História e criminalidade / Vozes Pretérito & Devir / 2019

As narrativas de crimes há muito exercem uma atração ambígua, um misto de temor e fascínio, entre leitores. Não casualmente, as histórias policiais contribuíram decisivamente, ao longo do século XIX, para a popularização da literatura e do jornalismo, da “cultura do impresso” que é, para historiadores do período como Jean-Yves Mollier, a primeira manifestação de uma cultura de massas que se aprofundaria nas décadas subsequentes, na virada para e ao longo do século XX.

O interesse literário demorou para alcançar a historiografia profissional e acadêmica. À exceção de alguns trabalhos hoje já referências praticamente obrigatórias [1], é a partir principalmente da década de 1970 que o tema começa a chamar a atenção de historiadoras e historiadores. Sob o impacto, entre outros, da história social inglesa e em especial das pesquisas de E. P. Thompson [2], e da publicação de “Vigiar e punir”, do filósofo francês Michel Foucault [3], uma história e uma historiografia do crime, em suas muitas vertentes e variações, se consolidaria nos anos seguintes.

Desde muito cedo articulando os objetos, problemas e fontes específicos do campo aos interesses e aportes teóricos mais amplos da história social, as novas pesquisas pretenderam oferecer mais que uma história das instituições jurídico-policiais ou uma simples variação da história do Direito. Assim, buscou-se fazer uma história das prisões, mas também dos prisioneiros; da polícia, mas igualmente dos policiais e do policiamento; dos discursos e instituições penais, mas em suas múltiplas e contraditórias interações com a sociedade. Enfim, fazia-se uma história do crime, mas sem descuidar de escrever a história da criminalidade e dos criminosos.

A partir dos anos de 1990 desenvolve-se o que podemos chamar de uma história cultural do crime, em grande medida um alargamento das possibilidades abertas pela historiografia de corte mais social. Ao reivindicar a noção de cultura, ou seja, a de uma história das práticas e representações, os historiadores culturais do crime pretenderam, no dizer de Dominique Kalifa, usar o “cultural como instrumento, uma entrada para fazer história social”. [4] O conceito de cultura é utilizado nas suas acepções antropológica e histórica: se as sociedades humanas são culturais, um entendimento da sua dinâmica não pode prescindir de pensá-la imersa em redes complexas de relações. Ainda que os fenômenos e construtos culturais muitas vezes pautem ou expressem escolhas e condutas individuais, eles só podem ser apreendidos e compreendidos se flagrados em seu caráter social e histórico. Trata-se, portanto, de pensar a cultura como uma teia de significados, muitas vezes conflitantes, construída pelas sociedades humanas no tempo, que significam, organizam e autorizam a vida social por meio de regras, normas, práticas e valores.

Não inteiramente inédita, portanto, por outro lado tampouco mera continuidade da história social, a história cultural do crime acrescenta a possibilidade de pensá-lo não apenas socialmente, mas a partir das representações que dele são produzidas em diferentes suportes e linguagens. Se fenômeno cultural, o crime e sua percepção podem ser apreendidos também naqueles discursos que escapam à esfera estritamente jurídica e penal. Trata-se, portanto, de pensá-lo como uma construção cultural, apreensível por discursos os mais diversos. A articulação de diferentes fontes permite, entre outras coisas, acompanhar as maneiras como figuras, nomes, imagens, lugares foram mapeados, identificados e organizados, contribuindo para a construção de um imaginário do crime e, principalmente na experiência da modernidade, de um crescente sentimento de insegurança.

A partir desses novos aportes teóricos, a historiografia mais recente tem se mostrado sensível à necessária e profícua articulação entre discursos, saberes, estratégias e instituições de poder (governos, prisões, polícia, criminologia, etc…), sem descuidar das descontinuidades entre as formulações discursivas e institucionais e sua efetiva, e não raro precária, efetivação nas experiências e práticas cotidianas. Além disso, tem se pluralizado o olhar sobre o crime, a criminalidade e o criminoso, não apenas fazendo ver as mudanças ocorridas no tempo, mas igualmente como, em uma mesma temporalidade, podem-se encontrar diferentes formas de percepção e representação daqueles fenômenos. Tal pluralidade só se tornou possível com a produção de novas fontes que permitem olhar o crime e suas representações em discursos e narrativas tão distintos como os fait divers, o romance policial e o cinema. Mas também em relatórios e estatísticas policiais, processos criminais ou cartas e diários de prisioneiros, fontes de caráter mais “oficial” que, lidas a contrapelo, permitem perceber as muitas contradições das instituições e seus agentes e, mesmo, flagrar aspectos do cotidiano dos grupos e indivíduos considerados criminosos.

