Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII – FRAGOSO; MONTEIRO (LH)

FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2017, 476 pp. Resenha de: SUBTIL, José. Ler História, v.75, p. 279-283, 2019.

1 O tema da comunicação política, entre o reino e o Brasil, no interior do próprio reino e no Brasil, durante o Antigo Regime, tratado de forma quantitativa, é um projeto valioso pelas consequências que poderá ter na avaliação dos sistemas de decisão, taxonomia das tipologias peticionárias e processuais, assuntos de governo, atores políticos envolvidos e qualidade dos circuitos e das tramitações documentais. Sendo assim, os resultados dos programas de investigação que estão na origem do livro aqui recenseado ganhariam tanta mais relevância quanto maior fosse a evidência dos mesmos, a organização coerente dos temas, o desenvolvimento dos seus conteúdos e a metodologia de análise. Como veremos mais adiante, o critério seguido na sucessão dos capítulos e nas temáticas abordadas não acompanhou esta opção metodológica.

2 Na apresentação do livro, organizado por João Fragoso e Nuno Monteiro, somos levados a crer que o mesmo assenta no projeto financiado pela FCT “Comunicação Política na Monarquia Pluricontinental Portuguesa (1580-1808) : Reino, Atlântico e Brasil” (Projeto 1, P1), submetido em 2008. No entanto, aparece também a referência a um outro, do mesmo ano, de João Fragoso, Isabel dos Guimarães Sá e Nuno Monteiro, “A Monarquia e Seus Idiomas : Corte, Governos Ultramarinos, Negociantes, Régulos e Escravos no Mundo Português, Séculos XVI a XIX” (Projeto 2, P2), financiado por um convénio FCT/CAPES. Teria sido oportuno que se tivesse explicitado, com clareza, quais os registos documentais de cada projeto que suportaram os vários capítulos da obra como, também, o uso das confluências de informação e dos períodos temporais, justamente por terem enquadramentos diferentes.

3 No guião de recolha da informação do projeto P1, segundo o quadro 2, foram definidas 11 categorias de emissores (governo, justiça, igreja, municípios, irmandades e confrarias, militar, mecânicos, comércio, fazenda, particulares e outros) e, pelo quadro 3, ficamos a conhecer as tipologias de assuntos, enquanto a tabela 5 justifica a seleção dos períodos escolhidos por razões políticas e “operacionais”. As fontes utilizadas para o Brasil foram o espólio do Arquivo Histórico Ultramarino, a documentação microfilmada pelo Projeto Resgate e, para o reino e Açores, os livros de registo de alvarás, provisões e cartas à guarda dos respetivos arquivos municipais. A base de dados criada conta com 38.060 registos, sendo 11.347 para o reino (período 1621-1807, 187 anos), referentes às câmaras de Viana, Évora, Vila Viçosa, Faro e Ponta Delgada, e 26.713 para as capitanias de Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Grão-Pará, Maranhão, Minas Gerais, S. Paulo e o Reino de Angola durante o século XVII (1640-1656 e 1680-1690, 28 anos) e o século XVIII (1725/26, 1735/36,1755/56,1763/64 e 1785-95, 19 anos).

4 A tabela 8 expressa a grandeza dos dados das capitanias. Apesar dos erros evitáveis nas somas das colunas e de a tabela contemplar uma rubrica designada por “Demais anos” (quais ?), ficamos a saber que o ritmo médio da comunicação política global foi, no século XVII, de 12 documentos por mês e, no século XVIII, de 70 por mês, embora a população do Brasil tenha aumentado em quase 12 vezes. No encalce de mais dados compulsados em vários outros quadros, o certo é que não há uma conclusão geral ou conclusões parciais sobre o significado das tendências que se verificaram no plano burocrático. Evoluções que possam, inclusive, traduzir mudanças políticas e administrativas nos órgãos da administração central da coroa e, no Brasil, nos governos das capitanias, nos municípios e no governo central. Por outras palavras, as informações avançadas ganhariam muito se tivessem sido mais bem contextualizadas e comparadas.

5 A equipa de investigação do projeto P1 contou com 33 investigadores, 23 eram alunos de universidades brasileiras, três bolseiros da FCT e sete professores. A redação dos 12 capítulos foi da responsabilidade de oito destes investigadores, a que se juntaram outros oito que não fizeram parte da equipa. Temos, portanto, 25 investigadores que recolheram dados e 16 autores de textos, num total de 41 colaboradores. Das 467 páginas (12 capítulos e uma apresentação), 67 páginas (14 %) são de notas e bibliografia por cada capítulo, 64 tabelas, 67 gráficos e 3 quadros, a que correspondem cerca de 80 páginas (17 %). Se ficamos sem saber o nível de envolvimento dos investigadores da equipa do projeto P2, só esta revelação acentua a grandiosidade do programa de investigação em que o livro se fundamenta e, sem dúvida, a complexidade da sua coordenação, o que, em parte, pode explicar alguns dos reparos feitos à organização da obra. Também por tudo isto se justificava que a base de dados fosse disponibilizada online de forma a servir toda a comunidade de investigadores, no Brasil e em Portugal, à semelhança de outros programas financiados pela FCT.

6 Por várias razões, que adiante se verão, não é fácil descortinar uma justificação para alguns capítulos, tendo em conta que não acompanham o guião do projeto quanto às tipologias, os períodos cronológicos e a escolha dos emissores, e outros capítulos utilizam bases de dados diferentes, o que dificulta a perceção da coerência dos dados. Também parece que ficaram comprometidas algumas promessas, como a “matriz institucional da administração”, a “multiplicidade de atores e de mudanças ocorridas na comunicação”, o “estatuto político das câmaras municipais ultramarinas com as situadas no Reino e nas Ilhas”, as “variações no tempo e, sobretudo, apreender as diversidades geográficas e a mediação dos agentes […] produtores, os ritmos de produção, os canais de circulação, a tipologia dos assuntos, e, por fim, o destino final das solicitações feitas das periferias para o centro, e deste para as periferias”.

