História da Ciência e história do livro / Circumscribere / 2015

Quando a historiadora americana Elizabeth Eisenstein publicou, em 1979, sua obra magistral, polêmica e incontornável, The Printing Press as an Agent of Change, [1] a história do livro (e da leitura) ainda lutava para se estabelecer plenamente como disciplina claramente reconhecida no vasto campo dos estudos históricos, mesmo que, desde o fim da década de 1950, pelo menos, já viesse ganhando contornos independentes da antiga tradição da ‘bibliografia’, sobretudo na França, com o impulso fundamental de Lucien Febvre e seus discípulos.[2] À altura da publicação do trabalho de Eisenstein, por outro lado, a história das ciências já era uma disciplina bem estabelecida no panorama acadêmico europeu e norteamericano, e estava conquistando espaços profissionais também na América Latina (aqui principalmente pelo viés do estudo das instituições científicas). De todo modo, ainda fortemente filiada às tradições da história das ideias, a história das ciências que se praticava naquele momento fazia, de maneira geral, uso do livro ‘científico’ [3] do passado estritamente como fonte portadora de conteúdos conceituais, cuja análise seria o objetivo maior da disciplina. Nesse sentido, a forma impressa pouco importava, pois a ênfase idealista no conteúdo poderia se realizar também se o suporte fosse manuscrito (como é o caso, por exemplo, das fontes para a história das ciências medievais, quando não editadas, ou de escritos e correspondências não publicados das gentes de ciência de séculos posteriores), ou simplesmente edições e reedições impressas.

Ao lado da eleição dos conteúdos conceituais como objeto privilegiado de investigação pelo historiador das ciências, em que a análise daquilo que estava escrito nos livros – e não dos livros em si – desempenhava papel sem dúvida central, naqueles fins da década de 1970 a única opinião mais genérica sobre a relevância do aparecimento da imprensa para a conformação das ‘ciências modernas’ era de caráter negativo: figuras fundadoras da disciplina, como Georges Sarton e Lynn Thorndike,[4] já haviam expresso havia muito tempo o veredito de que, nos séculos XV e XVI ao menos, a tipografia estivera a serviço da difusão, justamente, das obras ‘erradas’, por conta das frequentes associações entre humanistas e impressores. Assim, em vez de se imprimirem livros que carregassem o que eles viam como a verdadeira ‘nova ciência’, que lutava para se estabelecer, a Europa teria sido inundada por edições de clássicos das antigas autoridades, cujo conteúdo era justamente o que se impunha superar. De todo modo, isso não seria mais que um acidente externo, que não deveria desviar a atenção dos historiadores do seu pretenso verdadeiro objeto: o conteúdo dos livros (ou dos livros ‘certos’).

Por seu turno, a história do livro, em suas primeiras grandes realizações – e estabelecendo um padrão que permanece dominante –, estava pouco interessada pelo impresso científico enquanto gênero com alguma característica digna de atenção particular. De fato, as problemáticas que se impunham para o campo giravam em torno de outros gêneros e questões: a formação de públicos leitores para obras literárias e dramáticas, a renovação das tradições clássicas (precisamente pela edição de antigas autoridades), o surgimento da edição ‘popular’, as transformações nas práticas de erudição engendradas pela leitura paralela de várias obras, a imprensa como forma de propaganda política e confessional ou a estrutura econômica geral do mundo do livro, para ficarmos em apenas alguns exemplos destacados.[5]