Tal como em outras historiografias, também a brasileira trilhou um caminho relativamente longo e diverso até a consolidação, entre nós, de uma história e de uma historiografia do crime. Acompanhando um movimento semelhante ao de outros países da América Latina, no Brasil alguns dos primeiros trabalhos a utilizarem fontes criminais visavam descortinar aspectos do cotidiano dos trabalhadores pobres, imersos em conflitos que ultrapassavam as relações puramente econômicas. O fenômeno criminal tinha importância secundária em pesquisas onde se buscava conhecer a experiência de constituição da classe e da cultura operárias, especialmente na chamada Primeira República.[5] Hoje, já é possível falar de um campo de pesquisa enfim consolidado. Consolidação expressa em agendas compartilhadas; revisões historiográficas que destacam linhas e tendências; inúmeras publicações autorais e coletivas; trocas contínuas em eventos regionais e nacionais que reúnem historiadoras e historiadores do crime e do delito; além da inserção de brasileiras e brasileiros no circuito internacional, principalmente o latino americano.

O dossiê desse número da revista “Vozes, Pretérito e Devir”, portanto, é resultado de um percurso relativamente longo e, ao mesmo tempo, indicativo também da expansão e consolidação das pesquisas em história do crime e do delito no Brasil. O conjunto de artigos apresentados aqui, contemplam não apenas temas, problemas e fontes diversos, mas recortes teóricos e aportes conceituais que reafirmam as possibilidades abertas pelo campo. Não menos importante, ao tratarem da temática do crime, do delito e, em uma perspectiva mais ampla, da violência, em um corte mais regional, apontam para outra característica fundamental à temática: chamar a atenção às singularidades de espacialidades locais ao abordar experiências histórias que tenham o crime a violência como objetos.

No artigo que abre o dossiê, “A pobreza transformada em crime: o combate às práticas subalternas no Código de Posturas da cidade Parnaíba, Piauí (1899)”, Alexandre Wellington dos Santos Silva mostra como a implementação do Código de Posturas municipal, parte do processo de modernização urbana de Parnaíba, impactou principalmente a vida e o cotidiano das populações mais pobres da cidade. Apontadas como uma espécie de entrave ao “processo civilizatório” em curso, e do qual o novo Código era peça central, as chamadas “práticas subalternas” foram perseguidas e criminalizadas pelas elites locais, que pretendiam seu assujeitamento à nova legislação.

Munido das possibilidades teórico-metodológicas (e políticas) sugeridas pela “história social da pobreza”, o autor nos mostra, no entanto, que o intento das elites não se realizou plenamente. Antes pelo contrário, as populações pobres – “prostitutas, mendigos, vendedores ambulantes e ladrões [que] dividiam espaço com ‘trabalhadores do rio’ (…) e operários” – mesmo em constante vigilância e controle, buscaram construir estratégias, se não de resistência (tomada aqui a expressão em seu sentido mais restrito), mas de sobrevivência de suas práticas e saberes. O artigo de Alexandre Silva tem, entre outros, o mérito de nos lembrar que entre a lei e a realidade com a qual ela se choca e que pretende normatizar há, sempre, ruídos, e é principalmente a eles que a sensibilidade do historiador deve estar atenta.

Um breve excerto de sua tese de doutorado, o artigo “O médico e os monstros: a atuação de José Cândido Ferraz em meio aos conflitos políticos e aos incêndios criminosos em Teresina na década de 1940”, de Francisco Chagas O. Atanásio, nos desloca do litoral piauiense para a capital, Teresina. Somos apresentados aos conflitos políticos locais, perpassados por atos criminosos – mais especificamente, uma série de incêndios no centro e na periferia da cidade – e a ação repressiva da polícia local na procura de “bodes expiatórios” que servissem à sanha persecutória do governo, mas, igualmente, para acalmar os ânimos exaltados da chamada opinião pública.

Nesse contexto instável e conturbado, emerge a figura de Cândido Ferraz, um jovem médico descendente das elites locais e voz autorizada na oposição ao governo intervencionista de Leônidas Melo e seu chefe de Polícia, Evilásio Vilanova. Fazendo uso de farta documentação, que inclui, além da historiografia regional, romances e a imprensa periódica do período, Francisco Atanásio nos mostra como, na Teresina dos anos de 1940, a “era Vargas”, política e violência se entrelaçavam. Uma violência instrumentalizada, o que o autor também deixa claro, a partir de um corte classista: simbólica, quando se tratava de utilizá-la contra inimigos políticos pertencentes às elites. Física e repressiva, como mostram os relatos de tortura que Atanásio apresenta em seu texto, quando o “inimigo” a ser combatido pertencia às classes e grupos subalternizados.

