Bexiga em três tempos. Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável | Nadia Somekh e José Geraldo Simões Júnior

O Bexiga, coração da Bela Vista, se acomoda em um pequeno vale que acolhe as águas de chuva que descem da encosta da avenida Paulista e do Morro dos Ingleses para desembocar na avenida 9 de Julho, lugar de direito do pequeno rio Saracura. Com platibandas, arcos, frontões, varandas diminutas, paredes desgastadas pelo tempo ou pintadas em cores vibrantes e alegres, o casario alinha-se rente às calçadas das ruas pacatas (1).

Homens consertam automóveis estacionados no meio-fio, mulheres cultivam flores plantadas em vasos dispostos na calçada. Em cômodo da casa aberto para a rua, muitos trabalham: mecânicos, manicures, barbeiros, cabelereiras, sapateiros, carpinteiros, serralheiros, costureiras, alfaiates, ofícios extintos em outros lugares da cidade. Atividades mais afamadas – bares, restaurantes, cantinas e padarias – disputam o endereço com depósitos de material de construção e ferro-velho, frequentados por carroças que trafegam com anacrônica lentidão pelas ruas estreitas da localidade. Leia Mais

Lelé: diálogos com Neutra e Prouvé | André Marques

Um novo livro é sempre motivo para comemorar. Em tempos de cerco ferrenho à área da cultura, torna-se motivo para a reflexão. O livro que aqui se apresenta – Lelé: diálogos com Neutra e Prouvé, de André Marques – é fruto de pesquisa desenvolvida na FAU Mackenzie (1), que resultou em dissertação de mestrado (2). Coube a mim o privilégio de acompanhar sua confecção, oficialmente como orientador, na prática como interlocutor entusiasmado pelo tema. Os diálogos imaginários travados por João Filgueiras Lima com Richard Neutra e Jean Prouvé refletem a interlocução de bastidores entre pesquisador e orientador, mas também mediações variadas, como a discussão intertextual com outros pesquisadores, o diálogo frequente com o arquiteto transformado em objeto de estudo, o bate-papo descontraído com colegas, o debate apaixonado com os membros da banca de qualificação. Leia Mais

Vilanova Artigas. Casas paulistas 1967-1981 | Marcio Cotrim

Quanto faças, supremamente faze.
Mais vale, se a memoria é quanto temos,
Lembrar muito que pouco,
E se o muito no pouco te é possível,
Mais ampla liberdade de lembrança
Te tornará teu dono
Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis (1)

Existe um difundido gênero da história da arquitetura moderna cuja obsessão fundamental consiste em esforçar-se em descobrir as dívidas, as filiações, as heranças, enfim, tudo o quanto há na obra de seus protagonistas daqueles que viveram antes. Quem participa dele se pergunta quanto há de classicismo em Le Corbusier ou Mies, quanto de neoclassicismo nas arquiteturas modernas latino-americanas, quanto de Gunnar Asplund em Alvar Aalto, quanto de Louis Sullivan em Frank Lloyd Wright, quanto de Wright no primeiro Vilanova Artigas, quanto de Le Corbusier no segundo, e assim sucessivamente. Geralmente, essa estratégia não decepciona seus autores: permite ancorar personagens e objetos em uma história de aparência sólida, satisfazendo estes historiadores, que desfrutam felizes do resultado. Nessa maneira de fazer história, mais próxima da comprovação superficial do que da verdadeira genealogia e recordação respeitosa, os personagens não parecem ser arremessados, como o Angelus Novus de Walter Benjamin, em direção a um futuro incerto, voltando seus olhares para a catástrofe da qual fogem, mas nos são apresentados como lentos caminhantes, incapazes de perder de vista esse passado. Tal modo implacável de ver o que alguma vez foi novo ou inovador como projeção de alguma epopeia pretérita nos furta a outra importante metade, a que nos permite perguntarmos quanto ha via de porvir nessas propostas que a alguns incomodava e a outros preenchia de vertiginoso prazer. Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

Deus criou o homem à sua imagem,
à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou.
Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra”.
Gênesis, 1:27-28

No dia 14 de julho de 2019, quase final da manhã, um pequeno grupo se prepara para se despedir da pousada tornada Casa do Sesc em Paraty durante a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty – Flip (1). As pessoas se encontram no estacionamento, com os porta-malas dos três veículos abertos sendo abarrotados de malas, livros e quitutes da cidade. Em um dos automóveis, Laura Vinci e José Miguel Wisnik; no outro, Abilio Guerra, Silvana Romano, Marcelo Ferraz e Isa Grinspun Ferraz. Na van, o líder indígena Ailton Krenak, acompanhado de esposa e casal de filhos, mais os anfitriões, um casal com aparência estrangeira, com respectivo filho. A conversa começa como despedida formal de convivas de abrigo e café da manhã, mas se desdobra na última e inesperada conferência do índio na Flip, uma apresentação para poucos, os afortunados presentes.

Ailton Krenak carrega na alcunha o nome de seu povo, que habita a região do Vale do Rio Doce, território que foi encolhendo ao longo do tempo na velocidade inversa e proporcional a do processo de ampliação da atividade mineradora. “Encolhimento” é um eufemismo para substantivos mais adequados à situação: “roubo”, “expropriação” ou “sequestro”, considerando que para os povos nativos da terra brasilis os elementos da natureza são gentes de seu convívio. De forma mais direta, “latrocínio”, crime hediondo quando se mata para roubar. Como se trata de um coletivo, estamos diante do “genocídio” de povos nativos para se apropriar de suas terras. Leia Mais