Assim, há razões fortes para suspeitarmos que, em fins da década de 1970, a história da ciência e a história do livro eram campos que pareciam não ter nada de muito consequente a dizer um ao outro – ou, mais precisamente, suas relações não seriam mais que meramente casuais ou incidentais. De maneira muito incisiva, Elizabeth Eisenstein propôs justamente o contrário. Convencida pelo argumento parcialmente devido a Marshall McLuhan, sobre o aparecimento de uma ‘cultura tipográfica’ como condição constitutiva da modernidade, mas também certa do papel fundamental das ciências no surgimento do ‘mundo moderno’ (pagando aqui tributo a Herbert Butterfield), ela uniu ambas em uma narrativa de vastas consequências. Seu argumento chegou muito perto de afirmar uma relação de causalidade entre o surgimento da imprensa de tipos móveis, no norte da Europa em meados do século XV, e grandes movimentos como o Renascimento, a Reforma, e, o que mais nos interessa aqui, aquilo que então genericamente se reconhecia como a ‘Revolução Científica’ dos séculos XVI e XVII. Longe de ter estado a serviço apenas da edição dos clássicos da antiga tradição de investigação da natureza – como os livros de Aristóteles sobre fenômenos naturais, as obras enciclopédicas de Plínio ou Isidoro de Sevilha, a cosmografia de Ptolomeu, a medicina de Hipócrates e Galeno –, a tipografia desde cedo se engajara na produção de obras novas, e, para além disso, criara uma cultura de rápida difusão de ideias, em suporte estável e largamente acessível, junto com um convite à polêmica, à dúvida e ao debate, traços que seriam fundamentais na constituição das ciências modernas. Em uma palavra, ao alterar com velocidade impressionante todos os aspectos da clássica tríade de ‘produção, circulação e consumo’ dos produtos culturais – neste caso, científicos –, a imprensa teria promovido as condições para o surgimento e a manutenção da dita Revolução Científica. Em alguns dos melhores momentos dos livro, Eisenstein mostra justamente como homens de ciência como o cosmógrafo germânico Johannes Müller, dito Regiomontanus, já no século XV, ou o famoso astrônomo dinamarquês Tycho Brahe, na segunda metade do XVI, envolveram-se eles próprios em empresas editoriais de fôlego, estabeleceram oficinas para a impressão de suas obras, e procuraram controlar todas as etapas do processo em benefício da difusão de suas ideias.

As críticas ao trabalho de Eisenstein, apresentadas desde muito cedo por historiadores da cultura, porém, só se avolumaram ao longo dos anos: [6 ]foram apontados os excessos da ideia de cultura tipográfica como destruidora da comunicação manuscrita, oral, e, até certo ponto, visual; a desatenção às dificuldades práticas da difusão desimpedida do impresso, em uma Europa fraturada por clivagens de todos os tipos; a crença infundada na pretensa estabilidade dos conteúdos apresentados nesse suporte; os inúmeros problemas associados à recepção e à leitura, que não são de maneira alguma uniformes ao longo do espaço e do tempo; a necessidade de conceder agência a muitos outros atores além daqueles que ela reconhece (autor, impressor e leitor), como tipógrafos, revisores, fundidores de tipos, livreiros – e a própria complexidade das categorias centrais de ‘autoria’ e ‘leitura’, que ela pouco problematiza. Não obstante, o reconhecimento pioneiro de Eisenstein do livro científico impresso como parte de sistemas sociais e culturais historicamente enraizados, e não apenas portador de conteúdos passíveis de análise textual / conceitual, abriu frentes de investigação essenciais para a história das ciências tal como praticada a partir de então.

De fato, isso veio ao encontro de movimentos que já se esboçavam na disciplina desde meados da década de 1960, em grande parte tributários da recepção da obra seminal de Thomas Kuhn. Indo além da concepção então corrente de história das ciências como história das ideias científicas (e de história das ideias como, fundamentalmente, uma modalidade da análise de textos), consolidou-se a opinião de que as ciências – inclusive seus conceitos – devem ser pensadas como práticas culturais historicamente situadas. O campo se abriu cada vez mais à análise da cultura material, dos instrumentos, da organização e funcionamento dos laboratórios, das instituições que disciplinaram e deram suporte à investigação da natureza, da importância do mecenato e do mercado, das controvérsias, dos sistemas de ensino e mecanismos de popularização, e, o mais importante para nós aqui, reconheceu a necessidade de olhar para o livro impresso não apenas do ponto de vista estático de um pretenso texto ‘definitivo’, mas sim como peça dinâmica de um sistema muito complexo de produção, circulação e consumo – justamente o que a história do livro tem a oferecer. [7]