A partir da repercussão, principalmente na imprensa do Rio Grande do Norte, da morte de Jararaca, Francisco Linhares Fonteles Neto e Antonio Robson de Oliveira Alvez tecem, em “O bandido Jararaca, ‘mais perverso que Lampião’: as narrativas jornalísticas sobre sua prisão e morte”, uma leitura sobre a circulação dos saberes e discursos acerca do criminoso no Brasil e, mais especificamente, no Nordeste dos anos de 1920. Integrante do bando de Lampião que, em maio de 1927, teve frustrada sua tentativa de atacar Mossoró, à época a maior cidade do Oeste potiguar, Jararaca caiu ferido e feito prisioneiro das autoridades locais.

Sua morte, ocorrida em junho do mesmo ano durante sua transferência para Natal, foi cercada de mistério e imersa em silêncios repletos de significados. Temia-se que um assassinato, mesmo que cometido pelas autoridades e tendo por vítima um famoso e temido cangaceiro, pudesse macular, de alguma forma, a festejada vitória dos mossoroenses na resistência a Lampião e seu bando. Ao longo do texto, e mapeando as muitas narrativas sobre os acontecimentos daquelas semanas, Fonteles e Alves exploram os muitos pontos de vista expressos pela imprensa regional: do temor inicial da população, nos dias que antecedem a investida do cangaço, aos usos das referências teóricas da criminologia lombrosiana na tentativa de, discursivamente, dar uma face e um sentido à violência criminosa de Jararaca, apresentada como expressão de uma degenerescência irredutível.

Articulando referenciais teóricas das ciências sociais, do pensamento foucaultiano e de uma história do tempo presente, o artigo “Juventude em perigo, criminalidade e cidadania negada”, de Marcondes Brito da Costa, apresenta resultados de uma pesquisa realizada durante os anos de 2009 e 2010, com grupos de jovens de comunidades periféricas de Teresina. O foco recai sobre os desdobramentos do tráfico de drogas nas trajetórias dos jovens pesquisados, na tentativa de compreender como as relações sociais são construídas em meio a um cotidiano atravessado por diferentes formas de violência – além da dos traficantes, também a da polícia. O principal mérito do artigo de Marcondes Brito é, sem perder de vista as especificidades locais, apreendidas em uma cuidadosa e sensível pesquisa de campo, dar ao problema do tráfico nas comunidades de Teresina uma dimensão que ultrapassa o território geográfico mais estrito.

O texto mostra que a “lógica” que movimenta o tráfico e recruta grupos inteiros de jovens, não pode ser explicada apenas localmente, porque inserida em teias de significados, em relações econômicas e políticas mais amplas e complexas. Igualmente, os discursos e políticas repressivas de combate ao tráfico, além dos muitos estigmas produzidos sobre a juventude que dele participa em diferentes níveis hierárquicos, não se diferem substancialmente em Teresina daqueles praticados em outras capitais e centros urbanos brasileiros. A produção de um inimigo a ser combatido e, se necessário, eliminado, fruto da “associação ideológica entre pobreza e criminalidade”, é apenas um dos resultados de uma cidadania cada vez mais precária e incompleta – “em frangalhos”, nas palavras do autor. E é de uma amarga ironia que uma das razões a explicar a escolha pelo tráfico como condição de subsistência seja, justamente, vislumbrar nele a possibilidade de exercer uma cidadania que, nas sociedades capitalistas, está cada vez mais associada à capacidade de consumo.

No artigo que encerra o dossiê – e também o único a abordar outra espacialidade que não o Nordeste –, “A ‘Operação mata-mendigos’ e o jornal Última Hora (Rio de Janeiro, 1961-1969)”, Mariana Dias Antonio analisa, a partir das páginas do jornal carioca, uma série de execuções de moradores de rua pela polícia do Rio de Janeiro no início da década de 1960. Fenômeno midiático à época dos acontecimentos, o caso acabou por se tornar assunto periférico nos anos subsequentes, não raro subordinado a narrativas que o inscreviam como parte menor de eventos considerados maiores e mais complexos. Além disso, a autora identifica uma série de lacunas e inconsistências em torno ao caso nas muitas fontes de sua pesquisa.

Um dos propósitos do artigo é, justamente, tentar responder algumas das contradições e suprir parte das lacunas encontradas. Para tanto, Mariana Dias mapeia, além do Última Hora, fonte privilegiada do trabalho, o inquérito parlamentar, os julgamentos e condenações dos agentes implicados. A ampla bibliografia sobre o assunto tampouco escapa a análise da autora, que nela destaca, como já dito, as contradições, lacunas e inconsistências para, em um esforço em que aproxima, compara e cruza as muitas narrativas produzidas sobre a operação – as reportagens da imprensa; a literatura; e os documentos oficiais, principalmente parlamentares – tentar preencher parte dos lapsos encontrados.

