História, Arqueologia e Ontologia / Oficina do Historiador / 2020

Esta introdução tem como objetivo apresentar e contextualizar os artigos que compõem este dossiê sobre História, Arqueologia e Ontologia, que reúne estudos que versam sobre os materiais e os seus múltiplos papéis sociais no tempo, com o foco estabelecido, portanto, nas disciplinas de História, Arqueologia e as questões ontológicas da Filosofia.

A atividade social, por mais abstrato que seu estudo e manipulação possa ser, é desempenhada e embasada sobre a sensibilidade da existência física e consequente relação com outras formas físicas estabelecidas – o que podemos conceituar, com a devida flexibilidade, como “coisas”.

A partir deste largo escopo, diversas abordagens se desenham, dado que o espírito do tempo exerce sua força incomensurável sobre tudo o que há no mundo. Isso nos obriga a reconsiderar algumas noções tradicionais do pensamento ocidental, onde a História registra a alteração da condição de “sujeito” para “coisa” em eterna atualização, e o resultado dessa atividade fica marcado na matéria humana e não-humana que nos rodeia.

Os estudos aqui reunidos cruzam, portanto, as experiências que pessoas, materiais e coisas atravessaram juntos diante de uma perspectiva crítica sobre a relação “natural” entre essas diferentes entidades que povoam a existência.

Não é surpresa que a Arqueologia é uma disciplina interdisciplinar. Mas o que exatamente isso quer dizer? Sempre foi muito claro para quem a pratica que é necessário deter um tanto do chamado “conhecimento enciclopédico”: noções básicas de Antropologia, Geologia e Geomorfologia, Linguística, Informática, Zoologia, Filosofia, Artes Plásticas, Matemática, Restauro, História, Química e Museologia podem ser necessárias a qualquer momento; tanto em meio aos livros e artefatos dentro de um laboratório, quanto debaixo do sol ou do dossel vegetal num dia de campo.

Há um paradoxo nisso; embora a Arqueologia não seja a única beneficiária da interdisciplinaridade, não é inadequado afirmar que apenas ela depende disso para existir propriamente. Quando recortamos um tema, um período e uma área de pesquisa, também se torna necessário para nós delimitarmos quais empréstimos teóricos e técnicos serão empregados. Por que essa noção não é falsa? Ora, porque sempre que um artefato atinge a condição de evidência – ou seja, quando ele se torna intelectual e materialmente sensível para nós – ele comprova de modo inequívoco que algo aconteceu, algo existe – o quê, exatamente, é o que procuramos descobrir e é para isso que serve o intercâmbio com as outras disciplinas. Desta forma, a conceituação do que é arqueologia pode ser bastante móvel e variar de acordo com a necessidade do contexto; sabemos que estudamos as relações entre as pessoas e as coisas; mas definir quem é quem tem se tornado cada vez mais difícil.

Seja, como enfatiza o sociólogo e economista indiano Arjun Appadurai (1986), estudar a vida social das coisas, ou, como sugere a antropóloga Mary Douglas (2002), parafraseando Claude Lévi-Strauss, que as coisas não apenas têm suas funções, mas, principalmente, são boas para pensar “good for thinking”. Coisas também são objetos biográficos, contam histórias da vida das pessoas, como nos demonstra Janet Hoskins (1998).

“Como andam as coisas?” Uma pergunta que deveria incentivar uma breve conversa entre duas pessoas, colegas de arqueologia, com genuíno interesse sobre como suas pesquisas estão se desenvolvendo. É uma pergunta estranha, as coisas andam, se movimentam, têm vontades próprias – tudo indica que sim. As coisas fazem coisas com a gente, pois, de certa forma, sempre estamos em contato com as coisas, dentro de uma perspectiva, arqueológica ou não. A Arqueologia não pretende se situar como um ponto privilegiado de perspectiva sobre as coisas em si mesmas, senão ser uma das formas possíveis de desvelar quais coisas existem e para quem.

