História e Etnicidade / Cadernos de História / 2016

A revista Cadernos de História chega a mais uma edição temática com a publicação do Dossiê História e Etnicidade. Os artigos reunidos neste número por nossos pesquisadores colaboradores apresentam instigantes trabalhos alinhados às discussões sobre tema intensamente recorrente no atual meio acadêmico.

No editorial deste dossiê, convidamos o pesquisador italiano Massimo Canevacci para apresentar suas recentes investigações envolvendo as conexões entre história, antropologia e etnografia. Em seu trabalho, “Composições etnográficas”, Canevacci discorre sobre as transformações culturais no processo de globalização e sua relação com as realidades locais, a partir de novos mecanismos de produção comunicacional entre os grupos étnicos. Nessa ótica, o pesquisador destaca que a era digital alterou e conectou os métodos de como as comunidades locais se relacionam com o contexto global no que concerne aos mecanismos de autorrepresentação de subjetividades e na construção de suas histórias. Assim, importantes termos e expressões como “hetero-representação”, “meta-fetichismo” e “facticidade” são apresentados e definidos pelo autor para o entendimento da etnicidade, compreendida pelos vínculos de pertencimento, no cenário contemporâneo a partir de “quem representa” e “quem é representado”, complexa relação na qual ele denomina de “divisão comunicacional do trabalho”.

Nos dois primeiros artigos desse dossiê, destacam-se o percurso de determinadas comunidades africanas na constituição de um sincretismo cultural brasileiro, percebidas pela interação afroindígena amazônica e também pelo candomblé baiano. No primeiro caso, é o título de Agenor Sarraf Pacheco, “Diásporas africanas e contatos afroindígenas na Amazônia marajoara”, cujo propósito é realçar as intersecções tecidas por índios e negros desde o período colonial na região da ilha de Marajó, no Estado do Pará. O autor apresenta vários questionamentos que o instigaram a pesquisar os traços étnicos das populações marajoaras, sobretudo, seus afrodescendentes. Nessa ótica, Pacheco estima que a chegada dos primeiros africanos aos campos e florestas marajoaras ocorreu por volta de 1644, trazidos pelos portugueses para servirem como mão de obra escrava na exploração de drogas do sertão, cultivo da cana de açúcar e da mandioca. Os latifúndios e aldeamentos jesuíticos que ali se estabeleceram contavam com negros e indígenas na execução do trabalho compulsório que, consequentemente, resultaram em resistências, fugas e práticas de solidariedade na constituição de mocambos e quilombos na região.

Já o artigo do pesquisador português João Ferreira Dias, “Candomblé é a África: esquecimento e utopia no candomblé jeje-nagô”, também destaca a interação brasileira com a diáspora africana, todavia, na conjuntura baiana da virada do século XIX para o século XX. O autor aponta que a narrativa do candomblé não se constitui pela linearidade ou por um ideal de continuidade resultante da recriação simples de costumes africanos transportados para o Brasil. Assim, a partir de povos iorubás e ewe-fon, transformados em escravos no período colonial, o autor destaca os rearranjos rituais desses grupos étnicos, muitas vezes representantes de reinos rivais africanos, e como engendraram uma nova realidade religiosa compartilhando com o catolicismo popular suas memórias, similitudes culturais e esquecimentos.

Nos três artigos seguintes, apresentamos pesquisas que dialogam com a temática indígena e quilombola no nordeste e no centro-oeste brasileiros. No artigo “Não somos selvagens: cultura política dos índios no Ceará (1799-1822)”, João Paulo Peixoto Costa investiga que as comunidades indígenas cearenses – à época da transição entre colônia e império –, no propósito de receber benefícios e garantias, estrategicamente buscavam se identificar enquanto súditas da Coroa Portuguesa. Segundo o autor, a intenção dos grupos étnicos indígenas em planejar resistências e reações estava longe de ser desarticulada e puramente violenta. Já a pesquisadora Maria Jorge dos Santos Leite colabora aqui com sua pesquisa intitulada “Quilombolas e indígenas: intercruzamentos, identidades e conflitos no sertão de Pernambuco”, cujo objetivo é analisar o processo de construção identitária da comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, no sertão do Estado pernambucano, identificando as interações étnicas e as interconexões culturais de seus habitantes com a aldeia indígena Atikum. Para arrematar a temática indígena e quilombola nessa série de artigos, Luciana de Oliveira, Tonico Benites e Rui de Oliveira Neto, em pesquisa conjunta intitulada “Sacrifício e quase-acontecimento: apontamentos sobre a visibilidade da luta pela terra dos povos indígenas Guarani e Kaiowa”, apresentam o histórico de opressão e confinamento desses grupos étnicos estabelecidos na região sul-mato-grossense e como se rearticularam na contemporaneidade para expor suas recorrentes demandas, sobretudo, no que concerne ao direito aos seus territórios frente ao agronegócio. Os pesquisadores afirmam que, embora provocando intensas disputas e controvérsias, as comunidades indígenas Guarani e Kaiowa alcançaram visibilidade ao se utilizarem das mídias sociais na reprodução de narrativas, lutas e demandas referentes à preservação ambiental, demarcação de terras e autodeterminação étnica, embasadas em princípios garantidos pela carta constitucional e pelo Estatuto dos Povos Indígenas. Os pesquisadores lançam mão de atualizados dados quantitativos para demonstrar o descaso pelo direito indígena por parte do poder público, ilustrado aqui por números alarmantes e assustadores de suicídio e alcoolismo, além de violentas disputas históricas pela terra travadas com os fazendeiros do agronegócio na região do estado de Mato Grosso do Sul.

