Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries – SCOTT (AN)

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009. 256p. Resenha de: LA JOUSSELANDIÈRE, Victor Santos Vigneron de. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 339-346, jul. 2013.

Mesmo que recebida com bons olhos pela maior parte dos pesquisadores, a perspectiva interdisciplinar ainda tem um longo caminho até se tornar uma prática recorrente. Por si só, essa consta tação justifica o interesse de Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Nesse livro, Heidi Scott amplia os horizontes da pesquisa peruanista ao trabalhar no limiar entre História e Geografia, tomando por objeto a própria paisagem descrita pelos cronistas. Contudo, deter-se na valia dessa perspectiva em nada ajudaria a ultra passar as generalidades muitas vezes evocadas quando se fala em interdisciplinaridade.

Ora, essa opção engendra na obra em questão uma série de consequências analíticas, não apenas no que toca ao tema específico da colonização, mas ainda no que diz respeito à própria relação entre teoria e História. É certo que o livro de Scott encontra uma imagem mais orgânica, indistinta mesmo, entre tais temas; dividi-los, contudo, permite compreender o alcance de sua aventura por limites acadê micos tão pouco frequentados. Os impasses daí resultantes não deixam de ser uma das riquezas desse gesto.

No primeiro capítulo, Landscape and the Spanish Conquest of Peru, a autora anuncia os delineamentos básicos que darão forma às análises realizadas ao longo do trabalho. Em última instância, são essas considerações que dão coesão a uma obra estruturada por capítulos autônomos em seus temas e recortes. O principal elemento comum emerge em torno do conceito de “paisagem” (SCOTT, 2009, p. 1-15).

Segundo a autora, não se trata de reconstituir os traços dos “espaços reais” atravessados e narrados pelos cronistas, mas de atentar ao processo mesmo de “produção da familiaridade”, que os torna cognoscíveis e passíveis de descrição. A sugestão já foi desenvolvida por autores clássicos, como Edmundo O’Gorman e John Elliott (O’GORMANN, 1992; ELLIOTT, 1984, p. 9-40). Contudo, o que particulariza a análise de Scott é a ênfase dada à agência indígena nesse processo de cons trução simbólica da paisagem. A autora não deixa, aliás, de iniciar seu livro com uma crítica a Elliott, que teria dado um tom excessivamente europeu à produção da familiaridade descritiva (SCOTT, 2009, p. 1-5). A crítica a Elliott pode ser tomada como chave de leitura para o restante da obra, pois o que está em questão não é apenas uma discordância no que toca à participação indígena no processo de construção da paisagem, mas sim o próprio conceito de “colonização”. O tom hispanista adotado por aquele historiador seria apenas a manifestação de um diagnóstico mais fundamental a respeito da própria presença europeia na América. Scott argumenta que o termo se presta a uma definição demasiado uniforme da realidade americana sob a presença europeia. No que diz respeito à discussão com Elliott, procura demonstrar que sua leitura hispanista da produção da paisagem tornaria homogêneas as relações de força que não o são, não apenas no contexto peruano, mas nos variados contextos coloniais americanos na primeira Idade Moderna. O exercício historiográfico empreendido nos cinco capítulos seguintes aten de, em última ins tância, a essa preocupação no que diz respeito aos conceitos e às explicações unificadoras consagradas.