Assim, não se trata mais somente da análise textual dos livros, esses veículos sem dúvida fundamentais de que se serviram às gentes de ciência a partir do século XV para a expressão de suas ideias e o contato com as de outros, mas da incorporação de novas questões ao rol das preocupações dos historiadores das ciências: quais livros eram impressos, onde, por que e por quem? Quem os financiava? Quem os comprava, e, sobretudo, quem os lia, e como eles eram lidos, anotados, citados e classificados? Qual era o papel dos múltiplos agentes envolvidos em sua produção e difusão? Quando e onde faz sentido falar em ‘autoria’ científica? Como os livros são recebidos e geram outros livros, epítomes, comentários, séries? Como, em sua materialidade, os livros de ciência se relacionaram com a arte tipográfica e lhe impuseram desafios técnicos (visíveis no uso de caracteres matemáticos, na diagramação, sistemas de referenciamento etc.)? Como, para muito além do texto, o mundo do impresso mobilizou o uso de imagens e gravados igualmente fundamentais para a transmissão de ideias e a persuasão dos leitores, rompendo ou continuando venerandas tradições dos manuscritos? Como a profusão de impressos científicos foi afetada pelos sistemas de controle econômico da edição, pela ascensão dos privilégios e direitos de impressão, pelos mecanismos de censura? Qual foi o status do livro científico nas bibliotecas e coleções, e como sua presença nelas abre possibilidades de compreender o status das próprias ciências?[8]

Evidentemente, nem esta apresentação, nem os três artigos coligidos neste mini-dossiê têm a pretensão de responder a essa quantidade enorme de perguntas (às quais poderíamos acrescentar muitas outras mais), ou tampouco de oferecer uma síntese do campo híbrido que está se formando pelo encontro entre a história da ciência e a história do livro. Antes, nosso desejo é oferecer uma primeira demonstração de como esse campo também tem vicejado no Brasil, e com objetos de estudo variados.

Abrindo a seleção, temos um trabalho de Maria Helena Roxo Beltran, que é seguramente a pesquisadora que implantou entre nós o interesse por essa rica interface entre a história do livro e da ciência, produzindo uma já vasta série de estudos sobre os livros científicos como objetos singulares. Na parte inicial de seu artigo, Beltran apresenta uma breve síntese da formação desse campo interdisciplinar, em alguns aspectos assemelhada a esta, mas privilegiando duas questões que têm sido largamente exploradas em seus numerosos estudos: o problema da continuidade ou da ruptura entre manuscritos e livros, do ponto de vista da própria organização material (o que se conhece como mise en page), e, particularmente, a investigação do papel das imagens nos livros científicos impressos do século XVI, sem descuidar de refletir sobre aquela mesma questão de continuidade ou ruptura entre o mundo da letra de mão e o da letra de molde no âmbito dos usos da iconografia. É justamente sobre a temática das imagens que a autora se detém na segunda parte do artigo, descortinando, a partir de casos cuidadosamente selecionados (um livro sobre a arte da destilação, dois de história natural e um sobre as artes dos metais), suas inesgotáveis possibilidades investigativas: entre outras observações preciosas, Beltran indica como as imagens participam da estrutura retórica das obras, como portam uma epistemologia própria (e, poderíamos acrescentar, uma pedagogia também, na medida em que educam os olhares dos leitores), e como elas se reciclam e migram entre as páginas de um mesmo livro e de livros diferentes. Seu artigo se encerra com um convite à reflexão necessária sobre o status da visualidade contemporânea, em tempos de incerteza sobre o futuro do impresso e sobre a ocorrência em curso, ou não, de uma transformação comunicacional momentosa como foi o advento da tipografia.