7 No que respeita às tipologias anunciadas na apresentação, apenas os capítulos 5, 6 e 7 tratam de algumas, como a fiscalidade, assuntos militares, economia e comércio. E o capítulo 1, que aborda um dos temas centrais do livro, a economia das mercês, utiliza dados do projeto P2 e não do projeto P1, o que deveria ser devidamente explicado. Os capítulos 2 e 4 aparentemente não decorrem do guião referente ao programa da investigação por abordarem, respetivamente, o tema da representação política e a difusão da legislação régia sem utilização dos dados do projeto e, por isso, surgirem como peças avulsas. A matriz institucional apresentada e trabalhada nos capítulos 3, 8, 9 e 10 aborda o Conselho Ultramarino, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, os governadores reinóis e ultramarinos, corregedores, ouvidores e senados municipais.

8 Sabe-se hoje, com razoável conhecimento, que esta rede institucional não reflete a complexidade da comunicação política nem elenca a singularidade brasileira. A esmagadora maioria das petições e/ou processos fazia o trânsito de pareceres e/ou consultas por vários tribunais e conselhos, entre os quais o Conselho Ultramarino era, sem dúvida, um dos polos, mas que foi sistematicamente desautorizado com os conflitos jurisdicionais com o Desembargo do Paço, que nunca perderia a jurisdição dos provimentos de lugares de letras (ouvidores, intendentes, provedores e juízes de fora), com o Conselho da Fazenda, que manteria a jurisdição sobre os assuntos da fazenda real, e com a Mesa da Consciência e Ordens, que tratava as questões relacionadas com a natureza dos índios, a legalidade do comércio dos escravos ou o problema da chamada “guerra justa” e tinha jurisdição sobre parte do clero. Tudo isto sem esquecer a indispensável intervenção dos procuradores da coroa com assento em cada tribunal e conselho. Será certamente pelo facto de a centralidade da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar e da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, a partir do pombalismo, estar evidenciada nos núcleos do ANTT e não no AHU que não terá sido dado o destaque quantitativo a esta mudança política.

9 Os governadores das capitanias e os governadores reinóis são dois cargos com funções muito distintas. Enquanto no reino se ocupavam de assuntos militares, no Brasil governavam. Sobre corregedores e ouvidores, que não comunicaram, obviamente, com o Conselho Ultramarino, só podem ser comparados com muita reserva. A existência de um ouvidor-geral na sede da capitania, e não de um ouvidor de comarca (exceção para Minas Gerais), conferia a estes magistrados uma abrangência territorial imensa, de onde que a diferença com os corregedores decorria, sobretudo, das escalas cartográficas, mobilidade das fronteiras e ambientes rústicos, com consequências na configuração das pluralidades e autonomias jurisdicionais. Sobre os municípios (capítulo 10), com uma abordagem temporal também diferente do projeto P1, sobressai a ideia de que as câmaras, quase todas de juízes ordinários, produziram uma média de quatro documentos por ano para comunicarem com a coroa. Nos dois últimos capítulos, um sobre Luanda, indica-se uma produção de um a sete requerimentos por ano, enquanto um outro capítulo reserva a atenção para as petições em grupo (moradores, nobreza, lavradores, confrarias, misericórdias e câmaras).

10 De notar, ainda, omissões importantes na matriz institucional apresentada, talvez por razões documentais. Não é invocada a modalidade inusitada de juízes ordinários sem câmaras (desde 1732), que a coroa aceitou como “provisional”, e a rede de juízes de vintena (ambos eletivos), como não são referidos os (super)intendentes que respondiam diretamente à corte e não obedeciam aos governadores nem aos ouvidores e, também, o expediente de governar através de juntas colegiais (à maneira das Cortes), provisórias e ocasionais (camarárias, de capitania, fazenda, comércio e justiça), embora tenha sido anotada a sua emergência no capítulo 2. Mas estas foram, sem dúvida, as grandes novidades político-institucionais ensaiadas na colónia que, pelas suas caraterísticas e idiossincrasias, deixaram poucos artefactos arquivísticos, embora possam influenciar a apreciação e a crítica aos dados recolhidos pelo(s) programa(s) de investigação.

11 Do ponto de vista historiográfico, o livro assume como estratégico evidenciar a existência de uma “monarquia pluricontinental” que se terá cimentado à custa da economia das mercês, das suas dependências e obediências, desenvolvendo uma centralidade no príncipe para satisfação de serviços e privilégios. No primeiro e maior capítulo sobre as mercês, a tabela 1.3 diz-nos que o ritmo das petições de mercês foi de 4,5 por mês e não ultrapassou 10 % do conjunto das tipologias (governo, fiscalidade, economia, escravidão, câmaras). Verificamos, também, ao longo das estatísticas produzidas que a comunicação política foi de baixa intensidade. Entre 1621 e 1808, no que aos municípios diz respeito (reino e Brasil), excluindo o governo da câmara, temos uma média de cerca de duas remessas por ano (ou quatro se incluirmos o governo das câmaras), enquanto as capitanias produziram perto de dez remessas por mês.

12 Sobre os provimentos de ofícios sabe-se hoje, relativamente bem, que encontraram imensas dificuldades para serem satisfeitos, pese o esforço na divulgação dos concursos, obrigando, portanto, à prorrogação dos mandatos. Este bloqueio levou os governadores das capitanias e os senados das câmaras a usarem, com grande autonomia e arbitrariedade, o mecanismo ilegal de atribuição de ofícios cujos encartes passaram, desta forma, a promover e a consolidar redes clientelares de favores, compensações e concessões de privilégios locais e regionais, fugindo à consagração simbólica do monarca. E esta desvalorização do exercício da graça cresceu, também, por causa do regime da venalidade. Desde o início do século XVIII que os ofícios a criar ou já criados, excluídos os da fazenda, podiam ser vendidos em leilão a quem oferecesse um “donativo” à coroa que justificasse o encarte (“direito antidoral e consuetudinário”). Esta singularidade não foi desenvolvida no livro nem foi explicada a sua ausência.