Nessa toada, muitas atividades podem ser arqueológicas, mesmo que não pareçam à primeira vista. Usando um exemplo clássico, a Arqueologia do Saber de Foucault (1972) é mais do que apenas uma metáfora útil. De fato, é promovida uma regressão intelectual que escava um outro tipo de sítio arqueológico e busca um outro tipo de evidência, através de um método especificamente construído para aquilo – muito similar à necessidade que cada sítio arqueológico impõe a quem se interessa em escavá-lo. Claro, os seus artefatos são diferentes de uma Arqueologia “tradicional”; mas o filósofo francês, ao preferir usar o termo “arqueologia”, o fez justamente no sentido de que a noção de “Arqueologia” cria, ou estabelece, artefatos – em seu caso particular, os diferentes discursos da História das ideias:

[…] it’s problem is to define discourses in their specificity; to show in what way the set of rules that they put to operation is irreducible to any other; to follow them the whole length of his exterior ridges, in order to underline them the better. It does not proceed, in slow progression, from the confused field of opinion to the uniqueness of the system or the definitive stability of science; i’ts not a ‘doxology’; but a differential analysis of the modalities of the discourse (FOUCAULT, 1972, p. 139).

Assim, é evidente o favorecimento não apenas de outras histórias, senão, como em nosso caso, de outras Arqueologias. Aqui, diferentes estudos e perspectivas tentam abordar, assim como Foucault, outras espécies de Arqueologia. Algumas são mais tradicionais, enquanto outras favorecem uma distensão similar. Uma observação atenta, contanto, tornará flagrante a ambiguidade em considerar alguns estudos e metodologias aqui presentes como “tradicionais” ou “clássicos”; e outros como “modernos” ou “contemporâneos”: “Jamais fomos modernos”, diria a chamada de Bruno Latour (2013). Como se deve saber, Latour critica a distância construída pelo pensamento ocidental, que relativiza o conhecimento produzido fora das escalas e dos laboratórios que são o belo brasão do fazer científico atual (dos últimos 520 anos). Ao considerar sabiamente que não há apenas um ponto privilegiado de percepção na classificação deste ou daquele mundo, ele crê que:

O balanço deste exame não chega a ser desfavorável. Podemos conservar as Luzes [o Iluminismo e suas reflexões] sem a modernidade, contanto que reintegremos, na Constituição, os objetos das ciências e das técnicas, quase-objetos entre tantos outros, cuja gênese não deve mais ser clandestina, mas antes acompanhada passo a passo, dos acontecimentos quentes que os originam até esse resfriamento progressivo que os transforma em essências da natureza ou sociedade (LATOUR, 2013, p. 133).

Essa simetria não deve se iludir na percepção de que “há um caminho melhor”; todas estradas levam a Roma. Convém a nós, praticantes da Arqueologia, saber o que cada estudo e estrada traz como contribuição. Em suma, se é inútil perpetuar a divisão entre natureza e cultura, sujeito e objeto, primitivo e moderno – também é inútil condenar o passado pronapiano, por exemplo, sem entender qual era o seu contexto (HILBERT, 2007) – sem pensá-lo como uma coisa ainda viva em nós, da qual jamais nos desvencilharemos, senão antes, transformar a nossa prática para além de uma “Arqueologia negativa”.

Portanto, estudos que trabalham com quantificações puras e estatísticas, como é o caso da contribuição “Memória de pertencimento soterrada pelo tempo”, de Alexandre Matos e Joyce Macedo, onde os dados numéricos permitem notar uma variação na qualificação dos habitantes da cidade de Quevedos sobre qual é a importância real do seu patrimônio local.

Outro estudo revisita uma abordagem qualitativa que tem se escapado de uma visão teórica. Seria realmente fato que imagens fotográficas geoespaciais, tomadas por drones, representam uma realidade autoevidente, dada e imutável da paisagem? Assim, o uso da fotogrametria para produção documental fotográfica subitamente se transforma na assunção de um ponto de vista a partir da máquina; onde os processos de produção de documentação interagem de igual para igual com seus controles e controladores, nos céus do Forte Dunbeg, na Irlanda, como demonstra Sterling MacKinnon.

