História das Américas: fontes e historiografia / História Unisinos / 2014

Este dossiê foi organizado a fim de estimular reflexões sobre história e historiografia das Américas, campo que, talvez pelas dificuldades que apresenta, não encontra no Brasil o mesmo desenvolvimento verificado em outras áreas de estudo. As dificuldades a que nos referimos podem ser observadas em vários aspectos, mas saltam à vista, sem dúvida, quando se nota a enorme amplitude circunscrita pelo conjunto denominado “Américas”. Do Canadá à Patagônia, da Nova Inglaterra a Santiago, os processos históricos e os estudos historiográficos se multiplicam a cada momento. De fato, são poucos os trabalhos que se propõem a realizar uma história colonial do continente em sua integridade. Mesmo textos clássicos como os de John H. Elliott, Empires of the Atlantic World (2006), e David Brading, Th e First America (1991), por exemplo, optaram por não abordar sistematicamente a América portuguesa.

Ademais, e aqui reside outra dificuldade, sempre há a tentação de se analisar a época moderna nas Américas por meio de perspectivas nacionalistas. Não raro encontramos pesquisas cuja área de interesse é definida por palavras-chave eloquentes, a exemplo de “História colonial do México” ou “História da Argentina colonial”, o que é compreensível. É realmente mais cômodo dizer a um leigo, ou ao colega interessado em sua pesquisa, que você estuda o “Chile colonial” do que explicar que se trata de uma análise dos súditos castelhanos na cidade de Santiago e de suas relações com os nativos da região em meados do século XVII. Porém, eficazes como recurso didático para contextualizar o objeto de estudo, tais expressões não podem obscurecer a reflexão a respeito do tempo e do refinamento necessário aos historiadores para evitar anacronismos e o viés teleológico. No limite, o recorte nacionalista pouco contribui para a elucidação de processos históricos, que podem ser mais bem compreendidos à luz de conexões que não se conformam aos marcos dos estados-nação, mas, ao contrário, colocam em tela espaços mais amplos.

Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, alguns dos trabalhos que compõem este dossiê enfrentaram o desafio de propor reflexões para escalas de análise bastante ampliadas, pensando, inclusive, em termos de uma história atlântica ou de conexões atlânticas para compreensão da história americana. Tal é o caso dos dois artigos que abrem este número de História Unisinos. Abismos de la memoria: escritura y descubrimientos oceánicos. Una aproximación metodológica, artigo de Carlos Alberto González Sánchez, propõe ao leitor uma reflexão metodológica sobre os escritos elaborados durante os descobrimentos. Tais fontes, amplamente conhecidas pelos historiadores, permitem ao autor ir além dos “usos tangenciais” que dela se tem feito e indagar acerca da cultura escrita e de práticas culturais e intelectuais constituídas com a expansão ibérica.

O aporte metodológico do primeiro artigo é complementado pela proposta conceitual do segundo. A tradução para o português de Th ree Concepts of Atlantic History, de David Armitage, traz ao público brasileiro um texto repleto tanto de boas perguntas quanto de respostas instigantes. “Podem os historiadores ter esperanças de serem capazes de dizer qualquer coisa substancial sobre uma história que, em sua forma mais expansiva, conecta quatro continentes ao longo de cinco séculos?”. Para buscar respostas a essa e a outras questões, Armitage propõe três abordagens espacial e temporalmente diferenciadas – História Circum-Atlântica, História Trans-Atlântica e História Cis-Atlântica – que, sem ser excludentes, podem propiciar as condições para a escrita de uma história tridimensional do mundo Atlântico.

Da mesma maneira que pensar a historiografia sobre as Américas implica considerar os problemas de escala, os historiadores também devem ter em conta as diversas “camadas” interpretativas que se construíram ao longo de cinco séculos. Há que se considerar que a escrita da História das Américas assumiu formas diversas, acompanhando mudanças heurísticas e paradigmáticas advindas de debates teóricos, epistemológicos e historiográficos que sacudiram, com impactos ora moderados ora radicais, a própria ciência e suas certezas. Na formação desse maciço de interpretações, tanto a escolha das fontes como a opção por determinado aparato conceitual no momento de atribuir sentidos aos fatos são reveladores dos diferentes lugares ocupados pelos historiadores.

