Na trama das redes – FRAGOSO; GOUVÊA (VH)

FRAGOSO, João e GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 599p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Em 2001, o livro O Antigo Regime nos trópicos, constituiu-se num conjunto de resultados inovadores, tanto quanto instigantes, sobre as peculiaridades da dinâmica imperial portuguesa. Entre suas principais constatações, encontravam-se: a) “a importância da dinâmica imperial constituída pelas conexões e interações de diferentes formas sociais, que iam desde a sociedade aristocrática reinol, passando pela escravidão americana, pelas hierarquias sociais africanas e pelas que configuravam o Estado da Índia”; b) a de visualizar as “discussões em voga acerca do processo de formação do Estado Moderno, por meio das quais se questionou o suposto caráter absolutista e/ou centralizado dos impérios ultramarinos português, britânico, dentre outros”; c) a de que “minhotos, açorianos e outros reinóis haviam chegado e se instalado nos trópicos, criando uma sociedade dita colonial, com um universo mental e cultural que lhes era próprio”, quer dizer, “as características de Antigo Regime com a sua concepção corporativa de sociedade”; d) e, enfim, “a compreensão de que tal concepção de mundo constituí-se em um dos pontos de partida desse processo de organização social, havendo ainda vários outros” (p.13-14). Assim, consideravam João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, ao fazerem um rápido balanço daquele empreendimento, e demonstrarem sua contribuição para a consecução de Na trama das redes. Mesmo que não seja tão direta sua relação com o livro: Conquistadores e negociantes, de 2007, que perscrutou a história e a organização das elites do Antigo Regime nos trópicos, evidentemente, tal projeto contribuiu para o amadurecimento dos resultados que o leitor encontrará em Na trama das redes.

Neste novo livro coletivo, que em muitos pontos dá continuidade ao anterior, O Antigo Regime nos trópicos, há um avanço considerável sobre o tratamento dado a essas e a novas questões, assim como sobre as fontes, os grupos e os indivíduos. A reunião de 16 textos, distribuídos em quatro partes não foi casual. Ela constitui uma bem fundamentada proposta, articulada teórica e metodologicamente entre suas partes. Na primeira, Debates entrecruzados: estados modernos e impérios ultramarinos, encontram-se dois textos, de António Manuel Hespanha e o de Jack P. Greene. Na segunda, Redes e hierarquias sociais no império, há outros cinco, de Mafalda da Cunha, Maria de Fátima Gouvêa, Roquinaldo Ferreira, João Fragoso, e o de Ronaldo Vainfas. Na terceira, O império e seus centros, há mais quatro, de Nuno Monteiro, Maria Fernanda Bicalho, Júnia Furtado, e o de Francisco Cosentino. Na quarta e última parte, Povos e fronteiras imperiais, encontramse outros cinco textos, de Hebe Mattos, Antonio Carlos de Sampaio, Luís Frederico Antunes, Nauk de Jesus, e o de João José Reis.

Todos os trabalhos visam explorar as peculiaridades do Antigo Regime estabelecido nos trópicos, a partir da pormenorização das redes socioculturais e das tramas políticas e econômicas que as compuseram entre os séculos XVI e XVIII. Não por acaso, a “conquista e a organização da sociedade nos trópicos pelos portugueses foram presididas por conjuntos de valores e sistemas de regras vindas da Europa meridional: a concepção corporativa da sociedade” (p.15), amplamente transplantada para as Américas (Portuguesa, e também Hispânica). Daí a importância de se estudar indivíduos e grupos, que se estabeleceram nos trópicos, fazendo amplo uso dessas estratégias para constituírem suas redes sociais, políticas e econômicas, assim como seus desdobramentos culturais ao longo do tempo. Se tal questão foi comum no Antigo Regime, dado que o funcionamento corporativo da sociedade a viabilizava nos trópicos como os autores demonstram, apesar do ambiente favorável, a transplantação desses modelos de sociabilidade, não deixaram de despertar certas resistências, que não se limitaram aos nativos, o que os fez encontrarem respostas e tramas originais para a sua boa execução. E é detendo-se sobre alguns desses exemplos, um dos pontos altos da coletânea, que os ensaios demonstram de que maneira houve a trama de certas redes, vinculando os indivíduos, a projetos de cunho político, econômico, social e até cultural – por darem alguns dos principais contornos ao espaço público e privado, e que, por sua vez, organizariam determinadas formas de sociabilidades entre seus habitantes. Aí se justificaria o estudo de personagens, como: o capitão Manuel Pimenta Sampaio, João Soares (pardo), d. Luis da Cunha, Luis César de Meneses, Manuel Pimenta Tello, dentre outros, que firmaram suas relações sociais nos trópicos, em corporações que formariam tentáculos que se prolongariam no tempo, estabelecendo redes de sociabilidade, cuja função, entre outras coisas, estava em efetuar a manutenção das classes dirigentes nessas terras.