13 Talvez possamos dizer, em síntese, que, devido aos propósitos anunciados no(s) programa(s), ao enorme caudal de informação disponibilizada, embora com o desencontro de alguns dados, ao meritório e significativo problema historiográfico levantado, se justificaria uma conclusão geral mais desenvolvida com a retoma da tese da proeminência das mercês (economia da graça) como aglutinadora, por um lado, de uma monarquia pluricontinental e, por outro, como o cimento da comunicação política com a coroa. A demonstração desta tese não nos parece que esteja suficientemente evidenciada nos diversos textos da obra, alguns mesmo contraditórios com o propósito da mesma, nem tão-pouco está revelada nos dados quantitativos e nas análises qualitativas. Seria, obviamente, uma grande novidade historiográfica que mudaria diversas perspetivas políticas sobre o império e, por isso mesmo, pedia e merecia uma abordagem eminentemente estruturante.

José Subtil – Universidade Autónoma de Lisboa. E-mail: josemsubtil@gmail.com.

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Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII – FRAGOSO; MONTEIRO (LH)

FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2017, 476 pp. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Ler História, v.75, p. 275-279, 2019.

1 O livro organizado por João Fragoso e Nuno Gonçalo Monteiro recoloca a problemática do império marítimo português, em particular aquela dedicada a investigar as dinâmicas imperiais nos séculos XVII e XVIII. O título, é certo, evita a palavra império e adota uma fórmula original, “um reino e suas repúblicas no Atlântico”. O termo república, aliás, como bem sabem os especialistas, procura exprimir o que, na documentação da época, aparecia como conquistas ou domínios ultramarinos, raramente como colónias, exceto a partir do final do século XVIII. É opção interessante, pois além de mais ou menos frequente em documentos coevos, tal nomenclatura ilustra a perspectiva jurisdicional, uma vez focada nos sistemas e agentes da comunicação entre as diversas esferas de poder, desde as instituições administrativas do reino às agências locais, a exemplo das câmaras municipais, passando pelas governanças coloniais, fossem estados ou vice-reinos, sem prejuízo de outras instâncias de peso, como juizados vários, tribunais de segunda instância e corporações militares.

2 A obra se insere, portanto, na corrente revisionista da história portuguesa e ultramarina do Antigo Regime, embora também este conceito seja motivo de polêmica entre os historiadores, nos últimos vinte anos, quando aplicado às sociedades coloniais da época moderna. Polêmicas sobre a nomenclatura têm sido, de facto, muito intensas neste campo de estudos, e se, por vezes, exprimem divergências meramente nominalistas, outras vezes se relacionam a questões relevantes de ordem conceitual, tingidas por colorações políticas e ideológicas, em maior ou menor grau. Exceções à parte, as polêmicas deste campo de estudos me parecem cientificamente elevadas e se relacionam ao nó da questão. Trata-se, antes de tudo, de definir o estatuto das relações entre a coroa portuguesa e suas possessões marítimas. Trata-se, ainda, de compreender a dinâmica dessas relações que, obviamente, se modificaram ao longo dos séculos. Trata-se, em especial, de relacionar esta dinâmica com as diversas territorialidades, com as instâncias hierarquicamente graduadas de governança e com os agentes de poder em vários graus. Em uma fórmula banal : identificar quem mandava em quem, quando, onde e porquê ; e, sobretudo, como se comunicavam as diferentes esferas de poder, sobre quais temas, com que frequência, quem as protagonizava.

3 Claro está que o objeto de investigação em causa pressupõe a delimitação do todo e das partes. Da unidade e de seus componentes. Um reino e suas repúblicas é título sugestivo, como já disse, mas não pretende, quero crer, dar conta do imbróglio conceptual que a questão encerra. Diversos livros, seja os da historiografia tradicional, seja os da revisionista, recorrem à palavra reino para aludir à cabeça deste complexo sociopolítico, palavra que se reveza com coroa, monarquia, metrópole e império. A problemática de fundo reside nos nexos entre o centro e as periferias do mundo português, como sugeriu Russel-Wood, em texto clássico, embora o mesmo autor aponte que tais vínculos eram complexos, dinâmicos e relacionais. Determinada periferia poderia funcionar como centro de outras periferias do ponto de vista comercial, administrativo ou jurisdicional. O próprio Portugal, centro inconteste de suas conquistas ultramarinas, passou à órbita das monarquias secundárias da Europa após 1640, justamente na época em que o reino brigantino buscou incrementar seus mecanismos de controle, em especial sobre o Brasil e a África centro-ocidental.

4 Império ? Eis-nos diante de um conceito tremendamente complicador nas definições da unidade, decerto maior, dos dilemas relacionados às periferias. No livro em causa, evita-se o império no título, bem como na excelente apresentação dos autores sobre as pesquisas nele contidas. No prefácio assinado por António Manuel Hespanha, porém, “império português” é expressão usada sem hesitação, embora o autor a utilize exatamente para sublinhar o descentramento dele, considerado o “desenho de centros de decisão de vários níveis, interconectados segundo uma geometria variada…”. Um império fragmentado, descentralizado. Império sem unidade. Não é de estranhar que Hespanha assim o defina, sendo autor de obra matriz do revisionismo historiográfico português quanto ao caráter absolutista da monarquia, definindo-a como polissinodal, para sublinhar a pluralidade, quando não justaposição, das jurisdições decisórias até meados do século XVIII. Poucos estudos do livro adotam o império como referência e apenas um o estampa no título.

5 O conceito, ou apenas a expressão, de império português é aspecto central desta temática, considerada a trajetória de seu uso e a claudicação dos historiadores atuais em adotá-la. O livro em foco ilustra o dilema, embora prevaleça alguma parcimônia na utilização do termo, que perde, em menções, para a noção de reino. Mas, paradoxalmente, a restauração inovadora do conceito de império faz parte do revisionismo historiográfico das últimas décadas, seja do lado português, seja do brasileiro. Os organizadores se referem ao império a propósito da unidade que o mundo português teria eventualmente construído na época estudada : “no Setecentos, o termo ‘império’ parece ter tido uma utilização escassa, sobretudo literária, tornando-se mais frequënte em finais do século, também por influência da economia política”.

