Homoerotismo na Antiguidade / Hélade / 2016

O Grupo Gay da Bahia3 é uma conhecida entidade que, dentre outras coisas, elabora estatísticas acerca da violência motivada por homofobia e violações dos direitos humanos dos LGBTs no Brasil. Os números que divulgam são alarmantes. Em 2015, 318 homossexuais foram assassinados no país, taxa que indica uma queda desprezível quando comparada ao ano anterior, posto que em 2014 foram anotadas 326 mortes. Imagina-se, com algum grau de certeza, que esses números são tímidos diante da realidade. Em primeiro lugar, porque os cálculos dependem das notícias vinculadas pela imprensa, que não torna notícia a totalidade dos homicídios; em segundo lugar, pela dificuldade de reconhecer com precisão a influência da homofobia na irrupção de determinado assassinato. Ao fim e ao cabo, se os dados são alarmantes, temos razões para crer que a situação é bem mais hostil.

Avanços graduais foram conquistados nas últimas décadas. Há quase 27 anos, no dia 17 de maio de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU) retirava a homossexualidade do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). A resolução nº 001 / 99 de 22 de março de 1999, publicada pelo Conselho Federal de Psicologia4, seguindo as diretrizes que se consolidavam definitivamente no cenário internacional, considerou que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” e determinou que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em linhas gerais, graças aos esforços de muitos agentes envolvidos no debate, a livre vivência da sexualidade se tornou um importante topos de luta política em torno das garantias fundamentais dos indivíduos e seu desrespeito passou a ser considerado uma afronta aos direitos humanos.

Obviamente, as camadas mais conservadoras persistem oferecendo resistência a esses avanços. A força impositiva de um discurso tradicional, a heteronormatividade compulsória que caracteriza a educação e a socialização dos sujeitos, a ignorância ou mesmo o caráter duvidoso fazem com que muitos indivíduos – alguns deles com ampla visibilidade nos círculos midiáticos – persistam disseminando discursos de ódio e relativizando tais formas de violência. Partindo da presunção apocalíptica de que o respeito às liberdades individuais pode caracterizar uma ameaça às relações heterossexuais, esses grupos naturalizam o conceito de família, lançam a suposição sem lastro científico de um estado de inalterabilidade das relações afetivas e buscam associar a um discurso naturalizante as relações entre homens e mulheres, ignorando todas as inúmeras possibilidades existentes e que, não raro, eles próprios procuram reprimir. Ainda que discorrendo sobre a divisão binária dos sexos, Pierre Bourdieu percebeu em La domination masculine (1998) um dispositivo que vemos ser utilizado com substrato para a defesa intransigente da heternormatividade e consequente regulação das liberdades individuais, qual seja, uma espécie de “naturalização de disposições” através de discursos que presumem um tipo de ordem do mundo como fundamento primeiro para sua ação reativa. De acordo com o sociólogo, “a divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável” (BOURDIEU, 2007, p. 17).

A natureza é levada, nesse ponto, ao encontro da conveniência. A constatação é tão óbvia quanto necessária, afinal, a mesma natureza que foi enfrentada quando se colocou diante de nossas necessidades ao longo de toda a história humana, é a mesma que é evocada como argumento para restringir as afetividades e desejos que contrariam as expectativas de quem julga que o “natural” é a medida primeira para todas as coisas.

Desnaturalizar as relações sociais é, talvez, uma das necessidades mais prementes das Ciências Humanas como um todo, e da historiografia em particular. Através de argumentos sólidos, de evidências bem coligidas, de análises metodologicamente rigorosas e com refinamento teórico, somos capazes de substituir a perspectiva de uma “ordem do mundo” pelas várias ordens que nossos vários mundos vivem e viveram. Isso não significa, obviamente, ignorar a longa duração, as permanências e recorrências que caracterizam diversos momentos e processos históricos, mas indicar com precisão que o “nem sempre foi assim” enseja sempre um horizonte de mudança que nos liberta do jugo do status quo. Se algo foi diferente, em algum tempo e / ou espaço, é possível recuperar a lógica de que nada é inalterável e permanente. Inclusive nossas consciências. Inclusive nossos preconceitos.

Essa é uma das questões que sobrepairam os três volumes do célebre Histoire de la Sexualité (1976; 1984), de Michel Foucault. É precisamente pela via histórica (criticada por muitos, mas reconhecida em seus méritos por outros tantos) que o filósofo francês irá se aventurar para sustentar a hipótese de que a sexualidade – essa palavra que surgirá apenas no novecentos, ainda que seu referente não seja exatamente novecentista – não é unívoca em suas práticas e representações, nos discursos sobre suas peculiaridades, nos esforços de silenciamento e ocultação e nas manifestações de poder de um pudor vitoriano que por séculos buscou seu controle e / ou repressão. Assim Foucault sintetizou o projeto que se tornou um dos principais marcos nos estudos acerca da temática:

“Em resumo, para compreender de que maneira o indivíduo moderno podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma ‘sexualidade’, seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual, durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de desejo” (FOUCAULT, 2010, p. 12)

Sua leitura acerca da Antiguidade é um convite para que revisitemos um período histórico em que as visões e formas de experimentar a sexualidade, em geral, e o homoerotismo, em particular, confrontam o imperativo da naturalização que os discursos conservadores buscam impor para cercear direitos. Escusado lembrar que esse retorno não pretende recuperar um passado livre de todas as formas de controle dos corpos e dos afetos, onde as experiências individuais estavam livres de opressões diversas que interditassem os sujeitos da rígida observância de seus costumes e usos dos prazeres. No entanto, é preciso reconhecer a existência de diferentes formas de expressão do homoerotismo para que sejamos capazes de perceber, entre outras coisas, os limites e paradigmas acerca do comportamento sexual nas sociedades antigas e a forma com que foram representados na documentação a que temos acesso, permitindo assim colocar as sociedades pregressas e atuais em perspectiva através de suas similitudes e, principalmente, através das diferenças.

Os autores que contribuíram com esse dossiê recuperam esse debate e vão além, oferecendo assim uma valiosa contribuição para os Estudos Clássicos no Brasil. Abordar o tema do homoerotismo na Antiguidade Clássica – uma temática cujas análises e investigações cresceram exponencialmente nas últimas décadas – representa um esforço de posicionamento político que reforça a necessidade de persistirmos na busca de ampliação de direitos, de recrudescermos o acesso à cidadania e de combatermos, de forma intransigente, toda e qualquer forma de preconceito. A Hélade reforça, assim, seu compromisso de convidar as sociedades antigas a dialogar com os dilemas e conflitos na vida em sociedade.

Notas

3. Diversas informações podem ser consultadas na página da entidade: http: / / www.ggb.org.br /

4. Disponível em: http: / / site.cfp.org.br / wp-content / uploads / 1999 / 03 / resolucao1999_1.pdf. Acesso em 16 / 01 / 2017.

Referências

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – o uso dos prazeres. São Paulo: Graal, 2010.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representação e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ). E-mail: [email protected]

Anderson Martins Esteves – Doutor em Letras Clássicas, professor do Programa de Pós- -Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (ATRIVM-UFRJ). E-mail: [email protected]


MORAES, Alexandre Santos de; ESTEVES, Anderson Martins. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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