Talvez um exemplo notável seja o aparecimento, nos anos 1950, de uma corrente historiográfica na América Latina que, ao recontar os episódios da conquista e colonização, pretendia dar voz aos vencidos, aos indígenas. As discussões sobre o lugar dos latino-americanos na conjuntura política da época; os debates mais amplos em torno da descolonização no pós-guerra; os refinamentos da história social; as críticas às visões de mundo eurocêntricas: de um modo ou de outro, esse conjunto contribuía para a mudança de visada proposta por historiadores como Miguel León Portilla (2007) e Nathan Wachtel (1977). Pois é justamente com esse projeto historiográfico de dar à luz “o reverso da história” que dialoga o artigo de Eduardo Natalino dos Santos, As conquistas de México-Tenochtitlan e da Nova Espanha. Guerras e alianças entre castelhanos, mexicas e tlaxcaltecas.

Partindo dos pressupostos da “história dos vencidos”, apropriadas mais tarde (a partir de finais da década de 1970) pelos intérpretes da mestiçagem e do hibridismo coloniais, Eduardo N. dos Santos retoma o tema clássico da conquista do México valendo-se de outros documentos e de sentidos diferentes. Ao ampliar o rol de fontes e fundamentar sua análise em escritos nahuas, tais como o Lienzo de Tlaxcala, o Lienzo de Cuauhquechollan e o Códice Vaticano A, Santos sustenta que as guerras e alianças ocorridas entre castelhanos e cidades mesoamericanas nos anos da conquista serviram de gatilho para as ações políticas e militares posteriores, que colocaram espanhóis e indígenas lado a lado durante a expansão castelhano-nahua pela Nova Espanha. Ao defender tal argumento, o artigo recoloca o debate sobre a interpretação que considerou “vencidos” a todos os ameríndios, de modo indistinto. E ainda, de maneira igualmente importante, estimula uma reflexão sobre o equívoco de analisarmos os processos históricos iniciados em 1492 com base em uma divisão essencialista entre índios e brancos.

A exemplo dos códices acima referidos, ao longo do período colonial produziram-se registros de várias naturezas sobre as experiências vividas no Novo Mundo: o contato com os indígenas, a montagem dos mecanismos administrativos, as experiências de catequese, as revoltas e rebeliões, o cotidiano, dissensões e acordos, as guerras etc. Os autores desses relatos foram, em muitos casos, religiosos, funcionários da burocracia, indígenas educados em colégios, soldados, e toda sorte de pessoas alfabetizadas em um mundo profundamente iletrado. As crônicas, histórias, descripciones, sumários, relações, memórias etc. constituem um corpus documental privilegiado, tanto por aquilo que elas informam como pelo modo como o fazem.

Essa dupla dimensão analítica, isto é, envolvendo conteúdo e forma, é ressaltada em “Ciegos o enganados”: narrativas sobre a conquista espiritual do Norte da Nova Espanha (séculos XVII e XVIII), artigo assinado por Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Luis Guilherme Kalil. Nesse texto, os autores partem de relatos elaborados por missionários franciscanos e jesuítas a fi m de compreender as representações construídas pelos religiosos sobre os ameríndios das regiões ao norte do vice-reino da Nova Espanha. Ao evitar a armadilha de apontar o que é realmente indígena e o que é de fato europeu naquelas fontes, o artigo reflete sobre as estratégias retóricas e modelos narrativos empregados pelos cronistas, sublinhando dois eixos analíticos, já implícitos em seu próprio título, observados em relação a um par antitético: ação demoníaca / providência divina em contraposição a agência humana / livre-arbítrio. Com isso, os autores movem-se entre os relatos deixados pelos missionários e os lugares (sociais, institucionais, temporais) por eles ocupados, em uma dinâmica cuja compreensão pode ampliar o entendimento que temos sobre a chamada conquista espiritual do norte da Nova Espanha e acerca de algumas características dos grupos ameríndios daquela região.

