Imagem e Autoritarismo / Domínios da Imagem / 2019

É com muito prazer e gratidão que a Revista Domínios da Imagem vem a público trazer mais uma edição. É importante deixar claro o significado de todo esse prazer e gratidão, pois, em dias obscuros para a produção acadêmica e científica, o trabalho de produzir e divulgar os resultados de nossas pesquisas tornou-se cada vez mais uma atitude de resistência e de perseverança. Ao mesmo tempo, somos muito gratos por todos aqueles que dedicaram seu tempo para que essa edição se tornasse realidade. Agradecemos desde a colaboração dos autores que colocaram à disposição os magníficos trabalhos que compõem essa edição até nosso corpo editorial que conta com pessoas extremamente profissionais.

Quando foi gestada a ideia de produzir um novo dossiê para a revista, pensávamos sobre o alcance das imagens como comunicadores, tanto explícitos como implícitos, das mais diversas formas de violência e autoritarismo. Divagávamos sobre a importância da imagem no transcorrer da temporalidade para descrever e enunciar as mais diversas formas que a imposição de uma pessoa ou um grupo de pessoas pode ter sido realizada às custas de outras. Foi assim que “Imagem e Autoritarismo” ganhou vida e agora também ganhou fôlego.

Em “Como o mito das Amazonas se transformou na alegoria da América”, Adriano Rodrigues de Oliveira se debruça tanto sobre fontes literárias como também em fontes iconográficas para nos mostrar as transformações acerca da representação da mulher ameríndia como sendo uma mulher selvagem, com as vergonhas à mostra sempre portando seu arco e flecha. Imagens essas que se espalharam sobre a representação do próprio continente americano como local de hostilidade em detrimento de um homem europeu cristão e medieval. O trabalho de Oliveira se torna pertinente ao nos fazer olhar para a construção das narrativas e de mitos fundadores. Concomitantemente a isso, enfatiza a produção de preconceitos e hiatos que essas narrativas carregam em seu corpo semântico.

Nos transportando para o outro lado do mundo, Richard Gonçalves André nos proporciona um encontro com a censura no Japão pós-1945. Em “O Ogro e o Demônio: a representação fotográfica da devastação nuclear em ‘Hiroshima’, de Ken Domon (1945-1958), o autor problematiza tanto os textos como as fotografias do livro “Hiroshima” de Domon, muito marcados pela bomba nuclear de Hiroshima. Nesse trabalho, André investiga o olhar humanizador do fotógrafo e a representação da trajetória de pessoas que sobreviveram ao impacto da bomba. Por trás dessas narrativas, Domon tinha como interesse transformar o sofrimento pessimista e derrotista trazido com o fim da Segunda Guerra Mundial e consequentemente os ataques nucleares em “não-ditos” para que a atenção estivesse alinhada com a prosperidade e o crescimento econômico apresentados pela sociedade japonesa. Dessa forma, André traz à luz a utilização da imagem como ferramenta ideológica e acima de tudo como instrumento de negação de um passado não tão bem visto em detrimento de um possível futuro próspero.

Voltamos novamente para a América, mas uma América distante temporalmente daquela descrita por Oliveira. Dois trabalhos candentes são apresentados sobre o Brasil durante a Ditadura Militar (1964-1985). Maria Elisa de Carvalho Sonda nos presenteia com “Para além das fronteiras discursivas: uma análise desconstrutora de Iracema, uma transa amazônica (1974)”. Se utilizando de fontes audiovisuais, Carvalho Sonda analisa os efeitos negativos ocorridos na exploração predatória da Amazônia durante o crescimento econômico anunciado pelos militares durante a década de 1970. Contextualizado com a construção da rodovia Transamazônica, a ficçãodocumental que serve como fonte de pesquisa da autora faz parte da linguagem do cinema verdade, que tem como um de seus princípios fundantes produzir o efeito do real. O trabalho de Carvalho Sonda se torna extremamente candente com a realidade vivenciada em nossa atualidade. A autora nos permite entrar em contato com a visão dos idealizadores de Iracema uma transa amazônica, que há quase meio século já abordavam os problemas ambientais que ainda discutimos nos dias de hoje. Além disso, outro aspecto que torna o trabalho de Carvalho Sonda de grande importância diz respeito ao cinema como forma de resistência ao Regime Militar brasileiro e sua visão unilateral de desenvolvimento não sustentável.

