História das Américas: Política e Cultura / Varia História / 2007

O presente dossiê da Varia Historia dedica-se à História das Américas, com artigos que tratam de diferentes temáticas, particularmente relacionadas às dimensões políticas e culturais do conhecimento histórico e, em grande parte dos textos, suas inter-relações. Os artigos, em seu conjunto, têm grande amplitude espacial e temporal: do sul da América do Sul aos Estados Unidos, dos séculos XVI ao XXI. Ao lado de textos que abordam temas mais diretamente relacionados à história de determinados países, o dossiê traz artigos que analisam as circulações e conexões político-culturais entre diferentes países e espaços sociais.

O dossiê expressa o crescimento, diversificação e aprofundamento dos estudos sobre a América Hispânica e os Estados Unidos no Brasil, além de ressaltar o intercâmbio cada vez maior com a produção historiográfica sobre o continente americano produzida em outros países das Américas e da Europa.

Esclarecemos que, em razão da diversidade temática, espacial e temporal, optamos por apresentar os artigos em ordem cronológica.

O dossiê inicia-se com o artigo de Serge Gruzinski, Estambul y México. O autor esteve em Belo Horizonte em junho de 2007, como pesquisador convidado pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares – IEAT, da UFMG, ocasião em que proferiu várias conferências, inclusive sobre o tema do artigo publicado nesse dossiê. O autor apresenta mais um trabalho, em sua já vasta e rica produção historiográfica, em que avança nas suas reflexões em torno das “histórias conectadas” – conforme a proposição do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam. No artigo aqui incluído, o autor analisa – em uma primeira aproximação ao tema – duas fontes extremamente interessantes que conectam a Cidade do México e Istambul, entre fins do século XVI e inícios do século XVII. O autor mostra que havia um interesse recíproco entre a Nova Espanha e a Turquia, em uma época em que, a priori, não consideraríamos a possibilidade da existência de conexões intelectuais entre o “Novo Mundo” e o Império Otomano. O autor pretende apresentar, ao abordar suas fontes, problemas teórico-metodológicos que “surgem quando se comparam duas fontes relegadas pela historiografia tradicional”.

Víctor Mínguez analisa – em seu artigo La ceremonia de jura en la Nueva España. Proclamaciones fernandinas en 1747 y 1808 – as cerimônias públicas de juramento de lealdade aos monarcas espanhóis na Nova Espanha, atual México. Essas celebrações marcavam a demonstração coletiva de fidelidade à dinastia governante e ao rei recentemente coroado. Ausentes fisicamente, os monarcas eram materializados simbolicamente, nos vicereinos, através da arte. O autor mostra como imagens, palavras e sons eram combinados habilmente para conformar esses eficazes espetáculos de propaganda da monarquia espanhola nas colônias. Mínguez compara, em seu artigo, as cerimônias de jura de 1747, a Fernando VI, no apogeu da colônia, e a de 1808, a Fernando VII, no ocaso do período colonial. O autor sustenta que, apesar de celebradas em dois momentos significativamente distintos da ordem monárquica espanhola, a cerimônia de juramento manteve sua eficácia, mesmo na conjuntura de 1808, de crise aguda, “quando a situação política da monarquia espanhola era insustentável”.

O artigo de Fabiana de Souza Fredrigo, As guerras de independência, as práticas sociais e o código de elite na América do século XIX: leituras da correspondência bolivariana, revela as contribuições do próprio Símon Bolívar na construção dos mitos em torno de sua figura. A construção do mito Bolívar começou, também, a partir dos textos escritos pelo próprio líder das guerras de independência. Nesse sentido, ganha ainda mais pertinência a análise da correspondência de Bolívar, na qual essa construção da imagem de si mesmo, para a posteridade, começou a se estabelecer. A autora analisa, em seu texto, o vasto epistolário de Simón Bolívar, produzido entre os anos de 1799 e 1830 – mais de 2800 cartas -, demonstrando os vínculos entre a escrita de cartas, a memória e a historiografia.