Enquanto os missionários analisados por Luiz Estevam e Luis Guilherme narravam seus sucessos e vicissitudes entre o bem e o mal na América, podiam-se observar algumas mudanças na percepção da “historiografia” europeia sobre o Novo Mundo, no século XVIII, especialmente no que se referia aos relatos coloniais, que foram alvos de fortes críticas. Escrever uma nova História da América tornou-se o eixo central da renovação cultural promovida pelos Bourbon, mas também houve mudanças na visão lançada desde a Europa do Norte, o que gerou respostas americanas. Estamos nos referindo ao que se convencionou denominar “Polêmica do Novo Mundo”. Em linhas gerais, podemos afirmar que se passou a privilegiar, como fontes primárias, os dados produzidos pela burocracia da administração das colônias, as chamadas “fontes públicas” em detrimento do conjunto de escritos elaborados por diferentes agentes.

O artigo de Alexandre Camera Varella, A queda do homem civil: os antigos mexicanos e peruanos na “History of America” de William Robertson, analisa o livro produzido em 1777 pelo historiador escocês, justamente no seio desta “querela de América”. A obra de Robertson teve forte repercussão na época em que foi escrita, tendo sido avidamente procurada pelo público leitor e disputada pelos editores que competiam por seus escritos. Sua produção deu-se em conexão com uma série de escritos que renovavam os estudos sobre a história do Novo Mundo. Desta forma, Varella conduz em seu artigo uma discussão das análises de Robertson acerca do estado de coesão social das populações indígenas do Novo Mundo, bem como de suas apreciações sobre os obstáculos enfrentados por mexicanos e peruanos para alcançarem uma vida civil em plenitude.

Ainda no que se refere a fontes do século XVIII, o dossiê traz o artigo de Márcia Eliane Souza e Mello, que se ocupa da análise de um conjunto documental bastante frequentado pelos historiadores do século XX: os processos inquisitoriais. A autora de Inquisição na Amazônia colonial: reflexões metodológicas discute questões relativas ao tratamento analítico de fontes inquisitoriais, apresentando uma experiência de pesquisa quantitativa sobre a atuação do Tribunal do Santo Ofício no Estado do Maranhão e Grão-Pará. Márcia Mello reconhece entre alguns trabalhos atuais acerca da Inquisição uma tendência em seguir os parâmetros analíticos da produção clássica sobre o tema, não contemplando, na medida desejada, os contextos e realidades coloniais, isto é, as especificidades locais dos casos analisados. Para a autora, é importante não tratar as fontes inquisitoriais como “conjuntos isolados”, mas sim, na medida do possível, cruzar dados e “criar novas visões a partir do objeto e dos problemas que o historiador formula para sua pesquisa”, postura que potencializaria o “estudo de variados temas que têm como pano de fundo as relações sociais, como a escravidão, as práticas religiosas, os intercâmbios culturais e as redes de poder, etc.”.

O artigo de Guillermo Wilde, Adaptaciones y apropiaciones en una cultura textual de frontera: impresos misionales del Paraguay Jesuítico, por sua vez nos apresenta a análise de um conjunto de impressos nas missões guaranis do Paraguai, os quais ele indica que vêm a ser apenas uma parcela do importante do universo textual missionário que se encontra disperso em bibliotecas e arquivos de diversas partes do mundo. Incitado pelos estudos que têm, nos últimos anos, aprofundado e renovado a “história dos livros”, Wilde retoma algumas interpretações e propõe fecundas linhas de investigação deste corpus. O autor indaga, assim, sobre as características dos impressos missionais, suas circunstâncias de produção, as informações que eles nos oferecem e sobre a operação que os transforma em fontes documentais para o estudo da cultura missional, entre outros aspectos.