Fora do dossiê, outros seixs artigos completam esse volume da “Vozes, Pretérito e Devir”. Em “A freguesia da Cidade do Natal: um território eclesiástico na América Portuguesa”, Thiago do Nascimento Torres de Paula analisa o processo de criação e desenvolvimento da freguesia – territórios eclesiásticos que remontam à antiguidade – na Cidade do Natal, num período que abrangem os séculos XVII e XVIII e se estende até inícios do dezenove. O segundo artigo, “A Aids entre suas relações de estigma e solidariedade em Teresina-PI”, de Maria Zilda Bezarra Gonzaga, avança até os anos de 1980 e 1990, para analisar os muitos estigmas produzidos sobre Aids na capital piauiense, bem como as redes de solidariedade forjadas para o acolhimento e atendimento dos soropositivos.

No trabalho seguinte, “As festas cívicas em Campo Maior-PI durante a Ditadura Militar”, Caio Vinícius Silva Teixeira estuda os significados das manifestações cívicas realizadas durante o período ditatorial, onde valores como “civismo”, “patriotismo” e “nacionalismo” eram acionados como forma de legitimação da própria ditadura. Já Cristina Cunha de Araújo, em “Veredas e caminhos: Fátima e Jóckey Clube (1960-1980)”, analisa o processo de formação dos dois bairros de Teresina destacando as ações dos agentes responsáveis pela modelação do espaço urbano das duas localidades. Em sequência, o artigo de José Eduardo Oliveira Nascimento, “A escrita acadêmica sobre o diabo: o mal ao longo dos séculos”, onde o autor, a partir de uma cuidadosa revisão bibliográfica, analisa as representações do diabo e do mal na literatura ocidental ao longo dos séculos. Encerra esse volume com o artigo “O delegado militar no interior da província de São Paulo, no fim do Império”, de autoria de André Rosemberg. Nele, o autor aborda o lugar e papel social que envolvia a figura do delegado militar na província de São Paulo. Através de uma série de relatos e episódios atinentes ao fim do século XIX, o autor procura demonstrar como o delegado militar revestia-se como um mediador dos conflitos e tensões emergentes das correlações de forças instauradas por várias frentes como o próprio ramo militarizado, burocratizado, profissionalizado e ostensivo, representado pelo Corpo Policial Permanente (doravante CPP), e a hierarquia civil, cujos expoentes eram o chefe de polícia, os delegados e subdelegados; representantes do poder judiciário e das elites agrárias respaldas por sua influência local

Enfim, ficam aqui registrados os agradecimentos a todos que contribuíram direta e indiretamente para mais uma edição deste periódico, assim também como ressaltamos o convite a apreciação do mesmo pela comunidade acadêmica e o público interessado.

Boa leitura!

Notas

1. Entre outros, vale mencionar o trabalho seminal do historiador francês Louis Chevalier, “Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris, pendant la première moitié du XIXe siècle”, publicado originalmente em 1958, pelas Éditions Plon. No Brasil, a historiografia do crime tem uma dívida com o livro pioneiro de Maria Sylvia de Carvalho Franco, “Homens livres na Ordem Escravocrata”, cuja primeira edição é de 1969.

2. HAY, Douglas; LINEBAUGH, Peter; THOMPSON, E. P. et al. Albion’s fatal tree: crime and society in eighteenth-century England. London: Allen Lane, 1975.

3. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Éditions Gallimard, 1975.

4. KALIFA, Dominique. História, crime e cultura de massa. Topoi, v. 13, n. 25, jul. / dez. 2012, p. 185-192.

5. Em meio a um conjunto de pesquisas que margeavam a história do crime, merece destaque o trabalho do historiador carioca Marcos Bretas, ainda hoje nossa principal referência e que, distintamente a seus contemporâneos de geração, trouxe o tema para o centro de suas preocupações em trabalhos como “A guerra das ruas” e “Ordem na cidade”, duas obras que deram contribuição decisiva à história do crime no Brasil.

