham esta primeira parte da Revista com questionamentos que discutem o fazer historiográfico no Tempo Presente. Ainda que não estejam diretamente ligados ao tema da História da Cultura Escrita, abordam temáticas que são por ela transversalizadas. Nesse sentido, Jaqueline Martins Zarbato faz reflexões sobre as experiências de professoras de História e interpreta seus processos de formação, suas implicações e tensões no fazer docente, desde os elementos simbólicos, às escolhas e trajetórias que permitiram o “fazer-se professoras” de História. Já Sheille Soares de Freitas discute as desigualdades e as pressões que potencializam as práticas dos trabalhadores na sociedade capitalista ao colocar em evidência suas trajetórias no espaço de trabalho na ThyssenKrupp – em Campo Limpo Paulista – (SP), a partir de meados do século XX.

A segunda parte – Seção Temática: Arquivos no tempo e na história – é composta de um dossiê com sete (7) artigos que tematizam os arquivos como instâncias que preservam, notadamente, rastros de memórias traumáticas e oferecem pontos de vista privilegiados sobre a maneira como nossas sociedades tratam dos males passados. Esta seção temática ficou sob a responsabilidade das historiadoras Sylvie Sagnes – Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS – Paris) e Silvia Maria Fávero Arend – Programa de PósGraduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC).

Sylvie Sagnes, pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), abre o dossiê e realça a presença, no arquivo, de relações desarmônicas entre história e memória ao enfatizar que as memórias dominadas e dominantes, vitimárias e heroicas, subjetivas e objetivas, memórias do coração e da razão se opõem e afetam infalivelmente a disciplina histórica.

“Entre memória e história, filiação destruída, trauma, narrativa de vida e paixão por arquivos” é o titulo do artigo do professor e psicólogo Yoram Mouchenik, cujo teor relata aspectos de uma pesquisa sobre traumas e desaparecimentos, a partir do convívio com um grupo particular de pessoas que foram crianças judias sobreviventes, e que permaneceram escondidas na França durante a Ocupação. Na mesma perspectiva, o professor Patrice Marcilloux expõe como a abertura ao público dos arquivos da segunda guerra mundial, nos anos 1990, constituiu um episódio marcante e por vezes conflituoso da história recente dos arquivos na França, notadamente entre a comunidade judaica, e argumenta sobre as transformações profundas nas lógicas de uso do documento de arquivos.

Arquivos pessoais do historiador Philippe Ariès e do advogado e político francês Gaston Bergery são tratados pelos professores e pesquisadores Guillaume Gros e Yves Pourcher, respectivamente. Através da análise de variados documentos como cartas, artigos e outros documentos pessoais e públicos, buscou-se traçar a trajetória destes indivíduos analisando-se, sobremaneira, a constituição de seus arquivos, como veículos para a construção de memórias, sem esquecer as tensões constantemente presentes nessas operações escriturísticas.

Duas historiadoras brasileiras, Janice Gonçalves e Cristina Scheibe Wolff, apresentam os resultados de seus investimentos de pesquisa. Janice Gonçalves, historiadora e pesquisadora da área patrimonial, discute aspectos históricos que envolvem o acesso à documentação arquivística de caráter público, sua utilização para a produção de conhecimento histórico e sua relevância para o exercício da cidadania e a consolidação de práticas democráticas. Sob o sugestivo título “A recusa do segredo: exercício de direitos e acesso a documentos públicos” a autora aborda o debate arquivístico acerca da avaliação de documentos de arquivo e sua relação com o tema do acesso aos próprios arquivos. Cristina Scheibe Wolff apresenta uma reflexão sobre os arquivos que guardam acervos sobre as ditaduras nos países do Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), para mostrar como se podem encontrar perspectivas de gênero em acervos que originalmente tiveram como principal propósito a repressão aos movimentos políticos de resistência às ditaduras, mas que não problematizaram especialmente as questões de gênero.

O livro do historiador José Carlos dos Reis sobre o desafio de se escrever a História é, finalmente, resenhado por Vicentônio Regis do Nascimento Silva e se constitui em uma contribuição para ampliar o debate no campo da Historiografia.

As análises aqui apresentadas se prestam a múltiplas interpretações, mas, seja no âmbito dos estudos de cultura escrita, seja no âmbito dos arquivos, há sempre na produção de um impresso desta natureza um desejo recôndito de leitura que aponta para esta espécie de autoria às avessas, tão anônimo quanto criativo, tão impalpável quanto necessário para produzir sentidos: o leitor! a leitora!

Maria Teresa Santos Cunha

Luciana Rossato

Editoras- Chefe


CUNHA, Maria Teresa Santos; ROSSATO, Luciana. Editorial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.5, n.9, 2013. Acessar publicação original [DR]

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