Ao propor uma tipologia preliminar que distingue três orientações entre tais impressos, o autor avalia que ela deve ser considerada como “um ponto de partida” para o estudo dos usos sociais dos impressos missionários, o qual se relaciona com os quadros de uma história cultural mais ampla. Neste sentido, é preciso ter em conta a inserção de tais textos junto a outros suportes da memória missional (como as imagens ou a música), e a relação entre os textos (ou a escrita) e a oralidade. Mas, também, a relação entre conjuntos missionais de diferentes áreas (Peru e Paraguai, por exemplo), a qual era facilitada pela circulação de jesuítas. Finalmente, Guillermo Wilde destaca a importância de considerarmos a circulação intercontinental de impressos e a formação de bibliotecas missionais, evidenciando a riqueza do tema para romper com as anacrônicas divisões entre espaços de análise, que indicamos mais acima.

Iniciamos a apresentação deste dossiê apontando a escassez de estudos que procurem desafiar uma historiografia que convencionalmente aceitou, como categoria analítica, a divisão entre os impérios luso e hispânico, ou ainda, as fronteiras nacionais que emergiram dos processos de independência nas Américas do século XIX. Assim como o trabalho de Wilde, também o texto de Tiago Gil, Elites locais e changadores no mercado atlântico de couros (Rio Grande e Soriano, 1780-1810), desvela uma importante contribuição para pensarmos em outras possibilidades analíticas. Neste último caso, trata-se de um estudo que propõe a análise do desenvolvimento e manutenção de redes que envolviam o comércio de couros, tabaco, aguardente e escravos alinhavando pontos entre Buenos Aires, Rio de Janeiro, Lisboa e Madri. Mais ainda, afinado com as orientações recentes da história social, o artigo discute as estratégias sociais de criação dessas redes envolvendo toda uma gama de sujeitos, entre os quais estavam negociantes e as elites locais, mas também peões, escravos, marinheiros, e os chamados changadores, sobre os quais o autor se interessa particularmente.

A revista traz ainda uma entrevista com a historiadora Patrícia Seed, bastante conhecida do público brasileiro por sua obra Cerimônias de posse na conquista europeia do Novo Mundo (Seed, 2000) produzida em 1995 e publicada no Brasil em 2000. Especialista em história da cartografia e da navegação, Seed dedicou-se, em boa parte da sua carreira, ao estudo do início da era moderna e da colonização europeia do Novo Mundo, especialmente em relação às culturas ibéricas. Ao longo da entrevista, Seed discorreu, entre outras coisas, sobre seus temas de investigação e sobre as opções teórico-metodológicas que orientam suas pesquisas. Avaliou, também, a repercussão alcançada por sua obra mais conhecida às vésperas do vigésimo ano de sua publicação.

O dossiê História das Américas: fontes e historiografia oportuniza, pois, aos interessados um conjunto de trabalhos que aceitaram o desafio de produzir uma reflexão sobre as diversas maneiras de se escrever história nas Américas, os intercâmbios eruditos e os tipos de crítica documental (além do próprio estatuto do que é considerado documento). Mas, também, sobre a publicação, circulação e as formas de leitura do texto historiográfico, desde os tempos coloniais até a produção mais recente sobre o continente. Juntamente com os editores e autores do presente número da revista História Unisinos, a quem agradecemos pelas valiosas contribuições, esperamos (e desejamos) que este dossiê possa ser um aporte ao campo dos que se dedicam à história americana, e que ele estimule outras publicações de mesma natureza.

Referências

BRADING, D.A. 1991. The first America. The Spanish Monarchy, Creoles Patriots and the Liberal State, 1492-1867. Cambridge, Cambridge University Press, 761 p.

ELLIOT, J. 2006. Empires of the Atlantic World. Britain and Spain in America, 1492-1830. New Haven, Yale University Press, 560 p.

LEÓN PORTILLA, M. 2007 [1959]. Visión de los vencidos. Relatos indígenas de la conquista. México, UNAM, 312 p.

SEED, P. 2000. Cerimônias de posse na conquista europeia do Novo Mundo (1492-1640). São Paulo, Unesp, 279 p.