Movemo-nos em seguida para um detalhado estudo de caso apresentado por Fabiano Cataldo de Azevedo. Seu trabalho investiga o processo de formação daquela que tem sido considerada a primeira biblioteca pública ‘moderna’ do Brasil, estabelecida em Salvador, em 1811. Após descrever minuciosamente as dinâmicas sociais envolvidas na criação da chamada Livraria Pública da Bahia, Azevedo se concentra no exame de dois catálogos do acervo da biblioteca, um impresso e um manuscrito, ambos provavelmente datados de 1818 (o estado atual do conhecimento não permite certeza quanto à data do manuscrito). Ele nos mostra como, de um total de 1.980 títulos que devem ter pertencido à coleção da biblioteca, um número nada desprezível de 57 era de obras médicas, escritas em latim, francês, português e inglês, muitas bastante recentes. Entre as diversas possibilidades de investigação abertas pelo artigo, Azevedo chama a atenção para a origem desse acervo considerável no próprio processo de criação da Livraria Pública, que envolveu doações de membros da elite baiana de princípios do século XIX, incluindo médicos destacados. Os títulos permitem assim acessarmos aspectos importantes da prática médica no ocaso do antigo sistema colonial na América Portuguesa, bem como a própria formação dos médicos baianos, tendo em vista a presença de alguns no currículo de medicina da Universidade de Coimbra (cabendo investigar outros importantes centros irradiadores da formação médica na época, como seria o caso de Londres ou Montpellier, além da notável ausência de obras em alemão). Azevedo ainda levanta o problema fundamental da classificação das obras de medicina que identificou nos catálogos da biblioteca baiana, tema caríssimo tanto à história da ciência quanto à história do livro (ou, mais especificamente, das bibliotecas), demonstrando mais uma vez a riqueza da fertilização cruzada entre os campos.

Finalmente, Rogério Monteiro de Siqueira considera, em seu artigo, alguns aspectos da riquíssima história editorial do projeto monumental do matemático Felix Klein (1849- 1925), que vislumbrou a publicação de uma enciclopédia das ciências matemáticas que deveria ser capaz de unificar todo o campo e determinar seu futuro. O projeto, de uma grandiosidade quase impossível, consumiu décadas, mobilizou centenas de matemáticos europeus, e se encerrou, de forma algo melancólica, no terrível decênio de 1930. Siqueira considera especificamente a seção de geometria da enciclopédia de Klein (que consumiu, somente ela, quase cinco mil páginas, escritas por mais de trinta autores), indicando em seu artigo inúmeros caminhos promissores para a investigação interdisciplinar entre história da ciência e história do livro. Ele demonstra, por exemplo, as dificuldades práticas envolvidas na passagem do grande desígnio de Klein para a edição concreta, por conta de necessidades econômicas da casa editora, diferentes ritmos de entrega das entradas pelos matemáticos convidados a contribuir, ou a publicação delas ocasionalmente fora da ordem ‘lógica’ determinada pelo fundador. Siqueira também mostra como essa lógica de classificação das diferentes partes da geometria encontra espelho, por algum tempo, na organização das seções do mais influente jornal de resenhas matemáticas de princípios do século XX (que será transferido da Europa para os Estados justamente nos anos de 1930, ocaso da enciclopédia de Klein, e passará a refletir em sua organização uma nova epistemologia das ciências matemáticas, calcada, obviamente, em novas formas de produção do conhecimento e novas dinâmicas acadêmicas). Notavelmente, o artigo ainda emprega de modo responsável metodologias da bibliometria para investigar o desaparecimento das referências à enciclopédia (e, completaríamos, o desaparecimento do mundo matemático alemão da segunda metade do século XIX, exemplarmente encarnado por Felix Klein) nos principais periódicos da área.

