Haji. The suicidal State in Somalia: the rise and fall of the Siad Barre Regime, 1969-1991 | Mohamed Ingiriis

A obra apresentada por Mohamed Ingiriis, pesquisador somali que atualmente está finalizando seu doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Oxford, é resultado de uma minuciosa pesquisa sobre o governo de Siad Barre. O trabalho reflete muito da trajetória acadêmica do autor, que tem seu campo de pesquisa concentrado nos estudos políticos sobre a Somália, apresentando uma abordagem focada na história da formação do Estado somali, perpassando a sociedade e cultura local. Sua pesquisa está ligada ao Centro de Liderança Africana (CLA) da Universidade de Oxford. O historiador somali é chefe de um projeto de pesquisa de construção da paz, dirigido pelo CLA, além ser também um especialista em Somália/Somalilândia nos temas relacionados à democracia, do Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, Suécia. Ademais, Ingiriis tem uma série de trabalhos publicados que versam os temas já abordados e que questionam a sociedade patriarcal na Somália, a relevância da mulher nesta sociedade, seu papel e a relação com os clãs.

Para expor sua proposta de análise do sistema político da Somália, no período em que Siad Barre governou (1969-1991), Ingiriis aponta que a base de sua pesquisa foram documentos do Estado, notícias de jornais, sobretudo, africanos, mas também telefonemas para indivíduos que estiveram ligados ao governo de Barre. As fontes que compõe a obra são vastas e retratam uma minuciosa pesquisa, que traz muitos elementos ainda pouco abordados sobre este período no país africano. Neste sentido, o autor afirma que seu objetivo neste trabalho é mapear e discutir como Siad Barre chegou ao poder, como ele construiu seu regime, apontando quem foram os agentes envolvidos nesta escalada ao poder e, essencialmente, qual o tamanho do legado do ex-líder somali e sua contribuição para as guerras clânicas que a Somália enfrenta ainda nos dias atuais. A obra esta dividida em cinco partes com onze capítulos, em uma narrativa que constrói uma sequência histórica dos eventos que permearam o país durante o regime militar e se encerra com uma conclusão que sumariza os argumentos e observações da obra. Ao longo dos capítulos o autor procura associar a narrativa histórica à série de fontes presentes no livro, buscando assim lançar as bases para a compreensão deste período aliando uma perspectiva crítica a historiografia sobre o tema.

A época observada compõe vinte e dois anos da história do país do chifre da África, e para Ingiriis modelou os conflitos que a Somália enfrenta ainda hoje. Valendo-se de modelos heurísticos de análise dos pesquisadores africanos Achille Mbembe [2] e Mahamood Mamdani [3] , o autor constrói uma narrativa histórica linear, que percorre a queda do governo civil em 1969, com um golpe de Estado dado pelo General Siad Barre, chegando até a fuga do líder em janeiro de 1991 da capital Mogadíscio. Focando, sobretudo, nos aspectos políticos da história da Somália, o pesquisador somali discute como este governo ditatorial configurou uma política baseada no clânismo e nas negociações com a URSS e com os Estados Unidos. Segundo o historiador somali, a União Soviética tem protagonismo na formação da Somália como uma República Democrática que se declarava socialista e era governada por um partido comunista liderado por Barre. No entanto, ao longo da obra ficam claras as contradições deste novo sistema político – tendo em vista que a Somália até 1969 adotava um sistema de eleições diretas para o parlamento e para os cargos de Primeiro Ministro e Presidente – ele assume, como frisa Ingiriis, uma posição comunista, baseada nos textos de Marx, mas também leva os escritos do Corão em consideração, respeitando uma série de costumes islâmicos que entram em contradição com o marxismo. Neste ponto, se expõem as problemáticas entorno da adesão dos pressupostos do comunismo soviético, em oposição aos costumes e práticas ligadas às tradições somalis (a forma de organização clânica [4]), sobretudo, a religião islâmica, que é maioria no país e rege muitas práticas sociais e até políticas na Somália.