WACHTEL, N. 1977 [1971]. La vision des vaincus. Les indiens du Pérou devant la Conquête espagnole (1530-1570). Paris, Gallimard, 395 p.

Anderson Roberti dos Reis – Universidade Federal de Mato Grosso

Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos


REIS, Anderson Roberti dos; MARTINS, Maria Cristina Bohn. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.18, n.2., maio / agosto, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História das Américas: Política e Cultura / Varia História / 2007

O presente dossiê da Varia Historia dedica-se à História das Américas, com artigos que tratam de diferentes temáticas, particularmente relacionadas às dimensões políticas e culturais do conhecimento histórico e, em grande parte dos textos, suas inter-relações. Os artigos, em seu conjunto, têm grande amplitude espacial e temporal: do sul da América do Sul aos Estados Unidos, dos séculos XVI ao XXI. Ao lado de textos que abordam temas mais diretamente relacionados à história de determinados países, o dossiê traz artigos que analisam as circulações e conexões político-culturais entre diferentes países e espaços sociais.

O dossiê expressa o crescimento, diversificação e aprofundamento dos estudos sobre a América Hispânica e os Estados Unidos no Brasil, além de ressaltar o intercâmbio cada vez maior com a produção historiográfica sobre o continente americano produzida em outros países das Américas e da Europa.

Esclarecemos que, em razão da diversidade temática, espacial e temporal, optamos por apresentar os artigos em ordem cronológica.

O dossiê inicia-se com o artigo de Serge Gruzinski, Estambul y México. O autor esteve em Belo Horizonte em junho de 2007, como pesquisador convidado pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares – IEAT, da UFMG, ocasião em que proferiu várias conferências, inclusive sobre o tema do artigo publicado nesse dossiê. O autor apresenta mais um trabalho, em sua já vasta e rica produção historiográfica, em que avança nas suas reflexões em torno das “histórias conectadas” – conforme a proposição do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam. No artigo aqui incluído, o autor analisa – em uma primeira aproximação ao tema – duas fontes extremamente interessantes que conectam a Cidade do México e Istambul, entre fins do século XVI e inícios do século XVII. O autor mostra que havia um interesse recíproco entre a Nova Espanha e a Turquia, em uma época em que, a priori, não consideraríamos a possibilidade da existência de conexões intelectuais entre o “Novo Mundo” e o Império Otomano. O autor pretende apresentar, ao abordar suas fontes, problemas teórico-metodológicos que “surgem quando se comparam duas fontes relegadas pela historiografia tradicional”.

Víctor Mínguez analisa – em seu artigo La ceremonia de jura en la Nueva España. Proclamaciones fernandinas en 1747 y 1808 – as cerimônias públicas de juramento de lealdade aos monarcas espanhóis na Nova Espanha, atual México. Essas celebrações marcavam a demonstração coletiva de fidelidade à dinastia governante e ao rei recentemente coroado. Ausentes fisicamente, os monarcas eram materializados simbolicamente, nos vicereinos, através da arte. O autor mostra como imagens, palavras e sons eram combinados habilmente para conformar esses eficazes espetáculos de propaganda da monarquia espanhola nas colônias. Mínguez compara, em seu artigo, as cerimônias de jura de 1747, a Fernando VI, no apogeu da colônia, e a de 1808, a Fernando VII, no ocaso do período colonial. O autor sustenta que, apesar de celebradas em dois momentos significativamente distintos da ordem monárquica espanhola, a cerimônia de juramento manteve sua eficácia, mesmo na conjuntura de 1808, de crise aguda, “quando a situação política da monarquia espanhola era insustentável”.

O artigo de Fabiana de Souza Fredrigo, As guerras de independência, as práticas sociais e o código de elite na América do século XIX: leituras da correspondência bolivariana, revela as contribuições do próprio Símon Bolívar na construção dos mitos em torno de sua figura. A construção do mito Bolívar começou, também, a partir dos textos escritos pelo próprio líder das guerras de independência. Nesse sentido, ganha ainda mais pertinência a análise da correspondência de Bolívar, na qual essa construção da imagem de si mesmo, para a posteridade, começou a se estabelecer. A autora analisa, em seu texto, o vasto epistolário de Simón Bolívar, produzido entre os anos de 1799 e 1830 – mais de 2800 cartas -, demonstrando os vínculos entre a escrita de cartas, a memória e a historiografia.