Clóvis Gruner

Francisco C. O. Atanásio

Curitiba, julho de 2019


ATANÁSIO, Francisco C. O.; GRUNER, Clóvis. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.9, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História cultural do crime / História – Questões & Debates / 2016

A historiografia tem registrado, nos últimos anos, um interesse crescente pela história do crime, da criminalidade e dos criminosos. Um interesse, embora cada vez mais expressivo, relativamente recente. À exceção de alguns trabalhos hoje já praticamente clássicos, como é o caso do livro de Louis Chevalier ou, no caso brasileiro, do livro precursor de Maria Sylvia de Carvalho Franco , é a partir da década de 1970 que o assunto começa a chamar a atenção de historiadores e historiadoras, em especial nos países europeus, com pesquisas desenvolvidas, principalmente, a partir do impacto teórico da história social inglesa, com destaque para o trabalho de E. P. Thompson, e da publicação de “Vigiar e punir”, do filósofo francês Michel Foucault.

Não por acaso, foram na França e Inglaterra que floresceram, nos anos subsequentes, alguns dos principais textos e autores que procuraram expandir e aprofundar as possibilidades abertas pelas investigações seminais de Thompson e Foucault. E inclusive, em não poucos casos, articulando as referências da história social às de uma “genealogia do poder” de viés foucaultiano. Assim, buscou-se fazer uma história das prisões, mas também dos prisioneiros; da polícia, mas igualmente dos policiais e do policiamento; dos discursos e instituições penais, mas em suas múltiplas e contraditórias interações com a sociedade. Enfim, fazia-se uma história do crime, mas sem descuidar de escrever a história da criminalidade e dos criminosos.

Uma história cultural do crime, que se desenvolve especialmente a partir dos anos de 1990 não é exatamente inédita, se a tomarmos como um alargamento das possibilidades abertas nas décadas anteriores por uma historiografia do crime de corte mais social. Além disso, ao reivindicar a noção de cultura, ou seja, a de uma história das práticas e representações, os historiadores culturais do crime pretenderam, no dizer de Dominique Kalifa, usar o “cultural como instrumento, uma entrada para fazer história social”. O conceito de cultura é utilizado nas suas acepções antropológica e histórica: se as sociedades humanas são culturais, um entendimento da sua dinâmica não pode prescindir de pensá-la imersa em redes complexas de relações. Ainda que os fenômenos e construtos culturais muitas vezes pautem ou expressem escolhas e condutas individuais, eles só podem ser apreendidos e compreendidos se flagrados em seu caráter social e histórico. Trata-se, portanto, de pensar a cultura como uma teia de significados, muitas vezes conflitantes, construída pelas sociedades humanas no tempo, que significam, organizam e autorizam a vida social por meio de regras, normas, práticas e valores.

No que diz respeito mais especificamente ao objeto desse dossiê, os processos culturais criaram o vocabulário que nomeou – ou tentou nomear – os personagens que adentravam à cena e forneceram os conceitos que atribuíram sentido aos novos e contraditórios sentimentos próprios à vida moderna e urbana, notadamente o medo – ou a angústia – e a sensação permanente de insegurança. Por outro lado, foram estes sentimentos que, objetivados em práticas sociais, forjaram igualmente parte do ambiente e das condições onde se ressignificaram as próprias noções de crime e de criminoso. Neste emaranhado de novas representações, o crime e o criminoso desempenham função privilegiada. Sua singularidade reside na capacidade de a um só tempo radicalizar uma diferença irredutível frente às normas e convenções sociais e de ameaçar desde dentro as já frágeis estruturas que sustentam uma sociedade em permanente mutação.

Não inteiramente inédita, portanto, por outro lado tampouco mera continuidade da história social. A essa, a história cultural do crime acrescenta a possibilidade de pensa-lo não apenas socialmente, mas também a partir das representações que dele são produzidas a partir de diferentes suportes e linguagens. Se fenômeno cultural, o crime e sua percepção podem ser apreendidos também naqueles discursos que escapam à esfera estritamente jurídica e penal. Trata-se, portanto, de pensá-lo como uma construção cultural, apreensível por discursos os mais diversos – tais como a literatura e a imprensa –, além daqueles de caráter mais oficial. A articulação destas diferentes fontes permite acompanhar, mesmo que precariamente, as maneiras como figuras, nomes, imagens, lugares foram mapeados, identificados e organizados, contribuindo para a construção de um imaginário do crime e, principalmente na experiência da modernidade, de um crescente sentimento de insegurança.

A partir desses novos aportes teóricos, a historiografia mais recente tem se mostrado sensível à necessária e profícua articulação entre os discursos, saberes, estratégias e instituições de poder (governos, prisões, polícia, criminologia, etc…), sem descuidar de apontar as descontinuidades entre as formulações discursivas e institucionais e sua efetiva, e por vezes precária, penetração nas experiências e práticas cotidianas. Do mesmo modo, tem se pluralizado o olhar sobre o crime, a criminalidade e o criminoso, não apenas mostrando as mudanças ocorridas ao longo do tempo, mas também como, em uma mesma temporalidade, podem-se encontrar diferentes formas de percepção e representação daqueles fenômenos. Tal pluralidade só se tornou possível com a produção de novas fontes que permitem olhar o crime e suas representações em discursos e narrativas tão distintos como os fait divers, o romance policial e o cinema – parte da chamada “cultura de massa” –, mas também em relatórios e estatísticas policiais, processos criminais ou cartas e diários de prisioneiros, por exemplo.