A partir do capítulo dois, Scott parte para a empiria com o fito de atestar o desvalor do conceito de “colonização”. Para tanto, a autora volta sua atenção para os momentos mais decisivos do processo de instituição do domínio castelhano no Peru. O segundo capítulo, Beyond textuality. Landscape, embodiment, and native agency, inicia esse percurso ao tratar da conquista. Perceba-se que o argumento ganha tanto mais força quanto se trata de uma primeira geração de cronistas, cuja relação com os índios peruanos, a princípio, seria superficial quando comparada com a interação existente décadas mais tarde. Esse é, por exemplo, o fundamento da periodização proposta por Franklin Pease para as crônicas andinas (PEASE, 1995, p. 15-63). Ora, acompanhar a narrativa da conquista elaborada por Nicolás de Ribera ou ainda a clássica descrição dos acontecimentos dada por Pedro Cieza de León é um recurso estratégico da autora. Se analisado em perspectiva com documentos produzidos por outras fontes, como as petições feitas ao rei pelos curacas de Jauja, esse discurso da conquista emerge como fruto de uma “experiência paisagística” mediada pelos índios (SCOTT, 2009, p. 26-36). Por um lado, a existência de uma descrição menos “literal” da paisagem por parte dos espanhóis seria fruto da rede de proteção que se interporia entre esses e a “paisagem real”. Por outro lado, esta contaria com elementos compatíveis com o acervo cognitivo europeu tendo em vista as intervenções promovidas no espaço pelos Incas, fato que teria possibilitado a localização da conquista numa “paisagem familiar” (SCOTT, 2009, p. 36-42).

Se de fato essa discussão tem por objetivo deslocar o hispanismo um tanto esquemático de Elliott, trata-se ainda de uma crítica voltada contra outra importante explicação unificadora para o período colonial peruano. Também a “história dos vencidos” é evocada por Scott por conta de seu, digamos, “excesso conceitual”. Para tanto, elege-se como interlocutor Nathan Wachtel, importante referência desse modelo explicativo que adquiriu força em meados do século XX. Se por um lado concorda em investir ao índio um papel central nas suas análises, Scott discorda do caráter “traumático” atribuído por Wachtel à conquista (WACHTEL, 1977, p. 55-64). Ao procurar relativizar a ruptura provocada por esse acontecimento, a autora tende a contrapor o caráter “negociado” da presença espanhola à “desestruturação” por este sustentada. Contrária à concepção negativista embutida no epíteto “vencidos”, Scott propõe compreender o caráter positivo da agência indígena na constituição de uma nova “experiência paisagística” no Novo Mundo.

O último item desse segundo capítulo anuncia uma das tônicas dos capítulos subsequentes. Ao mencionar as transformações ocorridas após o período da conquista, com a emergência de uma “paisagem colonial”, a autora retorna para a discussão acerca da colonização com respeito a outro de seus momentos definidores, inaugurado com a “pacificação” dos vecinos por La Gasca, em 1548 (SCOTT, 2009, p. 42-48). A partir, portanto, do terceiro capítulo, Landscapes of resistance? Peru’s ‘Relaciones geográficas’, o conceito é agora questionado justamente onde ele parecia mais apropriado. Mais especificamente, trata-se de inventariar os limites postos ao projeto de produção de cidades espanholas, isto é, de intervenção colonial na paisagem americana. Note-se que essa proposta analítica se pretende válida para uma década tão significativa quanto a de 1570, em que as incertezas quanto ao futuro da região teriam sido suplantadas pelas reformas centralizadoras do vice-rei Francisco de Toledo, funcionário talhado à imagem e semelhança de Felipe II (LOHMANN VILLENA, 1967). E o campo escolhido para tanto dificilmente poderia ser mais significativo que as Relaciones geográficas.

É nesse conjunto de informes solicitados aos funcionários reais em toda a América que Scott pretende descobrir as marcas da agência local. À primeira vista, seria corroborada aquela visão “tradicional”, notando-se a marca da política de Toledo na redução dos índios dispersos, levando à sua desvinculação da paisagem, ao mesmo tempo em que tinha lugar a “extirpação” de uma toponímia e uma geografia idolátricas. Contudo, esse mesmo tema permite à autora questionar o enquadramento binário, reputado a autores como Wachtel, que divi de as posições possíveis na sociedade colonial a dominantes e vencidos.

À diferença dessa perspectiva, Scott observa a intimidade dessas posições, havendo antes uma interpenetração de elementos culturais na constituição de algo novo. Isso seria corroborado pela Relación enviada pelo corregedor de Jauja, que permitiria observar os vaivéns dos huancas perante as instituições castelhanas, privilegiadamente emblematizadas na figura do ladino Felipe de Guacra Paucar (SCOTT, 2009, p. 60-69). Mas o que o caso particular dos huancas de Jauja sugere são as restrições generalizadas à política de reduções. Aliás, isso não se deveu apenas à obstinada mobilidade indígena, mas também à resistência oposta a esse plano por parte de muitas autoridades espanholas (SCOTT, 2009, p. 69-74). Seu interesse pessoal, imediato e concreto, muitas vezes obstaria qualquer “projeto colonial”, distante e abstrato.