Stella Maris Scatena Franco dedica-se a analisar – em artigo intitulado Gertrudis Gómez de Avellaneda entre Cuba e Espanha: relatos de viagem e ambivalências em torno da questão da identidade nacional – os relatos de viagem da escritora Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873), que nasceu em Cuba, mas viveu muitos anos na Espanha. O artigo mostra as ambivalências presentes no discurso de Avellaneda em relação à sua identidade nacional. Escritora de dois mundos – o cubano / antilhano e o espanhol / europeu -, Avellaneda, como revela Stella Franco, situou-se em meio ao debate na ilha de Cuba em torno da luta pela independência. A autora analisa também os debates políticos e literários em torno da sua personagem, tanto no século XIX como em reflexões mais recentes. No caso das últimas, ganham relevo as análises que procuram compreender o lugar e as possíveis peculiaridades da escrita feminina.

O artigo de Mary Junqueira, Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra norte-americana, U. S. Navy, em direção à América Latina (1838- 1901), também analisa relatos de viagem do século XIX – além de relatórios -, mas de natureza distinta daqueles analisados por Stella Franco. A partir do levantamento das expedições realizadas pela U. S. Navy – a marinha de guerra dos Estados Unidos – em direção à América Latina, no século XIX, a autora faz uma análise dos objetivos e significados das doze viagens realizadas pela U.S. Navy para a América Latina entre 1838 e 1901. Mary Junqueira mostra que, no período anterior à Guerra Civil, o interesse da marinha recaiu principalmente sobre a América do Sul e o Pacífico, revelando claramente o empenho norte-americano em “conhecer, mapear e apreender as possíveis possibilidades comerciais” dos territórios visitados, isso desde a década de 1830. No caso das viagens à América Central, no período posterior à Guerra Civil, o objetivo fundamental foi a busca pelo lugar mais adequado à construção do canal interoceânico, empreitada ambiciosa que foi finalmente concluída em 1914, com o término da construção do Canal do Panamá, sob estrito controle dos Estados Unidos.

A história norte-americana também é alvo do interesse de Cecília Azevedo, no artigo Amando de olhos abertos: Emma Goldman e o dissenso político nos EUA, particularmente a trajetória de Emma Goldman – militante anarquista, pacifista e feminista nos Estados Unidos, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A autora recupera Emma Goldman, inserindo-a numa tradição de dissenso nos Estados Unidos. Cecília Azevedo contextualiza a trajetória de Goldman dentro do debate político norte-americano da sua época, além de analisar como a memória e o legado de Goldman foram recuperados na década de 1960 e em anos recentes, em meio à crescente oposição às intervenções norte-americanas no Vietnã e no Iraque, respectivamente. O debate sobre o lugar de Emma Goldman – lituana de família judia que escolheu o exílio como uma forma de livrar-se das perseguições do regime czarista – na história dos Estados Unidos relaciona-se, como mostra Cecília Azevedo, às disputas políticoideológicas em torno da identidade nacional norte-americana e de seus mitos fundacionais.

Andrés Kozel, por sua vez, dedica-se, em artigo intitulado En torno a la desilusión argentina, a um tema muito presente no debate intelectual argentino – principalmente na primeira metade do século XX: a discussão sobre o suposto “fracasso argentino”. O autor rediscute a bibliografia que aborda o tema e analisa obras de cinco intelectuais argentinos que endossaram a idéia do “fracasso”: Lucas Ayarragaray, Leopoldo Lugones, Benjamín Villafañe, Ezequiel Martínez Estrada y Julio Irazusta. Ao contextualizar a produção dos cinco autores, Kozel mostra como a concepção de que a Argentina havia “fracassado” foi ocupando o lugar, antes hegemônico, de uma pretensa “grandeza argentina”, denominada pelo autor de “ilusão argentina”.

