História e Gênero / Anos 90 / 2007

Faz pouco menos de vinte anos que Joan Scott publicou seu artigo célebre mostrando a utilidade da categoria gênero para a análise histórica (Scott, 1995). De lá para cá, afloraram muitas polêmicas e abriram-se diversos caminhos nas pesquisas a respeito das relações de gênero realizadas por historiadores (as). No que tange às polêmicas, destacam-se os debates entre pesquisadores(as) alinhados(as) com a história social, que enfatizam o papel da experiência e do sujeito na construção cultural da diferença sexual, e aqueles(as) que partem de posições genericamente definidas como pós-estruturalistas, as quais procuram mostrar o próprio sujeito e suas experiências como produtos de práticas discursivas e não-discursivas.1 Em relação aos caminhos abertos, é possível dizer que, depois de uma quase exclusividade das investigações voltadas ao gênero feminino, os(as) historiadores(as) passaram a se preocupar também com as masculinidades e com os chamados “transgêneros”, além de voltarem seu olhar para processos históricos não tão obviamente generificados como, por exemplo, a construção das nações e suas metáforas femininas (a “mãe gentil”) e masculinas (o “herói guerreiro”).

Apesar deste campo de estudos ter se consolidado e institucionalizado – o que pode ser demonstrado pelas inúmeras revistas dedicadas ao tema, pelo surgimento de diversos núcleos de pesquisa, pela realização de numerosas dissertações de mestrado e teses de doutorado que, direta ou indiretamente, lidam com gênero, entre outros indicadores – cabe voltar à pergunta instigante proposta por Scott: será que esse enfoque modificou a nossa forma de encarar a História, de hierarquizar nossos temas e temporalidades, de (re)pensar referenciais teóricos e procedimentos metodológicos? Ou será que gênero continua a ser visto como “mais um tema”, um enfoque “moderno” que pode ser incluído nas coletâneas (de preferência ao final), mas que não modifica a arquitetura das nossas publicações e o nosso entendimento do passado?

Visando contribuir para tal discussão, a revista Anos 90 apresenta um dossiê sobre relações de gênero, no qual é possível vislumbrar essa pluralidade de caminhos e enfoques. O primeiro artigo, de Gil Mihaely, examina, a partir da perspectiva das masculinidades, a noção de domesticidade e seu impacto no mundo do trabalho francês de 1870 a 1910. Eni de Samara Mesquita, André Félix Marques da Silva, Breno Henrique Selmine Matrangolo, Nadia Beyeler e Patrícia Garcia Ernando da Silva, tendo por base um banco de dados construído com informações retiradas de testamentos manuscritos de São Paulo no período de 1840 a 1870, analisam as relações entre senhoras e escravos na era do café. Já Marlene de Fáveri e Anamaria Marcon Venson tratam de práticas culturais e representações construídas por mulheres de diferentes gerações, no sul do estado de Santa Catarina, relativas ao ritual de passagem ligado ao aparecimento da menarca. Por fim, fechando o dossiê, Paulo Pezat aborda a maneira pela qual o positivista religioso gaúcho Carlos Torres Gonçalves procurou aplicar, nas esferas pública e privada de sua vida, os ensinamentos de Comte a respeito do gênero feminino, o “sexo altruísta”.

Na parte geral da Revista, temos os artigos de José D’Assunção Barros sobre a “história da história comparada”; de Bruno Flávio Lontra Rodrigues, a respeito das relações entre História e Literatura, abordando especificamente a obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas; e de Márcia Janete Espig, relativa à presença, nas fontes e na historiografia militar do movimento do Contestado, de ex-operários da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Seguem ainda as resenhas de Teresa Malatian do livro de Justo Serna e Anaclet Pons, La historia cultural, e de Diogo da Silva Roiz, do livro de Décio Gatti Júnior, A escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990).

A partir deste número, retomamos a publicação das edições semestrais e esperamos poder regularizar a periodicidade da Revista. Continuamos os esforços de editores anteriores para adaptar a revista a padrões técnicos solicitados pelos órgãos financiadores e indexadores, sem prejuízo da qualidade intelectual que a tem caracterizado desde sua criação. Nesse momento, a presença do Programa de Apoio à Edição de Periódicos da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS tem sido muito importante, não apenas pelo apoio financeiro, mas pelas orientações em questões técnicas, nem sempre previamente conhecidas por nós, docentes. O Portal de Periódicos Científicos da UFRGS2 é tanto um instrumento de divulgação dos periódicos da Universidade, no qual Anos 90 se faz presente, como um canal de assessoria aos editores.

Nosso Conselho Editorial foi ampliado, acompanhando a diversificação das pesquisas desenvolvidas em nosso Programa, o que é um reflexo tanto do aumento do corpo docente, pelo ingresso de novos doutores, quanto da ampliação do número de alunos em nossos cursos de mestrado e doutorado. Agradecemos a todos aqueles pesquisadores que aceitaram nosso convite.

A versão digital da revista, para o que estamos trabalhando, permitirá uma relação mais orgânica com os conselheiros, os articulistas e com os leitores da revista. O portal da Anos 90, 3 vinculado à página do Programa, já está em operação e estamos conjugando esforços para torná-lo mais operacional.

Notas

1. Um resumo desta polêmica encontra-se em Cadernos Pagu, 1994.

2. Portal de periódicos científicos – UFRGS. Disponível em

3. Disponível em

Referências

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade. 20(2): 71-99, julho / dezembro 1995 (original de 1988). Porto Alegre: FACED / UFRGS.

CADERNOS PAGU. Campinas: PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero / UNICAMP, n. 3, 1994.

Benito Bisso Schmidt – Professor do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Organizador deste número.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Editora da revista Anos 90.


SCHMIDT, Benito Bisso; WEBER, Regina. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 25, jul., 2007. Acessar publicação original [DR]

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