Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX – HOBSBAWM (FH)

HOBSBAWM, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 358p. Resenha de: SCHOLZ, Jonathan Marcel. Faces da História, Assis, v.1, n.1, p.225-21, jan./jun., 2014.

Em primeiro de outubro de 2012, o campo dos estudos históricos e da intelectualidade, de maneira geral, foi abalado. O falecimento do eminente historiador marxista Eric J. Hobsbawm silenciava uma das vozes mais lúcidas e críticas que o século XX havia conhecido. Aos 95 anos, Hobsbawm deixava o legado de inúmeras análises e investigações – expressas em farta produção intelectual – para uma possível compreensão da sociedade ocidental dos últimos séculos.

Após uma carreira profissional repleta de clássicos da historiografia – basta lembrarmos a tetralogia das Eras, a História Social do Jazz, Sobre história etc., – sua última elaboração intelectual foi projetada em Tempos Fraturados. Publicado no Brasil em 2013, o livro, composto por 22 textos produzidos entre 1964-2002, de algum modo, completa sua obra. Dividido em quatro partes1, Hobsbawm diz, no prefácio, que “este livro é sobre o que aconteceu com a arte e a cultura da sociedade burguesa depois que essa sociedade desapareceu com a geração pós-1914, para nunca mais voltar” (2013, p. 09).

Partindo de uma série de palestras realizadas em festivais, artigos e resenhas de livros publicados em revistas especializadas, Hobsbawm admite, no prefácio, que metade do conteúdo da obra era inédito, ao menos em inglês. Percebe-se que a própria construção do livro é diferenciada porque o primeiro item chamado de “Manifestos” é uma seção distinta à dos quatro eixos centrais do livro. Sendo considerado uma introdução às temáticas trabalhadas na obra, o intelectual marxista se debruça sobre a questão da efetividade dos manifestos atualmente. Significativos e impactantes nos séculos XIX e XX, os manifestos assumiam a forma de grandes declarações coletivas. Com a revolução tecnológica, os manifestos são, para Hobsbawm, marcados pela fluidez e caráter individual. Contendo características esparsas e confusas, perderam seus principais idealizadores de outros tempos, os partidos políticos e os movimentos sociais.

Construindo sua narrativa com o rigor e a estética que marcaram sua erudição ao longo das décadas, deve-se dizer, inicialmente, que os quatro eixos centrais da obra possuem íntimas relações temáticas. São afins e se complementam, pois são atravessadas por dois fios condutores que são a questão do desenvolvimento capitalista e a constituição da cultura burguesa na sociedade ocidental. Desse modo, amarradas por esses eixos condutores, a obra foi capaz de abarcar uma diversidade de questões e assuntos.

Tratando e entrelaçando temas políticos, sociais e/ou culturais que vão do século XIX ao XXI, nota-se que Hobsbawm, mantendo-se fiel a sua interpretação marxista, considera que a premissa do livro se insere na crítica ao paradigma capitalista, já que acredita que o desenvolvimento do capitalismo, como a própria lógica da civilização burguesa, estavam destinados a destruir seus alicerces. Por consequência, é nesse aspecto, por exemplo, que se inserem as análises de “tempos fraturados” sobre o rumo das manifestações das artes, ou, ainda, da tecnologia e da ciência.

Nesse campo prognóstico do estudo das artes, Hobsbawm afirma que, na falta de profetas profissionais, o historiador, que é o especialista do passado, pode se aventurar pelo campo da futurologia, porque o passado, o presente e o futuro formam um continuum absoluto (2013, p. 27). Ressaltando que o historiador estaria apto a se posicionar sobre o futuro, Hobsbawm abre margem para críticas, pois entra numa seara delicada para os historiadores, que estão convencionados, em grande medida, a examinar o passado e não o futuro. Vale ressaltar, aliás, que a ideia de futuro ou de porvir são características centrais da obra. Tratando principalmente das artes e da ciência, Hobsbawm dialoga com as possibilidades e incertezas do amanhã.