6 Estão certíssimos, se lembrarmos que D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da coroa, foi quem praticamente cunhou o termo “império luso-brasileiro”, em sua memória de 1797. Considerando que, após a independência das colônias inglesas da América do Norte, o império português corria o risco de fragmentar-se, sustentou a necessidade de reformas que aliviassem a pressão, sobretudo fiscais, sobre os colonos do Brasil. Recorrendo ao pensamento dos fisiocratas e de Adam Smith, pretendeu reforçar a unidade das conquistas como um todo. Concebeu um império que apostasse nas horizontalidades territoriais, sem destroçar a verticalidade inerente a um império colonial. “Afrouxar os laços para manter o enlace”, assim Fernando Novais se referiu ao projeto setecentista do Conde de Linhares. Quase sessenta anos antes de D. Rodrigo, D. Luís da Cunha havia exposto tese semelhante, nas Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, de 1736, que viu no Rio de Janeiro a vocação para encabeçar um império atlântico português, no lugar de Lisboa. Romero de Magalhães o definiu, por isso, como um “visionário radical”, embora fosse ele, D. Luís, um ilustrado calculista. Chegou D. Luís a escrever que, por ser “florentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil”, deveria o rei de Portugal tomar o título de “imperador do Ocidente” e ali estabelecer-se. O historiador brasileiro Evaldo Cabral de Mello abriu com D. Luís da Cunha um texto intitulado “Antevisões imperiais”, publicado em Um imenso Portugal (2002). De sorte que Fragoso e Monteiro estão certos ao indicar que o conceito de império, em Portugal, foi uma formulação tardia. O império luso-brasileiro, ao concretizar-se nos primeiros anos do XIX, preludiou a emancipação política do Brasil, como afirmou Emília Vitti da Costa.

7 Na historiografia brasileira dos anos 1930-1940, empenhada em desvelar a identidade brasileira, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. sequer mencionaram o império português. Estavam, os dois primeiros, empenhados em discutir o maior ou menor peso da cultura portuguesa na formação do país. Gilberto Freyre ao exaltar a plasticidade do português, embora realçando o triunfo das africanidades na identidade brasileira. Sérgio Buarque ao desmerecer o legado lusitano – predatório – mas reconhecendo que tudo, na formação histórica brasileira, foi adaptação maior ou menor da portugalidade. Caio Prado, por sua vez, marxista por vocação e formação, concentrou o foco nas contradições entre metrópole e colônia, ao destacar a exploração mercantil do Brasil em um sistema orquestrado pelo capital comercial europeu. Buscava as origens do subdesenvolvimento, do atraso e da pobreza brasileiras à luz do conceito leninista de imperialismo, ajustado para o período colonial. A mesma interpretação foi aggiornata nos anos 1970 por meio do conceito de Antigo Sistema Colonial, cunhado por Fernando Novais. Irrigou inúmeras pesquisas e livros didáticos brasileiros até o final do século passado.

8 Do lado português, o problema parece ser mais complexo. A noção de império colonial encorpou-se nas primeiras décadas do XX. Ainda na Ditadura Militar portuguesa (1926-1933), o ministro das colónias, Armindo Monteiro, defendeu a organização de um verdadeiro império, que Portugal não estruturara, apesar de possuir “um conjunto de parcelas espalhadas pelo mundo”. No Estado Novo esta ideia deslanchou. O própro Salazar publicou diversos textos em que celebrou a unidade do império português. Bastaria examinar as divisões e propósitos da Agência Geral das Colónias, fundada em 1924 e agigantada no salazarismo. Bastaria citar os eventos da Agência nos anos 1930, a exemplo do Congresso da Expansão Portuguesa no Mundo (1937). A Agência Geral das Colónias patrocinou centenas de publicações e criou colecções tipicamente colonialistas ou imperialistas, a exemplo de “Pelo império”.

9 É verdade que a Agência também publicou estudos de interesse, mas seu engajamento ideológico era indiscutivelmente salazarista, imperialista. Não admira que os historiadores à esquerda, como o grande Vitorino de Magalhães Godinho, jamais tenham utilizado o conceito de “império colonial”. Não admira que os historiadores formados ou consolidados após a “Revolução dos Cravos”, tenham seguido este caminho cético quanto à legitimidade do conceito de “império português”. Citemos a coleção História da Expansão Portuguesa, organizada por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri a partir de 1998. O conceito de império serve de referência, quiçá eixo da obra, figurando no título de várias partes ou capítulos. Um império entendido em sentido abrangente, abrigando não apenas os fluxos mercantis, mas também as configurações políticas e culturais. Diria que a obra aprofunda no conteúdo, e alarga na temporalidade, o que Charles Boxer ofereceu no clássico O império marítimo português (1969). Porém, não obstante a excelência da colecção, os autores evitam discutir o conceito de império e o não explicitam no título, se é que chegaram a cogitar da hipótese.

10 A partir dos anos 1990, do lado de cá e de lá do Atlântico, os historiadores passaram a valorizar a perspectiva imperial de Boxer, que nada tinha que ver com os dilemas políticos portugueses ou brasileiros. Uma tentativa de, mutatis mutandis, pensar a experiência imperialista portuguesa à luz da britânica e da holandesa, por ele estudadas desde os anos 1950. A afirmação de Boxer de que as câmaras e as misericórdias foram pilares do império português tornou-se clássica, inspirando várias investigações. Um incentivo aos estudos dos poderes locais na configuração do império lusitano. Mas penso que os estudos sobre impérios coloniais na época moderna tiveram peso na recuperação do conceito de império, como no livro de Jack Greene, Peripheries and Center : Constitutional Development in the Extended Polities of the British Empire and the United States, 1607-1789 (1990).