O capítulo seguinte, The mobile landscapes of Huarochirí, deparase com outro contexto fundamental à afirmação da colonização peruana, tendo um papel significativo na política de “extirpação de idolatrias”, ali iniciada por Francisco de Ávila em 1610. Contudo, aquilo que poderia representar a consolidação do projeto evangelizador é lido sob outra perspectiva por Scott. Assim como a política civil de redução não teria deitado raízes, também sua equivalente eclesiástica, a paróquia, não teria impedido a mobilidade indígena (SCOTT, 2009, p. 75-107). Da mesma forma os corregedores estariam entre os principais obstáculos à política colonial, a evangelização seria atravessada pelos mais variados interesses: curas de paróquia, jesuítas, índios e funcionários reais conformariam um panorama impossível de ser reduzido a um núcleo conceitual. É particularmente interessante para a argumentação da autora a contraposição entre a exemplar Relación geográfica produzida pelo corregedor local e as formulações contidas no Manuscrito de Huarochirí (SCOTT, 2009, p. 90-98). Se aquela pode dar a ideia de uma execução zelosa das orientações filipinas, este revelaria a superficialidade da disrupção (do “trauma”) operada pelos espanhóis em seu combate à geografia idolátrica. A própria ação extirpadora é colocada em tela por Scott, que sublinha as contradições nesse processo, tendo em vista os interesses múltiplos representados pelos curas, pelos extirpadores e pelos índios. Essa situação teria dado ensejo mesmo a um estranhamento crescente perante a paisagem, narrada pelos religiosos de modo a tematizar a resistência do terreno ao conhecimento de suas propriedades idolátricas. Nada mais distante, enfim, da progressiva penetração das instituições coloniais, inclusive sob seu braço eclesiástico, no interior peruano.

Os dois últimos capítulos, Negotiating Amazonia e Contested fron tiers and the Amazon/Andes divide, possuem o interesse adicional de versarem sobre regiões pouco analisadas pela historiografia, a fronteira amazônica do vice-reino. O percurso analítico adotado no livro é conhecido: Scott parte da crítica à explicação historiográfica consagrada que associa o tema amazônico às representações edênicas. A esse respeito, o capítulo quinto retoma a significativa trajetória de Juan Recio de León para aferir até que ponto a paisagem da Amazônia boliviana teria sido objeto de uma intricada negociação. Ao analisar essa personagem, percebe-se que o próprio tema edênico é antes um “recurso discursivo” à disposição dos cronistas para defender seus interesses pessoais. Com essa constatação é possível compreender a construção da paisagem local enquanto “espaço de oportunismo”, expressão empregada por Scott em um de seus subtítulos (SCOTT, 2009, p. 111). Nesses quadros, a trajetória turbulenta de Recio de León apresenta as várias estratégias discursivas que esse ator adota, uma a uma, a depender do momento em que se encontra, jogando com as conveniências: a vantagem da conquista, seu papel missionário, a riqueza prometida pela região, os riscos representados por estrangeiros que frequentam o lugar, a possibilidade do transporte de prata pelo Amazonas, de ampliação da mão de obra indígena em Potosi.

Não deixa de ser irônico, ou melhor, significativo, que Madri seja o lugar por excelência onde essa variedade de argumentos poderia ter lugar. O volume de informações que ali chegavam e a impossibilidade de confirmação direta caracterizariam o espaço de onde, supostamente, irradiariam as diretrizes colonizadoras (SCOTT, 2009, p. 124-131). Ao mesmo tempo, trata-se de combater a visão dualista que opõe o espaço andino àquele amazônico, fato que não é indiferente a uma apropriação da própria visão incaica (SCOTT, 2009, p. 133-136). Tal intento é realizado principalmente no capítulo sexto, em que são apresentados os diversos projetos que sublinharam a possibilidade de investir na região. Possibilidade essa, destaque-se, aventada contra as expectativas da administração castelhana.

