Cultura, escola tradição: mitoteca na escola baniwa – PEREIRA (RHH)

PEREIRA, Maria Luiza Garnelo; ALLBUQUERQUE, Gabriel Arcanjo Santos; SAMPAIO, Sully; BRANDÃO, Luís Carlos (Org.). Cultura, escola tradição: mitoteca na escola baniwa. Trad. Guilherme Fernando, Trinho Paiva, Daniel Silva, Irineu Laureano. Manaus: Edua/Fapeam, 2005. 174p. Resenha de: SANTOS, Silvana Rossélia. Tradição oral, narração e mito: a Mitoteca Baniwa. Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 349-353 – 2013.

A Mitoteca Baniwa é composta de uma coletânea de narrativas orais do povo Baniwa, habitante do noroeste da Amazônia brasileira. A coleta, transcrição e tradução desses textos orais aconteceram no trecho médio do rio Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, na sede da Escola Indígena Pamáali, no período de 2004 a 2005, por uma equipe coordenada por Maria Luiza Garnelo, médica sanitarista e antropóloga do Centro de Pesquisa Leônidas & Maria Deane da Fiocruz/Amazonas, e por Sully Sampaio, cientista social e técnico do projeto Rede Autônoma de Saúde Indígena (Rasi) da Universidade Federal do Estado do Amazonas (Ufam).

Nessa equipe de pesquisa, a tarefa de organizador coube ao prof. dr. Gabriel Albuquerque e o design gráfico a Carlos Brandão. Essas narrativas vieram por meio das vozes de narradores anciãos que, convidados a lembrar o que sabiam sobre a atividade pesqueira de seu povo, prontamente recorreram às histórias contadas pelos seus pais e/ou avós, apresentando os mitos que explicam a origem dos rios e peixes do Içana para os Baniwa que habitam esta região do Amazonas.

Para uma percepção aprofundada da beleza do traçado mítico formador dessas histórias, é preciso antes fazer um esforço de compreensão do significado que essas narrativas têm para o povo que as profere. Cléo Busatto, para esclarecer a função da narrativa oral e para revelar como o mito atua sobre o imaginário dos Yanomami, relembra a fala da liderança Davi Kopenawa Yanomami: Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento.

Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo, e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos dos xamãs, e depois querem ver os espíritos por sua vez. É assim que muito antigas, as palavras dos xapiripê sempre voltam a ser novas.1 Os narradores da mitologia baniwa compartilham do mesmo ideal de Kopenawa destacando-se que, além de repassarem os conhecimentos às novas gerações, querem que elas conheçam o quase esquecido, porque “Hoje em dia, só alguns sabem, outros não têm a mínima ideia do que seja isso”, justifica o narrador sobre a importância da rememoração das histórias dos antepassados.

Essa constatação revela um dos grandes males que os povos colonizadores – destaquem-se os catequizadores e evangelistas – causaram aos povos indígenas: o apagamento da cultura, em especial, do seu principal veículo, o mito. Esse que é carregado de um simbolismo, uma emoção, um pensamento, comportamentos sociais e morais muito particulares.

O mito remete os povos tradicionais à sua origem, ao início de todas as coisas, principalmente, do homem. Todos, na origem mítica, surgem por meio de ações sobrenaturais de deuses que objetivam estabelecer os padrões comportamentais pelos quais a sociedade deve se pautar sob pena de castigos insuportáveis e irreversíveis, caso esqueçam tais ensinamentos. Esses aspectos são legitimados no conteúdo das histórias da Mitoteca. O mito também é uma história que alimenta o sentimento de pertencimento ou enraizamento, adotando esse termo antropológico sobre a profunda ligação sentimental do homem ao seu espaço físico. O vínculo desse homem à terra e à natureza é fundamental para que sua herança sociocultural seja mantida. O elo homem-terra baseia sua vida e o mundo na tradição recebida e repassada essencialmente pela fala nas sociedades sem escrita durante as realizações das atividades diárias ou em celebrações específicas para esse fim, como é o caso do rito. O vínculo dos Baniwa com os espaços celestiais e geográficos também mostra como se dão suas ligações e relações terrenas, com as quais criam uma rede social e religiosa de difícil compreensão para os de visão dicotomizada e maniqueísta do mundo.

O mito baniwa, revivido não só no rito, mas também na rememoração desses narradores, traz à tona histórias de um tempo original marcadas de preocupações ainda atuais, tais como as relações entre os habitantes do mesmo espaço tribal, os acordos tácitos ou formais de bem viver, o sagrado como fonte de toda a vida, realizando a intersecção entre mundos extremos e complementares na dicotomia céu e terra, bem e mal, vida e morte.