Problematizar os desenhos do regime de Siad Barre é o ponto central do texto que apresenta uma quebra com uma série de trabalhos elaborados por historiadores sobre a Somália, particularmente, o período do regime do General Barre. Há muitas dissonâncias entre as pesquisas produzidas, alguns trabalhos como de Alice Hashim (HASHIM, 1997) exprimem a ideia de que o governo iniciado com o golpe de 1969 se tornou, gradualmente, fascista, pelas medidas que implementou e com o progresso do sufocamento da liberdade. Ahmed Samatar (SAMATAR, 1995), notório pesquisador do tema, declarou, em seus trabalhos, que o regime tinha poucas ideias socialistas e uma fraca ideologia. Conclusão que não foge à argumentação do historiador somali, que apresenta incongruências do regime quanto a sua posição ideológica. Entretanto, Ioan Lewis (LEWIS, 2008) reconhecido por suas pesquisas no chifre da África, especialmente, na Somália, argumenta em suas obras que o governo do ex-líder somali foi um período conturbado, porém que não é a raiz dos conflitos clãnicos enfrentados na região desde 1991. Desta forma, o antropólogo inglês vai à contramão da tese que Ingiriis apresenta, considerando que para ele é no governo de Barre que se perpetuam os privilégios que os grupos clânicos ligados ao governo vão desfrutar. Esta prática, de permitir que os clãs ligados à família do General Barre obtivessem uma série de regalias econômicas e políticas e ainda, desfrutassem de uma certa imunidade política, é a chave para, o historiador somali, de como compreender de que maneira, após a queda do regime, o país fragmentou-se em regiões lideradas pelos chefes de clãs.

Com efeito, Ingiriis traz à tona uma discussão ainda pouco elaborada no meio acadêmico, sobre as causas do “colapso” do Estado da Somália em 1991. Tendo em vista, que poucos trabalhos foram publicados após o fim do regime, muitas pesquisas foram elaboradas ainda na época que Barre governava o país, fato que tem relevância na análise, pois muitas fontes sobre o período só se tornaram acessíveis recentemente. É neste ponto, que o livro The suicidal state in Somalia: The rise and fall of the Siad Barre Regime afirma sua relevância, pois aponta muitos elementos significativos e desconhecidos, porque expõe como membros do governo viram ou, ao menos, afirmaram ver as medidas impostas e as consequências que determinadas atitudes do ex-líder somali teve para o país.

O autor evoca ainda, algumas discussões e comparações com outros líderes africanos, como: Mobuto Sese Seko ex-ditador do antigo Zaire e Idi Amin ex-ditador de Uganda, apontando a similaridade de determinados comportamentos e alianças, destes dirigentes com Siad Barre, que inclusive teve relações próximas com ambos. De forma relevante, Ingiriis tenta demonstrar como o comportamento destes líderes militares configura um núcleo de estudos importantes para compreender as ditaduras na África e os legados que estas deixaram. Como já afirmado, o historiador somali vai destacar a relevância que as relações com Estados Unidos e URSS, tiveram tanto na Somália como nos países dos líderes citados, apresentando uma análise comparativa do comportamento das duas potências mundiais e como elas, se valendo de novas alianças modificaram o cenário de algumas regiões da África, principalmente, na década de 70 e 80.