Essa renovação na história do crime fez seus frutos na América Latina, nas últimas três décadas, especialmente. No Brasil, a partir de obras publicadas nos anos 1980 por Bóris Fausto, Sidney Chalhoub, Maria Helena Machado e outros autores, iniciou-se um encantamento com a riqueza das fontes criminais. Quase sempre buscava-se descobrir ali a vida dos trabalhadores pobres, onde o fenômeno criminal seria de importância secundária. O acontecimento criminoso só parecia mais significativo quando reafirmava a violência de gênero, contra as mulheres, tema ainda muito presente nos estudos sobre crime. Das condições de vida, as fontes criminais passaram a permitir também o acesso a visões do social, a representações, onde, junto às falas do processo parece cada vez mais ser importante analisar o noticiário produzido sobre crimes e criminosos. Alguns textos publicados aqui nos mostram que esse processo não é diferente do que aconteceu em outros países da América Latina, onde a partir de obras seminais de Lila Caimari (Argentina), Daniel Palma (Chile) ou Elisa Speckman (México), um campo importante de estudos vem se abrindo. Na Argentina, o grupo de pesquisa “Crimen y Sociedad” completa dez anos de atividades; no Chile já ganha regularidade com a publicação da revista “Historia y Justicia”. Esses quadros locais permitem, por um lado, uma interlocução cruzada, a discussão sobre processos sociais que aproximam ou afastam os diferentes países da América Latina, bem como sua comparação com outras regiões. Por outro lado, já é possível notar a consolidação do campo, agendas compartilhadas e revisões historiográficas que atravessam o território, destacam linhas e tendências.

Os artigos que compõem esse dossiê pretendem ser uma amostra da renovação historiográfica apontada nos parágrafos acima, e esperamos que ele permita também reflexões sobre a questão social do crime no Brasil e no mundo. O artigo que abre o volume, de Elisa Speckman Guerra, inicia com um crime: em 1936, Concetta di Leone assassinou seu marido, um príncipe russo, em uma das praças da Cidade do México. O homicídio tem ampla repercussão e merece, segundo a autora, um tratamento próprio de uma “novela romântica”. O advogado de Concetta procura justificar o crime alegando legítima defesa da honra e profunda perturbação mental, frutos do adultério cometido pelo marido assassinado e descoberto por ela pouco antes do crime. Para a historiadora, parte do interesse pelo crime adveio do ambiente reinante no pós-guerra, mas também das muitas mudanças vividas no México pós-revolução.

Mudanças que afetavam tanto as instituições jurídicas como os valores que norteavam a sociedade mexicana. No primeiro caso, Speckman Guerra procura mostrar o funcionamento do novo aparato penal após a revolução e a transição de uma “justiça mista” para uma “profissional”. No segundo, se interroga sobre como a revolução política pode também produzir, no começo do século XX, um conjunto de novos valores e percepções que dizem respeito, entre outras coisas, a concepção da mulher na cultura e na sociedade mexicanas. Além disso, o artigo tenta mostrar a vinculação da legislação com códigos de conduta e o peso da opinião pública em sentenças judiciais, a partir do cruzamento dos discursos proferidos pelos juízes nos tribunais e a repercussão do caso na imprensa periódica do período.

Em seguida, Osvaldo Barreneche nos apresenta alguns apontamentos sobre a história da “Sociedad de Socorros Mutuos de la Policía” da província de Buenos Aires. Uma das principais responsáveis, ao longo especialmente da primeira metade do século XX, pela construção de uma organização mutualista na polícia portenha, ela foi também fundamental na conformação de uma cultura institucional que teve papel importante nas relações entre a polícia da capital e outras agências estatais e com a sociedade civil. O desenho da Sociedade e seu funcionamento serviram também como modelo para outras associações policiais semelhantes que surgiram no período.

Se a chegada do peronismo ao poder não alterou profundamente a “Sociedad de Socorros Mutuos de la Policía” logo de início, Barreneche demonstra que logo após a consolidação do novo governo teve início o declínio da entidade. Já no final dos anos de 1940, a crescente complexidade da organização policial, acompanhada de um processo de centralização e verticalização do controle institucional, contribuiu para o seu ostracismo. A partir da metade do século XX, com o decréscimo no número de associados, entre outras coisas, a Sociedade passa a exercer um papel cada vez menos significativo como entidade representativa dos policiais. Ao final do artigo, o autor levanta algumas hipóteses para esse declínio.