Os mitos são, conforme Jack Goody, formas orais e, como tais, apresentam o elemento narrativo, apesar de os elementos da narratividade terem presença ‘tênue’ em sua composição. Por considerá-lo um texto que surgiu não de povos com acesso à escrita, mas anteriores a esta, o estudioso desconsidera o conteúdo do mito uma narrativa propriamente dita, justificando que ela nasce em povos com acesso à escrita. Contudo, o caráter narrativo desse texto eminentemente oral é passível de uma leitura literária em razão da presença dos elementos de narratividade, dos sentimentos e da visão de mundo que seus personagens, em tramas simples, com personagens metaforizando humanos tanto no mundo visível quanto no invisível, revelam sobre suas relações sociais e o espaço físico onde vivem.2 Sem pertencer a uma literatura popular ou erudita, estas demarcadas por aspectos conceituais carregados da distinção clássica inaugurada na modernidade entre a civilização e a primitividade, o mito resiste, apesar das interferências que naturalmente ocorrem. Interferências estas que dizem respeito ao contágio, por exemplo, que os povos indígenas sofreram durante o contato com outras culturas, em especial, a do branco.

Uma segunda dicotomia surge da distinção entre as literaturas oral e escrita. As narrativas de tradição oral de povos indígenas são muitas vezes classificadas indevidamente por aqueles mais desatentos que tendem a considerar as narrativas míticas como uma manifestação oral, popular, de um determinado povo, no sentido de narrativas folclóricas. É necessário salientar que os textos míticos transcritos da cultura oral não são folclóricos para quem os profere, ao contrário, são verdade suprema e revelada aos homens pelos deuses que aqui viveram num tempo primordial. Como afirma Junito Brandão, “são a linguagem imagística dos princípios. ‘Traduzem’ a origem de uma instituição, de um hábito, a lógica de um gesto, a economia de um encontro”. Os mitos são herdados dos deuses, portanto sua origem sagrada lhes confere autoridade e autoria únicas. Cada povo tem os mitos que constituem a sua identidade.

Não há estilos de narrativa no universo tribal. Para o indígena, o seu relato oral não é folclore, é, conforme a visão socioantropológica do mito, a história da sua origem, do começo do mundo e de todas as suas diversas relações com o sagrado. Eis a razão por que eles não podem ser confundidos com expressões de uma literatura oral popular: não são ficção, ou seja, histórias ‘inventadas’ pelo homem. Eles são verdade no sentido antropológico do termo. Por isso é bem mais complexo analisar textos oriundos da cultura oral do que puramente aplicar classificações tradicionais da crítica literária a eles.3 Para Câmara Cascudo, o mito não é folclore, não é literatura oral, mas os influencia, porque seu conteúdo sagrado trata também de sentimentos e pensamentos comuns ao homem. Os mitos indígenas baniwa contribuem não só para uma melhor compreensão da cultura amazonense, mas também para o entendimento das práticas folclóricas amazonenses das quais são referência, formando um conjunto muito particular de expressão. O mito circula entre as conversas do índio, do caboclo, do colonizador. Ele extrapola os limites da aldeia e permite aos de fora desse contexto conhecer o pensamento, os anseios, as inquietações, as explicações, os sonhos que povoam as narrativas míticas, as quais trazem também a compreensão e criação da nossa história, do homem como um ser movido por dúvidas, emoções e religiosidade, ávido por explicações e sedento de uma vontade de controlar e ordenar o mundo.4 Os relatos míticos baniwa levam a um tempo primordial em que a preocupação dos deuses do seu panteão era organizar o mundo atual de tal maneira que fosse muito melhor para a humanidade futura. Nesse contexto da tradição oral é que os relatos baniwa são uma manifestação da pluralidade de expressões culturais que pertencem à região amazônica, posto que trazem a cor, o tom, os lugares, as gentes, os sabores e o cheiro não só do indígena, mas também do caboclo amazonense. Esses relatos foram negligenciados por quatro séculos em função de uma preferência pela cultura erudita que valorizou muito os mitos gregos compilados por Homero e, em certa medida, pela cultura popular que, em última instância, aparece como um reflexo da mestiçagem brasileira, valorizando mais os elementos branco, negro e índio de outras regiões do país.

Os textos da Mitoteca provêm de uma sociedade iletrada. Sociedade de tradição oral cuja transcrição de mitos para sua própria língua e a tradução para o português são meios para o registro e compreensão da sua história, da sua tradição. Assim, a parceria entre narradores e tradutores não só rememora os saberes dos antepassados sobre as técnicas de pesca, os tipos de peixes, a forma de como prepará-los para o consumo, mas também dá a conhecer a base da sua formação social, cultural e religiosa por meio do conteúdo de sua linguagem poética carregada de metáforas e analogias a que a riqueza simbólica dessas histórias remete.

Notas

1 BUSATTO, Cléo. A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. 3.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2001. p.10-11.

2 GOODY, Jack. Da oralidade à escrita: reflexões sobre o ato de narrar. In: MORETTI, F. (Org.). A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p.47.

3 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. v.1. Petrópolis (RJ): Vozes, 1986. p.38.

4 CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed.; Brasília: INL, 1978. p.105.

Silvana Rossélia Santos – Mestre em Estudos Literários. Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Avenida General Rodrigo Otávio, 6200, Coroado 1. 69077-000 Manaus – AM – Brasil. [email protected].