Para levarem a bom termo tal empreendimento, eles fizeram uso de termos como monarquia pluricontinental, que “é entendida como o produto resultante de uma série de mediações empreendidas por diversos grupos espalhados no interior do império” (p.17). Nela se encontraria o reino de Portugal, único a operacionalizar as tramas com os trópicos, e também estaria cerceado por uma só aristocracia e diversas conquistas. Pois, as ramificações dos governos no Novo Mundo, gerando autogovernos, em muitos casos, independentes a centralização metropolitana, “foram veiculadas nas práticas e vontades surgidas no âmbito das relações sociais daquelas mesmas localidades (…) produzidas pela interação de agentes sociais como potentados, escravos minas e crioulos, índios e pardos”. Contudo, mais “importante é perceber que tais práticas e costumes veiculados pelas instituições locais eram reconhecidos em termos do próprio princípio de autogoverno praticado pela monarquia portuguesa” (p.18). Nesse sentido, o “império resulta (…) do processo de fusão da concepção corporativa e da de pacto político, fundamentada na monarquia, e garantindo, por princípio, a autonomia do poder local”. É dentro dessas circunstâncias específicas, que a “monarquia pluricontinental se torna uma realidade graças à ação cotidiana de indivíduos que vivem espalhados pelo império em busca de oportunidades de acrescentamento social e material” (p.19).

Assim caminham os textos de António Hespanha e o de Jack Greene, ao procurarem demonstrar a especificidade do império português nos trópicos. Para o primeiro, este seria definido pela “justaposição institucional, pluralidade de modelos jurídicos, diversidade de limitações constitucionais do poder régio e o consequente caráter mutuamente negociado de vínculos políticos” (p.57), enquanto para o segundo, completando a argumentação do primeiro, para a obtenção do “consentimento e [d]a cooperação daquelas classes, os oficiais metropolitanos não tinham outra escolha a não ser negociar com eles sistemas de autoridades” (p.111), nos quais esse “processo de barganha, tão semelhante ao que caracterizou a formação do Estado nos primórdios da Europa moderna, produziu variações de governo indireto que ao mesmo tempo definiu fronteiras claras em relação ao poder central, reconheceu os direitos das localidades e das províncias a vários graus de autogoverno e assegurou que, em circunstâncias normais, as decisões metropolitanas que afetassem as periferias teriam de consultar ou respeitar interesses locais e províncias” (p.111-12).

A par dessas questões, e dos resultados que oferece de acordo com a ação e a forma de organização dos grupos e dos indivíduos no poder, o texto de Mafalda da Cunha perscruta como se conformaram certas redes sociais em torno dos recrutamentos de governantes no período das conquistas (entre 1580 e 1640), muito semelhante ao que fez Maria de Fátima Gouvêa ao estudar as redes governativas portuguesas, e a maneira como ocorreram as centralidades régias no mundo português (entre 1680 e 1730). Por sua vez, o texto de Roquinaldo Ferreira se deterá sobre as redes de comércio ilegal no mercado ultramarino português (de 1690 a 1750), enquanto João Fragoso irá questionar a forma pela qual se compunham as hierarquias sociais no Rio de Janeiro do século XVIII, por meio da investigação da trajetória do capitão Manuel Pimenta Sampaio. Com o objetivo de rastrearem os vários centros, em torno do império português, Nuno Monteiro reconstituirá a ‘tragédia dos Távoras’, por meio da análise da estrutura de parentesco, das redes de poder e as facções políticas na monarquia portuguesa do século XVIII. Maria Fernanda Bicalho o fará dando ensejo a interpretação das tramas políticas que se formaram em torno dos conselhos, secretários e juntas na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos. Ao centrar sua análise na trajetória de dom Luis da Cunha, Júnia Furtado, objetivou vislumbrar a organização geopolítica do novo império luso-brasileiro.

Desnecessário se alongar nos exemplos que são explorados por outros ensaios, visto que eles próprios também fazem parte de uma trama bem articulada pelo conjunto dos textos. Portanto, ao se apoiarem nas sugestões de Barth, Grendi e Levi de que “todos os sistemas de normas são incoerentes, na medida em que estão em contínuo movimento” (p.16), que em seus ensaios os autores procuraram visualizar o impacto desse tipo de movimento contínuo na conformação das tramas políticas e econômicas, ao mesmo tempo formadoras de redes socioculturais e de seus desdobramentos no tempo, assim como de suas dissoluções e reformulações em formas metamorfoseadas, mas nem sempre totalmente novas, pois, alicerçadas sobre ramificações forjadas no passado, que manifestavam a ambição de manter certa continuidade no tempo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Professor da UEMS. [email protected].