Nossa expectativa com o mini-dossiê que ora convidamos o leitor a percorrer é demonstrar que, felizmente, há muito trabalho pela frente na interface entre a história da ciência e a história do livro, que está deitando raízes tão profundas aqui quanto na comunidade internacional à qual Circumscribere nos conecta. Em uma observação final, mas não menos importante, permito-me usar do discurso em primeira pessoa para agradecer justamente à sua editora, Silvia Waisse, que me deu a oportunidade de usar suas páginas para esta primeira coletânea de trabalhos sobre o tema – e que, com firmeza e paciência, deu-me todo o apoio imaginável para levar a cabo a edição

Notas

1. Elizabeth L. Eisenstein, The Printing Press as an Agent of Change: Communications and Cultural Transformations in Early-modern Europe (Cambridge: Cambridge University Press, 1979). Devo muitas ideias do esboço que se segue, sobre as relações entre a história da ciência e a história do livro, ao excelente trabalho de Henrique Leitão, “O Livro Científico Antigo, Séculos XV e XVI: Notas sobre a Situação Portuguesa,” in O Livro Científico Antigo dos Séculos XV e XVI. Ciências Físico-matemáticas na Biblioteca Nacional. Catálogo de Livros Científicos dos Séculos XV e XVI (Lisboa: Biblioteca Nacional, 2004), 15-53, que, apesar do título, trata de muito mais que a situação portuguesa.

2. Que teve como primeiro resultado notável a obra de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, L’Apparition du Livre (Paris: Albin Michel, 1958).

3. Aqui chamaremos de ‘livro científico’ qualquer impresso que, por seu conteúdo, possa ser considerado pelo historiador da ciência como objeto de atenção. É evidente que o termo ‘científico’ é, em si, anacrônico – mas, na mesma linha, o próprio nome da disciplina ‘história da ciência’ também deveria ser considerado assim. Uma massa muito heterogênea de materiais pode ser considerada como livro científico, incluindo obras sobre assuntos que hoje não se reconhecem como tais, mas que ainda assim interessam à disciplina. A opção que às vezes se apresenta, de falar em ‘filosofia natural’ em vez de ‘ciência’, é totalmente insatisfatória, por representar anacronismo de ordem mais grave: filosofia natural era uma categoria reconhecida por atores históricos até princípios do século XIX, e não contempla inúmeros saberes que são do nosso interesse (como a matemática, a mecânica, a medicina, a astrologia, a alquimia…).

4. Ainda que reconheça a imensa importância da tipografia para acelerar a dispersão do conhecimento científico na Europa e adensar debates importantes, Sarton deixa muito clara sua reprovação à maior parte das escolhas dos primeiros impressores; vide, por exemplo, seu “The Scientific Literature Transmitted through the Incunabula,” Osiris 5 (1938): 41-123 e 125-245. Já Thorndike passa um julgamento sumário: as primeiras décadas da imprensa testemunharam uma verdadeira ‘inundação’ de obras ‘pseudocientíficas’; vide Lynn Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, Vols. V and VI: The Sixteenth Century (New York: Columbia University Press), 5.

5. É notável, por exemplo, que dos 40 capítulos de uma obra como A Companion to the History of the Book, ed. Simon Eliot, & Jonathan Rose (Oxford: Wiley-Blackwell, 2009), que reúne contribuições de eminentes especialistas, nenhum se refira com destaque ao livro científico. Essa é a razão pela qual afirmamos que a falta de interesse pelo material científico é um padrão que permanece dominante no campo da história do livro propriamente.

6. Permanecem penetrantes e contundentes as críticas de Anthony Grafton, “The Importance of Being Printed,” Journal of Interdisciplinary History 11 (1980): 265-86, e Roger Chartier, “L’Ancien régime typographique; réflexions sur quelques travaux récents,” Annales E.S.C. 36 (1981): 191-209, a que se devem somar inúmeros trabalhos posteriores desses dois autores, particularmente do segundo. Do ponto de vista específico da história das ciências, o crítico mais sistemático de Eisenstein tem sido, sem dúvida, Adrian Johns, bastando, no momento, remetermos a seu monumental The Nature of the Book: Print and Knowledge in the Making (Chicago: University of Chicago Press, 1998).

7. Para uma detalhada narrativa do movimento de aproximação entre a história da ciência e a história do livro, acompanhada de profundas reflexões metodológicas, vide Adrian Johns, “Science and the Book in Modern Cultural Historiography,” Studies in History and Philosophy of Science 29 (1998): 167-94.