11 A obra em análise evita o conceito de império, mas flerta com ele. O próprio Fragoso adotou, sem pejo, o conceito de “império”, quer no pioneiro O Antigo Regime nos trópicos (2001) quer em A trama das redes : política e negócios no império português (2010), ambos organizados em parceria com Maria de Fátima Gouvêa. Em Um reino e suas repúblicas, evita-se o império em favor de conceito novo, da lavra de Monteiro : monarquia pluricontinental. Conceito adequado à realidade factual, que deve ser a mais importante para os historiadores. No entanto, para polemizar, diria que a monarquia hispânica possuía perfil similar, não obstante John Elliot a ter definido como monarquia compósita. Pois quem haverá de duvidar que Castela encabeçava uma monarquia pluricontinental no mesmo período, com o trunfo de ter engolido o império português entre 1580 e 1640 ?

12 Em todo caso, os critérios adotados para delimitar os “períodos de comunicação” são muito inovadores (p. 27). Os organizadores multiplicam as fases e, ao mesmo tempo, alargam as perspectivas para a investigação das dinâmicas imperiais no Atlântico português pós-restauração. Isto porque se ancoram na empiria (fluxo e disponibilidade das fontes) ; atentam para as conjunturas políticas e econômicas portuguesas do período ; procuram destacar os aspectos relacionais entre os vasos comunicantes no Atlântico português em várias escalas de poder. Oferecem uma tipologia arguta das dimensões do poder : a do reino, a da conquista, a donatorial, a local, a privada ou doméstica. Reconhecem, ainda, que a pesquisa deixa quase de fora a dimensão doméstica de poder, exceto quanto à incidência de solicitações de mercês pelas elites coloniais à monarquia. Um paradoxo formidável, considerado que o exercício do poder, no âmbito doméstico, era decisivo na estruturação das relações sociopolíticas da monarquia pluricontinental.

13 Vale indagar se, por deixar à sombra a esfera do poder senhorial no Brasil ou a dos potentados africanos que organizavam o tráfico, a obra se preocupa apenas com a face formal da comunicação política. Não penso ser este o caso, sobretudo porque alguns capítulos tangenciam a dimensão privada do poder, ao desvendarem malhas locais, como no texto de Roberto Guedes sobre a câmara de Luanda. Em segundo lugar, porque o relativo eclipse da esfera doméstica de poder resulta não de qualquer parti pris, senão do que as fontes oferecem. Em terceiro, porque a esfera jurisdicional, privilegiada na obra, verticaliza a fisiologia política do império. Círculos de poder com ligames formais de comunicação. Círculos concêntricos ? Talvez não, considerado o compromisso teórico dos autores com o descentramento. Talvez sim, se admitida alguma centralidade da coroa. Dilemas à parte, estamos diante de um grande livro. Pesquisa financiada por várias top agências de fomento. Inovação no tratamento da problemática. Equilíbrio entre a informação quantitativa e a interpretação qualitativa, erudita. Aproveitamento à exaustão das fontes disponíveis, com destaque para as do Arquivo Histórico Ultramarino. Historiadores e historiadoras de ponta, nos dois lados do Atlântico. Paixão pelo ofício em cada um dos trabalhos da obra.

Ronaldo Vainfas – Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ-FFP) e Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. E-mail: rvainfas@terra.com.br

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O Brasil Colonial – Volume 1, 1443-1580 | João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa

A apresentação da coleção O Brasil Colonial, organizada pelos professores João Fragoso (professor titular da UFRJ) e Maria de Fátima Gouvêa (professora da UFF, falecida precocemente em 2009) tem como título La guerre est finie. Provocante expressão para designar os últimos 20 anos de um debate historiográfico, às vezes acirrados, no qual os estudiosos sobre o Brasil no período colonial têm travado, a partir da crítica feita à concepção de um Antigo Sistema Colonial, consagrada por Fernando Novais, Professor da USP e do Instituto de economia/UNICAMP, por um grupo de professores do Rio de Janeiro, professores da UFRJ, UFF e UFRRJ, bem como de colegas portugueses, como o Prof. António Manuel Hespanha. A expressão também sugere uma ideia de que os organizadores têm sobre o atual estágio da historiografia brasileira, ou seja, os conceitos utilizados e a discussão trazida por ambos fossem a vitoriosa no meio acadêmico nacional.

Não se tem dúvidas que desde a publicação, no ano 2001, do livro O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa: (séculos XVI-XVIII), organizados pelos mesmos autores mais a Maria Fernanda Bicalho, Professora da UFF, juntamente com o acesso aos milhares de documentos da coleção Resgate, que contém a documentação riquíssima do Arquivo Histórico Ultramarino, houve um boom dos estudos sobre a colônia portuguesa na América. O grupo do ART, Antigo Regime nos Trópicos, como é conhecido no meio universitário especializado, de fato trouxe novas abordagens, a luz de conceitos discutidos em Portugal, Espanha e Estados Unidos, trazendo para o Brasil e para a história do Brasil novas possibilidades de análise. O grupo lançou outras coletâneas, no qual os participantes não necessariamente compactuam piamente com as ideias dos nomes mais conhecidos, e mesmo após 15 anos do marco inicial, algumas noções foram modificadas ou aprofundadas, felizmente, visto que a história é dinâmica. Leia Mais

Na trama das redes – FRAGOSO; GOUVÊA (VH)

FRAGOSO, João e GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 599p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Em 2001, o livro O Antigo Regime nos trópicos, constituiu-se num conjunto de resultados inovadores, tanto quanto instigantes, sobre as peculiaridades da dinâmica imperial portuguesa. Entre suas principais constatações, encontravam-se: a) “a importância da dinâmica imperial constituída pelas conexões e interações de diferentes formas sociais, que iam desde a sociedade aristocrática reinol, passando pela escravidão americana, pelas hierarquias sociais africanas e pelas que configuravam o Estado da Índia”; b) a de visualizar as “discussões em voga acerca do processo de formação do Estado Moderno, por meio das quais se questionou o suposto caráter absolutista e/ou centralizado dos impérios ultramarinos português, britânico, dentre outros”; c) a de que “minhotos, açorianos e outros reinóis haviam chegado e se instalado nos trópicos, criando uma sociedade dita colonial, com um universo mental e cultural que lhes era próprio”, quer dizer, “as características de Antigo Regime com a sua concepção corporativa de sociedade”; d) e, enfim, “a compreensão de que tal concepção de mundo constituí-se em um dos pontos de partida desse processo de organização social, havendo ainda vários outros” (p.13-14). Assim, consideravam João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, ao fazerem um rápido balanço daquele empreendimento, e demonstrarem sua contribuição para a consecução de Na trama das redes. Mesmo que não seja tão direta sua relação com o livro: Conquistadores e negociantes, de 2007, que perscrutou a história e a organização das elites do Antigo Regime nos trópicos, evidentemente, tal projeto contribuiu para o amadurecimento dos resultados que o leitor encontrará em Na trama das redes.