O artigo de Gabriela Pellegrino Soares, Novos meridianos da produção editorial em castelhano: o papel de espanhóis exilados pela Guerra Civil na Argentina e no México, é mais um exemplo de pesquisa que procura ressaltar as circulações culturais e as histórias conectadas. A autora analisa o impacto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) sobre a produção editorial na Argentina e no México a partir dos últimos anos da década de 1930. O enfoque recai, principalmente, sobre as contribuições de exilados espanhóis para o incremento da indústria editorial argentina e mexicana.

Os três últimos artigos abordam períodos recentes da história latinoamericana. Priscila Antunes e Patricia Funes analisam os sistemas de inteligência das últimas ditaduras militares no continente, abordando, respectivamente, os casos chileno e argentino. Waldo Ansaldi, por sua vez, dedica-se a analisar a situação política argentina dos últimos anos.

Priscila Antunes, em seu artigo O sistema de inteligência chileno no governo Pinochet, faz, inicialmente, um histórico acerca dos serviços de informação e das comunidades de inteligência no mundo ocidental para, em seguida, debruçar-se sobre o caso chileno, durante a ditadura militar chefiada pelo general Augusto Pinochet. A autora analisa a estrutura interna da comunidade de inteligência chilena e destaca seu papel, central, nos mecanismos de controle e repressão da ditadura militar chilena (1973-1989).

O artigo de Patricia Funes, “Ingenieros del alma. Los informes de los Servicios de Inteligencia de la dictadura militar argentina sobre América Latina: canción popular, ensayo y ciencias sociales, analisa os informes dos serviços de inteligência argentinos – em particular, aqueles contidos no arquivo da extinta Direção de Inteligência da Polícia da Província de Buenos Aires (DIPBA) – sobre a produção artística e intelectual acerca da América Latina, durante a última ditadura militar argentina (1976-1983). A autora analisa os informes dirigidos, principalmente, a controlar e censurar a produção de canções populares, ensaios e obras (livros, artigos e revistas) de cientistas sociais. Patricia Funes parte da “hipótese que o conceito ‘América Latina’ é conotado a priori como ‘subversivo’, ‘comunista’ e ‘revolucionario’ ”. Sendo assim, toda a produção cultural que se propunha a discutir e a pensar a América Latina era colocada, a princípio, sob suspeição. A autora sustenta que a força desses mecanismos repressivos contribuiu para afastar as ciências sociais argentinas da América Latina, com repercussões até o presente. E acredita que, provavelmente, algo similar teria ocorrido nos demais países da região submetidos a ditaduras militares.

As reflexões de Patricia Funes sobre o último período ditatorial na Argentina nos levam a pensar sobre a trajetória da produção intelectual brasileira sobre a América Latina. Se na década de 1960, em razão de vários fatores – entre eles, sem sombra de dúvida, o impacto político-cultural da Revolução Cubana -, foi evidente o crescimento do interesse e da produção artísticointelectual brasileira sobre a América Latina e acerca do lugar do Brasil no continente, a forte repressão desencadeada pelo regime militar a esses artistas e intelectuais, e a censura a toda essa produção, tiveram efeitos mais duradouros do que, num primeiro olhar, poderíamos reconhecer.

Waldo Ansaldi, em seu artigo Tanto andar a los mandobles para terminar a los besuqueos. Acerca de la relegitimación de los políticos argentinos, dedica-se a analisar a história política recente da Argentina, com ênfase nos últimos anos, a partir de dezembro de 2001. Ansaldi discute a crise de legitimação dos partidos e dos políticos argentinos em 2001 e a possível relegitimação nas eleições de 2003. O artigo é um competente exemplo de história do tempo presente e de análise de conjuntura, na interface da história com a ciência política.