8. A bibliografia de trabalhos que procuram responder a questões como essas em casos concretos já é vasta demais, mas, ao menos como um excelente ponto de partida, remetemos aos diversos artigos compilados em Marina Frasca-Spada, & Nick Jardine, ed., Books and the Sciences in History (Cambridge: Cambridge University Press, 2000)

Thomás A. S. Haddad – Professor de História da Ciência na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]


HADDAD, Thomás A. S. Diálogos entre a história da ciência e a história do livro: considerações preliminares. Circumscribere, São Paulo, v.15, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Circulação e conformações de saberes no Império português, séculos XVI-XIX / Revista Brasileira de História da Ciência / 2011

Porque os Portugueses, que navegam muita parte do mundo, onde vão nam procurão de saber senam como farão milhor suas mercadorias […] Não são curiosos de saber as cousas que ha na terra, e, se as sabem, nam dizem a quem lhas traz que lhe amostre o arvore, e, se o vêem, nam o compárão a outro arvore nosso, nem proguntao se dá frol ou fruto, e que tal he.

Esta sentença foi estampada em 1563, em Goa, por ninguém menos que Garcia de Orta em seus Colóquios dos simples e drogas he cousas mediçinais da Índia. O conde de Ficalho, editor de Orta para a Academia das Ciências de Lisboa em fins do século XIX, houve por bem reforçar o veredito, anotando no pé da página um comentário seco sobre essa passagem: “Reflexão perfeitamente sentida, e que ainda hoje tem cabimento”. Esse desinteresse, essa falta de curiosidade a respeito das “cousas que há na terra” são parte fundamental da legenda negra que envolveu – e ainda envolve – muito do que já se disse sobre os projetos coloniais dos impérios ibéricos. Os próprios portugueses não fizeram pouca coisa para disseminá-la, e a narrativa da decadência, da superstição religiosa e da irracionalidade se estabeleceu com toda força na época do reformismo ilustrado, acompanhando todo o século XIX e as primeiras décadas do XX.

No Estado Novo salazarista, esboçou-se uma reação. A singularidade da experiência colonial portuguesa foi louvada em múltiplos cantos; sua capacidade de adaptação, seu estar no mundo eminentemente prático e tolerante, sua missão civilizacional foram glorificados. De maneira paradoxal, no entanto, a produção de saberes sobre o Império permaneceu vista como uma excepcionalidade – excepcionalidade de gênios, bem entendido, homens como o próprio Orta, Duarte Pacheco Pereira, D. João de Castro ou Pedro Nunes, em torno dos quais se construiu uma tradição triunfalista e patriótica. Curiosamente, as primeiras reações a essa historiografia, que se começam a esboçar nos estertores do Império Colonial cinco décadas atrás, mantiveram a condição de exceção desses homens do século XVI, e acabaram por reforçar, de certa maneira, a parcela da legenda negra que afirmava que, por centenas de anos, os portugueses sustentaram um Império sobre o qual não se interessaram intelectualmente. Sentença ainda mais forte quando se comparava à experiência do colonialismo neerlandês, francês e inglês do período.

Esse movimento, afastado dos imperativos de certo lusotropicalismo e de ideologias congêneres, teve a salutar consequência de nos chamar a atenção para o papel fundacional da violência e do racismo na conformação da empreitada imperial lusitana por mais de quatrocentos anos, até bem entrado o século XX. Em lugar das narrativas da tolerância e da civilização, temos hoje a consciência aguda do lugar central ocupado pela força bruta em todo esse processo. Terá então Orta sido vindicado, estabelecendo-se que os portugueses só se interessaram por comerciar (inclusive com seres humanos como mercadorias)? Os últimos anos têm indicado que não.