O trabalho permeia toda a vida política da Somália nos vinte e dois anos de administração do General Siad Barre, não obstante, o autor constrói a história da Somália tendo como pilar central a história do Estado. É nesse sentido, que questionamos a centralidade deste Estado como formador de um determinado tipo de história. Esta discussão, em torno de uma história centrada no Estado tem sua relevância, sobretudo, na escrita da história do continente africano, porque carrega consigo uma série de “valores” da escrita da história ocidental e na forma de organização política predominante no ocidente. Sendo assim, quando questionamos a posição do autor em escrever um texto focado na história política do país, estamos questionando a validade da formação de um Estado na Somália. Pensando no ponto levantado por Jean François Bayart (BAYART, 2009), de que os processos políticos africanos não necessariamente, independente das influências externas, deveriam terminar na conformação do Estado, argumentamos que focar a pesquisa apenas nas estruturas políticas do regime pode possibilitar que questões culturais e sociais estejam à margem das análises sobre a história da Somália. Relegando, desta forma, um papel primordial ao Estado e justificando a necessidade de uma organização política nos moldes de Estado europeu, herdado do período de colonização.

Revelando uma observação acurada dos eventos políticos que permeiam a Somália de Siad Barre The suicidal state in Somalia: The rise and fall of the Siad Barre Regime, compõe o panorama de trabalhos que problematizam a instituição e a permanência de uma determinada elite política, especialmente, no que tange a inserção dos militares na liderança de governos africanos. Focando na figura de um líder que se constrói enquanto protetor, carismático e onipresente, Ingiriiis levanta questões de grande pertinência, já que ainda hoje a Somália sofre as consequências de um governo que primou pela permanência através de privilégios e violências institucionais.

Notas

2. A análise oferecida por Achille Mbmebe na obra On the postcolony, é largamente utilizada por Mohamed Ingiriis no sentindo de apontar que um poder de inspiração colonial estava presente em muitos ambientes da África póscolonial. O filósofo camaronês assinala o conceito de commandent utilizado pelo autor somali para abordar a ideia de que Siad Barre havia sido um militar treinado pelo colonialismo que após assumir o governo continuou a perpetuar práticas colonialistas. Cf. MBEMBE, Achille. On the postcolony. California: University of California Press, 2001.

3. Mahmood Mamdani oferece uma modelo de análise que foca no Estado na África, o autor ugandense aponta para a ideia de que os Estados pós-coloniais africanos não são nada mais que uma extensão do controle colonial. É neste sentido que Ingiriis se vale do seu modelo heurístico para problematizar a conformação e consolidação do Estado na Somália independente. Cf. MAMDANI, Mahamood. Darle sentido histórico a la violencia política en el África poscolonial. In: ISTOR, Año IV, Nº 14, 2003, pp. 48-68.

4. A designação de grupo clânico, esta ligada a tradicional divisão somali, na qual indivíduos com ancestrais em comum ligam-se uns aos outros pelos laços familiares. A Somália atualmente possui seis grandes famílias clânicas, estas tem subdivisões internas, que dão origem a sub-clãs. LEWIS, Ioan. Understanding Somalia and Somaliland: Culture. History, Society. New York: Columbia University Press, 2008. 275p.

Referências

BAYART, Jean-François. The State in Africa: the politics of the Belly. Cambridge Press, 2009, pp. 1-40.

HASHIM, Alice Bettis. The fallen state: Dissonance, dictatorship and death in Somalia. London: University Press of America, 1997. 168 p.

LEWIS, Ioan. Understanding Somalia and Somaliland: Culture. History, Society. New York: Columbia University Press, 2008. 275p.

SAMATAR, Ahmed; LYONS, Terrence. Somalia: State Collapse, Multilateral Intervention, and Strategies for Political Reconstruction. New York: Brookings Institution Press, 1995. 112p.

Mariana Rupprecht Zablonsky – Graduanda do 8º período de História – Licenciatura e Bacharelado na UFPR. Bolsista PIBID e orientanda do Prof. Dr. Hector Hernandez Guerra. Link do Lattes http://lattes.cnpq.br/5021751592431335 .


INGIRIIS, Mohamed. Haji. The suicidal State in Somalia: the rise and fall of the Siad Barre Regime, 1969- 1991. London: University Press of America, 2016. Resenha de: ZABLONSKY, Mariana Rupprecht. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.2, p.129-136, 2016. Acessar publicação original [DR]