Stella Maris Scatena Franco dedica-se a analisar – em artigo intitulado Gertrudis Gómez de Avellaneda entre Cuba e Espanha: relatos de viagem e ambivalências em torno da questão da identidade nacional – os relatos de viagem da escritora Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873), que nasceu em Cuba, mas viveu muitos anos na Espanha. O artigo mostra as ambivalências presentes no discurso de Avellaneda em relação à sua identidade nacional. Escritora de dois mundos – o cubano / antilhano e o espanhol / europeu -, Avellaneda, como revela Stella Franco, situou-se em meio ao debate na ilha de Cuba em torno da luta pela independência. A autora analisa também os debates políticos e literários em torno da sua personagem, tanto no século XIX como em reflexões mais recentes. No caso das últimas, ganham relevo as análises que procuram compreender o lugar e as possíveis peculiaridades da escrita feminina.

O artigo de Mary Junqueira, Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra norte-americana, U. S. Navy, em direção à América Latina (1838- 1901), também analisa relatos de viagem do século XIX – além de relatórios -, mas de natureza distinta daqueles analisados por Stella Franco. A partir do levantamento das expedições realizadas pela U. S. Navy – a marinha de guerra dos Estados Unidos – em direção à América Latina, no século XIX, a autora faz uma análise dos objetivos e significados das doze viagens realizadas pela U.S. Navy para a América Latina entre 1838 e 1901. Mary Junqueira mostra que, no período anterior à Guerra Civil, o interesse da marinha recaiu principalmente sobre a América do Sul e o Pacífico, revelando claramente o empenho norte-americano em “conhecer, mapear e apreender as possíveis possibilidades comerciais” dos territórios visitados, isso desde a década de 1830. No caso das viagens à América Central, no período posterior à Guerra Civil, o objetivo fundamental foi a busca pelo lugar mais adequado à construção do canal interoceânico, empreitada ambiciosa que foi finalmente concluída em 1914, com o término da construção do Canal do Panamá, sob estrito controle dos Estados Unidos.

A história norte-americana também é alvo do interesse de Cecília Azevedo, no artigo Amando de olhos abertos: Emma Goldman e o dissenso político nos EUA, particularmente a trajetória de Emma Goldman – militante anarquista, pacifista e feminista nos Estados Unidos, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A autora recupera Emma Goldman, inserindo-a numa tradição de dissenso nos Estados Unidos. Cecília Azevedo contextualiza a trajetória de Goldman dentro do debate político norte-americano da sua época, além de analisar como a memória e o legado de Goldman foram recuperados na década de 1960 e em anos recentes, em meio à crescente oposição às intervenções norte-americanas no Vietnã e no Iraque, respectivamente. O debate sobre o lugar de Emma Goldman – lituana de família judia que escolheu o exílio como uma forma de livrar-se das perseguições do regime czarista – na história dos Estados Unidos relaciona-se, como mostra Cecília Azevedo, às disputas políticoideológicas em torno da identidade nacional norte-americana e de seus mitos fundacionais.

Andrés Kozel, por sua vez, dedica-se, em artigo intitulado En torno a la desilusión argentina, a um tema muito presente no debate intelectual argentino – principalmente na primeira metade do século XX: a discussão sobre o suposto “fracasso argentino”. O autor rediscute a bibliografia que aborda o tema e analisa obras de cinco intelectuais argentinos que endossaram a idéia do “fracasso”: Lucas Ayarragaray, Leopoldo Lugones, Benjamín Villafañe, Ezequiel Martínez Estrada y Julio Irazusta. Ao contextualizar a produção dos cinco autores, Kozel mostra como a concepção de que a Argentina havia “fracassado” foi ocupando o lugar, antes hegemônico, de uma pretensa “grandeza argentina”, denominada pelo autor de “ilusão argentina”.

O artigo de Gabriela Pellegrino Soares, Novos meridianos da produção editorial em castelhano: o papel de espanhóis exilados pela Guerra Civil na Argentina e no México, é mais um exemplo de pesquisa que procura ressaltar as circulações culturais e as histórias conectadas. A autora analisa o impacto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) sobre a produção editorial na Argentina e no México a partir dos últimos anos da década de 1930. O enfoque recai, principalmente, sobre as contribuições de exilados espanhóis para o incremento da indústria editorial argentina e mexicana.