Neste novo livro coletivo, que em muitos pontos dá continuidade ao anterior, O Antigo Regime nos trópicos, há um avanço considerável sobre o tratamento dado a essas e a novas questões, assim como sobre as fontes, os grupos e os indivíduos. A reunião de 16 textos, distribuídos em quatro partes não foi casual. Ela constitui uma bem fundamentada proposta, articulada teórica e metodologicamente entre suas partes. Na primeira, Debates entrecruzados: estados modernos e impérios ultramarinos, encontram-se dois textos, de António Manuel Hespanha e o de Jack P. Greene. Na segunda, Redes e hierarquias sociais no império, há outros cinco, de Mafalda da Cunha, Maria de Fátima Gouvêa, Roquinaldo Ferreira, João Fragoso, e o de Ronaldo Vainfas. Na terceira, O império e seus centros, há mais quatro, de Nuno Monteiro, Maria Fernanda Bicalho, Júnia Furtado, e o de Francisco Cosentino. Na quarta e última parte, Povos e fronteiras imperiais, encontramse outros cinco textos, de Hebe Mattos, Antonio Carlos de Sampaio, Luís Frederico Antunes, Nauk de Jesus, e o de João José Reis.

Todos os trabalhos visam explorar as peculiaridades do Antigo Regime estabelecido nos trópicos, a partir da pormenorização das redes socioculturais e das tramas políticas e econômicas que as compuseram entre os séculos XVI e XVIII. Não por acaso, a “conquista e a organização da sociedade nos trópicos pelos portugueses foram presididas por conjuntos de valores e sistemas de regras vindas da Europa meridional: a concepção corporativa da sociedade” (p.15), amplamente transplantada para as Américas (Portuguesa, e também Hispânica). Daí a importância de se estudar indivíduos e grupos, que se estabeleceram nos trópicos, fazendo amplo uso dessas estratégias para constituírem suas redes sociais, políticas e econômicas, assim como seus desdobramentos culturais ao longo do tempo. Se tal questão foi comum no Antigo Regime, dado que o funcionamento corporativo da sociedade a viabilizava nos trópicos como os autores demonstram, apesar do ambiente favorável, a transplantação desses modelos de sociabilidade, não deixaram de despertar certas resistências, que não se limitaram aos nativos, o que os fez encontrarem respostas e tramas originais para a sua boa execução. E é detendo-se sobre alguns desses exemplos, um dos pontos altos da coletânea, que os ensaios demonstram de que maneira houve a trama de certas redes, vinculando os indivíduos, a projetos de cunho político, econômico, social e até cultural – por darem alguns dos principais contornos ao espaço público e privado, e que, por sua vez, organizariam determinadas formas de sociabilidades entre seus habitantes. Aí se justificaria o estudo de personagens, como: o capitão Manuel Pimenta Sampaio, João Soares (pardo), d. Luis da Cunha, Luis César de Meneses, Manuel Pimenta Tello, dentre outros, que firmaram suas relações sociais nos trópicos, em corporações que formariam tentáculos que se prolongariam no tempo, estabelecendo redes de sociabilidade, cuja função, entre outras coisas, estava em efetuar a manutenção das classes dirigentes nessas terras.

Para levarem a bom termo tal empreendimento, eles fizeram uso de termos como monarquia pluricontinental, que “é entendida como o produto resultante de uma série de mediações empreendidas por diversos grupos espalhados no interior do império” (p.17). Nela se encontraria o reino de Portugal, único a operacionalizar as tramas com os trópicos, e também estaria cerceado por uma só aristocracia e diversas conquistas. Pois, as ramificações dos governos no Novo Mundo, gerando autogovernos, em muitos casos, independentes a centralização metropolitana, “foram veiculadas nas práticas e vontades surgidas no âmbito das relações sociais daquelas mesmas localidades (…) produzidas pela interação de agentes sociais como potentados, escravos minas e crioulos, índios e pardos”. Contudo, mais “importante é perceber que tais práticas e costumes veiculados pelas instituições locais eram reconhecidos em termos do próprio princípio de autogoverno praticado pela monarquia portuguesa” (p.18). Nesse sentido, o “império resulta (…) do processo de fusão da concepção corporativa e da de pacto político, fundamentada na monarquia, e garantindo, por princípio, a autonomia do poder local”. É dentro dessas circunstâncias específicas, que a “monarquia pluricontinental se torna uma realidade graças à ação cotidiana de indivíduos que vivem espalhados pelo império em busca de oportunidades de acrescentamento social e material” (p.19).

Assim caminham os textos de António Hespanha e o de Jack Greene, ao procurarem demonstrar a especificidade do império português nos trópicos. Para o primeiro, este seria definido pela “justaposição institucional, pluralidade de modelos jurídicos, diversidade de limitações constitucionais do poder régio e o consequente caráter mutuamente negociado de vínculos políticos” (p.57), enquanto para o segundo, completando a argumentação do primeiro, para a obtenção do “consentimento e [d]a cooperação daquelas classes, os oficiais metropolitanos não tinham outra escolha a não ser negociar com eles sistemas de autoridades” (p.111), nos quais esse “processo de barganha, tão semelhante ao que caracterizou a formação do Estado nos primórdios da Europa moderna, produziu variações de governo indireto que ao mesmo tempo definiu fronteiras claras em relação ao poder central, reconheceu os direitos das localidades e das províncias a vários graus de autogoverno e assegurou que, em circunstâncias normais, as decisões metropolitanas que afetassem as periferias teriam de consultar ou respeitar interesses locais e províncias” (p.111-12).