A troca de perspectiva também está em um sentido de reencontro com algo de aparência casual, como talvez a atividade artesanal de um pescador. Por trás da falsa ideia primeira de tranquila transparência, está a firme e fluida rede de relações tecida entre diferentes tipos de pescadores, tralhas, fainas e conhecimentos, se estende na maré – onde flutua sua própria noção de território como uma tarrafa. O artigo de Lucas Silva e Gustavo Wagner apresenta o movimento constante onde os nós dessa rede se tocam e distanciam juntos em direção do peixe, onde é possível observar a sua coesão social e identitária, trazendo um caráter inédito sobre a arte da haliêutica desenvolvida pelas comunidades pesqueiras ao longo do litoral meridional brasileiro.

A partir daí fica simples notar que a atividade artesanal também é um ponto onde conceitos prévios de identidade e visão de mundo estão imbricados a partir das condições de seu fazer. O estudo de Ana Paula Bezerra e Filipi Pompeu sobre o relato de um estilo único de olaria que combinava em si não apenas técnicas e formas de universos completamente diferentes, mas também reunia ali uma visão peculiar de mundo, também explora o fazer de aparência trivial. A moça surda-muda, anônima mesmo diante de todos os coadjuvantes do curto relato original, imprime como combinações insólitas diante da noção primeira de cerâmica, como excrementos, gordura e argila, a sua própria visão de mundo. A conexão íntima entre essas e outras características que aparentam forte repulsão à sociabilidade e o aguçamento de algumas sensibilidades em prol de outras, permite pensar a louça como uma outra forma de estar e interagir com um mundo onde ainda não existia a ideia de cultura Surda-Muda.

Outros dois textos apresentam diferentes implicações ontológicas da prática como substrato para a elaboração e intuição de um ponto de vista. Um deles, de Antônio Soares se volta para a construção de uma “casa de índio” como parte das atividades de educação patrimonial junto ao Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, no município de Taquara. Após constatar que a casa Mbyá-Guarani erigida junto ao museu segue a forma usualmente descrita na literatura – mas não associa de igual modo alguns traços pertinentes, como orientação espacial e território, se torna claro que os Guaranis interpretaram a necessidade de conhecimento não indígena, adaptando a sua realidade no mundo do Outro através de uma casa que é funcional e prática para o branco no tocante ao contato com o ameríndio. A casa é um híbrido que engendra sob suas colunas, dois mundos.

A Arte, um conceito ocidental, também é pensada como algo antagônico à ciência, é aproximada e traz à tona o laboratório como ateliê. Segundo o autor, Felipe Tramasoli, ambas são pontos de partida distintos, mas poderiam apoiar-se no sentido da capacidade que tanto Arte quanto Arqueologia exigem uma reação discursiva – ou seja, são reativas no sentido de incitarem a diversidade criativa, mesmo que dentro de seus próprios termos e conceitos. Contanto, é possível fazer Arte da Arqueologia, assim como Arqueologia da Arte, buscando não apenas um referencial, mas um modo de trazer o sensível do passado para o presente, e vice-versa, negando a delimitação antes clara sobre onde começa o ontem, o hoje, a criatividade e o fazer científico.

A presença dos materiais e das substâncias como contentores de um mundo também é apreciada neste volume; inicialmente junto a vinte e duas garrafas de grés do século XIX, encontradas em plena Amazônia. Teriam elas pertencido ao biopirata inglês Henry Wickham, que contrabandeou sementes para a Ásia, quebrando o monopólio sul-americano? Teriam sido utilizadas para transportar as sementes, testemunhas diretas da usurpação? Ou seriam mero fruto da “coleção particular” de algum seringueiro influenciado pelo afluir de bens estrangeiros e / ou pelas “visagens” que habitam a floresta? As diversas possibilidades que se abrem diante da existência de algo trivial em um contexto incomum, favorecem a tomada de consciência para as narrativas não hegemônicas – fornecendo origens pouco óbvias que merecem ser investigadas, conforme comprova Tiago Muniz.