A consciência da lógica econômica e da prática brutal tem convivido com uma percepção cada vez mais consolidada de que instrumentos intelectuais de controle dos espaços, de suas gentes e de sua natureza também foram largamente empregados pelos portugueses, em seu próprio território europeu e em todas as conquistas ultramarinas. Ao contrário do que denunciaram Orta e sucessivas gerações de portugueses, eles foram sim muito curiosos das terras que encontraram, e não só em casos excepcionais. Assim, o estudo da formação de corpos de saberes necessários à constituição da ordem imperial, envolvendo práticas e conhecimentos administrativos, tecnológicos, demográficos e de inventário da natureza, ocupa hoje lugar central no programa de investigação de muitos historiadores da ciência, mas não apenas.

De fato, até meados do século XVII, Portugal tinha sob seu controle a maior e mais extensa rede mundial de portos marítimos e entrepostos comerciais, indo da América do Sul ao Japão, passando pelas duas costas da África, pela Índia e por diversos pontos da Ásia Meridional. Entre os mecanismos de controle dos domínios ultramarinos, a produção de saberes sobre os lugares e sobre os povos teve um lugar de destaque desde os primórdios da expansão marítima e esteve presente no colonialismo até a primeira metade do século XX. Mesmo após a entrada em cena de potências imperiais concorrentes, cosmógrafos, matemáticos, engenheiros, naturalistas, médicos e geógrafos a serviço de Portugal estavam espalhados pelo mundo todo, ao lado de outros agentes sociais como mercadores, missionários, marinheiros, administradores e colonos. Esses atores estiveram envolvidos, desde o século XV, nos mais variados processos de coleta, organização e troca de informações, na forma de saberes sobre o mundo natural e o território, organização social, práticas religiosas, matéria médica e muito mais. Os diversos produtos deste imenso inventário, bem como seus meios de produção, circularam, de forma manuscrita ou impressa, em livros, cartas, memórias, roteiros, mapas e imagens, ou ainda se materializaram em instrumentos e outros artefatos.

A circulação de informações e saberes sobre o Império, dentro dele e através das suas fronteiras, interessa-nos especialmente aqui. Primeiro, cabe investigar as diferentes modalidades em que os próprios saberes se organizaram, sem projetar no passado categorias disciplinares modernas. Como, por exemplo, não desconsiderar o impacto da circulação de informações em forma manuscrita e não impressa durante a Época Moderna. Essas modalidades devem ser estabelecidas tendo-se em vista seu lugar na estrutura das lógicas imperiais que se sucederam e às vezes coexistiram, e devem ser pensadas em situações históricas concretas. A dimensão complementar é o estudo do conteúdo desses corpos de conhecimento, os usos que lhes foram dados e seu estatuto comparativamente a saberes da mesma natureza produzidos por outros atores. É então que se impõe a análise das formas de circulação: público, suportes materiais, obstáculos e alcance. Os hitoriadores das ciências têm reconhecido cada vez mais que a circulação é um processo ativo em que o conhecimento é muitas vezes transformado, ressignificado e “universalizado”, a partir de sua ancoragem sempre local na incepção. As ciências modernas, longe de serem uma dádiva de algumas pessoas e instituições da Europa Ocidental ao mundo, são fruto de processos circulatórios em diversas escalas – e a do Império Português é forçosamente uma delas.

Os artigos aqui reunidos pretendem, a partir de casos específicos, analisar saberes, ciências e práticas culturais que deram lastro aos processos imperiais de controle e transmissão a longa distância, tais como evidenciados nas formas de intercâmbio, nos objetos e nos mecanismos de visibilidade e comunicação empregados na circulação do conhecimento sobre o Império Português, ao longo de alguns séculos de sua existência. Outro eixo de reflexão é a própria relação entre os saberes e o modelo imperial português, com atenção especial aos processos de coleta, formalização e disseminação do conhecimento adquirido nas possessões ultramarinas e no Reino. Investigam ainda quais os aspectos relevantes da interação entre “eruditos” e comunidades ou informantes locais, quais eram os mecanismos de difusão e legitimação do conhecimento construído em situações de contato cultural e quais os efeitos da competição e colaboração intra- e inter-imperiais na conformação dos saberes em circulação.