Complementam o dossiê as resenhas dos livros, recentemente publicados, de autoria de Gabriela Pellegrino Soares, Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – por Sílvia Cezar Miskulin -, e a coletânea organizada por Marcela Croce, Polémicas intelectuales en América Latina: del “meridiano intelectual al caso Padilla (1927-1971) – por Adriane A. Vidal Costa. As obras constituem relevantes contribuições para a história cultural e intelectual da América Latina.

Esperamos ter colaborado, com esse dossiê de Varia Historia, para incrementar, ainda mais, o interesse pela História das Américas no Brasil e, também, para aprofundar o intercâmbio com pesquisadores de outros países. Agradecemos a todos os autores que nos brindaram com seus textos.

Belo Horizonte, inverno de 2007.

Kátia Gerab Baggio – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
[email protected]


BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, jul. / dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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História das Américas / Revista de História / 2005

O Departamento de História da Universidade de São Paulo tem o prazer de apresentar o número 153 da Revista de História, dedicado ao dossiê História das Américas. Os artigos aqui reunidos enfocam temas da época pré-colonial à contemporaneidade, relativos a diferentes regiões do continente. Desenvolvem-se a partir de abordagens variadas, em particular nos campos da História política e da História cultural.

Com a organização deste dossiê, procuramos expressar o vigor que as pesquisas em História das Américas vêm conquistando nas universidades brasileiras, nos últimos anos. Quisemos traduzir, por outro lado, o crescente diálogo historiográfico estabelecido, nesse domínio, com pesquisadores de universidades estrangeiras. Pois se, entre nós, os estudos de História do Brasil e de História européia têm uma longa e consolidada trajetória, a história das Américas – pré-colonial, colonial ou independente –ganhou alento em contextos mais recentes. Esperamos assim, com o dossiê, chamar a atenção dos profissionais da História e dos interessados em geral para os caminhos trilhados.

O dossiê se abre com um bloco de artigos voltados a questões teóricas e historiográficas. Maria Lígia Coelho Prado escreve sobre as perspectivas da História comparada na América Latina. José Luis Bendicho Beired faz um balanço das pesquisas em História das Américas nas universidades paulistas, entre 1942 e 2004. June Carolyn Erlick discute as relações entre memória e defesa dos direitos humanos a partir do caso de uma jornalista guatemalteca assassinada anos atrás.

Em seguida, em ordem cronológica, apresentam-se os artigos históricos. Eduardo Natalino dos Santos analisa os usos documentais dos códices mixteconahuas. Cristiana Bertazoni Martins trata das representações sobre o Antisuyu – a região amazônica do antigo Império Inca – na clássica obra de Felipe Guaman Poma de Ayala. Alejandro E. Gómez enfoca os percursos de gestação do estigma contra populações de origem africana, nos mundos hispano-atlânticos dos séculos XIV a XIX. María Teresa Calderón aborda os problemas da legitimação do poder político na Colômbia, nos anos pós- Independência.

Com base na revista The National Geographic Magazine, Rafael Baitz explora as relações entre fotografia e representações identitárias nos Estados Unidos de fins do século XIX e princípios do XX. Também no campo das imagens, Maria Helena R. Capelato analisa o tema das pinturas modernistas latino-americanas, destacando movimentos ocorridos na Argentina, no Brasil e no México. A pintura fundamenta ainda o trabalho de Camilo de Melo Vasconcellos, sobre a visão das lutas pela independência mexicana inscrita nos murais de Diego Rivera e Juan O’Gorman.

Por fim, o dossiê apresenta um estudo de Cecília Azevedo sobre a política de “guerra à pobreza” desenhada nos Estados Unidos dos anos 1960.

Encerrados os artigos, abre-se uma seção de resenhas sobre publicações recentes, nacionais e estrangeiras, que enriquecem os debates históricos americanistas.

O presente número da Revista de História contou com o pleno envolvimento dos atuais integrantes do Conselho Editorial e de especialistas que gentilmente se dispuseram a elaborar pareceres. Ficam registrados os sinceros agradecimentos.

Gabriela Pellegrino Soares – Coordenadora Editorial


SOARES, Gabriela Pellegrino. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 153, 2005. Acessar publicação original [DR]

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