Notando que as artes, atualmente, mantêm uma dependência com a revolução tecnológica, o intelectual defende que o progresso da computação não acabará com o livro, bem como o cinema, o rádio, a televisão e outras inovações tecnológicas não o fizeram. Quanto à música, Hobsbawm se resume a dizer que vivemos num mundo saturado dela. Os sons nos acompanham por toda a parte. Para ele, “A sociedade de consumo parece achar que silêncio é crime” (2013, p. 32). Elaborando, em última instância, uma crítica contra com a revolução tecnológica e a sociedade de consumo, o autor considera que os próprios conceitos tradicionais de arte e cultura estão se tornando obsoletos.

À medida que trata de temas candentes da sociedade contemporânea, Hobsbawm vai justificando a ideia de tempos fraturados. Investigando um panorama amplo como, por exemplo, as consequências da alta mobilidade das pessoas (viagens, turismo, imigrações) para a cultura no mundo globalizado, o intelectual verifica a possibilidade de enfraquecimento das culturas hegemônicas. Dialogando com o multiculturalismo, o autor vai destacar a internacionalização de muitos aspectos culturais, como a culinária ou o futebol.

Ressalta, ainda, a necessidade de um programa educacional viável e que garanta certo universalismo de informações e valores culturais. Ao lembrar que o turismo transcende a experiência cultural e está se tornando importante para a economia global, Hobsbawm explica o fator econômico por trás do grande “negócio da cultura” e destaca que a cultura, quando se torna símbolo de identidade nacional ou estatal, possibilita frequentes e obscuras relações entre a política, a cultura e o mercado. Nesse rol, torna-se importante pensar que “[…] a cultura simplesmente não tem grande importância nas questões de política interna, como bem o demonstra o valor gasto pelo governo federal dos Estados Unidos nas artes e humanidades, em comparação com o valor gasto nas ciências” (2013, p. 68). Porém, deve-se ressaltar que a cultura, na forma de artes e alta cultura, possuem um significativo prestígio. Isso porque as elites dos países democráticos procuram consolidar seu status social fazendo doações para institutos e organizações culturais.

É na interconexão e no domínio de tantos temas atuais, sobretudo nessa parte inicial, que se percebe o vigor e a versatilidade intelectual de Hobsbawm. Trazendo à tona uma análise historiográfica com o característico viés marxista, a primeira seção da obra é uma reflexão muito recente e que se diferencia por seu estilo de escrita e ousadia científica das análises tradicionais dos historiadores. Consideramos que essa seção inaugural é muito peculiar na produção da obra, possivelmente em razão de ser originada de palestras realizadas em festivais artísticos.

Na parte II: “A cultura do mundo burguês”2, Hobsbawm inicia o capítulo construindo uma instigante análise sobre a emancipação política e cultural dos judeus. Analisando os impactos das contribuições judaicas, a partir do iluminismo, nas áreas das ciências, em geral. Hobsbawm salienta, além da referência aos talentos de origem judaica, a relação de “amor e ódio” destes com a Alemanha. Segundo ele, perante o êxodo e o extermínio dos judeus, durante o nazismo, a Alemanha teve decretado o fim de sua hegemonia linguística no mundo, com a língua alemã deixando de representar a língua da modernidade e das publicações eruditas que todos os acadêmicos precisavam ler.

No prosseguimento da parte II, várias temáticas ligadas pelo vínculo entre burguesia e cultura são trabalhadas. Chama-se a atenção para o debate interdisciplinar suscitado em “Destinos Mitteleuropeus”, no qual Hobsbawm vai falar do perigo que o uso de termos geográficos pode acarretar ao discurso histórico. Investigando as particularidades históricas e variantes do conceito de “Europa Central”, o autor conclui que, como termo político, é inaceitável, já que insinua, historicamente, preconceitos raciais, linguísticos e exclusões étnicas.