O fluxo das matérias e materiais, portanto, supera a forma, e deve ser pensado a partir de outros pontos de vista que não são humanos em sua origem primeira – como é o caso do drone e do estudo que versa sobre as coisas propriamente ditas e suas qualidades. Essas, como demonstrado, interferem constantemente nos assuntos “não coisas”, ou humanos, em uma percepção não apenas sociológica, mas arqueológica. Aí podem ser vislumbrados como uma constante mutável que aproxima a prática arqueológica de tudo aquilo que meramente existe, como uma forma ontológica essencial, como desperta no pensamento a contribuição de Klaus Hilbert.

Finalizando e amarrando estes trabalhos dentro de um apanhado teórico geral, estão as reflexões de John O’Donnell que permitem pensar, afinal, como a disciplina arqueológica tem se portado e absorvido as tensões e assimetrias perspectivas pós-modernas dentro de uma noção ideológica. Este balizamento ajuda a situar não apenas a onipresença de qualquer categoria dentro da Arqueologia, como permite notar suas consequências e desdobramentos lógicos.

Todos trabalhos aqui presentes possuem algum agregar que pode ou não ser útil para determinadas pesquisas. Mas, para o todo da Arqueologia, incorporando a noção de totalidade da disciplina, toda pesquisa arqueológica é um incremento para quem sabe ver que ela não pertence ao número ou a hipótese; senão se constitui permanentemente do atrito entre estes dois (dentre outros tantos) elementos.

Este Dossiê, bem como trabalhos e ramificações de pesquisas direta ou indiretamente ligados a ele, é uma homenagem póstuma ao querido colega Alexandre Pena Matos. Arqueólogo atuante na área de licenciamento, era graduado em História, especialista em Cultura Material e Arqueologia, mestre em História Regional e doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), fazendo parte de nossa equipe durante a sua pesquisa. Alexandre nos deixou aos 49 anos, cedo demais, e o artigo aqui publicado com a sua atual companheira, Joyce Macedo, é sua última obra acadêmica finalizada em vida. Que nossos votos de consolo fortifiquem a família e a todos que o rodeavam.

Referências

APPADURAI, Arjun. Introduction: Commodities and the Politics of Value. In: APPADURAI, Arjun (ed.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge UP, 1986. p. 3-63. https: / / doi.org / 10.1017 / CBO9780511819582.

DOUGLAS, Mary. The World of Goods: Towards an Anthropology of Consumption. London: Routledge, 2002. https: / / doi.org / 10.4324 / 9780203434857.

FOUCAULT, Michel. Archaeology of Knowledge. New York: Pantheon Books. 1972.

HILBERT, Klaus. “Cave Canem!”: cuidado com os “Pronapianos”! Em busca dos jovens da arqueologia brasileira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 117-130, 2007. https: / / doi.org / 10.1590 / S1981-81222007000100009.

HOSKINS, Janet. Biographical Objects: How Things Tell the Stories of People’s Lives. London: Routledge, 1998.

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013.

Klaus Hilbert – Doutor em Arqueologia pela Philipps Universität Marburg (Marburg, Hesse, Alemanha). Docente no Programa de Pós-Graduação em História PUCRS orcid.org / 0000-0002-7672-6540 E-mail: [email protected]

Filipi Gomes de Pompeu – Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Rio Grande do Sul, RS, Brasil); doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil)  orcid.org / 0000-0002-5929-3237 E-mail: [email protected]

Ana Paula Gomes Bezerra – Mestra em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE, Fortaleza, CE, Brasil), Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil), Coordenadora do G.T. de Cultura Material e Arqueologia da ANPUH / RS. orcid.org / 0000-0003-0441-8925 E-mail: [email protected]

Carlos Eduardo Ferreira Melchiades – Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil). orcid.org / 0000-0003-3904-6607 E-mail: [email protected]


HILBERT, Klaus; POMPEU, Filipi Gomes de; BEZERRA, Ana Paula; MELCHIADES, Carlos Eduardo Ferreira. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 13, n. 1, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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