Neste número também é discutida a relação conceitual entre musealização e patrimonialização. É o que faz Janaina Cardoso de Mello no artigo “Entre a farroupilha e a redenção: negros percursos museológicos na terra do chimarrão”. A autora utiliza-se de um amplo debate acadêmico acerca das novas definições, orientações e práticas museológicas no campo patrimonial para analisar o Museu do Percurso de Porto Alegre que – entre os anos 2008 e 2011 –, foi idealizado e iniciou seus projetos em curso. Janaina Mello pontua que tal investida sintoniza-se com a atual noção de museu de território (ou museu a céu aberto ou museu de percurso) no sentido de ressignificar trajetórias e territorialidades percorridas ou apropriadas, no caso em questão, por comunidades étnicas negras africanas presentes desde a época colonial em Porto Alegre (RS). A autora afirma que a presença negra no sul do Brasil é comumente negligenciada pela historiografia regional ao se priorizar a figura do gaúcho e seus estereótipos que evidenciam o branqueamento de costumes e lugares de memória naquela parte do país.

Em seguida, os pesquisadores José Jorge Siqueira e Ignacio José Godinho, nos respectivos artigos “Modelos de desenvolvimento, economia política e a questão do negro no Brasil” e “Ações afirmativas e o horizonte normativo da democracia racial” discutem o descaso e a imobilidade do Estado brasileiro frente às políticas públicas em relação à população afrodescendente. Os autores utilizam-se de amplo suporte bibliográfico e percorrem a trajetória dos modelos econômicos nacionais – do capitalismo agroexportador ao desenvolvimentismo – e destacam como o branqueamento e o descaso com a educação e com a população ex-escrava e suas gerações posteriores foi encoberto pela internalização da suposta democracia racial, agravando os abismos de desigualdade socioeconômica no país.

O artigo “Sírios, libaneses e judeus – paradoxo entre o grupo e a nação: participação e restrição em Belo Horizonte nos anos 1930 e 1940”, produzido por Júlia Calvo e Pedro Henrique da Silva Carvalho, analisa a presença dos grupos estrangeiros que imigraram para a capital mineira e como se organizaram em associações, estilos de vida e laços de sociabilidade, além das práticas econômicas que passaram a desempenhar no comércio da cidade. Os coautores destacam que tais grupos estrangeiros se organizaram em comunidades étnicas integradas por fortes vínculos de pertencimento e solidariedade, representadas pela União Síria e União Israelita de Belo Horizonte. Os pesquisadores discutem a discriminação sofrida por esses grupos étnicos institucionalizados, através de ações repressoras do Estado brasileiro durante as décadas de 1930 e 1940.

A perspectiva étnica na conjuntura africana também é debatida neste dossiê. Danilo Ferreira da Fonseca analisa no artigo “Etnicidade de hutus e tutsis no Manifesto Hutu de 1957”, a realidade de Ruanda – país situado na região centro-oriental do continente africano –, que mergulhou em intensos conflitos internos após o processo de emancipação política frente ao domínio belga, repercutido principalmente pelo famoso genocídio ocorrido em 1994. O autor destaca o processo de pertencimento, de interação e de conflito acerca da etnicidade dessas duas comunidades ruandesas na segunda metade da década de 1950 na articulação de diferentes projetos de independência pensados para o país.

E, por fim, integra a sequência de publicações desse dossiê, a conferência de Jocélio Teles dos Santos, “Da cultura exótica à ótica das culturas”. Nesta comunicação, o pesquisador analisa o conceito de cultura a partir de suporte teórico embasado por textos de Montaigne, Voltaire e Rousseau, e destaca como tal temática da diferenciação cultural foi produzida pela imprensa, pelos viajantes e pela literatura no Brasil oitocentista.

Vale informar aos leitores e colaboradores que esse primeiro número de 2016 traz um novo projeto gráfico da revista Cadernos de História. Nesse sentido, visando atender melhor a todos os critérios de qualidade para periódicos acadêmicos, estamos nos adaptando às diretrizes colocadas pela CAPES / QUALIS, bem como passamos a utilizar as orientações da NBR 6021 / 2015 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, seguindo assim a recomendação da Scielo. Agradecemos mais uma vez a equipe do Setor de Revisão da PUC Minas, especialmente, aos professores Gilberto Xavier e Daniella Lopes, e aos estagiários Laila Xavier e Roberto Barcelos. Agradecemos também ao chefe do Departamento de História da PUC Minas, professor Edison Gomes, e ao diretor da Editora PUC Minas, professor Paulo Agostinho Nogueira Baptista. Agradecemos ainda aos membros do Conselho Editorial dos Cadernos de História, especialmente, aos professores Virgínia Maria Trindade Valadares e Rafael Pacheco Mourão. Ressaltamos que todas essas pessoas foram importantíssimas para tornar possível essa publicação.

Portanto, através dos artigos aqui publicados, os Cadernos de História ratificam ser um amplo espaço de discussão acadêmica que contribui com o diálogo transdisciplinar ao reunir nesse número instigantes pesquisas sobre História e Etnicidade. Desejamos a todos uma boa leitura!

Marcelo de Araújo Rehfeld Cedro – Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor do Departamento de História da PUC Minas. Editor Gerente dos Cadernos de História.


CEDRO, Marcelo de Araújo Rehfeld. Apresentação. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.17, n.26, 2016. Acessar publicação original [DR]

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