Em seguida, focando questões específicas sobre a consolidação da cultura burguesa durante fins do século XIX e início do XX, Hobsbawm vai discutir, sob a ótica das relações sociopolíticas, o papel cultural das mulheres burguesas, a ligação das classes médias europeias com a “Art Noveau” e, ainda, o legado deixado pela cultura burguesa. Tratando de diversas abordagens, Hobsbawm investiga desde o poder que o Estado detinha sobre a cultura e a história, como verifica a mudança do papel concebido às mulheres na virada do século XIX para o XX. Procurando abarcar vários aspectos da civilização burguesa, Hobsbawm demonstra sua capacidade de historicizar os eventos e de englobar objetos díspares, contribuindo para ampliar os conhecimentos por meio do diálogo com várias perspectivas de história. Seja na interdisciplinaridade com a geografia ou no entrecruzamento com a história de gênero, o intelectual marxista desenvolve uma reflexão que, certamente, possibilita uma maior compreensão da influência que a sociedade burguesa exerceu no Ocidente.

Na parte III da obra, “Incertezas, ciência, religião”, é proposta uma série de reflexões que abordam as relações entre a ciência, a intelectualidade, a religião e a arte com o poder. O título da seção, inclusive, evidencia a amplitude de assuntos tratados. Em “Preocupar-se com o futuro” o autor vai sondar a questão das emoções na história. Evidenciando os problemas relacionados à subjetividade destes sentimentos, Hobsbawm afirma que buscar o “estado de espírito” de uma época não serve para análise ou como estrutura de narrativa para os historiadores. Além das emoções não serem estáveis e homogêneas, existe uma complexidade em descrever como as coletividades, ou mesmo os indivíduos, compreendem ou concebem a noção de futuro, pois as pessoas têm percepções diferentes sobre o mesmo período temporal. A iminência de uma guerra ou de um novo governo, por exemplo, possibilita variados sentimentos da população. Não existe uma homogeneidade de emoções e sensibilidades no povo que autorize a se falar em um suposto “estado de espírito”. Explorando um tema multifacetado, Hobsbawm contribui, enfatizando, que a busca de sentimentos na história, sendo um método simplista, é um caminho seguido por alguns literatos, mas não é o adequado para as interpretações dos historiadores.

Na mesma perspectiva, o autor esboça comentários sobre a ciência. Tratando da relação de cientistas (do setor de química e ciências biológicas) com a política, o autor desloca-se para uma área desconfortável e que, frequentemente, não estimula os historiadores. Em “Ciência: função social e análise do mundo” Hobsbawm explora a vida e as contribuições científicas do fundador da moderna biologia molecular, John Bernal. Inserindo o personagem/objeto em seu lugar social, Hobsbawm mostra como o deslocamento da para a vida de um ativista político que colocou a lealdade ao partido comunista (e a ligação com o stalinismo) acima da consciência científica.

Em “Os intelectuais: papel, função e paradoxo”, o autor concentra a atenção na trajetória do papel social dos intelectuais. Notando uma crise de valores e perspectivas no século XXI, no qual se abandonou a velha crença no progresso global da razão e da ciência, Hobsbawm se questiona “Como pode a antiga e independente tradição crítica dos intelectuais dos séculos XIX e XX sobreviver numa era de irracionalidade política, reforçada por suas próprias dúvidas sobre o futuro?” (2013, p. 234). À vista disso, como se nota, o papel representado na sociedade pelos intelectuais e cientistas também foi preocupação do historiador marxista em “tempos fraturados”. Estabelecendo um paralelo entre cientistas que se posicionaram de modo político e público na década de 30, Hobsbawm pensa, posteriormente, sobre a atuação do intelectual e cientista no século XXI. Ou seja, exercendo uma erudição apurada, Hobsbawm incorpora, dialeticamente, a questão dos cientistas em duas temporalidades distintas, observando que os cientistas/intelectuais do século XXI se diferenciam de seus homólogos do século XIX porque vivem num período de incertezas políticas e descrenças ideológicas.