A par dessas questões, e dos resultados que oferece de acordo com a ação e a forma de organização dos grupos e dos indivíduos no poder, o texto de Mafalda da Cunha perscruta como se conformaram certas redes sociais em torno dos recrutamentos de governantes no período das conquistas (entre 1580 e 1640), muito semelhante ao que fez Maria de Fátima Gouvêa ao estudar as redes governativas portuguesas, e a maneira como ocorreram as centralidades régias no mundo português (entre 1680 e 1730). Por sua vez, o texto de Roquinaldo Ferreira se deterá sobre as redes de comércio ilegal no mercado ultramarino português (de 1690 a 1750), enquanto João Fragoso irá questionar a forma pela qual se compunham as hierarquias sociais no Rio de Janeiro do século XVIII, por meio da investigação da trajetória do capitão Manuel Pimenta Sampaio. Com o objetivo de rastrearem os vários centros, em torno do império português, Nuno Monteiro reconstituirá a ‘tragédia dos Távoras’, por meio da análise da estrutura de parentesco, das redes de poder e as facções políticas na monarquia portuguesa do século XVIII. Maria Fernanda Bicalho o fará dando ensejo a interpretação das tramas políticas que se formaram em torno dos conselhos, secretários e juntas na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos. Ao centrar sua análise na trajetória de dom Luis da Cunha, Júnia Furtado, objetivou vislumbrar a organização geopolítica do novo império luso-brasileiro.

Desnecessário se alongar nos exemplos que são explorados por outros ensaios, visto que eles próprios também fazem parte de uma trama bem articulada pelo conjunto dos textos. Portanto, ao se apoiarem nas sugestões de Barth, Grendi e Levi de que “todos os sistemas de normas são incoerentes, na medida em que estão em contínuo movimento” (p.16), que em seus ensaios os autores procuraram visualizar o impacto desse tipo de movimento contínuo na conformação das tramas políticas e econômicas, ao mesmo tempo formadoras de redes socioculturais e de seus desdobramentos no tempo, assim como de suas dissoluções e reformulações em formas metamorfoseadas, mas nem sempre totalmente novas, pois, alicerçadas sobre ramificações forjadas no passado, que manifestavam a ambição de manter certa continuidade no tempo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Professor da UEMS. diogosr@yahoo.com.br.

Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) – FRAGOSO et al (RBH)

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 473p. Resenha de: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Com um prefácio impecável de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos uma obra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. Não se trata de mais uma publicação que acompanha o crescimento do mercado editorial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemoração dos descobrimentos, mas de uma contribuição definitiva para a revisão do chamado “antigo sistema colonial”. Lá se vão pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flamarion Cardoso chamou a atenção, de forma ensaística, para a preocupação obsessiva com a extração de excedentes pela metrópole na historiografia colonial brasileira. Ao cabo deste período, a pesquisa acadêmica tomou fôlego e trouxe novas evidências empíricas para a cena do debate.

A historiografia portuguesa, independentemente das discussões acerca da autonomia do modo-de-produção escravista colonial que marcou profundamente os estudos brasileiros, também se renovou com o revisionismo de seu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombalinas, o crescimento industrial gorado com a Independência brasileira e o questionamento sobre a centralização do poder pelo Estado monárquico lusitano.

Ambos os percursos historiográficos se amalgamam nesse livro, nos dando uma visão ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Império luso, tendo como elemento catalizador o controvertido “pacto colonial”.

O primeiro bloco de ensaios, através da pesquisa de múltiplas fontes primárias manuscritas e inéditas, traça a trajetória da elite econômica e política da capitania do Rio de Janeiro. João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sampaio e Helen Osório vão abrir o conjunto de doze artigos, situando a praça mercantil carioca no centro de uma vasta rede de operações abrangendo rotas no ultramar africano e asiático, bem como as linhas do abastecimento do mercado brasileiro da época. Atuação que caracterizou a elite mercantil de grosso trato daquela cidade pelo menos até os anos de 1830 e que se consolida no setecentos (Fragoso, p. 333).

A passagem da elite agrária dos fundadores da Guanabara para o predomínio dos homens de negócios na hierarquia social é marcada pela crise da economia açucareira que acompanhou a reativação mercantil do Rio de Janeiro, causada pelo impacto da mineração e o controle carioca no abastecimento das Minas Gerais. Também a subordinação da economia sulista ao domínio dos capitais mais elevados dos negociantes guanabarinos fica patente nos dados de arrematação dos impostos sobre as mercadorias rio-grandenses, estudados por Helen Osório.

Os três artigos iniciais vão sublinhar as estratégias de enriquecimento dentro de uma economia chamada do “bem comum”, dominada pelas melhores famílias da terra. Nessa economia de distribuição de benesses e privilégios, as alianças familiares e clientelistas são decisivas para acumulação de fortunas. Nota-se a influência, entre outras, da abordagem de Giovanni Levi, Braudel e Polanyi, para a análise da reciprocidade dos favores entre famílias e o mercado pré-capitalista imperfeito, bem como do método genealógico das famílias, propalado por Adeline Daumard e Jacques Dupâquier, imprescindível para a reconstituição dos mecanismos de formação dos patrimônios privados nas sociedades pré-industriais.

Talvez, neste bloco inicial e ao longo do livro, o leitor sinta a falta de trabalhos que cuidassem mais detidamente da participação das demais capitanias no sistema complexo das rotas mercantes e no funcionamento administrativo dos vice-reinados, notadamente da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Grão-Pará. Embora esse desejo pudesse soar excessivo ao plano que alinhava a obra, o do esforço de análise dos aspectos centrais do Antigo Regime lusitano revisto pelo papel desempenhado pelas instituições e elites coloniais, com ênfase na praça do Rio de Janeiro.