No terceiro texto, a historiadora chilena Vania Cárdenaz Muñoz nos apresenta o conceito de “criminicultura” para, a partir dele, mostrar as percepções sobre a delinquência e o delinquente nos discursos da imprensa, na polícia e nas correntes do pensamento criminológico em voga nas primeiras décadas do século XX. Em seu artigo, Vania Muñoz trabalha, entre outros, com arquivos policiais da Intendência de Polícia, a imprensa periódica e artigos da “Revista de Policía” de Valparaíso com o intuito de demonstrar como, naquela cidade chilena, as funções preventivas e repressivas das polícias “representaram o refúgio último de segurança para as classes dominantes”.

Frente ao avanço do sujeito perigoso e as ameaças contra a propriedade, enquanto em outros lugares ganhava força o discurso de um corpo policial técnico e científico, em Valparaíso vigorava ainda um saber prático, que cultivava um certo receio em relação às modernas teorias sobre a criminalidade e o criminoso. Forjado nas ruas, no contato e no diálogo direto com os delinquentes, o conceito de “criminicultura” se constitui como uma espécie de contraponto à cientificização teorizante da atividade policial, ao apresentar-se como capaz de apreender e compreender a dinâmica de uma sociedade também em mutação.

Encerrando as contribuições estrangeiras, o breve e instigante artigo de Philippe Artières parte de um estudo de caso, o assassinato do jesuíta Paul Gény pelo soldado italiano Bambino Marchi, em 1925, para mostrar a reação às práticas e ao saber do perito criminal, que no começo do século XX atingiram ampla e sólida penetração nas instituições jurídicas e policiais europeias. Cruzando um conjunto bastante heterogêneo de fontes, oriundas de arquivos privados e familiares, e documentos da Companhia de Jesus e da Universidade de Roma, Artières reconstitui o crime e o processo judicial que se seguiu a ele, incluindo os diagnósticos médicos sobre Bambino Marchi produzidos durante o julgamento. Seu argumento central, no entanto, ele o constrói a partir da leitura de uma longa carta escrita pelo próprio criminoso, “uma verdadeira tomada de palavra contra a autoridade do perito”.

A primeira das contribuições brasileiras é de Ana Gomes Porto. Pesquisadora reconhecida por seu trabalho com as narrativas de crime, em seu artigo Ana Porto nos apresenta o criminoso Pedro Hespanhol – que apesar do sobrenome, era português – cuja trajetória de crimes no começo do século XIX o tornou um dos mais célebres criminosos do período. Considerado inicialmente um “sanguinário”, as representações de Pedro Hespanhol, especialmente na imprensa do Rio de Janeiro, passam por transformações significativas entre os anos de 1830, década das primeiras narrativas sobre o bandido, até a publicação, em 1884, do romance Pedro Hespanhol, de José do Patrocínio.

Em sua narrativa, Ana Porto investiga as razões que levaram a essa ressignificação de Hespanhol, que de criminoso perigoso e temido é alçado à condição de “famigerado herói”. Para a autora, uma das explicações possíveis está no contexto do Segundo Reinado, em que a “suspeição aos libertos, africanos livres e escravos esteve no centro das atenções das autoridades públicas brasileiras”. Igualmente, defende, as muitas revoltas do período forjaram representações de indivíduos na mira da justiça, notadamente os pertencentes às camadas mais pobres da população. É nos interstícios dessa conjuntura que surge a figura dos “malfeitores”, tais como Pedro Hespanhol.

O artigo de Cláudia Moraes Trindade nos introduz no universo prisional baiano do século XIX, mais especificamente na Casa de Prisão com Trabalho, primeira penitenciária do estado, inaugurada em Salvador no ano de 1861. Erigida à época por seus conterrâneos como um dos símbolos da modernidade, a Casa de Prisão com Trabalho pretendeu inserir a Bahia no contexto das reformas prisionais em voga entre final do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX, tanto no Brasil como no exterior. E apesar do continente europeu servir como referência privilegiada quando se tratava de reivindicar padrões de civilização, no caso das reformas penitenciárias foi, principalmente, o modelo norte-americano a vingar no território brasileiro, e a Bahia não é exceção.