De acordo com a abrangência de temas inqueridos, em “A perspectiva da religião pública” é delineada uma análise sobre a religião enquanto força política. Pensando no contraponto entre a crescente secularização e a ascensão de ideologias radicais (direitistas) dentro da religião na segunda metade do século XX, como o protestantismo carismático e o islamismo tradicional. Hobsbawm considera que a democratização da política revelou o embate entre a religião de massas e os governos laicos. Adentrando na análise de uma esfera (religião) que normalmente não é o foco central de suas investigações, Hobsbawm a considera em razão dos vínculos mantidos entre diferentes sistemas religiosos e os Estados no século XXI, pensando nos efeitos sociais de suas aproximações e distanciamentos.

Nos artigos finais da terceira parte retorna-se a problemática da arte. No capítulo dezoito, “Arte e Revolução”, Hobsbawm estabelece uma ligação contínua entre artistas de vanguarda com os partidos de extrema esquerda. Focalizando a atuação dos artistas na Rússia revolucionária, o autor reconhece os atritos existentes entre a vanguarda e o partido comunista, o qual, sob a tutela de Stalin, submetia, progressivamente, o referido grupo ao poder soviético. Na mesma perspectiva, “Arte e poder” discute as relações sociopolíticas (historicamente construídas) por meio desses dois eixos. Afirmando que a arte é usada para reforçar o poder dos governantes e de Estados desde o Egito antigo, Hobsbawm investiga as demandas básicas que o poder costuma fazer à arte, situando o recorrente confronto público entre Estados e artistas. Por consequência, lembrando que no período entre guerras, Hitler, Stalin e Mussolini mantinham um ferrenho controle sobre as artes, o intelectual verifica que houve um declínio de realizações culturais em tais países.

Na parte final (IV) “De arte a mito” dois artigos completam a obra. Primeiro, “O artista se torna pop: Nossa cultura em explosão” é uma reflexão sobre a influência e intervenção – a qual, consequentemente, engendra perigos – que o progresso tecnológico exerce nas artes contemporâneas. Afirmando que aceitar a sociedade industrial não significa aprová-la, Hobsbawm se pergunta como podemos melhorar o que é produzido pelo movimento cultural. Finalizando a obra, “O caubói americano: um mito internacional?” é uma análise sobre as (re) apropriações que a figura do caubói impulsionou na cultura e na sociedade estadunidense. Indicando que os caubóis refletem os mitos e as realidades das sociedades a que pertencem, Hobsbawm percebe que o personagem americano, absorvendo a tradição original do Oeste, possui uma dupla função de conteúdo social, que representava primeiro, o ideal de liberdade individualista, quando no fechamento das fronteiras, e, segundo, a defesa do americano nativo branco, anglo-saxão e protestante. Hobsbawm encerra afirmando que o caubói reinventado como mito, sobretudo pelo governo Ronald Regan, revela, além de um legado perigoso de segregação e racismo anti-imigrante, o âmago de uma sociedade ultraindividualista.

Portanto, a obra final de Eric J. Hobsbawm expressa o espírito crítico e elucidativo de uma intensa carreira intelectual. Apesar de se constituir em um desafio avaliativo, já que reúne temas tão díspares, mas que são ligados nevralgicamente pelas noções de desenvolvimento capitalista e revolução tecnológica, a obra é uma coletânea de textos que trata da complexidade sociopolítica que o século XXI representa para a humanidade. Constituindo-se, também, enquanto uma história do tempo presente, “tempos fraturados” combina elementos inéditos (reflexão sobre as artes na atualidade) com objetos clássicos da obra de Hobsbawm (burguesia e questões políticas). Levantando novas questões, como a da influência dos judeus, do uso de termos geográficos na história ou do caubói estadunidense, o autor desvela novas possibilidades de estudo, que dão uma originalidade característica à obra.