Os três últimos artigos abordam períodos recentes da história latinoamericana. Priscila Antunes e Patricia Funes analisam os sistemas de inteligência das últimas ditaduras militares no continente, abordando, respectivamente, os casos chileno e argentino. Waldo Ansaldi, por sua vez, dedica-se a analisar a situação política argentina dos últimos anos.

Priscila Antunes, em seu artigo O sistema de inteligência chileno no governo Pinochet, faz, inicialmente, um histórico acerca dos serviços de informação e das comunidades de inteligência no mundo ocidental para, em seguida, debruçar-se sobre o caso chileno, durante a ditadura militar chefiada pelo general Augusto Pinochet. A autora analisa a estrutura interna da comunidade de inteligência chilena e destaca seu papel, central, nos mecanismos de controle e repressão da ditadura militar chilena (1973-1989).

O artigo de Patricia Funes, “Ingenieros del alma. Los informes de los Servicios de Inteligencia de la dictadura militar argentina sobre América Latina: canción popular, ensayo y ciencias sociales, analisa os informes dos serviços de inteligência argentinos – em particular, aqueles contidos no arquivo da extinta Direção de Inteligência da Polícia da Província de Buenos Aires (DIPBA) – sobre a produção artística e intelectual acerca da América Latina, durante a última ditadura militar argentina (1976-1983). A autora analisa os informes dirigidos, principalmente, a controlar e censurar a produção de canções populares, ensaios e obras (livros, artigos e revistas) de cientistas sociais. Patricia Funes parte da “hipótese que o conceito ‘América Latina’ é conotado a priori como ‘subversivo’, ‘comunista’ e ‘revolucionario’ ”. Sendo assim, toda a produção cultural que se propunha a discutir e a pensar a América Latina era colocada, a princípio, sob suspeição. A autora sustenta que a força desses mecanismos repressivos contribuiu para afastar as ciências sociais argentinas da América Latina, com repercussões até o presente. E acredita que, provavelmente, algo similar teria ocorrido nos demais países da região submetidos a ditaduras militares.

As reflexões de Patricia Funes sobre o último período ditatorial na Argentina nos levam a pensar sobre a trajetória da produção intelectual brasileira sobre a América Latina. Se na década de 1960, em razão de vários fatores – entre eles, sem sombra de dúvida, o impacto político-cultural da Revolução Cubana -, foi evidente o crescimento do interesse e da produção artísticointelectual brasileira sobre a América Latina e acerca do lugar do Brasil no continente, a forte repressão desencadeada pelo regime militar a esses artistas e intelectuais, e a censura a toda essa produção, tiveram efeitos mais duradouros do que, num primeiro olhar, poderíamos reconhecer.

Waldo Ansaldi, em seu artigo Tanto andar a los mandobles para terminar a los besuqueos. Acerca de la relegitimación de los políticos argentinos, dedica-se a analisar a história política recente da Argentina, com ênfase nos últimos anos, a partir de dezembro de 2001. Ansaldi discute a crise de legitimação dos partidos e dos políticos argentinos em 2001 e a possível relegitimação nas eleições de 2003. O artigo é um competente exemplo de história do tempo presente e de análise de conjuntura, na interface da história com a ciência política.

Complementam o dossiê as resenhas dos livros, recentemente publicados, de autoria de Gabriela Pellegrino Soares, Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – por Sílvia Cezar Miskulin -, e a coletânea organizada por Marcela Croce, Polémicas intelectuales en América Latina: del “meridiano intelectual al caso Padilla (1927-1971) – por Adriane A. Vidal Costa. As obras constituem relevantes contribuições para a história cultural e intelectual da América Latina.

Esperamos ter colaborado, com esse dossiê de Varia Historia, para incrementar, ainda mais, o interesse pela História das Américas no Brasil e, também, para aprofundar o intercâmbio com pesquisadores de outros países. Agradecemos a todos os autores que nos brindaram com seus textos.

Belo Horizonte, inverno de 2007.

Kátia Gerab Baggio – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
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BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, jul. / dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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