Toda história é história conectada? / Esboços / 2019

História global, histórias conectadas: debates contemporâneos

Acrescente bibliografia do campo da História Global elegeu como um de seus principais alvos o que foi definido como “internalismo metodológico”. Tal postura se basearia, segundo as críticas dos historiadores globais, na supervalorização dos fatores internos à unidade de análise escolhida para a explicação e a interpretação dos processos históricos (GRUZINSKY, 2001; CONRAD, 2016, p. 108; MARQUESE, 2019). As unidades de análise variam do Estado-nação, base do recorrente “nacionalismo metodológico”, a comunidade étnica, civilização, império ou região, entre outras (CONRAD, 2016, p. 79; GUARINELLO, 2003).

Em contraponto, críticos da história global argumentam que a ênfase nas conexões e nos processos de integração acabam por criar histórias sem fronteiras, reiterando ideologias que apontam para a criação de uma “aldeia global”, integrada e harmônica, em que ideias, pessoas e bens circulariam em redes cambiantes de fluxos multiformes – ideologia particularmente artificial quando observada do hemisfério sul (BLAUT, 1993). A defesa das unidades de análise tradicionais e de seus fatores internos – o Estado-nação acima de todos – seria uma resistência à ideologia globalista subjacente à história global, condenada desde a concepção.

As respostas dos historiadores globais são variadas, mas, no geral, apontam para a incorporação das fronteiras como parte fundamental dos processos de integração (GUARINELLO, 2010). Longe de eliminarem as fronteiras em favor dos fluxos, os processos de integração e conexão também promoveriam a reconfiguração das fronteiras (CONRAD, 2016, p. 67). Assim, a ênfase nas conexões reposiciona o problema das unidades de análise em outros termos – Estados-nação, impérios ou comunidades étnicas definem seus contornos e limites em contextos mais amplos de contatos e interseções de fronteiras variadas (SUBRAHMANYAN, 1997). Não mais pressupostas, as fronteiras deixam de ser fundamento da historicidade para se tornar também componentes da problemática, discutidas em função de processos concretos que as ultrapassam, sendo ao mesmo tempo seus vetores.

Assim, a revista Esboços apresenta o dossiê Toda história é história conectada?, composto por cinco artigos, com escopos temporais e espaciais variados, que abordam, sob diferentes pontos de vista, a questão das conexões e das fronteiras, bem como da própria definição da história global.

José Ernesto Knust, em “Os Pláucios, a emancipação da plebe e a expansão romana: conectando as histórias interna e externa da República Romana”, realiza uma crítica radical da divisão que estruturou a historiografia sobre o período republicano em Roma: a “história interna”, dominada pelas guerras entre ordens (patrícios e plebeus), e a “história externa”, dominada pelas guerras de conquista da Itália e do Mediterrâneo. Essa divisão, arbitrária, define como fronteira da análise uma Roma raramente definida (uma cidade?, um estado?, a comunidade cívica?) e produz alguns enigmas insolúveis fora de uma história conectada. Um deles é a ascensão meteórica de uma família plebeia, os Pláucios, à mais alta magistratura romana, o consulado, sem antes ter ocupado qualquer magistratura menor.

Com base no caso dessa família, Knust demonstra que, enigmática quando se toma a história interna de Roma como fronteira, sua ascensão é compreensível quando se incorpora a história das comunidades vizinhas de Roma, onde a família já estava inserida em redes de elites. A ascensão dentro do estado romano, por sua vez, é fundamental para a compreensão de guerras no centro da Itália, que resultarão na criação de um império formado por um arranjo complexo de alianças particulares.

A história global oferece, segundo Knust, o impulso para a superação de fronteiras historiográficas insuficientes na direção da dimensão mediterrânica da circulação horizontal das elites, da reconfiguração de suas fronteiras intraelites e externas contra as comunidades camponesas (2019).

Em “Connecting worlds, connecting narratives: global history, periodisation and the year 751 CE”, Otávio Luiz Vieira Pinto realiza um exercício de história conectada reduzindo o escopo temporal ao ano de 751, ao passo que amplia o escopo espacial à Eurásia. Discute três processos históricos que têm nesse ano um marco fundamental: o conflito entre o Califado Abássida e o Império Chinês sob a dinastia Tang; a ascensão da família carolíngia no reino franco; a guerra iconoclasta e a ascensão ao trono bizantino de um imperador de origem centro-asiática.

O autor demonstra a conexão entre esses processos tomando o Império Bizantino como ponto de ligação – a decisão bizantina de se concentrar no oriente abássida em ascensão reforça a separação com a Europa ocidental, abrindo o terreno para a separação das igrejas e a construção de um império cristão europeu, o carolíngio. Assim, o ano 751 seria um marco não para a história de uma ou outra região, mas para a história da Eurásia, pois significou o fim da Antiguidade eurasiática com a instauração da divisão em três superpotências – Império Carolíngio no ocidente, Califado Abássida no centro, China Tang no oriente –, com consequências duradouras para o período medieval. As conexões, portanto, passaram pela formulação de novas fronteiras entre macrorregiões (PINTO, 2019).

O artigo “Más allá de una simple biografía: ‘el caso Cerruti’, una historia conectada y multinivel enlazada por un ‘historiador electricista’”, escrito por Luciana Fazio, é um exército de micro-história conectada, que toma como caso a “questão Cerruti”, a qual começa com a prisão de um imigrante italiano na Colômbia oitocentista e resulta numa crise diplomática de grandes proporções entre Itália e Colômbia. Para tanto, a autora articula processos históricos de natureza e escalas diversas: das estratégias comerciais, matrimoniais e políticas de um migrante italiano na Colômbia até a formação do Estado nacional colombiano; do terror da população de uma cidade portuária prestes a ser bombardeada até a afirmação do imperialismo italiano, do hispano-americanismo espanhol e da doutrina Monroe norte-americana.