No entanto, deve-se reiterar que, devido à estrutura do livro, que amalgamou artigos heterogêneos, muitas vezes derivados de palestras, e que foram escritos em diferentes momentos da carreira de Hobsbawm, a obra não conta com um espaço específico para as considerações finais. As conclusões do autor, que assumem características de apontamentos sugestivos, são elaboradas de maneira individualizadas ao final de cada texto.

Por fim, vale ressaltar que sua última produção contribui para o amadurecimento da historiografia contemporânea que trabalha, principalmente, com as questões da arte e da cultura. Mostrando um rol de possibilidades temáticas, Hobsbawm sinaliza que a história, apesar da investigação convencional do passado e das possibilidades de prognosticar o futuro, sempre parte das preocupações do presente. Desse modo, reforçando sua influência marxista em suas interpretações históricas, “Tempos fraturados” é digno do peso historiográfico que Hobsbawm exerceu e representou na intelectualidade ocidental durante o período que ele chamou de “breve século XX”.

Notas

1 Nomeadas como: 1 – Manifestos; Parte I: “A difícil situação da ‘cultura erudita’ hoje”; Parte II: “A cultura do mundo burguês hoje”; Parte III: “Incertezas, ciência, religião”; Parte IV: “De arte e mito”.

2 Parte composta de sete artigos. São eles: “Iluminismo e conquista: a emancipação do talento judeu depois de 1800”; “Os judeus e a Alemanha”; “Destinos Mitteleuropeus”; “Cultura e gênero na sociedade burguesa europeia de 1870-1914”; “Art Noveau”; “Os últimos dias da humanidade” e “Herança”.

Jonathan Marcel Scholz – Graduado em Licenciatura Plena de História pela Universidade Estadual do Centro – Oeste – UNICENTRO, Guarapuava-PR. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected].

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Breve história do século XX – BLAINEY (CTP)

BLAINEY, Geoffrey. Breve história do século XX. [?]: Fundamento Educacional, 2008. Resenha de: DAMASCENO, Natália Abreu. Uma Breve História do Século XX: Entre os Perigos e as Benesses da Síntese. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.

Após o sucesso do bestseller Uma Breve História do Mundo publicado em 2000, o australiano Geoffrey Blainey, professor em Melbourne e em Harvard, apostou novamente na síntese de períodos de longa duração. Em 2005, lançou o livro Uma Breve História do Século XX, cuja primeira edição brasileira só foi lançada pela editora Fundamento Educacional em 2008. Esta obra narra, mais que os grandes acontecimentos do século, o extenso processo de transformação vivenciado pela humanidade ao longo dos novecentos.

Evidentemente, ao tentar abarcar todo o século XX, incluindo seus diversos conflitos e dilemas políticos, econômicos e sociais, a narrativa de Blainey revela um previsível grau de superficialidade. Afinal, trata-se de um século descrito em 309 páginas. Porém, ao optar por abandonar muitos dos jargões e reflexões densas, típicas das obras historiográficas, o autor produz uma narrativa leve e acessível aos aficionados de diversas áreas do conhecimento.

Deste modo, a isenção de uma análise robusta dos acontecimentos, do número excessivo de datas, nomes e dados científicos afasta esta obra do mundo acadêmico e coloca-a nas mãos do grande público. Vale lembrar que as freqüentes inferências do autor sobre o cotidiano, seu recurso a conceitos como “mentalidade” e “espírito de época”- explorando curiosidades e por vezes adentrando na história da vida privada – despertam o interesse de um público mais heterogêneo e distanciam a obra das frias narrativas dos livros didáticos.

Uma Breve História do Século XX foca-se nos três grandes conflitos mundiais ocorridos neste século: a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e a Guerra Fria. A Primeira, descrita como as demais com vivacidade jornalística, é entendida por Blainey como uma ruptura no otimismo que vinha se estabelecendo nas civilizações devido aos avanços conquistados no fim do século anterior. O século XX era um século promissor: a Europa era o lar de vastos impérios e de poderosas nações consolidadas, os Estados Unidos eram a terra da inventividade e do rápido crescimento econômico. A democracia e a liberdade começavam a invadir os territórios ainda que apenas em uma parte do mundo. Tudo levava a crer que, nas regiões não atingidas pela prosperidade, os ventos da mudança chegariam mais cedo ou mais tarde.

