Fontes para a história ambiental / Revista de Fontes / 2019

A história ambiental busca documentar e compreender a relação sociedade-natureza ao longo do tempo, a partir da problemática ambiental contemporânea. Essa problemática, hoje, perpassa as discussões sobre o desenvolvimento econômico e social, as relações internacionais, a cultura e o cotidiano. Cuidar da vida do planeta Terra como um todo aparece como imperativo no século XXI, sem o que haverá, inexoravelmente, a degradação das condições de vida de bilhões de seres humanos.

Este dossiê, assim, encontra plena justificativa no que se refere a sua relevância social. No âmbito acadêmico também se justifica, pois a relação sociedade-natureza fez parte do repertório da reflexão histórica ao longo do tempo[1].Talvez o exemplo mais eloquente dessa situação, no Brasil, seja a produção relativa ao período colonial, que ao investigar a ocupação europeia do continente americano, abordou como recursos naturais eram utilizados e percebidos pelos povos nativos, pelos invasores e pela nova sociedade que surgia. Obras clássicas como A Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. e Caminhos e Fronteiras de Sérgio Buarque de Holanda, para citar duas das mais conhecidas e importantes, demonstram como a História Ambiental encontra referências na história da historiografia brasileira.

Mas embora investigar sociedade e natureza não seja novidade na historiografia, a História Ambiental tem como especificidade problematizar essa relação a partir de um ponto de vista, que ganha força na segunda metade do século XX, de que a crise ambiental tem alcance mundial, afetando diretamente a vida da maior parte da população do planeta e que é uma ameaça não só ao futuro da Humanidade, mas ao seu presente. Essa compreensão ganhou forma a partir do diálogo e controvérsias estabelecidas entre diferentes ciências, mas também entre estas e as artes, a literatura e os saberes tradicionais, tudo isso impulsionado por movimentos sociais diversos, que apontavam tanto questões práticas e imediatas como preservar uma floresta, como ampliavam o escopo da sua crítica para a própria organização da sociedade industrial e seu modo de vida.

A medida que o século XX avançava houve questionamentos radicais à sociedade industrial, que tinha na noção de progresso elemento central. O próprio conceito de “desenvolvimento econômico” foi contestado, diante da crescente percepção de uma crise ambiental planetária, manifestada, dentre outros aspectos, pela poluição crescente do ar, água e solo; pela destruição dos ecossistemas e extinção de espécies; pelo esgotamento ou distribuição e uso desigual de recursos naturais [2]; e, no fim de século, pelas mudanças climáticas. Cabe notar que a crise ambiental aparecia com toda força na vida cotidiana e na economia dos próprios países ricos em meados do século XX, como nos casos da contaminação do ar em Londres e Nova York ou a intoxicação por mercúrio em Minamata e Niigata, no Japão. Em 1973, o primeiro “choque do petróleo”, embora decorrente de disputas geopolíticas e comerciais, demonstrou a dependência das sociedades industrializadas de um recurso natural finito.

A crise ambiental que em maior ou menor grau atingia a todos e era tida como ameaça ao futuro dava força aos movimentos ambientalistas mundo afora, e eles tinham ampla ressonância social em países democráticos da Europa e nos EUA. Os debates e estudos sobre essa problemática aumentavam. Em 1968 foi fundado o Clube de Roma, um grupo de pesquisadores que se reuniu para debater assuntos relacionados ao desenvolvimento e o meio ambiente, trabalhando ativamente para que as discussões alcançassem centralidade na agenda política mundial. Em 1972, em conjunto com a Associação Potomac e o Massachusets Institute of Technology, foi publicado o relatório Os limites do Crescimento, que influenciou os debates que ocorreram em torno da Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, que ocorreu, no mesmo ano, em Estocolmo, na Suécia. Os estudiosos discutiam como seria o futuro se todos os países continuassem crescendo num ritmo acelerado. Apontavam, então, para os limites do crescimento, ou seja, a impossibilidade de se manter o padrão de desenvolvimento sem que isso resultasse em um colapso ambiental. Pensar novas formas de organização social que propiciassem um relacionamento mais harmonioso entre sociedade e natureza impunha-se como um dos grandes desafios do século [3].

Mas a Primeira Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente também foi marcada por debates acirrados entre os representantes dos governos dos países desenvolvidos e dos países subdesenvolvidos. Nesse encontro, os temas da poluição e da pressão exercida pelo crescimento demográfico sobre os recursos naturais provocaram discussões acirradas. Surgiram propostas de controle de natalidade e do próprio crescimento econômico de países periféricos na economia mundial, resultando em um intenso debate entre os desenvolvimentistas e os “zeristas”, que defendiam um crescimento econômico zero, ressaltando que não haveria recursos naturais suficientes para garantir a universalização dos padrões de produção e consumo dos países desenvolvidos.