A mesma relevância pode ser observada no trabalho “Fotojornalistas brasileiros em época de ditadura: entre a estabilidade e o compromisso”, de Carlos Alberto Sampaio Barbosa. Em seu artigo, Barbosa discorre sobre três fotojornalistas brasileiros, Pedro Martinelli, Juca Martins e Jesus Carlos. Ao analisar as transformações do fotojornalismo brasileiro durante a Ditadura Militar, Barbosa também nos descreve um continente Latino-Americano conflituoso, especialmente os casos da Nicarágua e El Salvador, países em que Martinelli e Martins tiveram maior contato, enquanto Jesus teve posição mais radical ao representar a luta contra a ditadura brasileira. Em momentos que observamos uma América Latina novamente efervescente, com os conflitos no Chile, na Venezuela, na Bolívia e a polaridade política no Brasil, o trabalho de Barbosa é um ótimo olhar retrospectivo de nossa história de lutas e violência que permeiam o povo latino.

Agora nos deslocamos para o eixo da América do Norte, em especial para os Estados Unidos. Os trabalhos de Mariana Furio, Danilo Pontes Rodrigues e José Rodolfo Vieira se entrelaçam para discutir as narrativas sobre o imperialismo estadunidense na perspectiva de três autores e ilustradores de histórias em quadrinhos distintos. Coincidência ou não, os três trabalhos trazem tanto a temática narrativa como a fonte de pesquisa muito semelhantes, o que nos faz pensar como as próprias HQ’s podem ser consideradas elementos importantes para se discutir a história de uma nação. Em “O Comediante em Watchmen: uma paródia premeditada para a retomada do nacionalismo estadunidense”, Furio traz à tona a narrativa de Alan Moore em um mundo distópico em que a ameaça de uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética está à beira de ser iniciada. Com seu recorte, Furio analisa a representação da personagem Comediante, um veterano de guerra, na batalha de Saigon no Vietnam. O intuito da autora é estabelecer vínculos entre as características militaristas do Comediante com o crescimento dos valores conservadores e nacionalistas nos Estados Unidos com o advento do século XXI.

Mais adiante, o trabalho de Danilo Pontes Rodrigues, “Doutrina Bush e violência em In the Shadow of no Towers de Art Spielgeman” discute as representações artísticas de Art Spielgeman após os ataques contra as Torres Gêmeas em 2001. Nesse artigo, o autor realiza os paralelos entre as ações tomadas pelo governo Bush, também conhecidas como Doutrina Bush, e as representações na história em Quadrinhos Shadow of no Towers. Dentre os elementos alavancados por Rodrigues, é possível observar a implementação do Patrioct Act e a privação às liberdades dos cidadãos estadunideses e as guerras no Afeganistão e no Iraque.

José Rodolfo Vieira, em “Footnotes in Gaza: Representações sobre o Hamas durante as eleições na Palestina por meio das Histórias em Quadrinhos de Joe Sacco (2002-2010)”, foca em descrever e analisar as representações tanto no trabalho de Joe Sacco como também nas representações de grandes comunicadores sociais estadunidenses, tais como o The New York Times e o The Washgington Post, e averiguar a construção de narrativas acerca do grupo fundamentalista Hamas durante as eleições de 2006 para o corpo legislativo palestino. Em seu trabalho, podemos observar como os Estados Unidos articularam para que o Hamas não fizesse parte do pleito eleitoral e como foi realizado um movimento de negação após a vitória do grupo contra seus adversários do Fatah, esses últimos alinhados à política estadunidense.

Por fim, também contamos nessa edição com a resenha realizada por Jorge Edson, do livro “Guerra Civil e Super-Heróis: Terrorismo e contraterrorismo nas Histórias em Quadrinhos”, de Victor Callari. Tal como os textos de Furio, Rodrigues e Vieira, o trabalho apresentado também tem como objeto de estudo os Estados Unidos. Edson apresenta os pontos importantes da narrativa construída por Callari e seu levantamento sobre como as Histórias em Quadrinhos tiveram relações com a política, a cultura e a economia dos EUA. Com ênfase na editora Marvel Comics, o panorama construído por Edson é muito importante para aqueles que tem como fonte de pesquisa a arte sequencial e se interessa pelos estudos da história dos Estados Unidos. Portanto, podemos dizer que as expectativas e as hipóteses levantadas quando à gestação desse dossiê foram fartamente correspondidas. Não somente pela diversidade de temas que foram abordados, como também o entrelaçamento de trabalhos que discorrem sobre um objeto muito semelhante. O resultado desse trabalho não poderia ter sido melhor e, por isso, desejamos a nossos leitores uma boa leitura e bons momentos de reflexão.

Até a próxima e obrigado!

José Rodolfo Vieira –  Organizador do dossiê


VIEIRA, José Rodolfo. Apresentação. Domínios da imagem, v. 13, n. 24, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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