Geoffrey Blainey chama de “segunda era inventiva” o período que vai de 1850 até a Primeira Guerra Mundial. Nesse período, segundo ele, as diversas inovações tecnológicas como o telefone, o gramofone, a câmera e o avião, tornavam o mundo menor, mas “O fato de o mundo estar se tornando menor não significava que necessariamente ficava mais amigável” (BLAINEY, p. 41, 2008). Os crescentes gastos com armas, navios de guerra e com o exército foram o prenúncio de que as batalhas de pequena escala freqüentes no início do século, período que até então era considerado pacífico entre as grandes potências, culminariam num estrondoso conflito mundial.

A Europa, até então leito das grandes economias e acontecimentos, é retratada como palco de diversos conflitos étnicos, econômicos, políticos, religiosos e ideológicos há muito iniciados, mas que se acentuaram neste século. Assim, eventos como a Revolução Russa, a crise de 1929, as tensões do tratado de Versalhes, a criação da Liga das Nações, a ascensão de regimes totalitários autoritários e fascistas nos anos 20 e 30 e o nascimento de uma Turquia independente do islamismo são abordados sob um ponto de vista que enxerga o século XX como um período de intensificação das diferenças através da supressão do espaço.

Já a Segunda Guerra Mundial, que contou com armas e estratégias mais avançadas, aparece nesta obra de Blainey como um atestado temporário de colapso das democracias, agravado pela tomada da França pelos nazistas em 1941. O massacre de judeus, ciganos, homossexuais, a invenção de armas letais sofisticadas, a voraz expansão do império japonês na Ásia Oriental e o mistério da vida na União Soviética compuseram o cenário de terror e incertezas que assolou o mundo durante este conflito. O fim da guerra trouxe mais dúvidas que explicações. As nações européias deixam de ser as grandes potências e o mundo polarizou entre os Estados Unidos e a União Soviética. O mapa europeu mudou novamente e grandes investimentos científicos começara a ser feitos. Iniciara a chamada Guerra Fria.

Ao tratar da segunda metade do século XX, que o autor entende como o momento de triunfo e consolidação da verdadeira democracia, Blainey não desenha somente um panorama das batalhas, dos acordos e dos impasses políticos e militares que ocorreram durante a Guerra Fria. Evidencia também, nesse período, a emergência de movimentos ecológicos, pacifistas, musicais e feministas enquanto partes de um processo de mudanças que configurariam mais tarde os valores, o comportamento e a moral da sociedade do século XXI. Delineia este processo inclusive, englobando diversos âmbitos como o dos esportes, das línguas globais e da urbanização das cidades.

Deste modo, Uma Breve História do Século XX é repleto de escolhas feitas pelo autor (umas louváveis, outras nem tanto). Afinal de contas, ao mesmo tempo em que fornece um painel dinâmico dos principais acontecimentos históricos ocorridos no referido século, falha na problematização de alguns e até no esquecimento de outros, como por exemplo, da política do Apartheid (1948-1990), relevante problema na história dos novecentos que não é sequer mencionado na obra. Por fim, Geoffrey Blainey possui o mérito da boa síntese, em uma obra relevante que compila informações históricas de diversas naturezas. Porém, a crítica que por vezes é ausente no livro, não deve faltar ao leitor.

Referências

DAMASCENO, Natália Abreu. Uma Breve História do Século XX: Entre os perigos e as benesses da síntese Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 5, Nº08, Rio, 2010.

Natália Abreu Damasceno – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET)/UFS. Grupo de Estudos do Tempo Presente/CNPq/UFS. [email protected]@gmail.com.

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