Nas duas seções seguintes, a diversidade de assuntos partilha de um denominador, o das relações de poder na administração do Mare Lusitano. A figura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa é substituída pela imagem de um espaço de negociação, que edifica as relações mutualistas ou simbióticas entre a grande autonomia das câmaras municipais, instituições eclesiásticas ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamento dos negócios coloniais (ver artigos de Maria Fernanda B. Bicalho, Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo F. Monteiro e Maria de Fátima S. Gouvêa). Afinal a economia política dos privilégios, institucionalizada pelas monarquias do Antigo Regime nas colônias, estava assentada numa cadeia de negociações entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metropolitano, hierarquizando os homens e o acesso à obtenção das benesses imperiais. O outro lado desta realidade seria a coesão política necessária para o governo do Império. Antonio Manuel Hespanha, investigando as regras formais para a atuação das instituições coloniais diante do poder real, indicará as inconsistências da suposta uniformidade da estrutura jurídica do Império, como corolário da idealização do centralismo do poder do monarca. Trabalhando comparativamente com a diversidade de situações entre a organização da justiça em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Antonio Hespanha torna visível a pluralidade dos laços de políticos que iriam se estabelecer entre o poder local e a Coroa a partir das distâncias e realidades da conquista, nas quais o direito colonial moderno se ajustava e os nativos estabeleciam suas práticas legislativas próprias. Portanto, a centralização não poderia ser efetiva sem um quadro legal uniforme e o poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.

A experiência da evangelização é tratada por Ronald Raminelli e Hebe de Mattos. O primeiro, enfatizando as diferentes estratégias missionárias no Congo, Brasil e Japão, que pretenderam unir povos diversos sob a defesa da fé cristã. O projeto missionário que cimentava a conquista, ao criar a identidade cultural entre povos subjugados e os valores metropolitanos, continha elementos para a sua corrosão ao se manter dentro dos limites da desigualdade representada pela exclusão dos gentios no corpo social hierarquizado.

Num dos artigos mais polêmicos da coletânea, Hebe de Mattos vai se contrapor às motivações de ordem econômica utilizadas pela historiografia brasileira para explicar o estabelecimento do regime escravista nas Américas, tais como a falta de braços para as tarefas da colonização ou a lógica mercantilista das monarquias modernas. A construção de justificativas religiosas para a escravidão, a exemplo da guerra justa para a salvação dos gentios, não foi forçada pela lógica mercantil da expansão. Ao contrário, antecederia a empresa ultramarina e teria fabricado as referências mentais e políticas, de fundo corporativo e religioso, que permitiram a aventura colonial, inclusive em sua dimensão mercantil. A escravidão seria a mola propulsora para os colonos portugueses motivados pela possibilidade de se afidalgarem no além-mar, conquistando o status de senhores de homens e terras. Caímos, assim, na polêmica das determinações históricas e poderíamos nos perguntar se não deveríamos separar as motivações das razões impostas pelas necessidades da experiência da colonização. Ou ainda, distinguir as aspirações que moviam os colonos e as estratégias da Coroa para o seu enriquecimento, dentro da lógica mercantilista do Estado moderno. De qualquer maneira, deixemos o leitor tomar partido.

A última parte do livro vincula múltiplos aspectos da obra à construção da noção de uma economia colonial tardia, que se define pela hegemonia do capital mercantil residente no Rio de Janeiro, e se constituiria na nova elite econômica da América portuguesa. João Fragoso persegue um modelo explicativo para a economia colonial já definido em sua tese de doutorado (Homens de grossa aventura), e do qual alguns trabalhos aqui apresentados lhe são tributários. Por conseguinte, modelo forjado no programa de história agrária da UFF, sob a batuta de Maria Yedda Linhares. Nele, a autonomia da economia colonial é sustentada, com base numa cuidadosa pesquisa empírica, diante das flutuações externas e do poder da metrópole. A hegemonia econômica dos negociantes do Rio de Janeiro é meticulosamente recuperada por fontes cartoriais e arquivísticas diversas. Neste novo livro, Fragoso procura remontar seu estudo ao momento da transformação da acumulação de capitais pela economia da plantation em direção à constituição de uma elite mercantil colonial, que se mostrará autônoma e capaz de amealhar sua fortuna nas redes do comércio interno e ultramarino. As implicações dessas constatações são imensas para a historiografia brasileira, ainda não explorada de todo nas suas dimensões políticas e sociais.

E, finalmente, os textos de Roquinaldo Ferreira e Luís Frederico Dias Antunes ajudam a fundamentar os argumentos de Fragoso. Ambos, com riqueza de detalhes, reconstroem os circuitos intra-ultramarinos do comércio carioca com a costa africana e Goa. Negociantes do Rio, da Bahia e Pernambuco são identificados com freqüência nos portos indianos, participando ativamente do comércio de tecidos asiáticos (Luís Antunes). As três praças também usufruíam da vantagem do comércio direto com Angola, com a presença de suas embarcações representando cerca de 85% de toda a movimentação portuária de Luanda entre 1736 e 1770 (Roquinaldo Ferreira). Do Brasil partiam os panos asiáticos reexportados, as cachaças (“geribitas”), pólvora e armamentos para as trocas no sertão angolano, especialmente os escravos. E nesse tráfico novamente o Rio de Janeiro se destaca, absorvendo 48,5 % dos navios negreiros que zarparam de Luanda na década de 1760 (Idem).

Ao concluirmos nossa leitura, no mínimo podemos afirmar que se os argumentos não convencerem os mais céticos, a profusão de indícios e as comprovações empíricas, especialmente sobre a vinculação da praça carioca com a navegação de longa distância e suas triangulações de mercadorias com a Costa da Mina, Angola e Goa, alteram em definitivo a percepção do “pacto colonial”, reafirmando a autonomia que o capital mercantil sediado nas colônias ousou possuir ante o poder metropolitano. É prova também de que a história econômica e das estruturas se renova, sem esgotar as suas possibilidades de contribuição para o saber histórico. Aqui, os resultados das pesquisas regionais se sintonizam e dialogam com uma totalidade revisitada, o Império colonial português. Aguardamos ansiosos pelas controvérsias que o livro certamente causará no meio acadêmico.

Afonso de Alencastro Graça Filho – Universidade Federal de São João del Rei.

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