Fazio analisa a história da migração, do imperialismo, da formação de um sistema comercial, financeiro e diplomático internacional, bem como da criação do Estado nacional e do nacionalismo, como macroprocessos, à luz do local/particular, superando separações arbitrárias de historiografias internalistas. A autora conclui, no entanto, que a história global pode ser empregada somente quando há globalização e suspensão das fronteiras – para ela, algo que se deu após os anos 1970 –, que são úteis na medida em que oferecem uma caixa de ferramentas boa para pensar processos históricos integrados, entre os quais se destaca a história conectada (FAZIO, 2019).

O quarto artigo do dossiê, “Contribuições preliminares da história universal de H.G. Wells: elementos de história socioevolucionista e da world history contemporânea”, escrito por Fábio Iachtechen, discute as escolhas científicas e as implicações geopolíticas do escritor britânico H.G. Wells na redação de sua História Universal, cuja primeira edição aparece em 1919. Contra histórias centradas na Europa e nos Estados-nacionais, Wells buscou nas ciências naturais a unidade fundamental da história, que seria a base para a construção de uma Liga das Nações que superasse os traumas da Primeira Grande Guerra.

Em Wells, não se trata de relatos conectados, já que as histórias das várias civilizações e “raças” são tratadas separadamente. No entanto, a discussão científico- -evolucionista que orienta a obra fundamenta uma “história unificada” do gênero humano, que parte de uma mesma raiz (IACHTECHEN, 2019).

O último artigo do dossiê é “Bandung, 1955: ponto de encontro global”, escrito pelas historiadoras Raissa Brescia dos Reis e Taciana Almeida Garrido Resende, que discute a produção e a interação das produções narrativas – em documentos, relatórios e revistas – acerca da unidade e das fronteiras dos países do Terceiro Mundo. Em função dos sujeitos e dos contextos discursivos, diferentes fronteiras eram engajadas na definição das prioridades da ação terceiro-mundista. Tratava-se de uma aliança de países não alinhados, que excluiria os alinhados a cada potência da Guerra Fria? Qual era o maior inimigo: o colonialismo europeu ou o em geral, incluído o comunista? A luta anticolonial se sobrepunha às disputas entre os países terceiro-mundistas? O Terceiro Mundo se centrava na Ásia ou na África? A luta anticolonial deveria ser feita por estados ou por movimentos sociais?

A conexão de diferentes pautas governamentais e ideias sobre geopolítica e relações sociais, em vez de suspender fronteiras, tornou-as mais complexas, mergulhada em tramas narrativas de sujeitos que disputavam posições dentro da nova comunidade (REIS; GARRIDO, 2019).

O dossiê, portanto, apresenta múltiplas respostas ao desafio colocado pelo paradigma da história conectada, identificada ou não com a história global. Historiadoras e historiadores especialistas em períodos diferentes, e com trajetórias formativas diversas, apontam para a multiplicidade pela qual as conexões são produzidas e produzem fronteiras tanto no nível dos objetos quanto no enquadramento historiográfico das pesquisas. Sem encerrar a questão, o dossiê apresenta mais elementos para o debate sobre os limites e as possibilidades da história global como conectada.

Referências

BLAUT, James M. The Colonizer’s Model of the World: Geographical Diffusionism and Eurocentric History. London: The Guildord Press, 1993.

CONRAD, Sebastian. What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016.

FAZIO, Luciana. Más allá de una simple biografía: “el caso Cerruti”, una historia conectada y multinivel enlazada por un “historiador electricista”. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 270-289, maio/ago. 2019.

GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories. Topoi, Rio de Janeiro, p. 175-195, mar. 2001.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Ordem, integração e fronteiras no Império Romano: um ensaio. Mare Nostrum, São Paulo, v.1, p. 113-127, 2010.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Uma morfologia da história: as formas da história antiga. Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 3, n. 1, p. 41-61, 2003.

IACHTECHEN, Fábio Luciano. Contribuições preliminares da História universal de H.G. Wells: elementos de história socioevolucionista e da world history contemporânea. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 290-308, maio/ago. 2019.

KNUST, José Ernesto Moura. Os Pláucios, a emancipação da plebe e a expansão romana: conectando as histórias interna e externa da República Romana. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 234-254, maio/ago. 2019.

MARQUESE, Rafael de Bivar. A História Global da escravidão atlântica: balanço e perspectiva. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 41, p. 14-41, 2019.

PINTO, Otávio Luiz Vieira. Connecting worlds, connecting narratives: global history, periodisation and the year 751 CE. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 255-269, maio/ago. 2019.

REIS, Raissa Brescia dos; RESENDE, Taciana Almeida Garrido. Bandung, 1955: ponto de encontro global. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 309-332, maio/ ago. 2019.

SACHSENMAIER, Dominic. Global History, Pluralism, and the Question of Traditions. New Global Studies, v. 3, n. 3, p. 1-9, 2009.

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: Notes Towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia. Modern Asian Studies, Cambridge, v. 31, n. 1, p. 735-762, 1997.

Alex Degan – Doutor. Professor adjunto, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Florianópolis, SC, Brasil. Organizador do dossiê Toda História é História Conectada? https://orcid.org/0000-0001-7359-0265  E-mail: [email protected]

Lindener Pareto Junior – Doutor. Professor titular, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Faculdade de História, Campinas, SP, Brasil. Pós-doutorando, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Campinas, SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-1441-4979  E-mail: [email protected]

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