A essa altura cabe indagar-se sobre a articulação entre o encaminhamento metodológico proposto pela autora e seus resultados historiográficos. É possível perceber que toda a narrativa empreendida por Scott parte de uma posição nominalista com relação às explicações ou conceitos unificadores. Um a um, “colonização”, dualidade entre “vencedores” e “vencidos”, ruptura da conquista ou impermeabilidade da fronteira são questionados por sua incapacidade de dar conta do “real”. Lembre-se a esse respeito, que a autora não deixa de mencionar a “paisagem real” ao lado do “discurso” sobre a paisagem (SCOTT, 2009, p. 1-15). Em certa medida, portanto, o conceito encontrar-se-ia em “excesso” diante da empiria. Pelo contrário, a profusão de interesses pessoais marcaria um cenário que apenas poderia ser definido como “complexo”. Deve estar claro a essa altura que o gesto negativo empregado por Scott com relação à historiografia possui sua contraparte: a complexidade é complementada pela ênfase na ação individual (a “agência” indígena, a busca de interesses pessoais, os “espaços de oportunismo”). Fato que não é estranho ao próprio conceito de “paisagem” empregado pela autora, que recusa o distanciamento entre visão e escrita e enfatiza uma abordagem multissensorial e totaliza a experiência do meio pelo sujeito.

A “negociação” a que o discurso sobre a paisagem está submetido incorpora, por conseguinte, a própria dimensão corpórea.

Sem negar a riqueza de possibilidades assim aberta, há de se questionar a validade intersubjetiva de uma perspectiva que contrapõe as múltiplas experiências sensíveis ao trabalho do conceito.

Este não deveria encontrar sua determinação na empiria, na experiência corpórea? Longe de ser uma questão estritamente teórica, trata-se de uma dúvida que remete a alguns impasses da obra de Scott. Isso porque ao colocar lado a lado “discurso sobre a paisagem” e “paisagem real” (assim como a intervenção indígena correspondente a esses dois campos) a autora afirma a vigência do conceitual, do simbólico. Nesses termos, o conceito de “complexidade” joga um papel estratégico, sem o qual seria impossível à própria autora construir seu discurso historiográfico. Essas questões ajudam a compreender alguns dos limites da crítica feita, por exemplo, ao conceito de “trauma”, em seu uso dado por Wachtel. Se é inquestionável que este autor não aferiu de maneira correta as fundamentais continuidades demonstradas por Scott, esta tampouco considerou o fato de “trauma” supor uma relação (necessariamente prenhe de mediações) entre estrutura e acontecimento. Desse ponto de vista, é possível sustentar, ainda que numa conformação distinta daquela pretendida por Wachtel, uma experiência traumática da conquista. Da necessidade assim constatada de conjugar experiência subjetiva e operação historiográfica intersubjetiva nota-se, por fim, que, ao centrarse excessivamente no polo individual, a autora de Contested territory deu-se com uma definição oportunista do poder, que não é compreendido como relação, e sim como predicado. Nessa redução conceitual reside muito da impugnação avançada contra o conceito de “colonização”.

Referências

ELLIOTT, John H. O Velho Mundo e o Novo: 1492-1650. Lisboa: Querco, 1984.

LOHMANN VILLENA, Guillermo. Étude préliminaire. In: MATIENZO, Juan de. Gobierno del Perú (1567). Lima/Paris: IFEA, 1967. p. I-LXIX.

O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América: refl exão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir. São Paulo: Unesp, 1992.

PEASE G. Y., Franklin. Las crónicas y los Andes. Lima: PUCP/FCE, 1995.

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009.

WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus: les indiens du Pérou devant la conquête espagnole, 1530-1570. Paris: Gallimard, 1977.

Victor Santos Vigneron de La JousselandièrePossui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2008) e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professor de história da Prefeitura Municipal de São Paulo. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea. E-mail: [email protected].