Mas diante disso, o que deveriam fazer os países mais pobres? Aceitar a pobreza e a desigualdade internacional ou destruir o planeta em busca de seu desenvolvimento? Colocado nesses termos o debate não avançava. A resposta mais complexa tentava superar o dilema do desenvolvimento como sinônimo de degradação ambiental. Não era fácil. Mas, do ponto de vista intelectual era a reflexão que tinha futuro. Os intelectuais mais criativos assumiam como premissa que era preciso conciliar desenvolvimento humano e natureza, inventar um novo rumo para o planeta, e ele somente poderia ser realizado a partir de uma abordagem socioambiental. As humanidades, assim, alcançavam o centro do debate ambiental, que, para muitos, parecia ser objeto das ciências naturais. A historiografia também se engajou nessa reflexão.

Nos Estados Unidos nascia a Environmental History, ou seja, a História Ambiental adquiria identidade com o início de um esforço consciente e sistemático de incorporação aos estudos históricos das questões e variáveis ambientais. Segundo Donald Worster, uma das principais referências do movimento nascente, o objetivo principal dos historiadores ambientais tornou-se “aprofundar o entendimento de como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural, e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e com que resultados” [4]. Em 1974, os Annales, a renomada revista francesa vinculada à escola historiográfica que leva o mesmo nome, publicou uma edição especial dedicada a temática ambiental: Historie et environnement. Em 1999 era fundada a European Society for Environmental History (ESEH). Em 2003 os historiadores ambientais da América Latina se reuniram na SOLCHA, a Sociedade Latino Americana e Caribenha de História Ambiental

O Brasil acompanhou toda essa movimentação social e acadêmica que acontecia no mundo na segunda metade do século XX, embora o ambiente repressivo implantado pela Ditadura de 1964 tenha dificultado a participação mais ampla da sociedade. Mas no contexto de redemocratização do país nos anos 1980, período marcado por grande efervescência cultural e política, as questões ambientais chegaram ao grande público. Foi a época em que Chico Mendes, liderança popular do Acre, ganhou destaque internacional ao encarnar a luta dos seringueiros e a defesa da Floresta Amazônica; quando as ONGs ambientalistas ganharam força e, inclusive, surgiu o Partido Verde, inspirado na experiência europeia. Em 1992, vinte anos depois de Estocolmo, o Brasil receberia a Segunda Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, a Rio92, que teve grande repercussão no país.

Nos cursos de história a temática ambiental começou a ganhar espaço. Os livros de Keith Thomas [5] e Warren Dean eram inspiradores. Dean, tendo finalizado sua pesquisa sobre a Amazônia, publicou o livro “Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history”, em 1987, e a obra logo foi traduzida e publicada no Brasil em 1989 [6]. Autor bastante conhecido no mundo acadêmico brasileiro, Warren Dean deu visibilidade à nova agenda de pesquisa que surgia. Anos mais tarde escreveria um clássico: A Ferro e Fogo. A história da devastação da Mata-Atlântica Brasileira [7]. Em 1987 era defendida na Unesp de Assis a dissertação de mestrado de Jozimar Paes de Almeida, intitulada a “A Extinção do Arco-Iris. A agroindústria e o eco-histórico”, talvez a primeira pesquisa da área nascente em programas de pós-graduação em história8.

O ensino também participou desse movimento de incorporação do meio-ambiente à reflexão histórica. A importância da educação para o enfrentamento da crise ambiental foi ressaltada na Primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, em 1972. Discussões sobre o conceito de Educação Ambiental e as formas de implementá-la aconteceram em seminários e encontros ao longo dos anos seguintes. A Constituição Federal do Brasil de 1988, elaborada em um contexto de grande participação social indica em seu Capítulo VI – Do meio ambiente, no art. 225, que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Além disso, a mesma Constituição afirma que para assegurar a efetividade desse direito o Poder Público deve promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), elaborados em meados dos anos 1990, instituíram o meio-ambiente como tema transversal no ensino fundamental e médio9. Hoje, o ensino de história terá de pensar a questão ambiental a partir da Base Nacional Comum Curricular, uma novidade ainda pouco conhecida pela grande maioria dos historiadores.

Como se vê, a partir de fins do século XX o meio-ambiente floresceu na área de história e, desde então, se expandiu fortemente. No Brasil, vinte anos atrás, seria possível identificar facilmente os poucos historiadores dedicados à temática ambiental e os centros de pesquisa da área. Em 2020 essa lista seria longa demais para um texto introdutório. A história ambiental aumenta seu espaço no ensino, na pesquisa e nas publicações acadêmicas e alcança ressonância social.

Esperamos que os artigos deste dossiê auxiliem todos aqueles que pretendem pensar o meio-ambiente em perspectiva histórica.

Notas

1. Paulo Henrique Martinez. “Existe Uma Historiografia Ambiental Brasileira ?”. In: Anais do XVII Encontro Regional de História: O lugar da História. ANPUH / SP Unicamp. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom. Seminário Temático XIII.

2. Arthur Soffiati. “Algumas palavras sobre uma teoria da eco-história”, Desenvolvimento e Meio Ambiente, 18, jul. / dez. 2008, p. 14.

3. Wagner Costa Ribeiro. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2001, p. 77; Phillippe Le Preste. Ecopolítica Internacional. São Paulo: Editora Senac, 2001, p. 159ss.

4. Donald Worster. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, 4-8, 1991, pp. 198-215 (publicado, originalmente, em 1988 nos EUA).