A riqueza do texto de Cláudia Trindade está, principalmente, na multiplicidade de temas que aborda e fontes que mobiliza. Para apresentar o panorama do aprisionamento da província baiana, a autora analisa desde a organização administrativa da penitenciária, seus funcionários e atribuições, ao trabalho nas oficinas, a situação da enfermaria, a escola de primeiras letras, a segurança e o perfil dos presos, entre outros temas. E ainda que o foco principal do artigo seja a Casa de Prisão com Trabalho, o texto visita rapidamente outras instituições prisionais da Bahia, analisando algumas de suas peculiaridades e diferenças em relação à penitenciária da capital.

Do Nordeste para o Sul do país, o texto seguinte, de autoria de Cláudia Mauch, analisa o funcionamento da polícia de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, ao longo da Primeira República. A historiadora se detém, principalmente, no sistema de recrutamento dos policiais, onde se evidencia, entre outras coisas, a aplicação de critérios clientelistas de seleção e as dificuldades de disciplinarização e estabilização dos efetivos policiais. Manejando principalmente fontes seriadas, tais como registros de pessoal, e qualitativas, como inquéritos administrativos, o artigo procura mostrar algumas das práticas e regras que visavam organizar a corporação policial porto alegrense do período.

Em linhas gerais, a autora mostra que tais práticas não se diferenciavam substancialmente das tentativas de modernização do aparato policial vigentes em outras capitais brasileiras do período. Por outro lado, ao analisar, entre outras coisas, o perfil social dos policiais da capital gaúcha, Cláudia Mauch identifica um descompasso entre a intenção modernizadora e o cotidiano policial efetivamente vivido. De acordo com ela, as fontes permitem outros olhares sobre o funcionamento da polícia local, permitindo superar as idealizações expressas nos regulamentos e analisar a inter-relação entre o que o Estado esperava da polícia e como a instituição se modelava nas suas relações internas.

Encerra o dossiê o artigo de André Rosemberg sobre a greve da Força Pública da cidade São Paulo. Nos primeiros dias de 1961, mais de mil policiais de diferentes patentes – de capitães a cabos –além de soldados, paralisaram suas atividades durante os dias 13 e 14 de janeiro. O movimento paredista iniciou com os bombeiros, rapidamente mobilizando outras unidades da Força Pública da capital paulista e algumas unidades do interior. Ao fim da greve, 513 policiais foram indiciados em inquérito conduzido por um delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

O texto de André Rosemberg busca, de um lado, investigar as razões mais imediatas da greve, fundamentalmente a recusa da Assembleia Legislativa em conceder a paridade salarial dos milicianos com seus homólogos da Polícia Civil e o restante do funcionalismo público. Mas o autor procura outras motivações que não apenas as corporativas – além do aumento de salário, melhores condições de trabalho –, principalmente ideológicas. Em um contexto de breve experiência democrática, os anos posteriores ao Estado Novo e imediatamente anteriores ao golpe civil militar de 1964, mas também de acirramento de projetos antagônicos, de acordo com Rosemberg a greve de 61 mostra, em diferentes graus, a politização da Força Pública paulista, desafiando os estatutos da Lei de Segurança Nacional e o Regulamento Disciplinar e subvertendo as noções de hierarquia.

Fora do dossiê, outros três artigos integram esse volume da Revista História: Questões & Debates. Em seu texto, Norberto Tiago Gonçalves Ferraz analisa a irmandade de Santa Cruz, fundada no século XVI, e uma das mais importantes da cidade de Braga, em Portugal. No século XVIII, recorte temporal analisado pelo autor, a irmandade estava direcionada principalmente ao cuidado dos confrades defuntos, prestando assistência aos seus membros por ocasião da sua agonia e morte, acompanhando-os à sepultura e celebrando missas por suas almas. Na sequência, o trabalho de Eduardo Roberto Jordão Knack objetiva analisar as relações entre industrialização e urbanização em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, durante as comemorações do centenário do município, em 1957. Entre outras coisas, o texto procura discutir e elucidar as relações entre o desenvolvimento econômico e o campo do imaginário, para investigar a historicidade das visões e projetos para o futuro da cidade que marcaram seu centenário, além de buscar entender as consequências desse processo para economia não apenas de Passo Fundo, mas da região norte do estado. Encerra esse número o artigo de Washington Santos Nascimento, que procura analisar as representações dos assimilados, mulheres e homens do mato nas obras produzidas pelo escritor angolano Luandino Vieira, entre os anos de 1950 e 1970. O objetivo é entender, a partir da leitura de alguns contos e romances, escritos em sua maioria nos anos de 1960, de que forma o autor delineia uma identidade nacional para o angolano.

Boa leitura!

Marcos Luiz Bretas

Clóvis Gruner

(Organizadores)

BRETAS, Marcos Luiz; GRUNER, Clóvis. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.64, n.1, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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