Abrimos o dossiê com o artigo de Lorelai Kury, A ciência útil em O patriota (Rio de Janeiro, 1813-1814). O texto nos convida a refletir sobre as caracterísitcas do Ilumismo luso-brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao papel da imprensa na difusão não apenas das ideias, mas também como meio de propagar as novas formas de aproveitamento dos recursos naturais e as inovações técnicas que deveriam auxiliar o trabalho. Visto como um movimento reformador, o Iluminismo, conforme apresentado por Lorelai Kury, “centrou suas propostas na racionalização do uso da terra, na busca de produtos agrícolas e de origem animal alternativos, na descrição e quantificação das populações e suas atividades, na listagem, classificação e utilização dos chamados três reinos da natureza.”.

Tema caro à historiografia das ciências e da tecnologia no Brasil e em Portugal, as Viagens Filosóficas, ocorridas durante a Ilustração, são aqui tratadas por Ermelinda Moutinho Pataca do ponto de vista de sua estruturação, teórica e prática, explorando as etapas de preparação, execução e sistematização dos dados coletados nos vários pontos do Império, processo fomentado pelo Estado e organizado a partir de instituições situadas em Lisboa, em especial o Real Museu e Jardim Botânico do Real Palácio da Ajuda. Em seu artigo, “Coletar, preparar, remeter, transportar – práticas de História Natural nas viagens filosóficas portuguesas (1777-1808)”, a autora nos mostrou como, embora os resultados não tenham sido publicados, o empreendimento não pode ser considerado um “fracasso”, uma vez que as “práticas”, “técnicas” e “representações” resultantes de todo o processo, inclusive a formação de uma rede de informações que surgiu durante a preparação e realização das viagens científicas no Império português.

O artigo seguinte, Censura e mercê: os pedidos de leitura e posse de livros proibidos em Portugal no século XVIII, traz uma contribuição que pode nos levar a novas interpretações sobre a Ilustração luso-brasileira, momento bastante estudado por historiadores da Ciência e da Tecnologia entre nós. Ao analisar os pedidos de licença enviados por homens públicos, professores e clérigos aos órgãos censores de Portugal, Cláudio DeNipoti e Thais Nivea de Lima e Fonseca nos mostram como esta elite letrada tinha acesso à posse de livros que tratavam de temas “perigosos” escritos pelos filósofos ilustrados de várias partes da Europa que constavam nas listas das leituras proibidas, demonstando, assim, como havia circulação de saberes e ideias, ainda que com acesso restrito, obedecendo à lógica do privilégio da sociedade do Antigo Regime. Entre os livros, havia obras e temas importantes da cultura científica da Ilustração.

Fechamos este dossiê com o texto de Thomás Haddad que nos leva ao período anterior ao Iluminismo e ao Império português observado pelo holandês Jan Huygen van Linschoten (c. 1563-1611), em seu livro Itinerário, publicado em 1596. O livro, além de conter roteiros de viagem, ficou famoso por tratar dos portugueses no Oriente. Além de uma apresentação sumária dos conteúdos tradicionais do “conhecimento colonial” que se constitui junto com a expansão europeia, Thomás Haddad explora, sobretudo, os aspectos de uma “etnografia implícita”, refletindo sobre o tema da miscigenação, tão caro à compreensão do império português e visto com olhos críticos pelo observador batavo.

Por tudo isto, vemos o conjunto de artigos aqui publicados não como ponto de chegada, mas, sobretudo, como estímulo a novas pesquisas e questionamentos que se atenham ao papel da produção de saberes articulados ao processo de expansão portuguesa desde os seus primórdios. Acreditamos que historiadores da ciência podem contribuir ainda muito para o estabelecimento de novas investigações sobre esta temática.

Heloisa Meireles Gesteira – Museu de Astronomia e Ciências Afins. MCTI PPGHIS-UNIRIO.

Thomás A. S. Haddad – Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. EACH / USP


GESTEIRA, Heloisa Meireles; HADDAD, Thomás A. S. Apresentação. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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