5. Keith Thomas. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

6. Warren Dean. Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history. Cambridge: Cambridge University Press, 1987; A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.

7. Warren Dean. A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

8. Jozimar Paes de Almeida. A Extinção do Arco-íris: A Agro-Indústria e o Eco-histórico. Mestrado em História, UNESP, 1987.

9. Circe Maria Fernandes Bittencourt. “Meio ambiente e ensino de história”, História & Ensino, 9, 2003, p. 51.

Referências

ALMEIDA, Jozimar Paes de. A Extinção do Arco-íris: A Agro-Indústria e o Eco-histórico. Mestrado em História, UNESP, Brasil, 1987.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. “Meio ambiente e ensino de história”, História & Ensino, 9, pp. 63-96, 2003.

DEAN, Warren. A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.

DEAN, Warren. Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

LE PRESTE, Phillippe. Ecopolítica Internacional. São Paulo: Editora Senac, 2001.

MARTINEZ, Paulo Henrique “Existe Uma Historiografia Ambiental Brasileira?”. In: Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH / SP Unicamp. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2001. SOFFIATI, Arthur. “Algumas palavras sobre uma teoria da eco-história, Desenvolvimento e Meio Ambiente”, n. 18, pp. 13-26 , jul. / dez. 2008.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

WORSTER, Donald. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, 4-8, pp. 198-215, 1991.

Janes Jorge – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-1767-2148

Patricia Tavares Raffaini – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Programa de Pós-Graduação em História, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-1921-6269


JORGE, Janes; RAFFAINI, Patricia Tavares. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.6, n.11, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Cidade e Natureza / Urbana / 2016

Compreender a relação entre as cidades e a natureza foi tarefa imprescindível para quem se dedicou a pensar as questões urbanas. Quase sempre isso ocorreu em razão de necessidades práticas e imediatas, como garantir seu abastecimento de água, comida e energia; a dispersão das águas servidas e de outros resíduos; a defesa contra inimigos próximos ou distantes para se construir vias de comunicação ou mesmo para impulsionar o desenvolvimento econômico. Mesmo em casos extremos, quando se procurou descolar a cidade de seu lugar de nascimento, essa relação estava presente, ainda que pela negação. Os que foram mais além das necessidades imediatas, deram atenção ainda maior ao modo como as relações humanas e o mundo natural interagiam no espaço urbano, e, nunca deixaram de ver as cidades como um caminho possível para a concretização da utopia de uma sociedade livre, plena de vida, alegria, inteligência e justiça.

A cada época, a natureza e as cidades foram redescobertas por novas sensações e emoções, foram apropriadas de diferentes formas para novos usos, foram constantemente reinterpretadas por inúmeros discursos e por novos saberes. A descoberta das possibilidades de divertimento na natureza, por exemplo, esteve associada com um peso cada vez maior que a cultura conquistou sobre as sensações imediatas, o que tornaria possível a reivindicação de uma natureza idealizada para o usufruto dos moradores urbanos em seus momentos de ócio.

Note-se que em nosso tempo essa relação ficou ainda mais complexa, pois, desde fins do século XX, a humanidade se encontra diante de uma grave crise ambiental. Dessa forma, pensar a relação da cidade com o mundo natural se tornou ainda mais complexo, pois é preciso considerar fatores como as mudanças climáticas, por exemplo. Não é exagero afirmar que a superação da crise ambiental contemporânea passa pelas cidades, lugar aonde vive a maior parte da população mundial, pois, ao processarem quantidades formidáveis de trabalho, recursos naturais, energia e gerarem todo tipo de resíduos, causam forte impacto nos sistemas naturais que suportam a vida do planeta, o que atinge os seres humanos nas cidades ou fora delas.

Foi pensando nessa multiplicidade de reflexões, resultantes das relações históricas entre os processos de urbanização, o meio ambiente e as diferentes representações de natureza consolidadas por nossas sociedades, que organizamos o Seminário Cidade e Natureza, realizado em 22 de maio de 2015 na Universidade Estadual de Campinas. O evento reuniu professores e estudantes de pós-graduação de diversas áreas do conhecimento que se dedicam ao estudo das inter-relações entre os seres humanos e a natureza a partir de uma perspectiva histórica e que atuam junto ao Grupo de Trabalho em História Ambiental, da Associação Nacional de História – Seção São Paulo (ANPUH-SP). O presente Dossiê Cidade e Natureza foi organizado como forma de registro dos trabalhos apresentados no Seminário Cidade e Natureza e como continuidade das ações do Grupo de Trabalho em História Ambiental no sentido de aproximar pesquisadores e suas respectivas produções, favorecendo, assim, a promoção contínua de interações acadêmicas, diálogos interdisciplinares, trocas de experiências e divulgação científica.

Janes Jorge – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected]

Carmen Lúcia Soares – Universidade Estadual de Campinas soares. E-mail: [email protected]

André Dalben – Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]


JORGE, Janes; SOARES, Carmen Lúcia; DALBEN, André. Editorial. Urbana. Campinas, v.8, n.2, maio / ago, 2016. Acessar publicação original [DR]

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